Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
232/21.8T8FAF.G1
Relator: MARIA LUÍSA RAMOS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RESOLUÇÃO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. É de três meses o prazo de caducidade do direito de resolução do contrato de arrendamento com o fundamento de mora igual ou superior a três meses (artº 1085º-nº2 do Código Civil).
II. No caso concreto, estabelecendo-se por via do artº 1039º-nº2, parte final, do Código Civil, uma presunção legal de tempo e lugar do pagamento da renda, nos termos do artº 344º, do citado código, ocorre a inversão do ónus da prova da verificação de pagamento atempado, ao credor/locatário incumbindo o ónus da prova da existência de mora, designadamente ilidindo a presunção legal estabelecida.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

P... - IMOBILIÁRIO, intentou a presente acção declarativa de condenação contra AA, peticionando que: a) Seja a Ré condenada a pagar à A. a quantia de 31.893,60€, a título de rendas não pagas desde setembro de 2004 a março de 2021, acrescidas de 50% até fevereiro de 2019 e de 20%, a partir de março de 2019, inclusive, acrescida dos juros à taxa legal, contados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento; b) Seja a Ré condenada a proceder à entrega imediata dos locados, livres de pessoas e bens; c) Seja a Ré condenada nas custas e demais encargos legais.
Alega, para tanto, que é dona e legítima proprietária dos seguintes prédios: 1-Casa de ..., ... andar e logradouro, sito na rua ..., ..., freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...91 e inscrito na matriz urbana sob o artigo ...75 e ...-Casa de ..., uma loja comercial com 35 m2 e duas com 20,80 m2 e 11,30 m2 e logradouro com um tanque e ... andar, sita na Rua ..., ..., freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...92 e inscrita na matriz urbana sob o artigo ...76.
Os quais advieram à sua posse e propriedade por aquisição a BB, por escritura de compra e venda de 30/1/2020.
A onerar as lojas correspondentes aos nºs de polícia ...1 e ...9, existe celebrado um contrato de arrendamento comercial a favor da Ré, contrato de arrendamento esse que foi celebrado por forma verbal e pelos pais da dita BB, o que ocorreu há mais de 30 anos.
A Ré já não paga renda desde Agosto de 2004, devendo o montante de € 21.810,40, a que acresce penalização de 50% do valor da renda até Fevereiro de 2019 e de 20% sobre esse valor, desde Março de 2019.
A anterior proprietária transmitiu para a A. o direito ao recebimento de renda desde Setembro de 2004, bem como o direito a resolver o contrato com esse fundamento.
Tal documento – transmissão de direitos, foi notificado à Ré, através de notificação judicial avulsa, cumprida em 6/10/2020, na qual se deu igualmente conhecimento à Ré da resolução do contrato de arrendamento.
A Ré terá comunicado que, na sequência de recusa da anterior proprietária em receber a renda, tem procedido ao seu depósito, desde Fevereiro de 2020.
Alega que a R. muito bem sabia que A dita BB já não era proprietária e, como tal, não podia receber as rendas.
Regularmente citada para contestar, a R. veio fazê-lo, por excepção e impugnação.
Em sede de excepção, invoca a falta de interesse em agir, o erro na forma do processo, a falta de causa de pedir, a caducidade do direito da A. à resolução do contrato e a prescrição do seu direito a receber as rendas correspondentes a setembro de 2004 a março de 2016 (inclusive).
Em sede de impugnação, alega que a renda relativa ao locado era paga no primeiro dia útil do mês a que dizia respeito, no local arrendado, sempre tendo cumprido as suas obrigações.
No entanto, nunca lhe foi passado recibo da mesma, tendo a R. confiado que jamais lhe seria exigido aquilo que já pagou.
Mais refere que a renda, por vezes, era paga com a aquisição de artigos e produtos que a Ré vendia na loja, os quais a anterior proprietária adquiria e depois se faziam os acertos.
Sustenta ainda que em fevereiro de 2020, a anterior proprietária não se deslocou ao locado, como de costume, para receber a renda, o mesmo sucedendo nos primeiros dias do mês de Março seguinte.
Estranhando a sua ausência, a Ré deslocou-se à residência da mencionada BB a fim de lhe pagar a renda, o que não veio a suceder, uma vez que a mesma se recusou a recebê-la, sem lhe dar qualquer explicação.
A Ré estranhou a atitude da sua senhoria e, aconselhada por familiares, resolveu fazer um depósito bancário (consignação em depósito) por fundamento em recusa de recebimento de rendas por parte da senhoria.
Fez o depósito da renda de Fevereiro, acrescida de penalização de 20%, na Banco 1..., à ordem do Juízo Local Cível ..., por ser o da situação do local, o que vem fazendo desde então, todos os meses.
A Ré enviou uma comunicação escrita à sua senhoria, sob registo, datada de 06/03/2020, que aquela recebeu, onde lhe comunicava ter procedido ao depósito das rendas de fevereiro e março de 2020, e que continuaria a efetuar o depósito da renda na Banco 1... se nada lhe fosse dito em contrário.
Apesar de receber aquela missiva, a mencionada BB não contactou com a Ré, não lhe deu qualquer explicação nem respondeu à missiva.
Posteriormente, a Ré comunicou à A., por carta registada, datada de 12/10/2020, que a renda tem vindo a ser paga, desde março de 2020, por motivo de recusa da anterior senhoria, na Banco 1... e pede para ser informada, pela Autora, como pretende que o pagamento da renda relativa ao mês de novembro seja feito, concluindo que, na falta de resposta, será considerado que a Autora pretende a manutenção da situação tal como se encontra.
Refere ainda que a Autora não interpelou a Ré para proceder ao pagamento das rendas alegadamente em divida, sob a cominação de resolução do respetivo contrato de arrendamento por um dos meios referidos no artigo 9º, nº 7, da Lei nº 6/2006, de 27/02, com observância do disposto no artigo 1083º, nº 6, do Código Civil, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 13/2019 de 7 de março, pelo que o contrato de arrendamento mantém plena validade e eficácia, tudo se passando como se a resolução não existisse.
Relativamente à indemnização (de 50% e 20% sobre o valor das rendas) peticionada, refere que a mesma é alternativa ao direito de resolução que a A. vem exercer.
Termina pedindo que a A. seja condenada como litigante de má fé, em multa e em indemnização a favor da R., em montante não inferior a €3.500.
A Autora ofereceu resposta à matéria de excepção e à peticionada condenação como litigante de má fé.
Foi dispensada a realização de audiência prévia e proferido despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as excepções de falta de interesse em agir, erro na forma do processo e ineptidão da petição inicial, mas parcialmente procedente, por provada, a excepção peremptória de prescrição, tendo-se considerado prescrito o direito da A. às rendas relativas aos meses de Setembro de 2004 até Setembro de 2015, inclusive, absolvendo-se a R., neste parte, do pedido (artigo 310.º, al. b) do CC).
Relegou-se para final o conhecimento da excepção peremptória de caducidade. Foi fixado o objecto do litígio e os temas da prova.
Realizado o julgamento foi proferida decisão a julgar a acção parcialmente procedente e provada, nos seguintes termos:
“Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:
a. Julga-se procedente, por provada, a excepção peremptória de caducidade do direito da Autora a resolver o contrato com base na mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda (artigos 1083.º, n.º 3 e 1085.º, n.º 2, ambos do Cód. Civil), mantendo-se o contrato, consequentemente, em vigor;
b. Condena-se a Ré AA a pagar à Autora P... - IMOBILIÁRIO, a quantia de € 5.699,2 (cinco mil, seiscentos e noventa e nove euros e vinte cêntimos), acrescida de juros, vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor para as operações civis, desde a citação, até efectivo e integral pagamento;
c. Absolve-se a Ré do demais peticionado pela A.
(...) “.

Inconformadas vieram a Autora e a Ré recorrer, interpondo recurso de apelação.

Os recursos foram recebidos como recursos de apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo.

Nas alegações de recurso que apresenta, as apelantes formulam as seguintes Conclusões:

A) Recurso de Apelação interposto pela Autora P... - IMOBILIÁRIO

1-O contrato de locação tem como essencial obrigação do locador a entrega da coisa locada e, para o locatário, o pagamento da renda – arts. 1031º, a) e 1038º, a) do CC.
2- Não sendo paga a renda na data acordada durante 3 meses, forma-se na esfera jurídica do locador o direito de resolver o contrato – artigo 1083º, nº1 e 3 do CC – a resolução pode ser efetuada judicial ou extrajudicialmente – artigo 1047º do CC.
3- O direito de resolução pode ser feito caducar se o locatário, até ao termo do prazo da contestação (resolução judicial) ou no prazo de um mês (após comunicação extrajudicial) pagar todas as rendas em atraso e uma indemnização de 20% sobre o valor das rendas – artigos 1048º, nº1 e 1084º nº3 do CC.
4- Revertendo ao caso dos autos, resultou provado que, a Ré não procedeu ao pagamento das rendas em falta relativas aos meses de Outubro de 2015 a Janeiro de 2020, passando a partir de Fevereiro de 2020, a proceder o seu depósito à ordem do Tribunal na Banco 1....
5- Ora, a Autora é a atual proprietária do imóvel por força da transmissão da posição do locador, nos termos do art.º 1057.º do CC, pelo que, assume os direitos e obrigações que decorram dele a partir do momento da sucessão.
6- A Autora veio comunicar a resolução do contrato de arrendamento através de notificação judicial avulsa, invocando o fundamento do artigo 1083º, nº4 do CC.
7- O prazo de caducidade do direito de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, a que se refere o art. 1085º, nº2, do CC, é de três meses a contar do conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, ou seja, a contar, não do conhecimento da falta de pagamento da renda, mas do conhecimento da existência demora de três meses no pagamento da renda(fundamento expresso no art. 1083º, nº3 do CC), pelo que o seu dies a quo nunca pode ser anterior ao decurso deste prazo de atraso no pagamento da renda.
8- Da compatibilização dos artigos 1041º, nº2 e 1083º, nº3, do CC, ressalta que só existe mora com consequências na relação contratual estabelecida com o senhorio, se o arrendatário não purgar a mora até ao termo dos 8 dias a contar do seu começo, sendo que somente a partir do 9º dia após a data do vencimento da renda sem que o arrendatário efetue o respetivo pagamento, é que se considera que entra em mora relevante.
9- Pelo que, no caso dos autos a caducidade para resolver o contrato de arrendamento operava no dia 8/10/2020 e não no dia 1/10/2020.
10- Assim, à data da comunicação à Ré, a resolução do contrato de arrendamento, concretizado em 06/10/2020, ocorria o fundamento daquela previsto no artigo 1083º, nº3, com referência às antecedentemente referidas rendas, não tendo caducado o direito da Autora à resolução com aquele fundamento.
11- Acresce que, a consignação em depósito das rendas efetuada pela Ré desde Fevereiro de 2020, com fundamento na alegada recusa da anterior senhoria em receber a renda, não produz o efeito liberatório previsto no artigo 1084º, nº3 do CC, in fine.
12- A consignação em depósito, com vista à extinção da obrigação, é facultativa, pressupondo porém enquanto expediente capaz de liberar de forma definitiva, o devedor, da verificação de uma situação prevista nas alíneas a) e b), do art. 841º do CC.
13- O arrendatário não poderá, por conseguinte, depositar, sem previamente ter tentado em vão pagar, no tempo e lugar próprios, integralmente o montante exigível;
14- É ao inquilino que incumbe provar a existência de qualquer dos casos em que lhe é permitido depositar as rendas (art.343º, nº2 do CC), mas não depende do livre arbítrio do inquilino em escolher o fundamento do depósito.
15- Como supra se referiu a Ré invocou como fundamento para a consignação em depósito, a alegada recusa da anterior senhoria em receber a renda, porém, não logrou provar tal factualidade (cfr. facto não provado na alínea f)).
16- Contudo, entendeu o Tribunal recorrido, que existiam outros fundamentos para a consignação em depósito, que a Ré aludiu na contestação, e que tornam a aludida consignação em depósito legítima, o que não podemos concordar.
17- No que concerne ao primeiro dos fundamentos, não corresponde à verdade que, a Ré estava em dúvida quanto à identidade do credor, não se justificando o recurso à consignação em depósito ao abrigo da alínea a), do nº1 do artigo 841º do CC.
18- Com efeito, a Ré nunca alegou estar em dúvidas quanto à identidade do seu credor, antes pelo contrário, sempre assumiu que a senhoria continuava a ser a anterior proprietária BB;
19- Tanto assim é que, procedeu à consignação em depósito das rendas em Março de 2020, com fundamento na recusa da anterior proprietária em receber as rendas (o que não se veio a provar), e após o depósito, enviou uma comunicação escrita à aludida BB, por carta registada com aviso de receção, datada de 6/3/2020 e recebida a 9/3/2020, onde lhe comunicava ter procedido ao depósito da renda dos meses de Fevereiro e Março do ano de 2020, a primeira com acréscimo de 20%, em virtude daquela se ter recusado a receber as rendas que lhe foram oferecidas e que continuaria a fazê-lo, até que algo lhe fosse dito em contrário (cfr. facto provado em 18)).
20- Ora, não logrando provar que tentou em vão pagar no tempo e lugar próprios à aludida BB, não podia a Ré proceder ao depósito, pelo que a aludida consignação em depósito não é legítima.
21- No caso de assim não se entender, resultou provado que a Ré teve conhecimento, verbalmente e no próprio dia da celebração da escritura de compra e venda realizada no dia 30 de Janeiro de 2020, assim como da identidade da compradora, apesar de não obter informação sobre a sede daquela (cfr. facto provado em 27)).
22- Portanto, ao efetuar a consignação em depósito com fundamento de que anterior proprietária se recusou a receber (o que não logrou provar), a Ré de forma ardilosa, finge com marcada fé não saber da existência de um novo proprietário, nem da sua identidade, o que consubstancia a violação do princípio da boa-fé (art.767º, nº2 do CC).
23- Assim, fenece o fundamento para a consignação em depósito, plasmado no artigo 841º, nº1 al. a) do CC.
24- Quanto ao segundo fundamento, de que, não tendo resultado provada a existência de uma convenção que fixasse o local do cumprimento da obrigação de pagamento da renda, deve ser chamada à colação a regra supletiva do art.1039º do CC, presunção essa que a Autora não logrou ilidir, também não podemos concordar.
25- Era ao arrendatário que incumbia provar a existência de qualquer dos casos em que lhe é permitido depositar as rendas (art.343º, nº2 do CC), sendo que, apesar de a Ré ter invocado nos seus artigos 69º e 70º da contestação que a renda era paga no local arrendado, e que antes dos depósitos liberatórios que a Ré fez em Março de 2020, a anterior proprietária ia receber as rendas ao local arrendado, tal como havia sido inicialmente estipulado, o certo é que não logrou provar tal factualidade (cfr. alíneas a) e d).
26- Como tal, o fundamento para a consignação em depósito, plasmado no artigo 841º, nº1 al. b) do CC, não tem razão de ser.
27- Pelo que, a consignação em depósito das rendas não é legítima.
28- Mesmo que assim não se entenda, o que não se concebe nem concede, e por mera cautela, ainda que se considere que, havia fundamento para a consignação em depósito das rendas, o certo é que, o depósito efetuado pela Ré não preenche os requisitos do valor que devia ser depositado no âmbito dos citados arts. 1041º, nº1, 1042º, nº2 e 1048º nº1 do CC.
29- Se o arrendatário estiver em mora, há-de oferecer ainda, além das rendas em atraso, uma indemnização correspondente a 50% das rendas devidas, até à entrada em vigor da Lei 13/2019, de 12/2, e a partir da entrada em vigor desta lei, 20% do mesmo montante, nos termos do preceituado no artigo 1041º, n.º 1 CC.
30- Acontece que, no caso em apreço, a Ré decidiu unilateralmente proceder ao depósito das rendas, em Março de 2020, relativa ao valor da renda de Fevereiro desse ano, acrescida de indemnização de 20%.
31- Porém, daí em diante, continuou a efetuar o depósito das demais rendas em singelo, - sem qualquer acréscimo de indemnização.
32- A Ré não pagou até hoje a indemnização de 50% e 20% sobre cada renda em atraso, quando devia fazê-lo pois as rendas posteriores a Março de 2020, ter-se-ão de considerar pagas fora do prazo devido – havia dívidas desde Outubro de 2015.
33- Como tal, não opera a caducidade do direito de resolução, por não estarem preenchidos os requisitos estabelecidos no art. 1048º, nº 1 do CC (nomeadamente, pelo não depósito dos valores exigidos para o efeito nos termos do art. 1041º, nº 1 do CC).
34- Assim sendo, o contrato de arrendamento celebrado entre as partes, deve ser declarado resolvido.
Contudo e sem prescindir,
35- Caso assim não se entenda, o que somente por mera cautela de patrocínio se equaciona, não se poderá concordar com o segmento decisório na parte em que apenas condenou a Ré no pagamento das rendas em atraso, e não condenou simultaneamente no pagamento da indemnização prevista no artigo 1041º, nº1 do CC, designadamente, até à entrada em vigor da Lei 13/2019, de 12/2, uma indemnização igual a 50% do que for devido e a partir da entrada em vigor desta lei, de 20% do mesmo montante.
36- Reconhecendo-se a caducidade, e consequentemente não resolvendo o contrato de arrendamento, não resta outra alternativa ao presente Tribunal do que condenar a Ré também no pagamento da indemnização prevista no artigo 1041º, nº1 do CC.
37- Como resultou provado a Ré não pagou as rendas de Outubro de 2015 até Janeiro de 2020, inclusive.
38- Considerando a alteração legislativa da Lei 13/2019, de 12/2, significa que de Outubro de 2015 a Fevereiro de 2019 (42 meses), a Ré deve à Autora uma indemnização igual a 50% do que for devido (109,60€ x 50% = 54,80€), o que perfaz o total de 2.301,60€ (45,80€ x 42 meses).
39- Sendo que, a partir de Março de 2019 até Janeiro de 2020 (11 meses), a Ré deve à Autora uma indemnização igual a 20% do que for devido (109,60€ x 20% =21,92€), o que perfaz o total de 241,12€ (21,92€ x 11 meses).
40- Pelo que, a Ré deve ser condenada a pagar à Autora para além das rendas em atraso desde Outubro de 2015 a Janeiro de 2020 (52 meses) no montante de 5.699,20€, também condenar a Ré a pagar à Autora a penalização prevista no artigo 1041º, nº1 do CC, no montante total de 2.542,70€.
41- A douta sentença recorrida, decidindo como decidiu, violou, frontalmente, o disposto nos artigos 343º, nº2, 762º, nº1, 841º, nº1 als. a) e b), 1028º, nº2, 1041º, nº1, 1042º, nº2, 1048º, nº1, 1084º, nº3, e 1085º, nº2 todos do CC.
42- Pelo que, deve ser proferido douto acórdão que revogando a sentença recorrida, julgue a ação parcialmente procedente por provada, declarando improcedente a exceção perentória de caducidade, e consequentemente, declarando resolvido o contrato de arrendamento, mantendo a condenação da Ré no pagamento à Autora das rendas em atraso no montante de 5.699,20€, ou no caso de assim não se entender, manter a condenação da Ré no pagamento à Autora das rendas em atraso no montante de 5.699,20€ e condenar também a Ré a pagar à Autora o valor da indemnização de 50% de Outubro de 2015 a Fevereiro de 2019, no montante de 2.301,60€ e de 20% de Março de 2019 a Janeiro de 2020, no montante de 241,12€.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se em consequência a douta sentença recorrida e substituindo-a por outra que, julgue improcedente a exceção perentória de caducidade, e consequentemente, declare resolvido o contrato de arrendamento, mantendo a condenação da Ré no pagamento à Autora das rendas em atraso no montante de 5.699,20€, ou no caso de assim não se entender, manter a condenação da Ré no pagamento à Autora das rendas em atraso no montante de 5.699,20€ e simultaneamente, condenar a Ré a pagar à Autora o valor da indemnização de 50% de Outubro de 2015 a Fevereiro de 2019, no montante de 2.301,60€ e de 20% de Março de 2019 a Janeiro de 2020, no montante de 241,12€, com as legais consequências.

B) Recurso de Apelação interposto pela Ré AA

1º- A Ré/recorrente não se conforma com a douta decisão proferida, que a condena a “a pagar à Autora P... - IMOBILIÁRIO, a quantia de € 5.699,2 (cinco mil, seiscentos e noventa e nove euros e vinte cêntimos), acrescida de juros, vencidos e vincendos, à taxa legal em vigor para as operações civis, desde a citação, até efectivo e integral pagamento”.
2º- Apear do respeito devido, a Ré/recorrente considera que o Tribunal a quo errou na apreciação da prova, fez errada apreciação e interpretação dos factos e, consequentemente errada aplicação do direito.
3º- Por isso, através do presente recurso, a Ré/ recorrente visa atacar a decisão proferida sobre a matéria de facto e consequente aplicação do direito, uma vez que a prova produzida em audiência de julgamento se encontra gravada.
4º- A Ré/recorrente entende que se mostram incorretamente julgados os factos constantes nos pontos 8. e 15. dos factos provados, bem como nas alíneas c) d) e e)) dos factos não provados.
5º- Ao contrário do que se defende na decisão recorrida, conjugadas as declarações prestadas pelas testemunhas arroladas pela Ré/recorrente e pela Autora, designadamente as testemunhas BB e CC, que são comuns a ambas as partes, assim como das testemunhas DD, EE e FF, sem perder de vista o próprio depoimento da Ré e do legal representante da Autora, GG, cremos que a decisão sobre a factualidade constante: (i) nos pontos 8. e 15. dos factos provados; e (ii) nas alienas c), d) e e) dos factos não provados, devia ser outra.
6º- Na fundamentação de facto, o Tribunal a quo considera que a Ré não fez prova do pagamento das rendas, como lhe competia, dando total credibilidade à testemunha BB (ex-proprietária do locado) e à sua filha CC, em detrimento dos depoimentos das testemunhas EE, EE e DD.
8º- Com o devido respeito, a Ré/recorrente não pode concordar com tal decisão, tanto mais que dos depoimentos das testemunhas em que o Tribunal a quo fundou a sua convicção, resulta evidente que o negócio celebrado com a Autora/recorrida teve como condição a alegada existência de rendas em atraso, sendo este o motivo que serviria de fundamento para resolver o contrato de arrendamento com a Ré, sem qualquer indeminização ou compensação.
9º- Assim, por via do presente recurso, a Ré/recorrente pretende, antes de mais, atacar a decisão proferida sobre a matéria de facto, mais concretamente, os pontos 8. e 15. do elenco dos factos provados e as alíneas c), d), e e) do elenco dos factos não provados.
10º- Dir-se-á que a questão fulcral que se discute nos presentes autos é a de saber se existem rendas em divida, concretamente, as rendas de Outubro de 2015 em diante.
11º- No caso, tendo sido consideradas prescritas as rendas vencidas entre Agosto de 2004 e Setembro de 2015, e estando apenas em causa as rendas vencidas a partir desta data, não resulta provada toda a factualidade constante no ponto 15. dos factos provados.
12º- De resto, por força da prescrição, da qual já se conheceu no saneador, apenas então em causa as vencidas de Outubro de 2015, inclusive, em diante.
13º- Portanto, do que se cuidou nestes autos, foi de saber se tais rendas foram efetivamente pagas pela Ré e se os pais da anterior senhoria ou esta passaram recibo.
14º- No que se refere ao ponto 15. dos factos provados, a Ré/recorrente considera que o Mmº Juiz não apresenta uma razão válida para incluir nesse concreto ponto 15 dos factos provados, a referência ao ano de 2004, mais concretamente “antes de Agosto de 2004”.
15º- De resto, a única razão que nos parece ter levado o Mmº Juiz a incluir a referência (antes de Agosto de 2004) prende-se com o facto de a Autora ter fundamentado a presente ação na falta de pagamento das rendas desde Agosto de 2004.
16º- Contudo, tal conclusão não se mostra minimamente sustentada na prova produzida, uma vez que não resulta do depoimento da testemunha HH nem da filha desta, a testemunha CC, que a Ré apenas pagou renda até Agosto de 2004.
17º- Não se pode olvidar que tanto a anterior proprietária como a filha desta, as testemunhas BB e CC, admitiram ter feito compensação de rendas com artigos adquiridos na loja da Ré, embora tenha referido que isso já não sucedia há muito tempo (certamente há mais de 10 anos).
18º- Contudo, ainda que se admitisse como verdadeira tal afirmação que não admite, daqui não se pode concluir que a renda não era paga desde 2004, uma vez que entre 2004 e 2022, altura em que foram prestadas as declarações, já havia decorrido dezoito anos. Assim sendo, não se pode aceitar que a não emissão de recibos de renda efetivamente paga fique limitada ao período anterior a Agosto de 2004, uma vez que resulta da prova produzida, que depois dessa data e até Janeiro de 2020, as rendas foram pagas.
19º- Em conformidade, este concreto ponto da matéria de facto deve ser alterado para que dele deixe de constar a expressão “antes de Agosto de 2004”.
20º- O Tribunal entendeu que a Ré não fez prova do pagamento das rendas de Outubro de 2015 a Janeiro de 2020, tendo dado como provado o ponto 8. dos factos provados, e não provados os factos constantes das alíneas c), d) e e) e dos factos não provados.
21º- No caso, perante as versões contraditórias das testemunhas apresentadas pelas partes no que diz respeito ao alegado pagamento das rendas, o Tribunal conferiu credibilidade a testemunha II e a filha desta, CC, em detrimento das testemunhas arroladas pela Ré.
22º- Apesar do respeito que sempre é devido por opinião contrária, não se compreende como é que o Tribunal a quo fundamenta e alicerça a sua convicção no depoimento das mencionadas testemunhas, quando as mesmas referem que o negócio (leia-se, venda do imóvel onde se encontra o locado) teve como condição a falta de pagamento da renda da inquilina.
23º- Não podia o Tribunal ignorar tal como foi referido, que a testemunha BB vendeu os prédios, que a Autora/recorrida comprou, com a condição de ter rendas em atraso, condição esta que serviria de fundamento para resolver o contrato de arrendamento com a Ré, sem qualquer indeminização.
24º- Quer as testemunhas arroladas pela Ré/recorrente, quer as
 testemunhas arroladas pela Autora/recorrida confirmam que a renda era paga à BB todos os meses, no entanto, haviam meses que acertavam contas, com produtos que esta ultima testemunha ou as filhas desta, adquiriam na loja.
25º- Não deixa de ser significativo que a BB, ex proprietária e senhoria, havendo rendas em divida, nunca tenha interpelado a Ré/recorrente para o pagamento.
Detemo-nos, então, nos depoimentos das testemunhas que na opinião da Ré/recorrente permitem a alteração da matéria de facto.
26º- A testemunha BB, ao longo do seu depoimento, gravado em julgamento, no dia 02/03/2022 sob o n.º 20220302113845_5889270_2870580, admite que ora recebia a renda na loja da Ré/recorrente ora era a Ré/recorrente que ia entregar a renda, tanto a ela como as filhas [minutos 05.18 a 05.42]. Disse que fazia compras na loja da Ré/recorrente e que o valor das compras era descontado no valor da renda, sendo que não passava recibos do valor recebido das rendas. [Minutos 06.18; 17.49 a 18.13.]
27º- Questionada sobre o montante da renda e a quem a renda era paga, aos minutos [19.19 a 20.22] a testemunha esclarece que o valor da renda paga era de cento e vinte cinco euros e que a renda tanto era paga a ela como às filhas.
28º- A testemunha CC, filha da testemunha anterior, que prestou depoimento em audiência do dia 02/03/2022, cujo depoimento se encontra gravado sob o nº 0220302120414_5889270_2870580, contradiz o depoimento da mãe, quando diz que a mãe passava recibo da renda. [minutos 17.53 a 18.18]. Fala sobre os contornos do negócio referindo que a compra só se concretizava se houvesse rendas em atraso, isto é a existência de rendas em atraso foi condição para a realização do negócio. [minutos 16.50 a 17.00 e minutos 21.47 a 22.15]
29º- Atentas as regras da experiência e a demais prova produzida, não podem resultar quaisquer dúvidas que as testemunhas BB e CC tem interesse direto no desfecho da ação, porquanto terão garantido à compradora que havia rendas em atraso, mas até então, durante mais de dezasseis anos nada fez para por termo à alegada situação de incumprimento da Ré.
30º- Não deixa de ser significativo que a Autora/recorrida alegue que a Ré/recorrente não paga renda mensal no valor de 109,00€, desde 2004, quando a testemunha BB refere que a renda era de 125,00€.
31º- Não deixa de ser estranhíssimo, fugindo às regas da experiencia comum que a anterior proprietária, a testemunha BB, tenha permitido, que a Ré/recorrente permanecesse no locado mais de dezasseis anos, sem pagar qualquer renda, sendo altamente improvável um qualquer ato de generosidade da sua parte.
32º- Não obstante todas estas contradições e incoerências, conjugado o depoimento da Ré/recorrente com os depoimentos das demais testemunhas, concretamente as testemunhas EE, EE e DD, resulta claro que a renda mensal devida pela ocupação do locado, relativa ao período de Outubro de 2015 a Janeiro de 2020, foi atempada e pontualmente paga.
33º- A Ré/recorrente, AA, no seu depoimento gravado no dia de audiência de julgamento, no dia 02/03/2022 sob o n.º 20302103647_5889270_2870580, quando questionada sobre o pagamento das rendas, refere [mimutos 06.60 a 08.30] que nunca faltou ao pagamento; que a renda era paga na loja, tanto à BB, como a filha desta, em dinheiro e quando faziam compras na loja, posteriormente acertavam as contas; que sempre pagou a renda à senhoria, sem recibos [ minutos ...7 a 11.46] que em 2015 a renda foi fixada em 125,00€ [ minutos 13.50 a 14.15] e que a renda era paga todos os meses no mês a que dizia respeito, à seus senhoria ou a filha CC. [Minutos 15.14 a 16.06], sendo que quando compravam brinquedos, o que acontecia muitas vezes, depois acertavam as contas [minutos 23.02 a 23.26 e 27.10 a 30.00]
34º- A testemunha DD, no seu depoimento gravado sob o n.20220302141249_5889270_2870580, no dia 02/03/2022, explica como conheceu a AA, referindo que teve uma loja na mesma Rua, ao lado de uma loja da Ré [minutos 004.49 a 00.54] que viu várias vezes a BB a ir ao estabelecimento receber a renda e abater às compras que fazia na dita loja [minutos 002.48 a 00.12]
35º- Por sua vez, a testemunha EE no depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento do dia 02/03/2022, gravado sob o n.º 20220302142456_5889270_2870580, refere que viu a Ré/recorrente, AA, a pagar a renda tanto à BB, como à filha JJ, que nunca houve recibos e que entre a Ré/recorrente e a senhoria havia ceros de contas por causa de compras que a senhoria e as filhas faziam na loja. [minutos 04.05 a 06.46)
37º- Também, a testemunha FF, ouvida em audiência de discussão e julgamento do dia 02/03/2022, sob o n.º 20220302144248_5889270_2870580, testemunhou que a renda era paga no estabelecimento, e era habitual a BB fazer compras na loja da irmã AA. Sobre o método de pagamento da renda era em “nota” (dinheiro) e que nunca lhe foram passados recibos. [ minutos 02.12 a 4.15]
38º- O Tribunal desvalorizou o depoimento destas testemunhas, duas delas irmãs da Ré e a outra que explorou uma loja perto do locado, referindo que “…, vieram, em suma, procurar sustentar que não havia rendas em divida, e que, inclusivamente, por extraordinária coincidência, chegara a presenciar, por várias vezes, o pagamento da renda, encontrando-se no interior da loja quando a anterior senhoria lá se deslocou e constatando as entrega, em mão, do dinheiro”.
39º- Acontece que não obstante duas das testemunhas serem irmãs da Ré, pelas mesmas foi dito terem as suas lojas ao lado do locado, o mesmo acontecendo com a testemunha DD, que teve uma loja naquela Rua até há cerca de quatro anos atrás.
40º- Vale isto por dizer que independentemente da relação familiar existente, todas as testemunhas tinham conhecimento direito dos factos que relataram, uma vez que os vivenciaram na primeira pessoa. Além disso, são conhecedoras do dia-a-dia da Ré, sendo perfeitamente normal que num período tão alargado – de Agosto de 2004 a Janeiro de 2020 – tivesse assistido aos episódios que relataram ao Tribunal quanto ao pagamento da renda por parte da Ré/recorrente.
41º- Não se olvida que cada uma destas testemunhas tivesse os seus afazeres profissionais. Contudo, certamente foram muitos os dias e horas em que não havia clientes a entrar pela loja e que havia tempo para estarem umas com as outras, nas lojas umas das outras.
42º- Com o devido respeito, a Ré/recorrente também não pode aceitar que se considere ser credível o depoimento das testemunhas BB e KK, anterior senhoria e filha desta, no sentido de que a Ré não pagava as rendas durante todos estes anos – mais de dezasseis anos – e mesmo assim nada tenha sido feito para por combro à alegada falta de pagamento das rendas.
43º- É, no mínimo estranho, para não dizer outra coisa, que a testemunha BB, anterior proprietária do locado, nada tenha feito para receber as ditas rendas e só agora, com a venda do imóvel, na condição das rendas estarem em divida, a compradora tenha resolvido o contrato com base na falta de pagamento de rendas.
44º- Do depoimento do legal representante da Autora, GG, prestado no dia 02/03/2022, e gravado sob o n.º 20220302110801_5889270_2870580, resulta claramente que só realizaram o negócio, com a condição das rendas estarem em atraso[ cfr. Minuto 10.34 a 10.3]
45º- Quer isto dizer que a Autora só comprava se houvesse rendas em atraso, para deste forma ter um fundamento para resolução do contrato de arrendamento.
46º- No caso, á luz da experiência, não é normal que alguém deixe passar tantos anos sem interpelar outrem pela falta de pagamento de rendas, sem que se apresente uma justificação séria e plausível sobre a razão de assim atuar. Porém, quando se verifica a possibilidade de negócio em que se aventa a hipótese de apenas se comprar se existirem rendas em atraso, o negócio seja imediatamente concluído e mudando o proprietário, transmite-se os pseudodireitos para proceder à resolução do contrato por falta de pagamento de rendas.
47º- Perante os depoimentos transcritos, ficou demonstrado que a Ré/recorrente, pagou todas as rendas devidas desde Outubro de 2015, não sendo, portanto, devedora de qualquer importância.
48º- Entende, pois, a Ré/recorrente, que o Tribunal a quo cometeu um erro quanto à matéria de facto, ao não dar como provados os factos constantes naquelas alíneas c), d) e e).
49º- Em conformidade, à factualidade provada devem ser aditados mais 3 pontos, para dela passar a constar o seguinte:
” 7.1.No período desde Outubro de 2015 em diante, a renda, por vezes, era paga com a aquisição de artigos e produtos que a Ré vendia na loja, os quais a referida BB adquiria e depois se faziam os necessários acertos.
7.2.- Antes de Março de 2020, a referida BB ia receber as rendas ao local arrendado, tal como inicialmente estipulado.
7.3 Desde a data referida em 3. que a Ré, por si ou por interposta pessoa, sempre pagou religiosamente a renda mensal por si devida, no tempo e local combinados”.
Por decorrência, o ponto 8. dos factos provados deve passar a fazer parte dos factos não provados.
50º- Alterando-se, como se espera, a matéria de facto no sentido preconizado pela Ré/recorrente, mostrando-se pagas as rendas vencidas desde Outubro de 2015 a Janeiro de 2020, a presente ação deve ser julgada totalmente improcedente por não provada, com as legais consequências.

Os recursos vieram a ser admitidos neste tribunal da Relação na espécie e com os efeitos e regime de subida fixados no despacho de admissão do recurso na 1ª instância.
Foram oferecidas contra-alegações.
Colhidos os Vistos Legais cumpre decidir.

Delimitação do objecto do recurso: Questões a decidir.
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, tal como decorre das disposições legais dos artº 635º-nº3 do Código de Processo Civil, atentas as Conclusões das apelações deduzidas, e supra descritas, são as seguintes as questões a apreciar:
                       
A) Recurso de Apelação interposto pela Autora P... - IMOBILIÁRIO
- à data da comunicação à Ré, da resolução do contrato de arrendamento, concretizado em 06/10/2020, ocorria o fundamento daquela previsto no artigo 1083º, nº3 do Código Civil, não tendo caducado o direito da Autora à resolução com aquele fundamento?
- a consignação em depósito das rendas efetuada pela Ré desde Fevereiro de 2020, com fundamento na alegada recusa da anterior senhoria em receber a renda, não produz o efeito liberatório previsto no artigo 1084º, nº3 do CC, in fine ?
- o depósito efectuado pela Ré não preenche os requisitos do valor que devia ser depositado no âmbito dos citados arts. 1041º, nº1, 1042º, nº2 e 1048º nº1 do CC e como tal, não opera a caducidade do direito de resolução - para além das rendas deverá condenar-se a Ré também no pagamento da indemnização prevista no artigo 1041º, nº1 do CC.?

B) Recurso de Apelação interposto pela Ré AA
          
- reapreciação da matéria de facto

FUNDAMENTAÇÃO

I. OS FACTOS ( factos declarados provados, e não provados, na sentença recorrida ):

1. Por escritura pública de “compra e venda, mútuo com hipoteca e fiança”, lavrada a folhas 7 a 12 verso, do Livro ..., no dia 30 de janeiro de 2020, no Cartório Notarial da Doutora LL, sito em ..., HH declarou vender à Autora, que declarou aceitar a venda, para além de outros, dos seguintes imóveis:
a. Prédio composto de casa de ..., ... andar e logradouro, sito na rua ..., ..., freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...91 e inscrito na matriz urbana sob o artigo ...75; e
b. Prédio composto de casa de ..., uma loja comercial com 35 m2 e duas com 20,80 m2 e 11,30 m2 e logradouro com um tanque e ... andar, sita na Rua ..., ..., freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...92 e inscrita na matriz urbana sob o artigo ...76.
2. Encontra-se registada a favor da Autora a aquisição dos prédios urbanos referidos no ponto anterior, pela Ap. n.º 1853 de 31/1/2020.
3. Há mais de 30 anos, os pais da referida BB cederam verbalmente o gozo das lojas correspondentes aos nºs de polícia ...1 e ...9, à Ré, a troco do pagamento de retribuição (renda), inicialmente aos pais da R. e depois a esta.
4. Convencionou-se que a renda deveria ser paga no primeiro dia útil do mês a que dizia respeito.
5. A renda fixou-se em €109,60, no ano de 2004 e, a partir de data não concretamente apurada, em €125.
6. As referidas lojas, foram destinadas à atividade comercial da Ré, de venda de brinquedos. 7. A Ré ocupa as lojas objeto do contrato de arrendamento e nelas instalou um estabelecimento comercial de venda de brinquedos.
8. A Ré não pagou a renda desde Outubro de 2015 até Janeiro de 2020, inclusive.
9. Por documento particular, com reconhecimento presencial de assinaturas, intitulado “transmissão de direitos”, datado de 8 de Setembro de 2020, a referida BB e a Autora declaram, para além do mais, que “As lojas correspondentes aos n.ºs 21 e 29 da Rua ..., encontram-se arrendadas a AA, há mais de 30 anos, sendo que a mesma já não paga a respectiva renda desde Agosto de 2004. (…) 5-Apesar de não figurar na escritura pública outorgada no Cartório Notarial da Doutora LL, sito em ..., a verdade é que a primeira outorgante quis transmitir à segunda os direitos inerentes às rendas em dívida, seja quanto aos respectivos valores, seja quanto ao direito de intentar a competente acção de despejo, decorrente do não pagamento das rendas. 6-Em consequência do referido na cláusula anterior, a primeira, transmite à segunda os direitos que lhe pertencem e relativos às rendas em dívida da dita AA e bem assim, os relativos à cobrança judicial das mesmas e demais direitos, como o direito a resolver unilateralmente o contrato de arrendamento, por via da competente ação de despejo por força das rendas em dívida. 7-A segunda aceita a transmissão ora efectuada, nos termos e para os efeitos legalmente previstos.”
10. A Autora remeteu carta registada à Ré, datada de 7/5/2020 e subscrita pelo seu mandatário, que esta recebeu, na qual diz que “Como é do seu conhecimento, a minha constituinte é proprietária do prédio sito na Rua ..., e onde Vª Exª possuí instalado um estabelecimento comercial de venda de brinquedos, sendo por isso arrendatária da minha constituinte. A minha constituinte pretende a muito breve prazo iniciar as obras de remodelação/alteração do prédio onde Vª Exª possuí instalado o seu estabelecimento comercial. Para que as obras possam decorrer com a normalidade desejável, no integral cumprimento da lei e salvaguardando os interesses dos envolvidos, é imperioso que possamos reunir para ponderar todas as possibilidades que ao caso se colocam. Assim, solicito a Vª Exª o agendamento de uma reunião no meu escritório durante os próximos dias, para que em conjunto possamos encontrar uma solução que seja do agrado de todos.
11. A Autora requereu, via CITIUS, em 18/09/2020, a notificação judicial avulsa da R., à qual foi atribuída o n.º de processo 819/20.....
12. Na referida notificação judicial avulsa, com cópia da escritura de compra e venda e da aludida “transmissão de direitos”, a A. pede que seja dado conhecimento à R. que: “a) A requerente considera resolvido o contrato de arrendamento que esta celebrou com os primitivos proprietários dos prédios urbanos melhor identificados no artigo 1.º supra e relativo às lojas sitas na Rua ..., ..., com fundamento na falta de pagamento de renda por período superior a três meses e com fundamento em mora superior a oito dias no pagamento da renda por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses – resolução de contrato de arrendamento, ao abrigo do disposto no artigo 1083.º, n.º 3 e 4 do Código Civil; b) Fica a requerida obrigada a proceder, no prazo legal – um mês a contar da presente notificação – à entrega do locado, livre de pessoas e bens, no estado em que o recebeu: c) Deve a requerida pagar à requerente as rendas vencidas e não pagas, relativas aos meses de setembro a dezembro de 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e janeiro a setembro de 2020, no valor total de 21.152,80€, acrescendo 50% até fevereiro de 2019 inclusive, e 20% de março de 2019 até setembro de 2020, por cada renda em atraso, acrescidas de juros à taxa legal, assim como uma indemnização igual ao valor da renda até à efetiva entrega do locado.
13. A referida notificação judicial avulsa foi concretizada, por agente de execução, no dia 6/10/2020.
14. Na sequência da notificação judicial avulsa, a Ré não entregou o locado, livre de pessoas e de bens, nem procedeu ao pagamento de qualquer renda, directamente, à Autora.
15. Nos meses em que procedeu ao pagamento da renda (antes de Agosto de 2004), nunca os pais da BB ou esta lhe passaram recibo dos valores efectivamente pagos.
16. Em Março de 2020, a Ré efectuou o depósito do valor da renda de Fevereiro desse ano, acrescida de indemnização de 20%, na Banco 1..., à ordem do Tribunal Judicial ... – Juízo Local ....
17. Efectuou ainda o depósito da renda relativa ao mês de Março de 2020, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar.
18. Após o depósito, a Ré enviou uma comunicação escrita à referida BB, por carta registada com aviso de recepção, datada de 6/3/2020 e recebida a 9/3/2020, onde lhe comunicava ter procedido ao depósito da renda dos meses de Fevereiro e Março do ano de 2020, a primeira com acréscimo de 20%, em virtude daquela se ter recusado a receber as rendas que lhe foram oferecidas e que continuaria a fazê-lo, até que algo lhe fosse dito em contrário.
19. A referida BB não respondeu à missiva.
20. Daí em diante, a R. continuou a efectuar o depósito das rendas, à ordem do Tribunal Judicial ... – Juízo Local Cível ....
21. A Ré remeteu à A. carta registada, com aviso de recepção, datada de 12/10/2020, e por esta recebida a 14/10/2020 onde lhe dá conta de que a renda vem sendo paga, desde Março de 2020, com fundamento em alegada recusa da anterior senhoria e pede para ser informada, pela Autora, como pretende que o pagamento da renda relativa ao mês de Novembro seja feito, concluindo que, na falta de resposta, será considerado que a Autora pretende a manutenção da situação tal como se encontra.
22. Com essa carta, juntou cópia da carta enviada à referida BB e comprovativos dos depósitos das rendas de Fevereiro a Outubro de 2020.
23. A Autora não respondeu à missiva referida nos pontos anteriores.
24. A Ré fez ainda o depósito do mês de Novembro de 2020, à ordem do Tribunal, invocando, novamente, recusa da senhoria em receber a renda.
25. Desse depósito foi dado conhecimento à Autora, por carta registada, datada de 18/11/2020.
26. Desde então, a Ré tem continuado a efectuar o depósito das rendas vencidas à ordem do Tribunal.
27. A Ré teve conhecimento, verbalmente e no próprio dia, da celebração da escritura de compra e venda referida em 1. e da identidade da compradora, sem qualquer outra informação, designadamente relativamente à sede daquela.
4.1. – Factos não provados
a) Foi convencionado que a renda seria paga no locado.
b) As pessoas referidas em 15. recusaram-se expressamente a proceder do modo aí descrito.
c) No período desde Outubro de 2015 em diante, a renda, por vezes, era paga com a aquisição de artigos e produtos que a Ré vendia na loja, os quais a referida BB adquiria e depois se faziam os necessários acertos.
d) Antes de Março de 2020, a referida BB ia receber as rendas ao local arrendado, tal como inicialmente estipulado.
e) Desde a data referida em 3. que a Ré, por si ou por interposta pessoa, sempre pagou religiosamente a renda mensal por si devida, no tempo e local combinados.
f) Nos primeiros dias de Março de 2020, porquanto a referida BB não se deslocou ao locado para receber a renda de Fevereiro, a Ré deslocou-se à residência da mencionada BB a fim de lhe pagar a renda, o que não veio a suceder, uma vez que a mesma se recusou a recebê-la, sem lhe dar qualquer explicação.
g) A Autora tenha comunicado à Ré, por carta registada com aviso de recepção, a sua intenção de pôr fim ao arrendamento, com fundamento na mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses.

II. O DIREITO

A) – Reapreciação da matéria de facto

Nos termos do artº 662º-nº1 do CPC “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, dispondo o artº 640º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto”:
Nº1 – Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Impugna a Ré recorrente a matéria de facto, nomeadamente, no que se refere aos pontos nº 8 e 15 do elenco dos factos provados, e factos não provados als. c), d) e e); requerendo se declare o ponto 8 não provado e se elimine do facto provado nº 15 a expressão “antes de Agosto de 2004”, e se declarem provados os indicados pontos de facto não provados.
Os indicados pontos de facto têm o seguinte teor:
8. A Ré não pagou a renda desde Outubro de 2015 até Janeiro de 2020, inclusive.
15. Nos meses em que procedeu ao pagamento da renda (antes de Agosto de 2004), nunca os pais da BB ou esta lhe passaram recibo dos valores efectivamente pagos.
c) No período desde Outubro de 2015 em diante, a renda, por ve-zes, era paga com a aquisição de artigos e produtos que a Ré vendia na loja, os quais a referida BB adquiria e depois se faziam os necessários acertos.
d) Antes de Março de 2020, a referida BB ia receber as rendas ao local arrendado, tal como inicialmente estipulado.
e) Desde a data referida em 3. que a Ré, por si ou por interposta pessoa, sempre pagou religiosamente a renda mensal por si devida, no tempo e local combinados.
Relativamente aos indicados pontos de facto fundamenta-se na sentença, em raciocínio isento de reparos e que se reitera:
“Relativamente à falta de pagamento de rendas (por força da prescrição, da qual já se conheceu no saneador, apenas estarão em causa as vencidas de Outubro de 2015, inclusive, em diante), cabia à Ré a prova do pagamento, de acordo com a regra geral do artigo 342.º, n.º 2, enquanto facto extintivo do direito da A. (ao recebimento da renda).
Entendemos que a R. não fez a prova deste facto.
A dívida das rendas em causa foi afiançada pela anterior proprietária BB e pela testemunha sua filha, CC, que desmentiram igualmente a alegada compensação do valor das rendas com artigos adquiridos na loja da R., referindo ambas que embora isso tenha chegado a suceder, há muito que já não ocorre (certamente há mais de 10 anos), destacando a primeira que a sua neta tem neste momento 33 anos e que já não há crianças na sua família a quem pudesse oferecer brinquedos.
Disse, inclusivamente a testemunha BB, que por força da falta de pagamento de rendas, já há alguns anos que proibiu as filhas de adquirirem fosse o que fosse na sobredita loja. Foram depoimentos a que o Tribunal conferiu credibilidade, expressos através d linguagem fluída e de cunho pessoal, sem omissões ou contradições de relevo, não se vislumbrando qualquer motivo para que faltassem à verdade em prejuízo de qualquer das partes (vendido o locado e transmitido o direito a receber rendas em dívida e a proceder à resolução do contrato, ser-lhes-á totalmente irrelevante o desfecho da relação contratual, agora entre a A. e a R.)
Ao que acresce que, pela própria natureza do tipo de bens comercializados pela R., esse “encontro de contas” não se verificaria, naturalmente, com regularidade, não se vislumbrando como razoável que a anterior senhoria se deslocasse ao locado todos os meses para se abastecer de brinquedos (que à partida, durarão sempre algum tempo), cujo valor seria depois abatido à renda.
Por outro lado, a R. arrolou como testemunhas as suas irmãs, MM e FF, bem como DD, que explorou uma loja perto do locado, as quais vieram, em suma, procurar sustentar que não havia rendas em dívida, e que, inclusivamente, por extraordinária coincidência, chegaram a presenciar, por várias vezes, o pagamento da renda, encontrando-se no interior da loja quando a anterior senhoria lá se deslocou e constatando a entrega, em mão, do dinheiro.
Não temos como verosímil que assim seja.
Em primeiro lugar, é desde logo improvável, porque as testemunhas tinham a sua própria vida e trabalho e não tinham disponibilidade para passar o dia todo no interior do locado, que estivessem presentes, justamente, no instante em que a senhoria ali se deslocava e o dinheiro era entregue.
Em segundo, não se pode escamotear que as três testemunhas são pessoas notoriamente próximas da R., sendo as duas últimas da sua família nuclear, cujos depoimentos devem ser apreciados cum grano salis e, por outro lado, que a R. dispunha de meios bastante mais seguros e objectivos para efectuar a prova desse facto, mesmo que a A. não lhe passasse recibo.
Efectivamente, dedicando-se a R. a uma actividade comercial, é de esperar que a mesma disponha de contabilidade organizada, podendo demonstrar, através da sua escrituração comercial, a saída do dinheiro da caixa (se fosse esse o caso) ou de uma qualquer conta à ordem, para pagamento da renda.
E, mesmo que assim não fosse e mesmo assumindo que os alegados pagamentos eram sempre feitos em numerário, entregue em mão, disporia a R., pelo menos, de extractos bancários que evidenciassem o levantamento, todos os meses, nos primeiros dias do mês, da quantia necessária ao pagamento da renda.
Pelo exposto, ficará provado que a R. não procedeu ao pagamento, à sua anterior senhoria e, mais recentemente, à A., de qualquer renda, até Janeiro de 2020 (data em que o começou a fazer por depósito, como adiante veremos)”.
Com efeito, e como se fundamenta na sentença recorrida, tratando-se o pagamento de facto extintivo do direito do locador ao recebimento das rendas do inquilino, in casu, à Ré incumbe a prova da sua realização; prova esta que a Ré não produziu, sendo, por si só, absolutamente insuficientes a tal fim, desacompanhados de qualquer outro meio de prova que os confirme, os meros depoimentos das testemunhas arroladas, irmãs e amiga da Ré, pessoas de sua directa proximidade, e das declarações da própria; não apresentando a Ré qualquer documento de demonstre a realização do pagamento, e, sendo, ainda, que a falta de apresentação de recibo lhe serão imputáveis em termos probatórios nos termos do citado artº 342º-nº2 do Código Civil, não tendo a Ré logrado provar a recusa da senhoria, nem a recusa de pagamento de rendas por tal motivo.
E, mais dispondo o artº 414º do CPC que “ A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita”, mantêm-se as respostas dadas ao facto provado nº 8 e factos não provados als. c),d) e e), quanto a estes valendo as razões de insuficiência probatória acima exposta.
Igualmente se manterá inalterado o facto provado nº 15, sendo que a expressão do mesmo constante, designadamente – “(antes de Agosto de 2004)” se reporta aos meses em que a renda terá sido paga, excluindo as rendas peticionadas declaradas prescritas, excluídas do objecto da acção, e as rendas sujeitas a depósito liberatório, no mais tendo sido declaradas não pagas as rendas de Outubro de 2015 até Janeiro de 2020, inclusive – cfr. facto provado nº 8.
Concluindo-se, nos termos expostos, pela improcedência dos fundamentos de impugnação da matéria de facto deduzida pela Ré, mantendo-se inalterado o elenco factual da acção.
B. – do mérito da causa
São as seguintes as questões suscitadas pela Autora no seu recurso de apelação, com vista a concluir pela revogação da sentença recorrida, substituindo-a por outra que, julgue improcedente a excepção peremptória de caducidade, e consequentemente, declare resolvido o contrato de arrendamento, mantendo a condenação da Ré no pagamento à Autora das rendas em atraso no montante de 5.699,20€, ou no caso de assim não se entender, manter a condenação da Ré no pagamento à Autora das rendas em atraso no montante de 5.699,20€ e simultaneamente, condenar a Ré a pagar à Autora o valor da indemnização de 50% de Outubro de 2015 a Fevereiro de 2019, no montante de 2.301,60€ e de 20% de Março de 2019 a Janeiro de 2020, no montante de 241,12€:
- à data da comunicação à Ré, da resolução do contrato de arrendamento, concretizado em 06/10/2020, ocorria o fundamento daquela previsto no artigo 1083º, nº3 do Código Civil, não tendo caducado o direito da Autora à resolução com aquele fundamento?
- a consignação em depósito das rendas efetuada pela Ré desde Fevereiro de 2020, com fundamento na alegada recusa da anterior senhoria em receber a renda, não produz o efeito liberatório previsto no artigo 1084º, nº3 do CC, in fine ?
- o depósito efectuado pela Ré não preenche os requisitos do valor que devia ser depositado no âmbito dos citados arts. 1041º, nº1, 1042º, nº2 e 1048º nº1 do CC e como tal, não opera a caducidade do direito de resolução - para além das rendas deverá condenar-se a Ré também no pagamento da indemnização prevista no artigo 1041º, nº1 do CC.?

Decidindo.

Relativamente às normas gerais que regulam o contrato de locação, e, designadamente, no tocante à “Resolução” determina o art.º 1047º do Código Civil, que “A resolução do contrato de locação pode ser feita judicial ou extra judicialmente”, sendo o regime geral de resolução legalmente previsto divergente do regime especial consignado nas normas da indicada Subsecção IV- art.º 1079º e sgs.
Regulamenta a Subsecção IV, da Secção VII- Arrendamento de prédios urbanos, do Capítulo IV- Locação-, do citado código, a Cessação do contrato de arrendamento urbano, dispondo o art.º 1079º, do citado código, que “o arrendamento urbano cessa por acordo das partes, resolução, caducidade, denúncia ou outras causas previstas na lei”, tendo natureza imperativa as normas constantes da indicada Subsecção IV, como determina e estatuí o art.º 1080º.
Nos termos do disposto no art.º 1083º, do Código Civil, n.º1- “Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte” e, n.º2: “É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento…”, dispondo o n.º3 do indicado preceito legal que “É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento de renda, encargos ou despesas (…) sem prejuízo do disposto nos n.º3 a 5 do art.º seguinte”, dispondo o indicado n.º3 do art.º 1084º que “A resolução pelo senhorio, quando opere por comunicação à contraparte e se funde na falta de pagamento de renda, fica sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de um mês”, dispondo, por sua vez, o n.º1 do art.º 1084º, relativamente ao modo de operar a resolução do contrato de arrendamento que “A resolução pelo senhorio quando fundada em causa prevista no n.º3 do artigo anterior bem como a resolução pelo arrendatário operam por comunicação à contraparte, onde fundamentalmente se invoque a obrigação incumprida”, sendo esta comunicação realizada nos termos consignados no n.º 7 do art.º 9º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, Lei esta que aprovou o NRAU, e entrou em vigor em 28/6/2006, sendo aplicável ao caso sub judice.
Resulta dos factos provados, com relevância à decisão: “Há mais de 30 anos, os pais da referida BB cederam verbalmente o gozo das lojas correspondentes aos nºs de polícia ...1 e ...9, à Ré, a troco do pagamento de retribuição (renda), inicialmente aos pais da R. e depois a esta;  Convencionou-se que a renda deveria ser paga no primeiro dia útil do mês a que dizia respeito;  A Ré não pagou a renda desde Outubro de 2015 até Janeiro de 2020, inclusive; A Autora remeteu carta registada à Ré, datada de 7/5/2020 e subscrita pelo seu mandatário, que esta recebeu, na qual diz que “Como é do seu conhecimento, a minha constituinte é proprietária do prédio sito na Rua ..., e onde Vª Exª possuí instalado um estabelecimento comercial de venda de brinquedos, sendo por isso arrendatária da minha constituinte. A minha constituinte pretende a muito breve prazo iniciar as obras de remodelação/alteração do prédio onde Vª Exª possuí instalado o seu estabelecimento comercial. Para que as obras possam decorrer com a normalidade desejável, no integral cumprimento da lei e salvaguardando os interesses dos envolvidos, é imperioso que possamos reunir para ponderar todas as possibilidades que ao caso se colocam. Assim, solicito a Vª Exª o agendamento de uma reunião no meu escritório durante os próximos dias, para que em conjunto possamos encontrar uma solução que seja do agrado de todos.”; A Autora requereu, via CITIUS, em 18/09/2020, a notificação judicial avulsa da R., à qual foi atribuída o n.º de processo 819/20....; Na referida notificação judicial avulsa, com cópia da escritura de compra e venda e da aludida “transmissão de direitos”, a A. pede que seja dado conhecimento à R. que: “a) A requerente considera resolvido o contrato de arrendamento que esta celebrou com os primitivos proprietários dos prédios urbanos melhor identificados no artigo 1.º supra e relativo às lojas sitas na Rua ..., ..., com fundamento na falta de pagamento de renda por período superior a três meses e com fundamento em mora superior a oito dias no pagamento da renda por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses – resolução de contrato de arrendamento, ao abrigo do disposto no artigo 1083.º, n.º 3 e 4 do Código Civil; b) Fica a requerida obrigada a proceder, no prazo legal – um mês a contar da presente notificação – à entrega do locado, livre de pessoas e bens, no estado em que o recebeu: c) Deve a requerida pagar à requerente as rendas vencidas e não pagas, relativas aos meses de setembro a dezembro de 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019 e janeiro a setembro de 2020, no valor total de 21.152,80€, acrescendo 50% até fevereiro de 2019 inclusive, e 20% de março de 2019 até setembro de 2020, por cada renda em atraso, acrescidas de juros à taxa legal, assim como uma indemnização igual ao valor da renda até à efetiva entrega do locado.”;  A referida notificação judicial avulsa foi concretizada, por agente de execução, no dia 6/10/2020; Na sequência da notificação judicial avulsa, a Ré não entregou o locado, livre de pessoas e de bens, nem procedeu ao pagamento de qualquer renda, directamente, à Autora; Em Março de 2020, a Ré efectuou o depósito do valor da renda de Fevereiro desse ano, acrescida de indemnização de 20%, na Banco 1..., à ordem do Tribunal Judicial ... – Juízo Local ...; Efectuou ainda o depósito da renda relativa ao mês de Março de 2020, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar; Após o depósito, a Ré enviou uma comunicação escrita à referida BB, por carta registada com aviso de recepção, datada de 6/3/2020 e recebida a 9/3/2020, onde lhe comunicava ter procedido ao depósito da renda dos meses de Fevereiro e Março do ano de 2020, a primeira com acréscimo de 20%, em virtude daquela se ter recusado a receber as rendas que lhe foram oferecidas e que continuaria a fazê-lo, até que algo lhe fosse dito em contrário; 20. Daí em diante, a R. continuou a efectuar o depósito das rendas, à ordem do Tribunal Judicial ... – Juízo Local Cível ...; A Ré remeteu à A. carta registada, com aviso de recepção, datada de 12/10/2020, e por esta recebida a 14/10/2020 onde lhe dá conta de que a renda vem sendo paga, desde Março de 2020, com fundamento em alegada recusa da anterior senhoria e pede para ser informada, pela Autora, como pretende que o pagamento da renda relativa ao mês de Novembro seja feito, concluindo que, na falta de resposta, será considerado que a Autora pretende a manutenção da situação tal como se encontra; A Ré fez ainda o depósito do mês de Novembro de 2020, à ordem do Tribunal, invocando, novamente, recusa da senhoria em receber a renda; Desse depósito foi dado conhecimento à Autora, por carta registada, datada de 18/11/2020; 26. Desde então, a Ré tem continuado a efectuar o depósito das rendas vencidas à ordem do Tribunal; A Ré teve conhecimento, verbalmente e no próprio dia, da celebração da escritura de compra e venda referida em 1. e da identidade da compradora, sem qualquer outra informação, designadamente relativamente à sede daquela.( cfr. factos provados nº 3, 4, 8, 10, 11, 12, 13, 14, 16, 17, 18, 21, 24, 25, 26, 27 ).
Fundamentando-se na sentença recorrida, e no tocante à primeira questão suscitada:
“Resta analisar se a A. poderia, legitimamente, resolver o contrato com fundamento na mora superior a três meses, nos termos do n.º 3 do invocado preceito.
A este respeito, a R. invocou, na sua contestação, o decurso do prazo de caducidade previsto no artigo 1085.º, n.º 2, do CC – “1 - A resolução deve ser efetivada dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento do facto que lhe serve de fundamento, sob pena de caducidade. 2 - O prazo referido no número anterior é reduzido para três meses quando o fundamento da resolução seja o previsto nos n.os 3 ou 4 do artigo 1083.º”
Esse prazo mais curto de três meses veio substituir o anterior prazo de caducidade de um ano (versão do art.º 1085º introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro), visando o legislador da reforma de 2012 (Lei nº 31/2012, de 14 de agosto) uma dupla finalidade de protecção do arrendatário e de aproveitamento económico, tentando-se que o senhorio acione o mais rapidamente possível o direito que lhe assiste, a fim de ser rapidamente recolocado o imóvel no mercado de arrendamento.
Temos, portanto, que o prazo de três meses se conta não do conhecimento da falta de pagamento da renda, mas do conhecimento da existência de mora de três meses no pagamento da renda (fundamento expresso no art.º 1083º, nº 3, do Código Civil), o que equivale, grosso modo, a que a caducidade ocorra uma vez decorridos seis meses, contados desde o vencimento de cada uma das rendas devidas.
Parece-nos insofismável que a A. teve conhecimento das rendas em dívida (do período anterior à escritura de compra e venda) logo aquando da aquisição do imóvel, o que aliás se pode extrair da “transmissão de direitos”, da qual ressuma que foi desde sempre intenção das partes de transmitirem, conjuntamente com o direito de propriedade, o direito às rendas vencidas e à resolução do contrato.
Assim, a notificação judicial avulsa efectivou-se a 6/10/2020, o que significa que a renda mais longínqua que poderia fundar a resolução seria a renda de Maio de 2020 (a de Abril venceu-se a 1/4/2020, a mora igual ou superior a três meses deu-se a 1/7/2020 e a caducidade do direito da A. a 1/10/2020).”
Nos termos das normas legais aplicáveis e atento o concreto factualismo apurado, designadamente, o facto provado nº 4 do qual decorre ter-se convencionado que a renda deveria ser paga no primeiro dia útil do mês a que dizia respeito, mostra-se correcta a decisão na qual se conclui que à data da notificação judicial avulsa efectuada em 6/10/2020, havia já ocorrido a caducidade do direito à resolução com fundamento na falta de pagamento de rendas em 1/10/2020; porém, e atenta a actual redacção do nº3 do artº 1084º do Código Civil, com referência à renda de Julho de 2020, vencida em 1/7/2020 e rendas anteriores.
Valendo o prazo de caducidade em relação a cada renda, autonomamente, nos termos do disposto no artº 1085º-nº2 do Código Civil.
Nestes termos, improcedendo os fundamentos da apelação.
E, quanto às demais rendas peticionadas, e como se decide já: “no período que ainda poderia justificar a resolução do contrato por parte da A. (...) a obrigação da R. foi cumprida por via da consignação em depósito, tudo se passando como se a R. tivesse feito a prestação ao credor na data do depósito (artigo 846.º do CC)”, quanto a estas rendas se julgando válida e eficaz a consignação de depósitos realizada pela Ré atento o factualismo apurado supra exposto e nos termos da presunção legal estabelecida pelo artº 1039-nº2, parte final, do Código Civil, não tendo a Autora ilidido a indicada presunção legal, cujo ónus lhe competia nos termos do disposto no artº 344º do citado código, tendo ocorrido a inversão do ónus da prova da Ré de pagamento atempado por decorrência da indicada presunção legal, reiterando-se, consequentemente, também nesta parte, os fundamentos da decisão; designadamente:
“(...) não tendo resultado provada existência de uma convenção que fixasse o local do cumprimento da obrigação de pagamento da renda, deve ser chamada à colação a regra supletiva do artigo 1039.º do CC, que dispõe que o pagamento deve ser feito “no domicílio do locatário à data do vencimento, se as partes ou os usos não fixarem outro regime.”, num desvio ao regime plasmado no artigo 774.º do CC para a generalidade das obrigações pecuniárias.
O n.º 2 da mesma norma estabelece ainda uma presunção (iuris tantum), segundo a qual, “Se a renda ou aluguer houver de ser pago no domicílio, geral ou particular, do locatário ou de procurador seu, e o pagamento não tiver sido efectuado, presume-se que o locador não veio nem mandou receber a prestação no dia do vencimento.”
Como é igualmente consabido, o cumprimento de uma obrigação (v.g., a do pagamento da renda) demanda a cooperação do credor (in casu, o locador), pois que, como o refere expressamente o nº 2, do artº 762º, do CC, já citado, “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé” e, ademais, diz-nos mais adiante o mesmo diploma (no artº 813º), que “O credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação”.
Revertendo novamente aos contornos do caso concreto, a A. não praticou – ou pelo menos não demonstrou que tenha praticado, ilidindo a presunção do artigo 1039.º, n.º 2, do CC – os actos que eram necessários ao cumprimento da obrigação; i.e., sendo a obrigação cumprida no domicílio do locatário, que se tenha deslocado mensalmente, na data do vencimento de cada uma das rendas, a este local, a fim de as tentar receber, sem sucesso.
Incorreu, portanto, em mora creditícia, nos termos do artigo 813.º, in fine, do CC.
O que justifica, desta feita com o fundamento plasmado no artigo 841.º, n.º 1, al. b) do CC, a consignação em causa das rendas do período em questão”.
Concluindo-se que, nos termos do concreto factualismo apurado, estabelecendo-se por via do artº 1039º-nº2, parte final, do Código Civil, uma presunção legal de tempo e lugar do pagamento da renda, nos termos do artº 344º, do citado código, ocorre a inversão do ónus da prova da verificação de pagamento atempado, ao credor/locatário incumbindo o ónus da prova da existência de mora, designadamente ilidindo a presunção legal estabelecida.
Termos em que se julga improcedente o pedido (implícito) de resolução por falta de pagamento de rendas – cfr. pedido al.b) da petição inicial, relativamente às rendas vencidas após Julho de 2020, sendo válida e eficaz a consignação de depósitos realizada pela Ré, tendo provado o cumprimento (e, no tocante a esta indicada renda e às demais, anteriores, se verificando a invocada caducidade do direito de resolução da autora).
Relativamente ao pedido de indemnização moratória a acrescer ao valor das rendas em dívida nos termos do que dispõe o artº 1041º-nº1 do Código Civil, a mesma depende, como o próprio preceito indica, de “Mora do Locatário”, mora esta que, nos termos acima assinalados, atento o concreto factualismo apurado e nos termos da presunção legal estabelecida pelo artº 1039-nº2, parte final, do Código Civil, não ilidida pela Ré, como decorre dos factos, e inversão de ónus da prova operada por via do artº 344º do citado diploma legal, não está provada nos autos.
Consequentemente, também nesta parte improcedendo os fundamentos de apelação da Autora.
Concluindo-se, nos termos expostos, pela total improcedência dos recursos de apelação da Autora e da Ré.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando-se a decisão recorrida; com a menção de que relativamente às rendas posteriores a Julho de 2020 se julga improcedente o pedido (implícito) de resolução por falta de pagamento de rendas.
Custas pelas apelantes, Autora e Ré, na proporção dos respectivos decaimentos.
Guimarães, 12 de Janeiro de 2023

( Luísa D. Ramos)
( Eva Almeida )
( Ana Cristina Duarte )