Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
342/23.7T8VNF-C.G1
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: INSOLVÊNCIA
ASSEMBLEIA DE APRECIAÇÃO DO RELATÓRIO DO ADMINISTRADOR
CONVOCAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Na sentença em que declara a insolvência, o juiz pode prescindir da realização da assembleia de apreciação do relatório a que se refere o artº 156º do CIRE, desde que apresente fundamentos para essa decisão. Atendendo à importância do relatório do administrador da insolvência (artº 155º) e ao papel dos credores no processo de insolvência, aquela fundamentação é essencial.
2. A faculdade a que se refere o artº 36º, nº 3, do CIRE consubstancia um direito potestativo atribuído a qualquer interessado, constituindo o juiz do processo no poder dever de marcar a assembleia de credores.
3. O processo de insolvência visa a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência. Ao omitir a marcação a que se refere o artº 36º, nº3, do CIRE, está-se a amputar a possibilidade conferida, no caso à insolvente, de ver discutido o relatório a que se refere o artº 156º do CIRE, designadamente tendo em vista a manutenção da atividade do estabelecimento(s) compreendido(s) na massa insolvente, a decidir pelos credores.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório:

Em 15 de junho de 2023 foi apresentado requerimento com a referência citius ...81, com o seguinte teor:
“EMP01..., S.A.”, devedora nos autos à margem identificados, notificada que foi da Douta Sentença a declarar a sua insolvência vem, nos termos do artigo 36º nº 3 do CIRE, requerer a V. Exa. se digne ordenar a convocação de assembleia para apreciação de relatório porquanto pretende viabilizar-se através da apresentação de um plano de recuperação, conforme resulta aliás dos artigos 11º e 12º da oposição que nestes autos apresentou a 15.02.2023, referência ...76.
Em 26 de junho de 2023 foi prolatado o seguinte despacho, com a referência citius ...29:
Aguarde-se, por ora, a junção do relatório a que alude o artº 155º CIRE, onde o Sr. AI aquilatará da conveniência da aprovação de plano de insolvência, até à data não apresentado.
Inconformada com o despacho, a recorrente apelou, formulando as seguintes conclusões:

A) A Recorrente, por requerimento de 15.06.2023, referência ...62, peticionou, ao abrigo do disposto no artigo 36º nº 3 do CIRE, “a convocação de assembleia para apreciação de relatório porquanto pretende viabilizar-se através da apresentação de um plano de recuperação, conforme resulta aliás dos artigos 11º e 12º da oposição que nestes autos apresentou a 15.02.2023, referência ...76”.
B) O Tribunal ora recorrido, ao invés de proceder de imediato e conforme lhe competia, à convocação da assembleia de credores em causa, faz depender tal convocação do teor do relatório do Sr. Administrador Judicial, o que constitui uma manifesta violação do predito artigo 36º nº 3 do CIRE.
C) Do teor deste preceito legal resulta, inelutavelmente, que quando algum interessado o requeira, o Juiz tem de, obrigatoriamente e sem qualquer constrangimento, agendar a assembleia de credores para apreciação do relatório.
D) Acresce que, fazer depender o agendamento da assembleia de credores de um relatório do administrador judicial, não é aceitável, dado serem os credores e não o Sr. Administrador Judicial quem têm de decidir sobre o destino da sociedade.
E) Desta forma deve o Douto Despacho ora recorrido ser substituído por outro que ordene o imediato agendamento da assembleia de credores para a apreciação do relatório.
F) O Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 36º nº 3 do CIRE.
Assim decidindo, estarão V. Exas., Venerandos Desembargadores, a produzir a tão habitual e costumada JUSTIÇA!!!
Não foram apresentadas contra-alegações.
Os autos foram aos vistos das excelentíssimas adjuntas.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são, assim, apurar se, face a um requerimento formulado ao abrigo do artº 36º, nº 3, do CIRE, dentro do prazo ali previsto, o juiz pode prolatar decisão que não seja a da imediata convocação da assembleia a que se refere o artº 156º do CIRE.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:
Os factos provados com relevância para a decisão do presente recurso são os constantes no relatório.
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B. Fundamentos de direito. 
Dispõe o artº 36º, nº 3, do CIRE que “Nos casos em que não é designado dia para realização da assembleia de apreciação do relatório, nos termos da alínea n) do n.º 1, e qualquer interessado, no prazo para apresentação das reclamações de créditos, requeira ao tribunal a sua convocação, o juiz designa dia e hora, entre os 45 e os 60 dias subsequentes à sentença que declarar a insolvência, para a sua realização.”
Decorre do nº 1, do artº 1º, do CIRE que “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.”
Alexandre Soveral Martins, in “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2017, págs. 129-130, refere que “A sentença de declaração de insolvência não tem agora de conter sempre a designação do dia e hora da realização da assembleia de apreciação do relatório elaborado pelo administrador da insolvência. O juiz pode, em regra, prescindir da realização da assembleia de apreciação do relatório desde que apresente fundamentos para essa decisão. Atendendo à importância do relatório do administrador da insolvência (artº 155º) e ao papel dos credores no processo de insolvência, aquela fundamentação não pode ser descurada.
Dizemos que o juiz pode em regra prescindir da realização da assembleia porque o artº 36º, nº2, não permite que isso ocorra em três casos: se o devedor, no momento da apresentação à insolvência, requereu a exoneração do passivo restante (o que apenas é permitido para as pessoas singulares, como resulta do artº 235º); se for previsível a apresentação de um plano de insolvência  (e já sabemos que a apresentação desse plano de insolvência só é permitida quando o devedor não seja pessoa singular não empresário ou titular de pequena empresa: cfr. o artº 250º na interpretação que preferimos); se for determinada a administração da massa insolvente pelo devedor (veja-se novamente o artº 250º).
Quando o juiz prescinde da realização da assembleia de apreciação do relatório do administrador da insolvência «deve, logo na sentença, adequar a marcha processual a tal factualidade, tendo em conta o caso concreto» (artº 36º, 5). Este dever tornará a tarefa do juiz mais exigente.
E, sobretudo, pode revelar-se um trabalho inglório. É que, mesmo quando o juiz prescinda da realização da assembleia de apreciação do relatório, pode acabar por ter de designar dia e hora para que essa assembleia tenha lugar: basta que «qualquer interessado» requeira ao tribunal a sua convocação, no prazo fixado para as reclamações de créditos (artº 36º, nº 3). E, também aqui, o dia deverá situar-se entre os 45 e os 60 dias subsequentes à sentença que declarar a insolvência.
O despacho recorrido não negou expressamente a realização da assembleia de credores prevista no artigo 156º do CIRE, antes mandou juntar o relatório (objeto da apreciação), embora o ponto 7 do dispositivo da sentença de declaração de insolvência inculque ter sido essa a ideia inicial. Ora, ao não ter marcado a assembleia, o efeito útil do despacho acaba por equivaler ao de um indeferimento.
A faculdade a que se refere o artº 36º, nº 3, do CIRE consubstancia um direito potestativo atribuído a qualquer interessado, constituindo o juiz titular do processo no poder dever de marcar a assembleia de credores. Paulo Ramos de Faria, in Regime processual civil experimental – A gestão processual no processo declarativo comum experimental, Cejur, 2009, pág. 48, diz que o poder é vinculado quando o juiz deve pronunciar-se no único momento determinado por lei, no único sentido por esta admitido e com as exatas formalidades por ela prescritas.  
É exatamente este o caso.
Como decorre do artº 1º do CIRE, supracitado, o processo de insolvência visa a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência. Ao omitir a marcação a que se refere o artº 36º, nº3, do CIRE, está-se a amputar a possibilidade conferida, no caso à insolvente, de ver discutido o relatório a que se refere o artº 156º do CIRE, designadamente tendo em vista a manutenção da atividade do estabelecimento(s) compreendido(s) na massa insolvente, a decidir pelos credores. Acresce que, analisada a sentença, o tribunal recorrido nem sequer fundamentou a dispensa de tal assembleia, como é legalmente exigido.
Tem assim o recurso de ser considerado procedente, revogando-se o despacho recorrido, que deverá designar a assembleia omitida, sem prejuízo do aproveitamento dos atos já praticados que o possam ser.
No que tange às custas, considerando que não houve vencimento, mas que a recorrente tirou proveito da ação, as custas ser-lhe-ão imputadas, nos termos da parte final do artº 527º, nº1, do CPC.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto, revogando o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que designe a assembleia a que se refere o artº 156º, ex vi 36º, nº 3, do CIRE, sem prejuízo dos atos já praticados que possam eventualmente ser aproveitados.
Custas pela recorrente – artº 527º, nº1, do CPC.
Notifique.
Guimarães, 15 de fevereiro de 2024.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1ª Adjunta: Maria João Marques Pinto de Matos.
2º Adjunta: Lígia Paula Venade.