Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
702/21.8T8BGC-A.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: ARTICULADO SUPERVENIENTE
CITAÇÃO DE PESSOA COLETIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado superveniente, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão, considerando-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos dos articulados, como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos.
2 – Sendo réus uma pessoa singular e uma sociedade esta não pode considerar-se citada apenas porque o réu singular foi citado pessoalmente, ainda que ele seja seu legal representante, tendo que ser cumpridas as normas legais previstas para a citação de pessoas coletivas.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
 
AA e mulher BB, autores na ação que movem a CC e “EMP01..., Lda.”, não se conformando com o despacho proferido na audiência prévia do dia 16/01/2023, que “rejeitou o seu articulado superveniente na parte concernente ao alambique da Quinta ...”, bem como não se conformando com o despacho proferido na mesma audiência prévia, que “admitiu a contestação apresentada em 03/11/2021 pelos réus, sem que a ré EMP01..., Lda. estivesse regularmente citada, considerando-se sanada a falta de citação regular” e julgando improcedente o pedido dos autores formulado no seu requerimento de 08/10/2021 de que a citação da ré EMP01... houvera sido regularmente realizada na pessoa do réu em 14/07/2021, pelo que as contestações apresentadas em 03/11/2021 teriam de ser consideradas extemporâneas, vieram interpor recurso de tais despachos, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes
Conclusões:

A) Do recurso do despacho proferido na audiência prévia do dia 16 de janeiro de 2023 – cfr. doc. com a referência Citius ...28 de 20.01.2023 - que rejeitou o seu “(...) articulado superveniente na parte concernente ao alambique da Quinta ...” e exarado a fls. 4 da acta da referida audiência prévia:

1ª Contrariamente ao acolhido, nesta parte pelo Tribunal “a quo” relativamente ao desaparecimento do alambique da destilaria da Quinta ..., os autores, mesmo admitindo que a sua alegação poderia estar melhor estruturada dentro dos limites que lhe são possíveis, são de parecer que o cerne essencial da factualidade relevante estará contida e minimamente evidenciada na sua alegação, sendo que, no que ora importa, os autores imputam a responsabilidade do desaparecimento do alambique aos réus e até deduzem pedido indemnizatório com respeito a um bem de equipamento da Quinta que terá de ser restituído aos autores no término contratual;
2ª Pelo que entendem que o articulado, em apreço, não seria credor de censura bastante que pudesse acarretar a sua rejeição liminar, como sucedeu no caso em apreço;
3ª Quando assim não se entenda, o que não se espera, os autores sempre haveriam de ser convidados a aperfeiçoarem e a suprirem “(...) as insuficiências ou imprecisões”, nesta parte, do seu articulado superveniente, podendo, para o efeito, apresentar novo articulado complementando o anteriormente produzido;
4ª O que ora expressamente se peticiona;
5ª Tanto quanto tal faculdade foi concedida, e bem, aos réus da presente ação face a um seu pedido reconvencional;
6ª Ora, ao negar essa possibilidade aos autores, no caso em apreço, em justaposição ao deferido aos réus da presente lide, a decisão constante do despacho ora em crise é particularmente injusta e foi proferida em violação do disposto no artigo 590º, nºs 2, alínea b) e 4, todos do CPC, o que acarreta a sua invalidade.
Termos em que nos mais de Direito aplicáveis deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho em crise, como é inteira Justiça e, em sua substituição, possa ser proferida douta decisão que admita o articulado superveniente dos autores, na sua integralidade, convidando-os, se assim for entendido, a melhor suprirem as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada e na formulação do pedido formulado, podendo, para o efeito, apresentar articulado complementando o anteriormente produzido,
B – Do recurso do despacho que admitiu “(...) a contestação apresentada em 03.11.2021 pelos Réus sem que a Ré EMP01..., Lda estivesse regularmente citada, considerando-se sanada a falta de citação regular” e julgando improcedente o pedido dos autores formulado no seu requerimento de 08.10.2021 – referência Citius nº ...18 - de que a citação da ré EMP01... houvera sido regularmente realizada na pessoa do réu em 14.07.2021,pelo que fatalmente as contestações apresentadas tão somente em 03.11.201 teriam de ser consideradas extemporâneas:
1ª No modesto entendimento dos autores, a segunda ré, sociedade, EMP01... tem que se considerar citada também para a presente ação na data em que o seu legal representante, primeiro réu CC recebeu e levantou o expediente que lhe tinha sido remetido para citação, pela secção, ou seja, no dia 14 de Julho de 2021. - cfr. aviso de receção, com a referência Citius ...15, de 20.07.2021.
2ª Pelo que a apresentação das contestações de ambos o réus a 03.11.2021 é, salvo melhor e douta reflexão deste Venerando Tribunal, absolutamente extemporânea e assim as mesmas devam ser consideradas, ordenando-se que as mesmas possa ser desentranhadas dos presentes autos;
3º Ao decidir, como se decidiu no douto despacho controvertido, este violou por errada interpretação e aplicação o disposto no artigo 223º, nºs, 1 e 3 e 224º, todos do Cód.Proc. Civil, acarretando a invalidade do despacho recorrido.
Termos em que nos mais de Direito aplicáveis deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho em crise, como é inteira Justiça e, em sua substituição, possa ser proferida douta decisão que declare que a citação da ré EMP01..., Limitada para a presente ação ocorreu na data em que o seu legal representante, o primeiro réu CC, recebeu e levantou o expediente que lhe tinha sido remetido para citação, pela secção, ou seja, no dia 14 de Julho de 2021, pelo que as contestações apresentadas pelos réus em 03.11.2021 são extemporâneas, ordenando-se, em consequência, o seu desentranhamento dos presentes autos.

Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir de imediato, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver traduzem-se em saber se deveria ter sido admitido o articulado superveniente e se a contestação é tempestiva em face da citação da sociedade ré.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos com relevância para apreciação das questões que cabe conhecer constam do processo principal (a certidão vem instruída apenas com certidão das peças processuais destinadas ao conhecimento do segundo recurso, o que, certamente, decorrerá de lapso da secretaria e do facto de os apelantes terem dividido a apelação em duas partes distintas com pedido de certidão em dois momentos diferentes) que se consultou via Citius e que, face à sua extensão, nos dispensamos de aqui reproduzir.

Apreciemos, então, o primeiro recurso, que se prende com a admissão do articulado superveniente.

Nos termos do disposto no artigo 588.º do Código de Processo Civil, “Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão”; “Dizem-se factos supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes (articulados) como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência”. Conforme dispõe o n.º 4 deste artigo “O juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, foi apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa; ou ordenando a notificação da parte contrária para responder em 10 dias”.
No caso dos autos, os autores apresentaram articulado superveniente, após terem sido notificados para a audiência prévia e, tendo sido dada oportunidade aos réus para se pronunciarem sobre o mesmo, estes nada quiseram dizer, declarando apenas que se pronunciariam após o despacho que viesse a ser proferido pelo Tribunal.
Ora, em sede de audiência prévia, a Sra. Juíza, considerando a admissibilidade de articulado superveniente, nos termos dos n.ºs 1, 2 e 3, alínea a) do CPC e face à não oposição dos réus, admitiu o articulado no que respeita à sentença proferida no âmbito de um processo crime “por ser evidente quer a relevância dos factos para a presente causa, tendo em conta alguns dos pedidos formulados (e tendo até em devida consideração o disposto no artigo 623.º do C.P.C.), quer a superveniência do seu conhecimento pelos Autores, tendo em conta a data em que tal sentença foi proferida, 28.09.2022, muito depois de findos os articulados, sendo perfeitamente tempestiva a apresentação do articulado superveniente”, mas não admitiu o articulado superveniente no que respeita à questão do alambique.

Relativamente a esta questão, os autores alegaram o seguinte:
“21 - os autores também tomaram conhecimento, recentemente, que no decurso do ano de 2021 o alambique da Quinta ... terá desaparecido da Quinta.
22. Os autores não sabem, com segurança, qual a razão para tal desaparecimento, mas, a confirmar-se, estaremos perante um prejuízo adicional de mais € 50 000 euros que competirá aos réus reparar.
23. Pelo que também se impõe que esta factualidade possa também ser objecto do presente articulado
Termos em que e nos mais de direitos aplicáveis se pede que o presente requerimento possa ser liminarmente admitido, como articulado superveniente e a factualidade ora articulada e toda aquela que constar da sentença penal proferida e seja considerada relevante, possa ser admitida como tema de prova nos termos do artigo 596º do Cód.Proc.Civil e, em consequência, os réus da presente acção sejam condenados nos pedidos já formulados na petição inicial, bem ainda, condenados, solidariamente, a indemnizarem os autores pela perda do alambique em quantia nunca inferior a € 50 000, 00 euros bem ainda pela perda de valor, de reputação comercial, com lucros cessantes da Quinta ..., no mercado local e da região do Vinho do Porto e do Douro, dado que o seu valor intrínseco foi ora, também, depreciado pela conduta ilícita de foro criminal dos réus da presente acção, prejuízos estes que os autores estimam ser mais razoável e sensato postergar a determinação do seu montante e do quantum indemnizatório devido em fase de liquidação, em execução da sentença que vier a ser proferida”.

Ora, da alegação dos autores, resulta um conhecimento superveniente de um facto que poderá ser imputado aos réus, que não foi contraditado por estes, na oportunidade que lhes foi concedida, apesar de se terem reservado para momento posterior ao despacho liminar, como, aliás, decorre da lei.
Entendeu a Sra. Juíza que não foi formulado pedido de alteração/ampliação do pedido em montante correspondente, o que, salvo o devido respeito, não é correto, uma vez que, a final, os autores pedem que os réus sejam, para além do pedido inicial, condenados solidariamente a indemnizarem os autores pela perda do alambique em quantia nunca inferior a € 50.000,00, o que implica a efetiva alteração/ampliação do pedido.
Por outro lado, a Sra. Juíza entendeu que a alegação era vaga e genérica, o que acarreta o desinteresse de tais factos para a boa decisão da causa.
Também aqui não podemos concordar.
A alegação é a de que o alambique desapareceu durante o período em que os réus exploravam a quinta, pelo que lhes competirá indemnizar os autores pelo prejuízo correspondente.
Não se trata de “suspeições” ou “hipóteses”, como se refere no despacho de não admissão do articulado. Há um facto, que é o desaparecimento do alambique e a eventual responsabilidade dos réus nesse desaparecimento, com o correspondente dever de indemnização.
Daí que estão preenchidos todos os pressupostos para a admissão do articulado superveniente, devendo os réus serem notificado para responder, com a cominação de que se consideram admitidos por acordo os factos não impugnados (artigo 588.º, n.º 4, in fine e 587.º do CPC), constituindo os factos articulados tema da prova, nos termos constantes do n.º 6 do artigo 588.º do CPC.
Procede, assim, nesta parte, a apelação.

Já quanto ao despacho que admitiu a contestação apresentada em 03/11/2021 pelos réus sem que a ré EMP01..., Lda. estivesse regularmente citada, considerando-se sanada a falta de citação regular e julgando improcedente o pedido dos autores de que a citação desta ré houvera sido regularmente realizada na pessoa do réu, em 14/07/2021, pelo que as contestações apresentadas em 03/11/2021 teriam de ser consideradas extemporâneas, cremos que os apelantes não têm razão.
Verifica-se da análise do histórico do processo que, em 08/07/2021 foram enviadas pela Secção, cartas registadas com aviso de receção para citação dos dois réus – singular e sociedade – em moradas diferentes, mas que apenas foi devolvido devidamente assinado, em 14/07/2021, o aviso de receção endereçado ao réu CC.
Em 26/07/2021, foi recebida no tribunal a carta para citação da ré EMP01..., devolvida por não ter sido reclamada, tendo sido repetida a citação, conforme determina o artigo 246.º, n.º 4 do CPC, com a segunda carta a ser remetida no dia 18/08/2021 e depositada em 20/08/2021.
Ora, o facto de o réu ter sido citado pessoalmente e, portanto, ter tomado conhecimento de que foi intentada ação contra si e contra a sociedade de que é legal representante, não equivale a dizer-se que a sociedade tenha sido também citada. A citação do réu a título pessoal não vale como citação da sociedade ré.
Não há dúvida que o réu CC e a ré EMP01... são duas pessoas distintas, com regras próprias de citação, em virtude de se tratar de uma pessoa singular e uma pessoa coletiva – artigos 225.º e seguintes a 246.º e seguintes do CPC – e que a citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender (artigo 219.º do CPC), sendo a citação que “determina o início da discussão necessária a iluminar a resolução do conflito de interesses, com vista à justa composição do litígio” – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, CPC Anotado, vol. I, pág. 251.
Daí que é correto o entendimento do despacho recorrido quando aí se refere que: “bem andou a Secção quando, perante a devolução da carta remetida para a morada indicada pelos Autores como sendo a da sua sede social nos termos do disposto no artigo 228.º, n.º 1, do C.P.C., aplicável ex vi do artigo 246.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C., remeteu nova carta, em total cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 246.º do C.P.C.. Não se tendo verificado o caso previsto no n.º 2, só podia a Secção repetir a citação nos termos previstos no n.º 4 supra citado, enquadrando bem o caso dos autos de devolução da carta por não ter sido reclamada (levantada no posto dos CTT ante o aviso deixado na caixa do correio em 13.07.2021 – vide fls. 125) “nos restantes casos de devolução do expediente” mencionados na lei”.
Acresce que, como resulta da análise dos autos e é referido pela Sra. Juíza no despacho em causa, a sede da ré nem sequer era a indicada pelos autores, pelo que “não pode considerar-se a Ré sociedade citada, porque não foi observado o disposto no artigo 246.º, n.º 2, do C.P.C., no sentido de carta referida no n.º 1 do artigo 228.º do C.P.C. ser endereçada para a sede da citanda, e porque os efeitos da citação do Réu CC não poderão jamais estender-se à Ré sociedade, ainda que na prática aquele seja o legal representante daquela e tenha tido conhecimento, com a sua citação a título pessoal, da acção que foi instaurada contra ambos”.
Os próprios autores, ainda que, cautelarmente e a título subsidiário, haviam requerido nos autos, a 08/10/2021, que, a entender-se que a sociedade não estava citada, então deveria remeter-se o expediente de citação para a morada do seu legal representante.
Daí que a conclusão extraída em 1.ª instância, não mereça censura: “Estamos, assim, perante a irregular citação da Ré EMP01..., L.da, o que gera nulidade nos termos do artigo 195.º, n.º 1, do C.P.C., porquanto, no caso concreto, “a prática de um ato que a lei não prescreva, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva” influi indubitavelmente “no exame ou na decisão da causa”, estando em causa o direito de defesa do demandado que não foi correctamente citado ou, melhor, não foi citado tout court. Sendo nula a citação feita à Ré EMP01..., L.da, tudo se passa como se não tivesse sido chamada à acção, impondo-se a repetição da citação, desta feita para a morada da sede social contante do registo comercial. Contudo, sem que o Tribunal se tivesse pronunciado atempadamente sobre a questão, os Réus anteciparam-se, apresentando motu proprio a sua contestação-reconvenção em 03.11.2021, que só pode ser considerada tempestiva por não estar a correr qualquer prazo, em relação à Ré sociedade, àquela data”.
Assim, tem que considerar-se tempestiva a apresentação da contestação, sem necessidade de anulação de todo o processado e nova citação da ré, pois, como bem se decidiu “a prática antecipada de um acto legal jamais pode ser considerada inadmissível, tendo em conta o princípio da economia e celeridade processuais”.
Improcede, assim, nesta parte, a apelação.

III. DECISÃO

Em face do exposto decide-se julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
- revoga-se o despacho que rejeitou o articulado superveniente, que se substitui por outro que admite o articulado superveniente na parte concernente ao alambique da Quinta ..., seguindo-se os ulteriores termos previstos no artigo 588.º, n.º 4, in fine e 6 do CPC;
- confirma-se o despacho que admitiu a contestação dos réus, sem que a ré EMP01..., Lda. estivesse regularmente citada, considerando sanada a falta de citação regular.
Custas por apelantes e apelados, na proporção de metade para cada.
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Guimarães, 8 de fevereiro de 2024

Ana Cristina Duarte
Alcides Rodrigues
Raquel Tavares