Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
40/22.9T8BCL.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: DECLARAÇÃO DE PARTE
CONTRATO DE SEGURO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) A eficácia probatória das declarações de parte não se deve restringir às situações em que as mesmas sejam corroboradas por outro meio de prova idóneo, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova.
2) É aplicável o regime legal das cláusulas contratuais gerais ao contrato de seguro;
3) A modificação de uma obrigação anteriormente assumida, que não se mostra ter sido oportuna e formalmente comunicada ao segurado é absolutamente proibida e, como tal, nula.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) AA veio intentar ação declarativa com processo comum contra:
1) EMP01... – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A.,
2) Banco 1..., C.R.L.; e
3) Banco 1... de ..., ... e ..., CRL, onde conclui pedindo que a ação seja julgada procedente, por provada e em consequência, ser a 1ª ré condenada a pagar ao autor:
A) A quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), a título de indemnização contratualmente fixada pelo acionamento da cobertura de morte e invalidez permanente;
B) Os juros moratórios, calculados à taxa legal, que se vençam sobre as quantias atrás referidas, desde o dia .../.../2020 e até integral e efetivo pagamento, os quais se liquidam, na presente data, em €1.594,52 (mil quinhentos e noventa e quatro euros e cinquenta e dois cêntimos);
C) As custas e encargos processuais.
Subsidiariamente, e para o caso de este pedido não proceder, deverão as 2ª e 3ª rés ser solidariamente condenadas a pagar ao autor uma indemnização no valor de €31.594,52 (trinta e um mil quinhentos e noventa e quatro euros e cinquenta e dois cêntimos, com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por violação do dever de informação estabelecido no artigo 5º do Dec.-Lei nº 446/85, de 25 de outubro, assim como nos juros moratórios que se vençam a contar da citação para a presente ação e nas custas e encargos processuais.
Para tanto alega o autor, em síntese, ter celebrado com a 1ª ré um contrato de seguro do ramo vida EMP01... Ciclista, o qual garantia os riscos de morte ou invalidez permanente, despesas de tratamento e repatriamento, despesas de funeral, responsabilidade civil e assistência a pessoas e ciclistas, sendo o capital seguro no caso de morte ou invalidez permanente de €30.000,00, contrato esse pré-definido pela 1ª ré e sem possibilidade de negociação, tendo o autor subscrito aquele contrato apenas por lhe ter sido dito por um funcionário da 3ª ré, que a eficácia do contrato abarcava os acidentes que tivessem lugar quer em Portugal, quer no Reino ..., onde o autor residia habitualmente, não tendo sido entregue a este, no momento da subscrição da proposta de seguro, nem lhe foi remetido posteriormente por correio, qualquer documento contendo as condições gerais e especiais do contrato.
No dia 24 de maio de 2020, o autor sofreu um acidente durante um passeio de bicicleta num parque natural nos arredores de ..., a poucos quilómetros da sua residência, em consequência do que sofre atualmente de Tetraplegia AIS C nível motor C6, nível sensitivo L1 e nível de lesão neurológica C6, tendo-lhe sido conferida uma incapacidade permanente global de 90%, a título definitivo.
A 1ª ré recusa pagar qualquer quantia ao autor por força do contrato de seguro aludido, alegando que este se restringia ao território de Portugal Continental e Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.
Atendendo a que tal contrato de seguro é um contrato de adesão, não tendo tal cláusula sido comunicada ao autor, deve ter-se por não escrita, pelo que deve a 1ª ré ser condenada a cumprir tal contrato, entregando ao autor a quantia prevista a título de capital - €30.000,00 – acrescida dos respetivos juros, nos termos peticionados.
Caso assim se não entenda, deverá a 3ª ré – cujo funcionário apresentou o contrato de seguro em causa nos autos ao autor – ser responsabilizada, solidariamente com a 2ª ré, por ser o organismo central do Sistema Integrado de EMP01..., pelos prejuízos causados ao autor pela violação do dever de comunicação a este do teor da cláusula 4ª das Condições Gerais do contrato.
Pela 1ª ré, EMP01... – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A., foi apresentada contestação onde conclui entendendo que deve a apresente ação ser julgada improcedente, por não provada, com as legais consequências, alegando, para tanto, em síntese, que foram prestadas ao autor todas as informações e esclarecimentos que eram devidos e necessários para a celebração do contrato de seguro, em concreto, o âmbito territorial do contrato, tendo este ficado devidamente esclarecido quanto às coberturas, valores seguros, atualizações não automáticas, obrigações do tomador e cálculos de indemnizações, tendo-lhe sido entregue a respetiva proposta de seguro, onde declarou ter conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do contrato e que pretendia obter as respetivas condições no sítio da internet, assim as considerando entregues; como tal, o autor age em abuso de direito ao invocar o desconhecimento, por falta de comunicação, das cláusulas do contrato, o que o impede de ver excluída do contrato a cláusula que estabelece o âmbito territorial; mais alega que as condições particulares do contrato foram enviadas para a morada do autor. Finalmente, alega que se a cláusula fosse excluída do contrato, este seria nulo, por se verificar um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa-fé.
Pela 2ª ré, Banco 1..., C.R.L., foi apresentada contestação onde conclui que deve julgar-se procedente, por provada, a invocada exceção de ilegitimidade da contestante e, em consequência, a ré Banco 1... ser absolvida da instância ou, quando assim se não entenda, deve a ação ser julgada totalmente improcedente, por não provada e a ré Banco 1... absolvida do pedido, também com as consequências legais  
A 3ª ré, Banco 1... de ..., ... e ..., CRL, apresentou contestação onde conclui entendendo que deve julgar-se procedente, por provada, a invocada exceção de ilegitimidade da contestante e, em consequência, a 3ª ré Banco 1... ser absolvida da instância ou, quando assim se não entenda, deve a ação ser julgada totalmente improcedente, por não provada e a ré Banco 1... da ..., ... e ..., CRL, absolvida do pedido, também com as legais consequências.
As 2ª e 3ª rés alegando não existir qualquer relação de domínio ou grupo económico entre as rés, excecionam a sua ilegitimidade processual passiva e, por outro lado, impugnam o alegado pelo autor.
A 2ª ré alega ainda que o autor tinha conhecimento prévio das condições do seguro em causa nos autos, tendo os seus funcionários prestado todas as informações e esclarecimentos devidos, tendo sido lidas e explicadas ao autor todas as condições, concretamente o âmbito territorial, excecionando também o abuso de direito do autor, nos termos em que o fez a 1ª ré.
O autor pronunciou-se quanto à exceção de ilegitimidade processual passiva, entendendo que deve ser julgada improcedente a exceção de ilegitimidade passiva suscitada pelas 2ª e 3ª rés.
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Foi elaborado despacho saneador, tendo sido julgada improcedente a invocada ilegitimidade da 2ª e 3ª rés, foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
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Procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença que decidiu julgar a presente ação procedente, e, em consequência:
a) Condenar a ré EMP01... – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A., a pagar ao autor a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa civil, contados desde .../.../2020 até efetivo e integral pagamento;
b) Considerar prejudicada a apreciação do pedido subsidiário deduzido contra as rés Banco 1..., C.R.L. e Banco 1... da ..., ... e ....
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B) Inconformada com a decisão proferida, veio a EMP01... - Companhia de Seguros de Ramos Reais, SA, interpor recurso (fls. 195 e segs.), o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 355).
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Nas alegações de recurso da apelante EMP01... - Companhia de Seguros de Ramos Reais, SA, são formuladas as seguintes conclusões:

1ª Vem o presente recurso impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto que, com base na mesma, foi condenada a ré EMP01... – Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A., a pagar ao autor a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa civil, contados desde .../.../2020 até efetivo e integral pagamento;
2ª A decisão de primeira instância, quanto à matéria de facto, padece de incorreções de julgamento e insuficiência, atentos os meios probatórios constantes do processo – documentos e depoimentos das testemunhas e declarações de parte, que impunham decisão diversa da recorrida, que abaixo melhor se especificará.
3ª Não se conforma a ora recorrente com tal decisão, pois entende que da prova efetivamente produzida em audiência não é coincidente com a que foi dada como definitivamente assente.
4ª O presente recurso versará a impugnação da matéria de facto dada como provada, uma vez que se conclui que a mesma não tem suporte na prova constante dos autos, bem como da produzida em audiência de julgamento, pelo que urge ser alterada a decisão da matéria de facto, nos moldes infra expostos.
5ª Salvo o devido respeito por opinião diversa, a recorrente entende que a resposta dada a determinados factos articulados não é correta e que decorre de uma interpretação da prova que não sufragamos.
6ª São os seguintes os pontos da matéria de facto que foram incorretamente julgados:
Quanto aos factos provados:
8. À data referida em 1, o autor trabalhava no Reino ..., onde residia habitualmente em ..., em ...; como tal, sabendo que a 3ª ré comercializa nos seus balcões os produtos da 1ª ré e por ser titular de contas bancárias na 3ª ré, o autor indagou junto do funcionário do balcão da 3ª ré se o contrato de seguro cobria os riscos de sinistros ocorridos nesse país;
9. O funcionário da 3ª ré estabeleceu um contacto telefónico que disse ser com alguém do departamento competente da 1ª ré, e confirmou ao autor que o referido contrato de seguro abrangia sinistros ocorridos quer em Portugal, quer no Reino ...;
10. Na sequência de tal, o autor decidiu aderir ao contrato de seguro EMP01... Ciclista que lhe foi apresentado por um funcionário da 3ª ré no balcão de ...;
11. A intervenção do autor limitou-se à subscrição de um formulário pré-elaborado pela 1ª ré, designado como “Proposta”, com a possibilidade de escolher, simplesmente, entre a cobertura “Mais”, com capital seguro de €30.000,00 (trinta mil euros), e a cobertura “Top”, com um capital seguro de €50.000,00 (cinquenta mil euros), e a forma de pagamento do respetivo prémio de seguro;
Quanto aos factos não provados:
a) Antes de apresentar a proposta de seguro, foram lidas, comunicadas e explicadas ao autor, pelos funcionários do balcão da 3ª ré, as coberturas e garantias contratadas, designadamente a cláusula referida no facto provado 4., no sentido de que o contrato apenas produz efeitos em relação a sinistros ocorridos em Portugal Continental e Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira;
d) O autor pretendia e ficou convencido de que o seguro referido em 1. abrangia os riscos de sinistros ocorridos apenas em Portugal;
Vejamos a prova produzida em audiência com interesse para o presente recurso:
7ª Prova por declarações de parte do autor AA - ficheiro áudio – dia 23/11/2022, nº ...49 - Em declarações de parte, o autor, num depoimento que classificamos de claramente parcial e interessado, relatou que aquando da celebração do contrato, se dirigiu ao Balcão da Banco 1... e perguntou ao Sr. BB se tinha um produto para, para a bicicleta e ele, e ele disse: “temos”. Mas eu, eu disse-lhe a ele, “mas quero saber, se dá para ...”, e ele ligou para, para seguradora e a seguradora disse que sim.
8ª Resulta, ainda, do seu depoimento, que a relação que o autor mantinha com o Sr. BB e com o EMP01... era uma relação já de há muitos anos – “Sim, conheço porque ele mesmo é de, da freguesia onde eu morava, os meus pais e às vezes ia ao café, é lá mesmo em frente à casa dele, mas não tinha grande confiança, dava-lhe boa tarde e bom dia, mas não …”
9ª Quanto questionado sobre se nunca foi ver se a Apólice continha cobertura no Reino ... disse que não mas que a sua esposa recebeu a carta com indicação para consulta das condições da apólice;
9ª Prova testemunhal - testemunha BB, ficheiro áudio – dia 23/11/2022, nº ...39 - Acontece que ouvida a testemunha BB, o mesmo, num depoimento que classificamos de convincente, claro e objetivo, referiu que, por força da sua atividade profissional e pelo facto de residirem na mesma freguesia, conhece o aqui autor;
10ª Confirmou ter sido o intermediário na celebração do contrato de seguro em causa nos autos.
Sabia que o autor se encontrava em ... a trabalhar, mas que isso nunca foi referido aquando da contratação do seguro e que o mesmo deu a sua residência em Portugal.
11ª Assim, se o autor pretendesse um seguro com extensão para ..., teria dado a sua residência nesse País, porque aí residia... e não o fez.
12ª Acrescentou a testemunha que o autor lhe perguntou se tinha seguro de ciclista e qual o preço e que, na altura da celebração do contrato de seguro.
13ª Que o autor nunca lhe pediu um seguro que cobrisse os acidentes em ... nem lhe deu a morada de ... a fim de constar no contrato – o que seria normal.
14ª Referiu que, mais tarde, e após o acidente, a esposa do autor o questionou se a Apólice cobria o acidente em ....
15ª Referiu que “na altura quando foi celebrado o contrato não se falou se cobria no estrangeiro ou se não cobria, só se falou no valor e no montante do … do contrato, não se falou mais se era Portugal, se era para o estrangeiro, se era para ..., e mesmo sempre pensei que fosse só para cá, mas isso … isso independentemente de ser ou não ser, isso agora não interessa … sei que na altura do contrato não se falou nessa hipótese.”
16ª Disse que, na altura da subscrição do contrato de seguro, estava convicto que apenas tinha cobertura para o território português, porque não lhe foi solicitado outra coisa.
17ª Referiu que se o autor lhe tivesse peticionado a cobertura em ..., teria ligado para a companhia nesse sentido. E não o fez porque não foi isso que aconteceu.
18ª Disse que na altura da contratação, apenas ligou para a Companhia para pedir cotação.
19º Prova testemunhal - testemunha – CC - ficheiro áudio – dia 23/11/...58 - esposa do aqui autor, referiu que não interveio na negociação do contrato, apesar de dizer que pretendiam um seguro que cobrisse os acidentes em ... e nunca foi posta a hipótese de o seguro ser apenas para Portugal;
20ª Referiu que o autor e seu marido quando tinha um qualquer problema bancário ele procurava o Sr. BB porque era a pessoa que ele conhecia há muitos anos. E foi essa pessoa que ele procurou para fazer o seguro.
21ª Confirmou que recebeu as comunicações da Companhia – Docs. ... a ... juntos com a petição inicial, tendo referido que as condições gerais e especiais estão inseridas num sítio da internet através de um código, mas que nunca acedeu às mesmas.
22ª Após o acidente do marido, disse ter contactado com o Sr. BB dizendo que o acidente foi em ... e que este não lhe colocou nenhuma objeção.
23ª Como o tempo passava, disse ter ido ao solicitador, DD, para a ajudar a fazer a participação.
24ª Nesse contacto que fez pessoal com o Sr. BB no banco, o Sr. BB não ligou a nenhum colega da Seguradora. Apenas disse que era preciso a participação à Seguradora;
25ª Referiu que o solicitador não continuou com o processo.
26ª Disse não achar estranho que nas condições particulares não dizer que o seguro de ciclista abrange acidentes na União Europeia, no Reino ....
27ª Na acareação do autor e da testemunha CC com BB este confirmou que nunca em momento algum transmitiu ao Sr. AA que aquele seguro cobria sinistros ocorridos em ... nem tal questão foi posta;
28ª De uma forma honesta e desinteressada, referiu que “custa-me estar a dizer isto, mas é verdade ...”
29ª Confirmou que a Dª CC foi falar consigo na companhia do solicitador DD;
30ª Quanto ao facto de o seu depoimento se encontrar condicionado, disse:
“Estou, estou, estou a perceber. Eu penso que não, nem nunca me passou isso pela cabeça, nem eu estou aqui coadjuvado. Srª Doutora, nem falei com ninguém, nem nada, expliquei o meu conhecimento, recebi carta, até hoje ninguém falou comigo. Portanto, isto acontece, não estou a ser pressionado por ninguém, e digo pessoalmente, eu até queria que este assunto fosse resolvido a bem. Que as partes se entendam e que resolvam isso, ao EMP01... ou seja a quem for, não interessa o valor, então eu já ... impercetível … eu não vou estar aqui a defender uma entidade … que eu daqui a 2 ou 3 anos ou coisa vou levar reforma e depois eu todos os dias tenho que passar pelo Sr. AA e pela Dª CC, e há coisas na vida que não se pagam, que é verdade.
Portanto ...”
31ª Finalmente, ouvido DD – solicitador que acompanhou a esposa do autor, após o acidente ter ocorrido, na deslocação à Banco 1... e à seguinte pergunta:
Alguma vez, já agora pergunto-lhe, da parte da Dª CC, foi posta em causa … ou foi pôr, ou teve a dúvida se a situação estaria ou não coberta pelo seguro?
Respondeu:
Pois, foi o grande problema da, da D.ª CC, já naquela altura. A D.ª CC, queria que eu a ajudasse a, a revindicar os seus direitos nas mais variadas situações, mas realmente talvez por força da circunstância que ela estava a viver, que ela estava com alguma dificuldade de, de documentação.
Disse não ter dado sequência ao processo.
32ª Diga-se que a única prova que existe relativamente à vontade de incluir na cobertura do contrato os acidentes em ... são as declarações de parte do próprio autor e que não foram corroboradas com o funcionário da Banco 1... que intermediou a negociação do contrato nem com um outro qualquer meio de prova.
33ª De modo a fundamentar o especial cuidado a atender quanto à prova por declarações de parte, o Tribunal Superior defendeu a tese da valoração como princípio de prova, citando LEBRE DE FREITAS - “A Ação Declarativa Comum”, 3ª Edição - quando refere que “A apreciação que o Juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiaria, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas.” Sublinhando que face aos factos declarados que sejam favoráveis à própria parte no que respeita à procedência da ação, o Juiz não se poderá́ bastar com as declarações para a formação da sua convicção, visto que são interessadas no ganho da causa. Devendo esta prova ter a corroboração de outras para que seja suficiente - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 20 de novembro de 2014 [Pedro Martins], proc. n.º 1878/11.8TBPFR.P2, disponível em dgsi.pt.
34ª Deste modo, a formação da convicção do julgador com base, somente, nas declarações de parte do recorrido – sem corroboração por outros meios de prova – revela uma inadmissível escassez probatória.
35ª Ora, as declarações de parte assim produzidas não encontram sustentação em nenhum outro elemento probatório, antes pelo contrário. Vejamos:
36ª Consta das condições gerais do contrato referido em 1. o seguinte: “Cláusula 4ª Âmbito territorial e temporal 1. Salvo convenção em contrário, devidamente expressa nas Condições Particulares, ou quando a cobertura expressamente o preveja, o presente contrato apenas produz efeitos em relação a sinistros ocorridos em Portugal Continental e Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.”;
37ª Do documento referido em 11. consta o seguinte: “O Signatário declara também ter tomado conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do presente contrato e que tomou conhecimento das condições aplicáveis ao mesmo, designadamente, as constantes do documento designado por Informações Pré-Contratuais que lhe foi entregue. Declara ainda o Signatário que foi inteiramente esclarecido acerca das modalidades de seguro que o Segurador oferece, sendo o que resulta da presente proposta o conveniente para a cobertura que pretende. O Signatário declara ainda que pretende obter as Condições Gerais e Especiais aplicáveis ao contrato através do site ..., considerando-as entregues com a receção do respetivo código de acesso que lhe será enviado pelo Segurador juntamente com as Condições Particulares do contrato, sem prejuízo de poder solicitar a sua receção por correio, em qualquer data.”;
38ª Estas declarações do demandante, dirigidas à demandada, correspondem a uma confissão extrajudicial de um facto, dispondo de força probatória plena (cfr artigo 358º nº 2 do Código Civil).
39ª E que por carta datada de 06/04/2018, 1ª ré remeteu para a morada do autor em Portugal - rua ..., ..., ... - as condições particulares da apólice de seguro nº ...85, assim como o aviso de cobrança e recibo correspondente ao 1º prémio anual de seguro, no valor de €36,00 (trinta e seis euros);
40º Da carta referida em 13. consta o seguinte: “Conforme acordado, as Condições Gerais e Especiais da sua Apólice estão disponíveis no site do EMP01... ..., na área Seguros Não Vida, através do código de acesso ...85, recomenda-se a sua leitura.
Aceda de forma rápida, cómoda e sem necessidade de impressão, às condições da sua Apólice, sempre que desejar. Caso pretenda, poderá solicitar o seu envio por correio, em qualquer data, pelo telefone ou e-mail abaixo indicados.”;
41ª Nos anos seguintes, 2019 e 2020, a 1ª ré emitiu e remeteu igualmente para a mesma morada os avisos de cobrança e recibos correspondentes aos prémios por aquelas anuidades de seguro, fazendo acompanhar tais notificações do envio das condições particulares da apólice;
42ª Ora, os deveres de comunicação e informação que recaem sobre o proponente das cláusulas gerais não dispensa o seu destinatário, ora autor, do dever de adotar um comportamento de normal diligência, uma simples leitura atenta.
43ª Sendo certo que, no caso, tal cláusula, bem como as demais, não se revestem de complexidade especial, sendo de muito fácil compreensão.
44ª Assim, tendo sido disponibilizada ao autor toda a informação necessária à exata compreensão das garantias do contrato de seguro, se este não leu essa informação preteriu um comportamento de normal diligência que lhe cabia. Nesse sentido se decidiu, entre outros, no douto Acórdão da Relação de Guimarães de 04/03/2013, proferido no processo 306/10.0TCGMR.G1 e relatado pelo Sr Juiz Desembargador Filipe Caroço;
45ª O abuso do direito impede o autor de ver excluída do contrato a cláusula a que alude na petição inicial.
46ª Foi, ainda, disponibilizado o código de acesso para consulta das Condições Gerais e Especiais do Contrato.
47ª Por isso, nos termos do disposto no artigo 35º do DL 72/2008, verificou-se a consolidação da apólice, e só seriam "invocáveis divergências que resultem de documento escrito ou de outro suporte duradouro".
48ª Tal facto, por si só, impede a exclusão do contrato de seguro de qualquer cláusula que conste dessas condições gerais;
49ª DA RESPOSTA À MATÉRIA DE FACTO DE ACORDO COM O QUE VIMOS DE SUFRAGAR
Ora, cremos que a conjugação destes factos e da análise crítica da prova, impõe a revogação da decisão de facto atinente, devendo ser dada como não provada a seguinte matéria de facto que, na sentença recorrida, foram dados como não provados:
Quanto aos factos provados:
8. À data referida em 1., o autor trabalhava no Reino ..., onde residia habitualmente em ..., em ...; como tal, sabendo que a 3ª ré comercializa nos seus balcões os produtos da 1ª ré e por ser titular de contas bancárias na 3ª ré, o autor indagou junto do funcionário do balcão da 3.a ré se o contrato de seguro cobria os riscos de sinistros ocorridos nesse país;
Deve ser considerado provado apenas o seguinte:
8. À data referida em 1., o autor trabalhava no Reino ..., onde residia habitualmente em ..., em ...; como tal, sabendo que a 3ª ré comercializa nos seus balcões os produtos da 1ª ré;
Ainda,
9. O funcionário da 3ª ré estabeleceu um contacto telefónico que disse ser com alguém do departamento competente da 1ª ré, e confirmou ao autor que o referido contrato de seguro abrangia sinistros ocorridos quer em Portugal, quer no Reino ...;
Não provado
10. Na sequência de tal, o autor decidiu aderir ao contrato de seguro EMP01... Ciclista que lhe foi apresentado por um funcionário da 3ª ré no balcão de ...;
Não provado
11. A intervenção do autor limitou-se à subscrição de um formulário pré-elaborado pela 1ª ré, designado como “Proposta”, com a possibilidade de escolher, simplesmente, entre a cobertura “Mais”, com capital seguro de €30.000,00 (trinta mil euros), e a cobertura “Top”, com um capital seguro de €50.000,00 (cinquenta mil euros), e a forma de pagamento do respetivo prémio de seguro;
Não provado
Quanto aos factos não provados:
b) Antes de apresentar a proposta de seguro, foram lidas, comunicadas e explicadas ao autor, pelos funcionários do balcão da 3ª ré, as coberturas e garantias contratadas, designadamente a cláusula referida no facto provado 4., no sentido de que o contrato apenas produz efeitos em relação a sinistros ocorridos em Portugal Continental e Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira;
e) O autor pretendia e ficou convencido de que o seguro referido em 1. abrangia os riscos de sinistros ocorridos apenas em Portugal;
Devendo considerar-se como PROVADOS;
50º O recorrente autor traz a juízo a questão jurídica da celebração de um contrato de seguro, sustentando que propôs a celebração de um contrato que cobrisse os acidentes em ....
Ora, de acordo com a alteração da matéria de facto agora sustentada no presente recurso, nada disso se provou.
51º Muito embora seja de considerar que a qualificação jurídica do tipo de contrato em causa nos autos não suscita qualquer controvérsia ou oposição das partes, entendemos que o autor não propôs a contratualização da cobertura da Apólice para os acidentes que se verificassem em ....
52º E, assim sendo, esta questão nem sequer foi objeto do presente contrato.
53º A questão situa-se no plano da formação do contrato… e neste aspeto, o autor não contratualizou, em concreto, a cobertura de acidentes em ....
54º Reafirma-se que em face dos factos provados 12. a 15., importa considerar que daqui se pode retirar que o autor conhecia ou podia conhecer o teor da dita cláusula que constitui a condição geral nº 4, e que um eventual desconhecimento lhe é imputável e, por via disso, se a invocação pelo mesmo da falta de comunicação constitui um abuso do direito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 334º, do Código Civil.
55º Convém, igualmente, o art.º 35º da Lei do Contrato de Seguro:
Artigo 35º
Consolidação do contrato
Decorridos 30 dias sobre a data da entrega da apólice sem que o tomador do seguro haja invocado qualquer desconformidade entre o acordado e o conteúdo da apólice, só são invocáveis divergências que resultem de documento escrito ou de outro suporte duradouro.
56º Ora, transcorreram mais de 30 dias, pelo que se verifica consolidação do contrato.
57º E diga-se que na nossa modesta opinião, da prova produzida não resultou provado pelo autor que o conhecimento que obteve quanto ao âmbito territorial do contrato de seguro que lhe foi transmitido pela 1ª ré – por via do funcionário da 3ª ré – era o de que abrangeria o Reino ...;
58º Em face de todo o exposto, e não obstante outras ordens de razões, é ilegítima e abusiva, a invocação por parte do autor do desconhecimento do teor da condição geral nº 4, não devendo a mesma ser excluída do contrato.
59º Deste modo, não só pelo que vimos de referir, como também face a todo o exposto, ao decidir nos termos da douta Sentença em recurso, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 342º, nº 1, e 405º, ambos do Código Civil e os art.ºs 1º e 35º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008, sendo manifesto o erro na apreciação da prova.
Termina entendendo que deve a decisão recorrida ser revogada na medida acima assinalada.
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Pelo apelado e autor, AA, foi apresentada resposta onde entende que deverá o recurso interposto pela ré/recorrente ser julgado totalmente improcedente e, consequentemente, mantida a decisão recorrida.
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C) Foram colhidos os vistos legais.
D) As questões a decidir no recurso são as de saber:
1) Se deverá ser alterada a decisão da matéria de facto;
2) Se deverá ser alterada a decisão jurídica da causa e revogada a decisão recorrida.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Na 1ª instância resultou apurada a seguinte matéria de facto:

I. Factos Provados
1. Em 6 de abril de 2018, foi celebrado entre o autor, na qualidade de tomador, e a 1ª ré, na qualidade de seguradora, um contrato de seguro do ramo vida EMP01... Ciclista, titulado pela apólice nº ...85, válido pelo período de um ano, com renovação automática pelo mesmo prazo no termo de cada período anual;
2. Pelo referido contrato de seguro, a 1ª ré garantia os riscos de morte ou invalidez permanente, despesas de tratamento e repatriamento, despesas de funeral, responsabilidade civil e assistência a pessoas e ciclistas, sendo o capital seguro no caso de morte ou invalidez permanente de €30.000,00 (trinta mil euros);
3. O referido contrato de seguro foi pré-elaborado pela 1ª ré e destinava-se a ser subscrito pelos seus clientes e, em geral, pelos clientes do Grupo EMP01..., sem possibilidades de negociação do seu conteúdo;
4. Consta das condições gerais do contrato referido em 1. o seguinte: “Cláusula 4ª Âmbito territorial e temporal 1. Salvo convenção em contrário, devidamente expressa nas Condições Particulares, ou quando a cobertura expressamente o preveja, o presente contrato apenas produz efeitos em relação a sinistros ocorridos em Portugal Continental e Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.”;
5. Consta das condições gerais do contrato referido em 1. o seguinte: “Cláusula 32ª – Garantias – 3 - Invalidez Permanente a) Em caso de Invalidez Permanente da Pessoa Segura, clinicamente constatada e sobrevinda no decurso de dois anos após a ocorrência do Acidente que lhe deu causa, o Segurador garante o pagamento de uma indemnização em montante correspondente a uma percentagem do capital seguro constante das Condições Particulares, determinada por aplicação da Tabela de Desvalorização, anexa às Condições Gerais, e que delas faz parte integrante; (…) g) A incapacidade funcional parcial ou total de um membro ou órgão é equiparada à correspondente perda total ou parcial;”;
6. Consta do Anexo I - Tabela de Desvalorização para cálculo de indemnizações por invalidez permanente como consequência de acidente – limites de indemnização - do contrato referido em 1. o seguinte: “A. Invalidez Permanente Total - Perda completa do uso dos dois membros inferiores ou superiores - 100%”;
7. Consta das condições gerais do contrato referido em 1. o seguinte: “Cláusula 24ª – Obrigações do Segurador – 1 – O Segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual ao sinistrado, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências. 2 – As averiguações necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos devem ser efetuadas pelo Segurador com a adequada prontidão e diligência. 3 – A obrigação do Segurador vence-se decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o número anterior.”;
8. À data referida em 1., o autor trabalhava no Reino ..., onde residia habitualmente em ..., em ...; como tal, sabendo que a 3ª ré comercializa nos seus balcões os produtos da 1ª ré e por ser titular de contas bancárias na 3ª ré, o autor indagou junto do funcionário do balcão da 3ª ré se o contrato de seguro cobria os riscos de sinistros ocorridos nesse país;
9. O funcionário da 3ª ré estabeleceu um contacto telefónico que disse ser com alguém do departamento competente da 1ª ré, e confirmou ao autor que o referido contrato de seguro abrangia sinistros ocorridos quer em Portugal, quer no Reino ...;
10. Na sequência de tal, o autor decidiu aderir ao contrato de seguro EMP01... Ciclista que lhe foi apresentado por um funcionário da 3ª ré no balcão de ...;
11. A intervenção do autor limitou-se à subscrição de um formulário pré-elaborado pela 1ª ré, designado com o “Proposta”, com a possibilidade de escolher, simplesmente, entre a cobertura “Mais”, com capital seguro de €30.000,00 (trinta mil euros), e a cobertura “Top”, com um capital seguro de €50.000,00 (cinquenta mil euros), e a forma de pagamento do respetivo prémio de seguro;
12. Do documento referido em 11. consta o seguinte: “O Signatário declara também ter tomado conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do presente contrato e que tomou conhecimento das condições aplicáveis ao mesmo, designadamente, as constantes do documento designado por Informações Pré-Contratuais que lhe foi entregue. Declara ainda o Signatário que foi inteiramente esclarecido acerca das modalidades de seguro que o Segurador oferece, sendo o que resulta da presente proposta o conveniente para a cobertura que pretende. O Signatário declara ainda que pretende obter as Condições Gerais e Especiais aplicáveis ao contrato através do site ..., considerando-as entregues com a receção do respetivo código de acesso que lhe será enviado pelo Segurador juntamente com as Condições Particulares do contrato, sem prejuízo de poder solicitar a sua receção por correio, em qualquer data.”;
13. Por carta datada de 06/04/2018, 1ª ré remeteu para a morada do autor em Portugal - rua ..., ..., ... - as condições particulares da apólice de seguro nº ...85, assim como o aviso de cobrança e recibo correspondente ao 1º prémio anual de seguro, no valor de €36,00 (trinta e seis euros);
14. Da carta referida em 13. consta o seguinte: “Conforme acordado, as Condições Gerais e Especiais da sua Apólice estão disponíveis no site do EMP01... ..., na área Seguros Não Vida, através do código de acesso ...85, recomenda-se a sua leitura. Aceda de forma rápida, cómoda e sem necessidade de impressão, às condições da sua Apólice, sempre que desejar. Caso pretenda, poderá solicitar o seu envio por correio, em qualquer data, pelo telefone ou e-mail abaixo indicados.”;
15. Nos anos seguintes, 2019 e 2020, a 1ª ré emitiu e remeteu igualmente para a mesma morada os avisos de cobrança e recibos correspondentes aos prémios por aquelas anuidades de seguro, fazendo acompanhar tais notificações do envio das condições particulares da apólice;
16. No dia 24 de maio de 2020, pelas 09:30 horas, o autor sofreu uma queda durante um passeio de bicicleta num parque natural nos arredores de ..., em consequência do que sofre atualmente de Tetraplegia AIS C nível motor C6, nível sensitivo L1 e nível de lesão neurológica C6;
17. A referida situação de tetraplegia determina-lhe perda sensorial, motora e funcional dos membros superiores e inferiores, que o impossibilita de desenvolver toda e qualquer atividade profissional e de realizar as atividades do dia-a-dia sem auxílio de terceiros, não sendo capaz de controlar os esfíncteres; em consequência, o autor não é capaz de andar ou sequer de ficar de pé, estando dependente do auxílio permanente de terceira pessoa para os gestos mais simples da sua vida diária, como alimentar-se, vestir-se, tomar banho, pentear-se, barbear-se e cuidar da sua higiene pessoal;
18. Por força do descrito em 16. e 17., em 29/07/2021, foi emitido em nome do autor um atestado Médico de Incapacidade Multiuso que atesta ser o mesmo portador de uma deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global 90%, a título definitivo;
19. Em 07/08/2020, o autor comunicou à 1ª ré a ocorrência do acidente e a sua situação clínica;
20. Em 10/08/2020, a 1ª ré remeteu ao autor uma carta registada alegando que o acidente de que o autor foi vítima, ocorrido em ..., Reino ..., não se encontra abrangido pelas coberturas da apólice, em virtude da exclusão prevista na cláusula 4ª das Condições Gerais;
21. A 2ª ré é o organismo central do Sistema Integrado de EMP01..., competindo-lhe os poderes de intervenção e de fiscalização das Caixas de EMP01... suas associadas.

II. Factos não provados

a) Antes de apresentar a proposta de seguro, foram lidas, comunicadas e explicadas ao autor, pelos funcionários do balcão da 3ª ré, as coberturas e garantias contratadas, designadamente a cláusula referida no facto provado 4., no sentido de que o contrato apenas produz efeitos em relação a sinistros ocorridos em Portugal Continental e Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira;
b) O funcionário do balcão da 3ª ré referido no facto provado 8. sabia, porque tem formação nesse âmbito, que o âmbito de cobertura do contrato referido no facto provado 1, se restringia ao território de Portugal Continental e Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira;
c) O autor pretendia e ficou convencido de que o seguro referido em 1 abrangia os riscos de sinistros ocorridos apenas em Portugal;
d) A 1ª ré nunca aceitaria celebrar com o autor um contrato de seguro ciclista com uma cláusula de extensão territorial e, mesmo que aceitasse, o prémio a cobrar seria de, pelo menos, o dobro do fixado no contrato referido em 1..
*
B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
*
C) O recurso visa a reapreciação da decisão de facto e de direito.
No que se refere à matéria de facto, discorda a apelante da decisão quanto aos pontos 8, 9, 10 e 11 dos factos provados e a), b), c) e d) dos factos não provados.
Quanto ao ponto 8, entende a apelante que deverá dar-se como provado o seguinte:
“8. À data referida em 1., o autor trabalhava no Reino ..., onde residia habitualmente em ..., em ...; como tal, sabendo que a 3ª ré comercializa nos seus balcões os produtos da 1ª ré”.
Por outro lado, no que se refere à matéria constante dos pontos 9, 10 e 11, entende que devem ser considerados como não provados.
Por outro lado, quanto aos pontos de facto não provados, refere a apelante conforme acima se referiu, que considera como incorretamente julgados os pontos a), b), c) e d) dos factos não provados, que, aliás, transcreve (cfr. 198 vº e 199) e, pronuncia-se expressamente, a fls. 320 vº quanto aos factos provados, no entanto, no que se refere aos factos não provados, limita-se a transcrever os pontos a) e c) não referindo, em concreto, qual a decisão que, no seu entender, deve ser proferida quanto a estes pontos, fazendo referência aos pontos b) e d) dos factos não provados inexistindo, igualmente, qualquer pronúncia sobre  a decisão que entende que devia ser proferida quanto a estes pontos.
E, no se refere às conclusões a apelante menciona e transcreve os pontos que entende que foram incorretamente julgados: 8, 9, 10 e 11 dos factos provados e a) e d) dos factos não provados, importando esclarecer que o ponto referido como d) se trata de lapso, dado que tendo sido transcrito, se constata que se trata do ponto c), também no que se refere aos pontos b) e d) (corrigido o lapso), nada se diz (cfr. fls. 322 vº e 323).
No entanto, importa notar que a fls. 326 vº, ainda das conclusões, se refere quanto aos factos provados o entendimento acima referido sobre a decisão que sustenta e, quanto aos factos não provados, que transcreve e agora designa como sendo os pontos b) e e) que, pela leitura do conteúdo se verifica tratar-se dos pontos a) e c), entende que deverão ser considerados como não provados.
Assim sendo, quanto aos factos não provados, pela omissão da especificação da decisão que, no entender da apelante, deve ser proferida sobre os pontos b) e d) dos factos não provados, rejeita-se o recurso da matéria de facto quanto a estes pontos (artigo 640º nº 1 alínea c) NCPC, cfr. AUJ STJ de 17/10/2023, processo 8344/17.6T8STB.E1-A.S1 e Acórdão STJ de 16/11/2023, processo 31206/15.7T8LSB.E1.S1, www.dgsi.pt).
*
Vejamos.

Importa notar, quanto à apreciação da prova, como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 10/12/2010, disponível na base de Dados do Ministério da Justiça, no endereço www.dgsi.pt que “a apreciação das provas resolve-se, assim, em formação de juízos, em elaboração de raciocínios, juízos e raciocínios estes que surgem no espírito do julgador, como diz o Prof. Alberto dos Reis, “...segundo as aquisições que a experiência tenha acumulado na mentalidade do juiz segundo os processos psicológicos que presidem ao exercício da atividade intelectual e, portanto, segundo as máximas de experiência e as regras da lógica...”
A prova não visa, adverte o Prof. Antunes Varela, “...a certeza absoluta, (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) ...”, mas tão só, “...de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto.”
A certeza a que conduz a prova suficiente é, assim, uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.
Conforme se escreveu no Acórdão do STJ de 07/06/2005, relativamente à apreciação da prova, “quer seja na 1ª instância, quer seja na Relação, a questão é sempre de valoração das provas produzidas em audiência ou em documentos de livre apreciação.
Vigoram, em ambos os casos, para os julgadores desses tribunais, as mesmas regras e os mesmos princípios, dos quais avulta o da livre apreciação da prova ou sistema da prova livre (...) consagrado no artigo 655º nº 1 do Código de Processo Civil (atual 607º nº 5 NCPC).
Significa isto que a prova há de ser sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formulação de juízos e raciocínios que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzem a determinadas convicções refletidas na decisão dos pontos de facto sob avaliação.”
Um dos princípios que devem presidir ao julgamento é o da livre apreciação da prova, impondo-se ao juiz que decida de acordo com a sua prudente convicção acerca de cada facto, mas, quando a lei imponha para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, não pode esta ser dispensada (artigo 655º do Código de Processo Civil – artigo 607º nº 5 NCPC).
Segundo este princípio, o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas (Professor Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 384).

A propósito da valoração das declarações de parte conforme se refere em Direito Probatório Material comentado, Dr. Luís Filipe Pires de Sousa, a páginas 277 e segs., aí se afirma que “a doutrina e a jurisprudência vêm assumindo várias posições no que tange à função e valoração das declarações de parte que são aglutináveis em três teses essenciais:

I. Tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos;
II. Tese do princípio de prova;
III. Tese da autossuficiência/valor probatório autónomo das declarações de parte.

No âmbito da primeira tese insere-se Lebre de Freitas para quem «a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas.» Ou seja, para este autor as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária. Paulo Pimenta afirma que «Face ao sistema probatório instituído, o mais provável é que a prova por declarações de parte tenha uma natureza essencialmente supletiva (…)». A Conselheira Maria dos Prazeres Beleza afirma, por sua vez, que «(…) esta proveniência [da parte] implicará que, como regra, as declarações de parte não sejam aptas, por si só, a fundamentar um juízo de prova – salvo eventualmente nos casos em que a natureza dos factos a provar torne inviável outra prova.»
( … )
A tese do princípio de prova propugna que as declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova. Na doutrina, Carolina Henriques Martins, Declarações de Parte, Universidade de Coimbra, 2015, p. 58, pronuncia-se assim:
«É que não é material e probatoriamente irrelevante o facto de estarmos a analisar as afirmações de um sujeito processual claramente interessado no objeto em litígio e que terá um discurso, muito provavelmente, pouco objetivo sobre a sua versão dos factos que, inclusivamente, já teve oportunidade para expor no articulado.
Além disso, como já referimos, também não se pode esquecer o caráter necessária e essencialmente supletivo destas declarações que, na maior parte dos casos, servirá para combater uma fraca ou inexistente prestação probatória.
Caso se considere útil a audição da parte nesta sede quando coexistem outros meios de prova, propomos a sua apreciação como um princípio de prova, equivalente ao mencionado argomenti di prova italiano, que não deixará de auxiliar na persuasão do juiz, mas que apenas o fará em correlação com a restante prova já produzida contribuindo para a sua (des)credibilização, e apenas nesta medida.
Estas são as coordenadas fundamentais para a consideração das declarações de parte no nosso esquema probatório.» Na jurisprudência, esta tese tem sido – provavelmente – a que tem sido mais publicitada.
( … )
À medida que se baixa nos graus de prova, mais fácil se torna atribuir relevância probatória a um certo meio de prova. Lembre-se o que sucede em sede de procedimentos cautelares. É exatamente com o intuito de facilitar a prova de um facto que o art. 368º, nº 1, CPC aceita, no âmbito destes procedimentos, a mera justificação como o grau de prova suficiente. Assim, em vez de atribuir às declarações de parte o valor de princípio de prova, melhor solução parece ser o de atribuir a estas declarações o grau normal dos meios de prova, que é o de prova stricto sensu ou, nas providências cautelares, o de mera justificação. Isto significa que, de acordo com o critério da livre apreciação da prova, o tribunal tem de formar uma prudente convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto probando (cf. art. 607º, nº 5 1ª parte, CPC).
( … )
Para a terceira tese, pese embora as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente, assumindo um valor probatório autónomo. Assim, Catarina Gomes Pedra, A Prova por Declarações das Partes no Novo Código de Processo Civil. Em Busca da Verdade Material no Processo, Escola de Direito, Universidade do Minho, 2014, p. 145, afirma que:
«Não se duvida que, atento o manifesto interesse que a parte tem no desfecho da lide e a forte tradição da máxima nemo debet esse testis in propria causa, a valoração das suas declarações deva revestir-se de especiais cautelas, num juízo dirigido, em concreto, à sua credibilidade. Ademais, a subsistência do regime consagrado no artigo 361º do Código Civil e a não previsão da valoração da pro se declaratio obtida na prova por declarações de parte são suscetíveis de gerar a convicção de que se trata, afinal, de um meio de prova complementar. Porém, não pode esquecer-se que a limitação do valor probatório das declarações das partes, como, de resto, a sua compreensão no contexto de um meio de prova subsidiário, pode consubstanciar, em determinadas situações, uma violação do princípio da igualdade de armas previsto no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
( … )
Com maior abertura ao protagonismo das declarações de parte, Mariana Fidalgo, A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, p. 80, afirma claramente que: «(…) ponto, para nós, assente é que este meio de prova não deve ser previamente desprezado nem objeto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. Não olvidando o carácter aparentemente subsidiário das declarações de parte, certo é que foram legalmente consagradas como um meio de prova a ser livremente valorado, e não como passíveis de estabelecer um mero princípio de prova ou indício probatório, a necessitar forçosamente de ser complementado por outros. Assim sendo, e ainda que tal possa naturalmente suceder com pouca frequência na prática, defendemos que será admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios de prova.» Por nós, entendemos que a posição mais correta radica na tese mais ampla e permissiva sobre a potencialidade e centralidade das declarações de parte na formação da convicção do juiz).”
Por todo o exposto, não parece que se deva restringir a eficácia probatória das declarações de parte às situações em que as mesmas sejam corroboradas por outro meio de prova idóneo.
Nas suas alegações, a apelante, transcreve os depoimentos (declarações) do autor AA e das testemunhas BB, CC e DD, para sustentar a sua posição.
Entende a apelante que as declarações prestadas pelo autor são claramente parciais e interessadas, acrescentando que na acareação do autor e da testemunha CC, sua esposa, com a testemunha BB, este depôs de uma forma honesta e desinteressada afirmando que nunca transmitiu ao autor que o seguro em questão cobria sinistros ocorridos em ....
Acrescenta a apelante que a única prova que existe relativamente à vontade de incluir no contrato os acidentes em ..., são as declarações de parte do próprio autor, que não foram corroboradas com o funcionário da Banco 1..., que intermediou a negociação do contrato.
Na motivação da sentença refere-se, no que aqui interessa, que “a prova dos factos 3. e 11. resulta da posição das partes vertida nos articulados, ou seja, é matéria admitida e não posta em causa por qualquer das partes.
A prova dos factos 8. a 10. resulta, em primeira linha, da valoração conjugada dos depoimentos da testemunha CC (cônjuge do autor) e da testemunha BB (funcionário da 3ª ré que tratou da celebração do contrato de seguro com o autor), EE (responsável da área de seguros da 3ª ré) e DD (solicitador que acompanhou a cônjuge do autor ao balcão da 3ª ré após o acidente do autor) e das declarações de parte do próprio autor na matéria.”
No que se refere ao ponto 8 dos factos provados, a apelante aceita que se provou que “À data referida em 1., o autor trabalhava no Reino ..., onde residia habitualmente em ..., em ...; como tal, sabendo que a 3ª ré comercializa nos seus balcões os produtos da 1ª ré”, o que significa que discorda do remanescente que consta do mesmo ponto, onde se refere “ … e por ser titular de contas bancárias na 3ª ré, o autor indagou junto do funcionário do balcão da 3ª ré se o contrato de seguro cobria os riscos de sinistros ocorridos nesse país;”.
Desde logo resulta manifesto que o autor era titular de conta na 3ª ré (cfr. artigo 10º da contestação da 3ª ré), pelo que a única questão a suscitar é a de saber se “o autor indagou junto do funcionário do balcão da 3ª ré se o contrato de seguro cobria os riscos de sinistros ocorridos nesse país”.
Sobre tal matéria pronunciou-se o autor nas suas declarações, afirmando deslocar-se à agência de FF todos os meses, tendo questionado a testemunha BB, o funcionário bancário que tratou da transação do seguro, se o seguro abrangia o Reino ..., tendo este feito um telefonema para alguém a perguntar se dava ou não e essa pessoa respondeu que sim, o que foi transmitido ao autor.

A testemunha BB, por sua vez, referiu, quando perguntado se o seguro cobria os acidentes que o autor pudesse ter no Reino ..., que, no ato do contrato, quando foi feito o contrato, não. Após o contrato, passado uns tempos foi lá a esposa (do autor) e perguntou-lhe e embora fosse a testemunha que fizesse (celebrasse) o contrato, ligou ao seu colega, aos seus colegas da área de seguros e foi-lhe dito que sim, que estava coberto e depois confirmaram-lhe que não estava coberto (?).
A referida testemunha afirmou que “na altura, quando foi celebrado o contrato não se falou se cobria no estrangeiro ou se não cobria, só se falou no valor e no montante do contrato, não se falou mais se era para Portugal, se era para o estrangeiro, se era para ... e mesmo sempre pensei que fosse só para cá … sei que na altura do contrato não se falou nessa hipótese”.
Questionado sobre se não lhe tinha sido dito (pelo autor) que também queria um seguro para ..., começou por responder que isso não lhe foi dito, tendo, porém, afirmado, depois, que “eu acho que isso não foi dito”.
Importa notar que esta testemunha conhecia o autor por residirem na mesma freguesia e também por força da sua atividade profissional sabendo que o autor trabalhava em ..., em jardins e também aí residindo.            
Não deixa de ser estranho que, conhecendo a testemunha o autor, para lá da sua atividade de funcionário bancário e sabendo que trabalhava em ..., que, mesmo que este não tivesse questionado se o seguro cobria os sinistros em ..., a testemunha não tivesse usado da diligência exigível de o informar qual o âmbito territorial de cobertura, abrangendo, ou não, o Reino ....
Acresce que a testemunha referiu que a esposa do autor se deslocou ao balcão da Banco 1..., após o acidente, a testemunha sabia que tinha havido um acidente, para saber se as coberturas abrangiam o estrangeiro, em ..., pelo que ligou para um colega que, por engano, lhe disse que sim, não se recordando se a esposa do autor estava sozinha ou acompanhada com o solicitador DD, tendo referido, posteriormente que, em nova visita da esposa do autor, acompanhada do solicitador, lhe pediram as condições gerais e as coberturas do seguro.
No que se refere ao depoimento da testemunha CC, a mesma referiu que telefonou à testemunha BB para saber se o seu marido tinha um seguro, tendo este respondido afirmativamente e perguntado onde tinha sido o acidente, referiu a testemunha CC que foi em ..., questionando esta o que teria de fazer, ao que o BB referiu que teria de esperar, não referindo que o seguro não cobria o sinistro.
Referiu ainda que foi com um solicitador, uma vez, ao EMP01... falar com o Sr. BB para lhe perguntar como é que devia dar entrada do processo ou a participação ao seguro, tendo este pedido o local do acidente, relatórios médicos, sítios onde ele tinha passado.
A testemunha CC referiu ainda que quando o seu marido fez o seguro lhe relatou que o Sr. BB, ligou para a Companhia para saber se o seguro abrangia os acidentes ocorridos em ..., portanto, antes do acidente, tendo o Sr. BB ligado para a Companhia de Seguros, que lhe disse que sim, sendo certo que estando previsto nas condições particulares que o seguro abrange as despesas de repatriamento, tal não poderá deixar de significar que as despesas de deslocação do estrangeiro para o seu país, a sua pátria, Portugal, dado que “repatriar” significa “fazer regressar à pátria” ou “voltar à pátria”, o que pressupõe a partir do estrangeiro.   
Não pode deixar de se dar como certo que a testemunha BB efetuou um telefonema para a Companhia de Seguros para saber se o seguro cobria os acidentes no estrangeiro, mais propriamente em ..., tendo-lhe sido respondido, no início, que a cobertura abrangia tais sinistros e só posteriormente, a Companhia de Seguros viria, alegadamente, a corrigir tal informação, no sentido que não os abrangia.
Ora, a iniciativa do seguro foi do autor que utilizava a bicicleta de uma forma que podemos considerar intensiva, dado que andava quase todos os dias, e praticava BTT, o que envolve algum perigo, além de ter amigos que também têm o seguro, pelo que decidiu fazê-lo, conforme o mesmo refere.
As declarações do autor, conjugadas com o depoimento da testemunha CC, apresentam uma coerência e lógica que nos levam a considerar a sua credibilidade, até porque a circunstância de apenas a testemunha BB ter sustentado que a abrangência do seguro ao estrangeiro e, concretamente, a ..., não foi colocada antes da celebração do contrato não tem corroboração de outras provas, basta dizer que a testemunha EE, que é responsável da área de seguros da 3ª ré, confirmou a existência do telefonema da testemunha BB embora não tenha logrado situá-lo no tempo.
Acresce não ser certo que fosse indiferente para a testemunha BB que a questão tivesse sido colocada antes ou depois do acidente, dado que sendo antes, como se nos afigura a circunstância de ter sido dada uma informação errada sobre a abrangência do seguro a ... onde, na altura, o autor vivia, seguramente que condicionaria ou poderia condicionar vontade de celebração do mesmo, pelo autor ou induzi-lo em erro, para além de responsabilizar a seguradora e, eventualmente, o autor da informação errada dada, o que não sucederia se tal informação tivesse sido dada apenas após a celebração do contrato e da ocorrência do acidente.
Também não pode haver dúvidas quanto à natureza do contrato referido em 11, face ao depoimento da testemunha BB, que referiu não ser possível negociar ou alterar as condições gerais.
Assim sendo, terão de manter os pontos 8, 9, 10 e 11 dos factos provados com a formulação dada pela 1ª Instância.
Refere a apelante que as declarações do demandante, constantes do ponto 11 dos factos provados dirigidas à demandada, correspondem a uma confissão extrajudicial de um facto, dispondo de força probatória plena, mas não é assim, dado que a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
No que se refere aos pontos a) e c) dos factos não provados, deve referir-se, quanto ao primeiro, que não se logrou demonstrar a respetiva materialidade, dado que nenhuma prova credível foi produzida no sentido de poder considerar-se como provado e quanto ao segundo ponto, o mesmo se dirá, como, de resto, resulta da prova produzida, que justificou que se deve considerar como não provado, precisamente, o contrário.
Ora, como se acaba de referir, o ponto a) dos factos não provados, mantem-se como tal, pelo que não resultou provado que tenham sido lidas, comunicadas e explicadas ao autor, pelos funcionários do balcão as coberturas e garantias contratadas, motivo pelo qual, se verá infra, não se pode considerar que a assinatura de uma declaração elaborada pela apelante e assinada pelo autor, constitua uma confissão. 
*
No que se refere à matéria propriamente jurídica, resulta que a decisão recorrida terá de se manter, uma vez que a apelante sustenta a revogação da decisão da sentença recorrida baseada no pressuposto da alteração da decisão da matéria de facto, o que não se verificou.
Refere a apelante que não tem aplicação o regime das cláusulas contratuais gerais ao contrato de seguro em causa nestes autos, mas não tem razão.
Com efeito, como se refere no acórdão desta Relação de Guimarães de 17/05/2018, no processo 963/16.4T8BCL.G1, relatado pela Desembargadora Maria João Matos, disponível em www.dgsi.pt, “lê-se no art. 405º do C.C. que, dentro «dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste Código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver», podendo ainda «reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulado na lei».
Consagra-se, assim, o princípio da liberdade contratual ou da autonomia da vontade, pelo que o conteúdo que em concreto tiver sido acordado entre as partes será aquele a que ficarão obrigadas.
Contudo, e no caso do contrato de seguro, haverá ainda que atender ao que para ele se dispõe - no silêncio das partes, ou imperativamente - no RJCS (Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de abril).
Assim, e nesta última hipótese, a modelação legal poderá limitar, ou excluir, determinados conteúdos do contrato celebrado (ficando, porém, autorizado às partes alargar o que ali seja considerado conteúdo mínimo obrigatório imperativamente imposto).
Prosseguindo, e sendo o contrato de seguro, em regra, um contrato de adesão, importará atender igualmente à regulação transversal (de proteção graduada) do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (estabelecido no Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de outubro, alterado depois pelo Decreto-Lei nº 220/95, de 31 de agosto - com declaração de retificação nº 114-B/95, de 31 de agosto -, pelo Decreto-Lei nº 249/99, de 07 de julho - por forma a torná-lo conforme com a Diretiva Comunitária nº 93/13/CEE -, e pelo Decreto-Lei nº 323/2001, de 17 de dezembro).
Precisando, o contrato de adesão pressupõe a prévia estipulação, por parte de um dos contratantes, em forma geral e abstrata, das cláusulas ou condições contratuais, com vista à sua futura incorporação no conteúdo dos contratos do tipo em causa (v.g. seguro, locação, mútuo bancário).
Assim, a aplicação uniforme dessas mesmas cláusulas ou condições é assegurada posteriormente através da recusa do seu predisponente em negociá-las, colocando a contraparte perante a alternativa, ou de se sujeitar às condições prefixadas, ou de desistir do contrato, renunciando à pretendida prestação.
Optando pela sujeição, passará a «dar vida a um contrato cujo processo formativo não reproduz a sua imagem ideal» (Joaquim Sousa Ribeiro, Cláusulas Contratuais Gerais e o Paradigma do Contrato, 1990, p. 39).
Presume-se, assim, que o contrato negociado poderá corresponder apenas à vontade de uma das partes.
Por outras palavras, quando estão em causa cláusulas contratuais gerais, «a liberdade da contraparte fica praticamente limitada a aceitar ou rejeitar, sem poder realmente interferir, ou interferir de forma significativa, na conformação do conteúdo negocial que lhe é proposto, visto que o emitente das “condições gerais” não está disposto a alterá-las ou a negociá-las; se o cliente decidir contratar terá de se sujeitar às cláusulas previamente determinadas por outrem, no exercício de um law making power de que este de facto desfruta, limitando-se aquele, pois, a aderir a um modelo pré-fixado» (António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, Coleção Teses, Almedina, 1990, p. 748).
Compreende-se, por isso, a preocupação do legislador, ao editar um diploma que consagrasse expressamente a disciplina a que deverão ficar sujeitas todas essas «cláusulas contratuais gerais», isto é, «elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respetivamente, a subscrever ou aceitar» (art. 1º, nº 1 do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de outubro).
Com efeito, todas elas se caracterizam pela sua generalidade ou pré-elaboração, pela sua rigidez, e pela sua indeterminação: «são pré-elaboradas, existindo antes de surgir a declaração que as perfilha; apresentam-se rígidas, independentemente de obterem ou não a adesão das partes, sem possibilidade de alterações; podem ser utilizadas por pessoas indeterminadas, quer como proponentes, quer como destinatários» (Mário Júlio de Almeida Costa e António Menezes Cordeiro, Cláusulas Contratuais Gerais, Anotações ao Dec-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, Almedina, Coimbra, 1987, p. 17).
Com tais características presentes, presumir-se-á que as cláusulas que as possuam não resultaram de negociação prévia entre as partes (arts. 1º, nº 2 e 2º, ambos do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de outubro); e caberá à parte que pretenda prevalecer-se do seu conteúdo o ónus da prova de que a cláusula contratual em causa resultou de negociação prévia entre as partes (nº 3 do art. 1º do Dec-Lei nº 446/85, de 25 de outubro).
Assim, e depois de iniciais hesitações, é hoje firmemente adquirido pela jurisprudência dos Tribunais Superiores nacionais a aplicação do regime legal das cláusulas contratuais gerais ao contrato de seguro.
(Neste sentido, «Cláusulas abusivas e contrato de seguro», in Secção Portuguesa da AIDA - Association Internationale de Droit des Assurances (coor.), Congresso Luso-Hispano de Direito dos Seguros, 17 e 18 de novembro de 2005, Coimbra, Almedina, 2009, págs. 229-231, com generosa menção de jurisprudência. Para o quadro geral sobre esta matéria, José Carlos Moitinho de Almeida, «O Regime Comunitário das Cláusulas Abusivas», idem, pág. 193 ss.).
Por fim, precisa-se que, face ao regime próprio das mesmas cláusulas contratuais gerais, as «cláusulas especificamente acordadas prevalecem sobre» aquelas; e isto «mesmo quando constantes de formulários assinados pelas partes» (art. 7º - sob a epígrafe «Cláusulas prevalentes» - do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de outubro).
Com efeito, em regra a «apólice dos contratos de seguro contém (I) condições gerais, que se aplicam a todos os contratos de seguro de um mesmo ramo ou modalidade, (II) condições especiais, que completando ou especificando as condições gerais são de aplicação generalizada a determinados contratos do mesmo tipo, e (III) condições particulares, que se destinam a responder em cada caso às circunstâncias específicas do risco a cobrir» (Ac. do STJ, de 04.12.2014, Granja da Fonseca, Processo nº 919/13.9TVLSB.L1.S1, citando José Vasques, com bold apócrifo).
Ora, pode, de facto, acontecer que, «na celebração de um negócio com recurso a cláusulas contratuais gerais, se acordem outras cláusulas, diversas das predispostas. O problema é candente, sobretudo, quando esses acordos específicos contradigam formulários assinados pelas partes».
A «experiência ensina, de facto, que a presença de acordos específicos demonstra a vontade das partes de não subscrever as cláusulas contratuais gerais que se lhes oponham. Estas devem considerar-se, pois, sempre prejudicadas» (Mário Júlio de Almeida Costa e António Menezes Cordeiro, Cláusulas Contratuais Gerais, Anotações ao Dec-Lei nº 446/85, de 25 de outubro, Almedina, Coimbra, 1987, p. 26. No mesmos sentido, Ac. do STJ, de 04.12.2014, Granja da Fonseca, Processo nº 919/13.9TVLSB.L1.S1, considerando nomeadamente que «as condições gerais enumeram os riscos ou coberturas que potencialmente podem ser garantidas, ficando abrangidas pelo caso concreto aquelas que forem enumeradas nas condições particulares», e por isso só a estas se devendo atender).”
Nos termos do disposto no artigo 5º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25/10.
“1. As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.
2. A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efetivo por quem use de comum diligência.
3. O ónus da prova da comunicação adequada e efetiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.”
Sendo certo que, de acordo com o ponto 4 dos factos provados, a cláusula 4ª nº 1 estabelece que “salvo convenção em contrário, devidamente expressa nas Condições Particulares, ou quando a cobertura expressamente o preveja, o presente contrato apenas produz efeitos em relação a sinistros ocorridos em Portugal Continental e Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira”.
Porém, conforme resulta dos pontos 9 e 10 dos factos provados,
“9. O funcionário da 3ª ré estabeleceu um contacto telefónico que disse ser com alguém do departamento competente da 1ª ré, e confirmou ao autor que o referido contrato de seguro abrangia sinistros ocorridos quer em Portugal, quer no Reino ...;
10. Na sequência de tal, o autor decidiu aderir ao contrato de seguro EMP01... Ciclista que lhe foi apresentado por um funcionário da 3ª ré no balcão de ...;”
Isto é, esta situação ocorreu previamente à elaboração do contrato escrito que titulava o contrato de seguro onde viria a ser inserida a cláusula 4ª nº 1, cláusula esta que contraria a informação dada, com base na qual foi firmada a decisão de contratar, o que se traduz na modificação de uma obrigação anteriormente assumida, que não se mostra ter sido oportuna e formalmente comunicada ao segurado e, como tal, é absolutamente proibida (artigos 21º alínea a) e 5º nº 3 do Decreto-Lei nº 446/85, de 25/10) e como tal, nula (artigo 12º), motivo pelo qual a supra alegada “confissão”, constante do ponto 11 dos factos provados, nunca poderia valer no que se refere à limitação do âmbito territorial.
Refere a apelante que a invocação pela autora da falta de comunicação constitui um abuso de direito, mas não tem razão, dado que não se mostram verificados os pressupostos do referido instituto.
No Acórdão do STJ de 02/07/96, no site da DGSI, no endereço www.dgsi.pt, escreveu-se que “segundo o artigo 334º do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico dum direito.
Esta complexa figura do abuso de direito é uma válvula de segurança, uma das cláusulas gerais, de janelas por onde podem circular lufadas de ar fresco, com que o julgador pode obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido (Manuel Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 1958, 63 e seguintes; Almeida Costa Direito das Obrigações, 3ª edição, 60 e seguintes; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, 4ª edição, 299; Antunes Varela, Comunicação à Assembleia Nacional em 26 de novembro de 1966).
Manuel de Andrade acrescentou ainda “grosso modo” existirá tal abuso quando, admitido um certo direito como válido, isto é, não só legal, mas também legítimo e razoável, em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito (loc. cit.).
Por sua vez, Antunes Varela esclareceu que o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjetivo e que se designa por abuso de direito o exercício de um poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em absoluta contradição seja com o fim (económico ou social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa-fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu conhecimento (R.L.J. 114, página 75) e, por outro lado, não se esqueceu de salientar que a condenação do abuso de direito, a ajuizar pelos termos do dito artigo 334º, “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjetivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo” (R.L.J. 128, página 241).
E há que ter presente que o atual Código Civil consagrou a conceção objetivista do abuso de direito e por isso não é necessário a consciência malévola, a consciência de se excederem, com o abuso de direito, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que sejam excedidos esses limites, muito embora a intenção com que o titular do direito tenha agido não deixa de contribuir para a questão de saber se há ou não abuso de direito (Almeida Costa, loc. cit., Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit.).”
Ora, se analisarmos a matéria de facto apurada resulta claramente que não há qualquer excesso, menos ainda, manifesto, dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, até porque conforme acima se referiu a factualidade alegada pelos apelantes não resultou provada e, como tal não há qualquer abuso de direito, invocação essa que, assim, improcede.
Assim sendo, mantendo-se a decisão da matéria de facto, igualmente se terá de manter a decisão jurídica da causa, pelo que terá de se confirmar a douta sentença proferida, julgando-se a apelação improcedente.
Face ao decaimento da posição da apelante, sobre a mesma recai a obrigação de suportar as custas (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC).
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III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a douta sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
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Guimarães, 08/02/2024

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Alexandra Rolim Mendes
2º Adjunto: Desembargador Afonso Cabral de Andrade