Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3141/22.0T8GMR.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: PEAP
VALOR DA CAUSA
APELAÇÃO AUTÓNOMA
RECURSO POR REMISSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE; APELAÇÕES REJEITADAS
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O valor da causa indicado pelos requerentes na petição inicial é meramente indicativo, não vinculando o juiz, única entidade a quem compete fixar o valor da causa e que tem de efetuar essa fixação em função dos critérios legais aplicáveis.
II - O despacho proferido no PEAP que considera que um credor tem direito de voto não admite recurso de apelação autónoma porquanto não se integra em nenhuma das situações previstas no art. 644º, nºs 1 e 2, do CPC, só podendo ser impugnado no recurso que venha a ser interposto da decisão final, ou, não havendo recurso, se mantiver interesse para os apelantes, nos termos referidos nos nºs 3 e 4 do art. 644º, do CPC.
III - Não é admissível a interposição de recurso por meio de mero requerimento no qual não são apresentadas alegações ou conclusões e se remete para as alegações de um outro recurso anteriormente interposto.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

AA e BB instauraram processo especial para acordo de pagamento.
Alegaram que se encontram ambos desempregados.
Na relação de bens a que alude o art. 24º, nº 1, al. e) do CIRE indicaram o seguinte bem:

“Prédio urbano destinado a habitação, com 2 pisos, com a área total do terreno de 250,00m2, área de implantação de 112,00m2, área bruta privativa de 112,00m2 e área dependente de 234,00m2, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição ...42-... e inscrito na matriz predial urbana com o artigo ...43, da freguesia ..., sito na Rua ..., ..., Guimarães – conforme docs 14 e 15.”

Juntaram certidão da Conservatória do Registo Predial bem como caderneta predial urbana onde consta que o imóvel em questão tem o valor patrimonial de € 99 357,70.
Indicaram como valor da ação a quantia de € 2 000.
*
Foi nomeado Administrador Judicial Provisório.
*
Foi apresentada a lista provisória de credores.
*
Os requerentes apresentaram plano em 17.10.2022 (requerimento ref. Citius ...31), e apresentaram aditamento ao plano em 28.10.2022 (requerimento ref. Citius ...11).
*
Em 8.11.2022 foi proferido despacho (ref. Citius ...08) que considerou que o credor Banco 1..., S.A. tem direito de voto.
*
Notificados deste despacho, vieram os requerentes em 14.11.2022 (ref. Citius ...93) interpor recurso, apresentando as respetivas alegações e formulando as seguintes conclusões:

1- Não pode a ora recorrente conformar-se com a decisão do Tribunal “a quo” (sentença proferida nos autos com refª ...08).
2- A nossa discordância funda-se em aspectos sobre factos e em questões de direito que serviram de fundamento à douta sentença proferida, que conferiu direito de voto à credora Banco 1..., SA.
3- Sucede, porém que não nos podemos conformar com tal entendimento.
4- Assim, ao Banco 1..., SA não assiste qualquer direito de voto, porquanto, no âmbito do plano, propõe-se a “consolidação do crédito à data do trânsito em julgado da sentença de homologação, e a manutenção de todas as condições contratualizadas, sem qualquer alteração”.
5- Ou seja, no que à credora hipotecária diz respeito, não se verificará qualquer alteração/ restruturação!
6- Assim, os Devedores propõem-se, em sede de plano, a duas coisas essenciais: a primeira capitalizar os montantes vencidos (consolidação do crédito) e a segunda a manter as demais condições contratualizadas, sem nenhuma alteração.
7- Vejamos o Acórdão do TRC de 18/5/2020, inwww.dgsi.pt, o qual acompanharemos de muito perto: “Entendemos ser aplicável ao PEAP o que consta do art. 212.º/2/a) do CIRE, o que significa que não conferem direito de voto os créditos que não sejam modificados pelo acordo” -cfr., também o Ac. Do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/10/2018, proferido na apelação 2.825/17.9T8ACB.C1,in CC.
8- Assim, vistas as coisas, temos como certo que o crédito do Banco 1... não foi modicado.
9- Assim, o Banco 1... celebrou com os Devedores um contrato de mútuo em dezembro de 2016, em que lhe mutuou a quantia € 89.600, pelo prazo de 399 meses, amortizável em 399 prestações, prevendo ainda diversas outras cláusulas para o empréstimo, nas quais se prevê, o indexante, a taxa nominal anual, o spread, entre outros.
10- Dessa feita, a nossa proposta de pagamento não é suficiente para que seja conferido direito de voto ao credor hipotecário in casu.
11- Ou seja, no que à credora hipotecária diz respeito, não se verificará qualquer alteração/ restruturação.
12- Efetivamente, apenas ocorrerá uma consolidação do valor global em dívida, sendo que se mantêm todos os valores de capital e juros e, ainda, o hiato de tempo em que essas prestações serão pagas.
13- Da forma como entendemos o plano, por via da consolidação, as prestações serão pagas no prazo que havia sido acordado com a credora, e, fruto do incumprimento, serão de um valor superior ao inicialmente acordado.

1- A circunstância de não se propor o pagamento imediato das prestações em dívida, com o recomeço das prestações –valores –, sem qualquer alteração no capital, não é razão suficiente para dizer, tendo em vista o que se visa evitar com o disposto no art. 212.º/1/a) do CIRE, que tais créditos foram modificados.
2- Com interesse, continua o supra referido Ac. do TRC, “como já se referiu, pretende evitar-se, com o art. 212.º/2/a) do CIRE, que os credores que não sejam afetados imponham o Plano/Acordo aos credores afetados, pelo que uma interpretação/aplicação formal da expressão “créditos que não sejam modificados” conduzirá a fazer de tal preceito “letra morta”, uma vez que, então, bastarão pequenas alterações (nos juros e nos prazos de pagamento) para se dizer que, no rigor formal, o crédito foi modificado e que, por isso, o respetivo credor não fica inibido de votar (ou seja, bastarão pequenas alterações par defraudar a lei)”.
3- Temos, pois, que, em relação ao citado credor, prevendo-se o pagamento total da quantia em dívida, com a consolidação dos créditos e com a manutenção de todas as garantias, se tem que afirmar que, em substância, tais créditos não foram modificados pelo Acordo, razão pela qual não tinha tal credor direito de voto.
4- O recurso merece provimento por parte de V. Exas.
5- O Tribunal ao apreciar e decidir a matéria constante do pedido fez errada interpretação da matéria de facto e aplicação da Lei, chegando a conclusões ininteligíveis.
6- Atente-se ainda na douta sentença proferida no âmbito do processo 2455/21...., que correu seus termos no Juízo de Comércio ... – J..., já transitada em julgado:
7- “Relativamente ao particular questionado pelo Banco 2...,S.A , sou a verificar que o plano apresentado pela devedora prevê o seguinte: “quanto ao crédito hipotecário do Banco 2..., SA., propõe-se a consolidação do crédito à data do trânsito em julgado da sentença de homologação, e a manutenção de todas as condições contratualizadas, sem qualquer alteração.”
8- Daqui brota (ao que julgo lídimo concluir) que a devedora sustenta em sede de plano coisas a capitalização dos montantes vencidos no entrementes ,no demais mantendo incólumes as condições vertidas no contrato bilateral em causa sem qualquer modificação (cfr. um contrato de mútuo em dezembro de 2004, em que lhe mutuou a quantia € 69.855,75, pelo prazo de trinta anos, amortizável em 357 prestações, prevendo ainda diversas outras cláusula para o empréstimo, nas quais se prevê, o indexante, a taxa nominal anual e o “spread”), daqui derivando que não se verifica “in casu” qualquer restruturação da dívida ,a qual mantém o seu valor em sede de exigibilidade pelo mutuante .outrossim materializando-se a consolidação dos valores devidos por via da firmada contratação.
9- Perante tal quadro, lídimo penso ser lícito concluir que não se está defronte uma patrimonial modificação do concedido crédito ,destarte sendo de levar em cogitação a aplicabilidade ao caso “sub judice” do plasmado no art.212º nº 2ª a) do CIRE, com a decorrente não concessão de voto ao sobredito (reconhecido) credor.
10- O Tribunal ao apreciar e decidir a matéria constante do pedido fez errada interpretação da matéria de facto e aplicação da Lei, chegando a conclusões ininteligíveis.
11- Assim, mantemos todas as considerações vertidas supra, pelo que não poderia ao credor Banco 1..., SA ter sido conferido direito de voto, nos termos do disposto no artigo 212, n.º 2, alínea a) do CIRE.
12- Por conseguinte requer-se que seja revogada a decisão e sua substituição por outra que não confira direito de voto ao credor Banco 1...
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Em 22.11.2022 (cf. requerimento ref. Citius ...99) o AJP veio informar que “alterada a quantificação de voto do credor Banco 1..., SA bem como alterado o sentido de voto do Instituto da Segurança Social, IP, o plano considera-se como não aprovado, conforme mapa anexo”, o qual juntou.
*
Em 25.11.2022, foi proferida decisão (ref. Citius ...28) com o seguinte teor:
“Atenta a informação que antecede, declara-se encerrado o processo negocial sem aprovação do acordo de pagamento.
Notifique o Sr. AJP para juntar o parecer previsto no art. 222º-G, nº 3 do CIRE.”
*
Em 28.11.2022, o Banco 1..., S.A. apresentou requerimento (ref. Citius ...11) no qual se pronunciou sobre a inadmissibilidade do recurso interposto em 14.11.2022 por entender que o despacho recorrido não admite apelação autónoma, só podendo ser impugnado com o recurso que vier a ser interposto da decisão final.
*
Em 12.12.2022 vieram os requerentes apresentar requerimento (ref. Citius ...08) com o seguinte teor:

“AA, NIF ... e BB, NIF ..., melhor identificados nos autos à margem referenciados, na sequência da sentença proferida nos presentes autos, a que coube referência Citius ...28, com a mesma não se conformando, dela vêm, nos termos nº 8 artigo 688º requerer a ampliação do recurso, passando o mesmo a versas as decisões de referência ...08 e ...28, com os exatos mesmos argumentos das alegações dos Devedores de fls… ...24.”
*
Em 13.12.2022 (requerimento ref. Citius ...34), o AJP emitiu parecer nos termos do art. 222º-G, nº 4, do CIRE, no qual se pronunciou no sentido de que os devedores não se encontram em situação de insolvência, mas sim em situação de insolvência meramente iminente.
*
Em 10.1.2023 foi proferido despacho (ref. Citius ...79) com o seguinte teor:

“Admite-se o recurso, o qual é de apelação, com subida imediata, nos próprios autos, e efeito meramente devolutivo, nos termos conjugados dos artigos 14.º, n.ºs 5 e 6, alínea b), e 17.º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, e 644.º, n.º 1, alínea a), e 638.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
D.N.”
*
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, foi proferido despacho, em 23.1.2023, (ref. Citius ...41) que determinou que os autos baixassem à 1ª instância a fim de:
a) ser fixado valor à causa;
b) ser proferido despacho que apreciasse a admissibilidade do requerimento apresentado pelos recorrentes em 12.12.2022 (ref. Citius ...08), admitindo-o ou rejeitando-o.
*
Por despacho proferido em 27.1.2023 (ref. Citius ...74) a 1ª instância, referindo-se ao requerimento de 12.12.2022 (ref. Citius ...08), admitiu a requerida ampliação, nos termos do art. 638º, nº 8, do CPC, e determinou a notificação dos recorrentes para se pronunciarem sobre o valor da causa.
*
Na sequência desta notificação, os requerentes pronunciaram-se no sentido de que o valor da causa deveria ser fixado no valor do passivo reclamado e reconhecido na lista provisória de credores e o Banco 1... opôs-se a esta pretensão (cf. requerimentos de 30.1.2023, ref. Citius ...96 e de 7.2.2023, ref. Citius ...78).
*
Em 9.2.2023, foi proferido despacho (ref. Citius ...78) que fixou o valor da causa em € 2 000.
*
Inconformados com esta decisão, os requerentes, em 14.2.2023, interpuseram recurso (requerimento ref. Citius ...48) no qual formularam as seguintes conclusões:

“1- Não pode a ora recorrente conformar-se com a decisão do Tribunal “a quo” (sentença proferida nos autos com refª ...78).
2- A nossa discordância funda-se em aspectos sobre factos e em questões de direito que serviram de fundamento à douta sentença proferida, que fixou o valor da causa em 2.000,00 euros, sendo assim, inadmissível o recurso interposto pelos Devedores.
3- Sucede, porém, que não nos podemos conformar com tal entendimento.
4- A douta sentença recorrida fundamenta-se no facto de o artigo 15.º do CIRE “permitir às partes corrigirem o valor da ação, logo que se verifique o valor do ativo indicado na petição inicial é diferente do seu valor real”. – sublinhado e negrito nosso.
5- Salvo o devido respeito não resulta da letra da lei, nomeadamente do artigo 15.º do CIRE que a correcção incumbe às partes! E muito menos poderá tal resultar o seu espírito!
6- Como bem diz a sentença recorrida, o artigo 17.º do CIRE remete para a aplicação do Código do Processo Civil.
7- E, ensina o artigo 6.º do CPC que o dever da gestão processual incumbe ao juiz, e não às partes.
8- Assim, era ao MM.º Juiz que incumbia a correcção do valor da causa para o valor do activo do Devedor.
9- Ativo esse que, conforme resulta do plano junto aos autos, através de requerimento de fls… (...31), datado de 17/10/2022 , não poderá nunca ser inferior a € 99.357,70 (valor do imóvel sua propriedade).
10- Dessa feita, dúvidas não restam que o tribunal a quo deveria ter procedido á correção do valor da causa, o que tornaria o recurso admissível.
11- O recurso merece provimento por parte de V. Exas.
12- Assim, requer-se a revogação da sentença recorrida, substituindo-a por outra que fixe o valor da causa em pelo menos € 99.357,70 e que ordene, consequentemente a subida do recurso interposto pelos devedores a 14/11/2022 e ampliação datada de 12/12/2022.”
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
Este recurso foi admitido na 1ª instância a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
*
Regressado o processo a este Tribunal da Relação, em 23.3.2023, foi proferido despacho (ref. Citius ...69) que:

a) determinou a notificação dos recorrentes para, querendo, se pronunciarem sobre a questão da irrecorribilidade do despacho de 8.11.2022 (ref. Citius ...08) suscitada pelo Banco 1... no requerimento de 28.11.2022 (ref. Citius ...11);
b) determinou a notificação das partes para, querendo, se pronunciarem sobre a admissibilidade de interposição de recurso nos termos em que a mesma foi efetuada no requerimento 12.12.2022 (ref. Citius ...08), referindo que se trata de ampliação do recurso e por mera remissão para as alegações anteriormente apresentadas;
c) relegou para o acórdão o conhecimento conjunto das questões relativas à fixação do valor da causa e à admissibilidade dos recursos interpostos quanto aos despachos de 8.11.2022 e 25.11.2022.
*
Notificadas as partes do despacho que antecede, apenas o Banco 1... se pronunciou, nos termos constantes do requerimento de 10.4.2023 (ref. Citius ...31), considerando, quanto à matéria referida em b), que a ampliação do recurso apresentada no requerimento de 12.12.2022 por mera remissão para as alegações anteriormente apresentadas integra uma situação de falta de alegações
*
Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I – saber se deve ser alterado o valor fixado à causa para a quantia de € 99 357,70, correspondente ao valor do ativo;
II – em função do valor fixado à causa e na sua relação com a alçada do tribunal recorrido, aferir se os recursos interpostos dos despachos de 8.11.2022 (ref. Citius ...08) e de 25.11.2022 (ref. Citus ...28) são admissíveis;
III – concluindo-se pela admissibilidade com esse fundamento:
a) saber se o despacho de 8.11.2022 (ref. Citius ...08) pode ser objeto de apelação autónoma;
b) saber se a denominada ampliação de recurso apresentada por requerimento de 12.12.2022 (ref. Citius ...08) é admissível;
IV – concluindo-se que nada obsta ao conhecimento do recurso e da denominada ampliação, saber se ao credor Banco 1... não assiste direito de voto por o seu crédito não ter sido modificado.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos relevantes para as questões a decidir são os que se mostram descritos no relatório e os mesmos resultam da consulta do iter processual.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I – Valor da Causa

A decisão recorrida fixou à causa o valor de € 2 000, o qual havia sido indicado pelos requerentes no requerimento inicial.

Os recorrentes consideram que o valor da causa deve ser fixado em € 99 357,70, correspondente ao valor do ativo, face ao que dispõe o art. 15º, do CIRE.

Vejamos, então, qual das duas posições merece acolhimento à face do regime legal aplicável.

Os presentes autos são um processo especial para acordo de pagamento cujo regime jurídico consta dos arts. 222º-A a 222º-J, do CIRE.
A tal processo aplicam-se todas as regras previstas no CIRE que não sejam incompatíveis com a sua natureza (art. 222º-A, nº 3, do CIRE).
Por força do disposto no art. 17º, nº 1, do CIRE, aplica-se-lhe ainda o Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do CIRE.

A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica do pedido, sendo a esse valor que se atende para determinar a relação da causa com a alçada do tribunal (art. 306º, nºs 1 e 2, do CPC), matéria esta fundamental para aferir da admissibilidade dos recursos ordinários posto que, salvas as exceções expressamente consagradas na lei, esses recursos só são admissíveis quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre (art. 629º, nº 1, do CPC).

A competência para fixar o valor da causa encontra-se legalmente atribuída ao juiz, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes (art. 306º, nº 1, do CPC).

Dispõe o art. 15º, do CIRE que, para efeitos processuais, o valor da causa é determinado sobre o valor do ativo do devedor indicado na petição inicial, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real.

A decisão recorrida fixou o valor da causa em € 2 000.
Se bem se compreende e interpreta a fundamentação dessa decisão, a mesma considera que o critério de fixação do valor da causa no caso concreto deve corresponder ao valor do ativo dos requerentes e que, como estes indicaram no requerimento inicial o valor de € 2 000 e nunca o alteraram, deve ser este o valor considerado e fixado à causa.

Não podemos sufragar este entendimento.
Com efeito, embora os requerentes tenham atribuído à causa o valor de € 2 000 esse valor é meramente indicativo, não vinculando o juiz, única entidade a quem compete fixar o valor da causa e que tem de efetuar essa fixação em função dos critérios legais aplicáveis.
No caso, o valor da causa, face ao que dispõe o art. 15º do CIRE, corresponde ao valor do ativo.
Os requerentes não indicaram no requerimento inicial que o valor do seu ativo é de € 2 000, apenas indicaram que esse é o valor que atribuem à causa.
Lendo o requerimento inicial, verifica-se que os requerentes alegaram que se encontram desempregados e na relação de bens indicaram apenas um imóvel, que identificaram.
Dos documentos referentes a esse imóvel que juntaram com o requerimento inicial, designadamente certidão da CRP e caderneta predial, resulta que o mesmo tem o valor patrimonial de € 99 357,70.
Por conseguinte, à luz destes elementos, conclui-se que o ativo dos requerentes tem o valor de € 99 357,70, correspondente ao valor do único bem que integra o seu património.
Deste modo, e de acordo com o critério constante do art. 15º do CIRE, neste momento o valor da causa tem de ser fixado em € 99 357,70 correspondente ao valor do ativo dos requerentes.

Procede, assim, o recurso referente ao valor da causa interposto pelos requerentes em 14.2.2023.

II – Admissibilidade dos recursos interpostos dos despachos de 8.11.2022 (ref. Citius ...08) e de 25.11.2022 (ref. Citus ...28) em função do valor fixado à causa e da sua relação com a alçada do tribunal recorrido

De acordo com o art. 629º, nº 1, do CPC, o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, sendo a alçada do tribunal de 1ª instância de € 5 000 (art. 44º, nº 1, da LOSJ -  Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto).
Ora, tendo sido fixado à causa o valor de € 99 357,70, o qual é superior ao da alçada do tribunal de 1ª instância, não existe óbice à admissão dos recursos com este fundamento.

III – a) Admissibilidade de recurso de apelação autónoma do despacho de 8.11.2022 (ref. Citius ...08)

Em 14.11.2022, os recorrentes interpuseram recurso do despacho proferido em 8.11.2022 que considerou que o credor Banco 1..., S.A. tem direito de voto.

Coloca-se a questão de saber se este despacho admite apelação autónoma, sendo que, embora tenha sido proferido despacho concedendo aos recorrentes a possibilidade de sobre a mesma se pronunciarem, os mesmos nada disseram.

O CIRE não contém norma legal relativa à possibilidade de ser interposto recurso de despacho interlocutório proferido no âmbito do PEAP.
Como tal, a solução tem que ser encontrada no âmbito do CPC.

Dispõe o art. 644º do CPC que:
1 - Cabe recurso de apelação:
a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;
b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.
2 - Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:
a) Da decisão que aprecie o impedimento do juiz;
b) Da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal;
c) Da decisão que decrete a suspensão da instância;
d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;
e) Da decisão que condene em multa ou comine outra sanção processual;
f) Da decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo;
g) De decisão proferida depois da decisão final;
h) Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;
i) Nos demais casos especialmente previstos na lei.
3 - As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1.
4 - Se não houver recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão podem ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito da referida decisão.

Como referem José Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre (in CPC Anotado, Vol. III, pág. 116) “os nºs 1 e 2 contêm a enumeração taxativa das decisões impugnáveis por recursos de apelação “autónomos”. As restantes decisões proferidas pelos tribunais de 1ª instância, ou são irrecorríveis, (...) ou podem ser impugnadas nos recursos que venham a ser interpostos das decisões previstas nas duas alíneas do nº 1 (nº 3). Não havendo recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão (e só essas) podem ser impugnadas num recurso único a interpor após o trânsito em julgado dela (nº 4)”
No mesmo alinhamento de ideias, afirma Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pág. 216) que “as decisões intercalares que, sendo impugnáveis em abstrato, não admitem recurso de apelação autónomo intercalar, podem (e só podem) ser impugnadas no âmbito do recurso que eventualmente venha a ser interposto do despacho saneador ou da decisão final do processo (ou da decisão final do procedimento cautelar ou do incidente respetivo), de acordo com o disposto no nº 3, ou nas condições referidas  no nº 4”.
Na verdade, prossegue o referido autor explicando que “a impugnação da decisão interlocutória pode constituir o único mecanismo capaz de determinar a anulação ou a revogação da decisão final, casos em que a impugnação desta, em vez de se fundar em vícios intrínsecos, pode ser sustentada na impugnação de decisão interlocutória com função instrumental e prejudicial relativamente ao resultado final”.
Ora, no caso em análise, o despacho recorrido de 8.11.2022 decidiu que o Banco 1... tem direito de voto.
Este despacho não é enquadrável em nenhuma das situações do supra transcrito art. 644º, nºs 1 e 2, do CPC.

Designadamente, não se enquadra na al. h) a qual se refere às decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil.
Sobre o que se deve entender por absoluta inutilidade para efeitos desta norma, refere Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição pág. 215) que “Com este preceito o legislador abre a possibilidade de interposição de recursos intercalares quando a sujeição à regra geral do diferimento da impugnação para o recurso de outra decisão, nos termos do nº 3, importe a absoluta inutilidade de uma decisão favorável que eventualmente venha ser obtida. O advérbio (“absolutamente”) assinala bem o nível de exigência imposto pelo legislador (...). Deste modo, não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processado, ainda que nesta se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imediatamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso da decisão interlocutora não passará de uma ‘vitória de DD’, sem qualquer reflexo no resultado da ação ou na esfera jurídica do interessado.”
Tanto na doutrina como na jurisprudência desde há muito que se encontra absolutamente estabilizado e sedimentado o entendimento de que a alusão à absoluta inutilidade da impugnação se refere unicamente a situações em que, ainda que a decisão do recurso venha a ser favorável ao recorrente, a mesma não terá qualquer utilidade ou efeito prático, não abrangendo, todavia, as situações em que tal efeito existe, embora implique anulação de atos processuais. Ou seja, a inutilidade absoluta tem que referir-se ao resultado do recurso e não à inutilização de atos processuais praticados.
E este entendimento existia já no âmbito do Código de Processo Civil de 1961, a propósito da subida imediata dos agravos previstos no art. 734º, nº 2.
Assim, refere Amâncio Ferreira (in Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 221) que “a salvaguarda da utilidade do recurso impõe igualmente a sua subida imediata, sempre que da sua retenção já não adviessem vantagens para o agravante, por a revogação da decisão recorrida não provocar quaisquer efeitos práticos. Tal acontecerá, como a jurisprudência tem acentuado, apenas quando a retenção do recurso o torne absolutamente inútil para o recorrente, e não por qualquer outra razão, como a economia processual ou a perturbação que possa causar no processo onde foi interposto. A simples inutilização de actos processuais já praticados, em consequência do provimento do agravo, não justifica a sua subida imediata, uma vez que esses actos podem ser renovados.
No que toca à jurisprudência, quer as Relações quer o Supremo Tribunal de Justiça adotam desde há muito este mesmo conceito de absoluta inutilidade do recurso.
Assim, e de forma meramente exemplificativa, vejam-se as seguintes decisões, todas consultáveis in www.dgsi.pt:
 
Relação de Guimarães, de 7.1.2016, Relator Miguel Baldaia Morais:

As decisões “cuja impugnação com o recurso da decisão final é absolutamente inútil”, de acordo com o disposto na al. h) do nº 2 do artº 644º do Código de Processo Civil, são apenas aquelas cuja retenção poderia ter um efeito material irreversível sobre o conteúdo do decidido, e não as que acarretem a mera inutilização de atos processuais.”

Relação de Évora, de 12.11.2020, Relator Canelas Brás:

“1. Sendo certo que sobem imediatamente os recursos cuja retenção os tornaria inúteis, não é menos verdade que se tratará sempre de uma inutilidade absoluta.
2. Tal só poderá significar que sempre que, no processo, se possa voltar ao momento em que se proferiu a decisão recorrida (e, depois, revogada no recurso), este nunca é inútil – naturalmente, com custos em tempo gasto e repetições de processado, mas ainda de manifesta utilidade, pois o processo levará ainda o rumo que a decisão do recurso lhe tiver imprimido.”

Relação do Porto, de 10.3.2015, Relator Vieira e Cunha:

“As decisões “cuja impugnação com o recurso da decisão final é absolutamente inútil”, de acordo com o disposto na al. h) do nº 2 do artº 644º CPCiv, são apenas as decisões cuja retenção poderia ter um efeito material irreversível sobre o conteúdo do decidido, e não aquelas que acarretem apenas mera inutilização de actos processuais.”

Relação de Lisboa, de 15.6.2009, Relator Sousa Pinto:

“I – “A regra, no que concerne ao momento de subida dos agravos, é a de que os mesmos sobem diferidamente (art.º 735.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), apenas subindo imediatamente os recursos a que se reporta o art.º 734.º.”
II – A subida imediata do recurso, com fundamento na inutilidade absoluta da retenção, é aferida em função dos efeitos práticos que a revogação da decisão recorrida pode causar, de que é exemplo paradigmático o recurso de despacho que determinou a suspensão da instância, pois que subindo o recurso depois de terminada a suspensão, a revogação do despacho que a ordenara não produziria qualquer efeito no processo, por este entretanto já ter retomado a sua marcha.
III – Não se revela absolutamente inútil o recurso dum despacho cuja possível revogação possa implicar apenas a inutilização de actos praticados no processo.”

Relação de Lisboa, de 28.2.2019, Relator António Manuel Fernandes dos Santos:

É consabido que a escolha pelo legislador da expressão absolutamente tem por desiderato aludir tão só a um resultado de todo irreversível não obstante a eventual procedência do recurso interposto, revelando-se o mesmo de todo ineficaz dentro do processo, sendo já de todo irrelevante para o preenchimento do conceito em apreço a eventual e possível inutilização de actos processuais.
Dir-se-á, assim, no dizer de Amâncio Ferreira, que a salvaguarda da utilidade do recurso que justifica sua subida imediata, verifica-se apenas quando da sua retenção já não adviessem quaisquer vantagens para o recorrente, por a revogação da decisão recorrida acabar por não provocar quaisquer efeitos práticos e úteis para o recorrente, e não por qualquer outra razão, como a economia processual ou a perturbação que possa causar no processo onde foi interposto.

Relação de Coimbra, de 15.9.2015, Relatora Maria Domingas Simões:

“É hoje, ao que cremos, inteiramente pacífico, o entendimento de que a inutilidade absoluta exigida pela lei só se verifica quando “o despacho recorrido produza um resultado irreversível, de tal modo que, seja qual for a decisão do tribunal ad quem, ela será completamente inútil, mas não quando a procedência do recurso possa conduzir à eventual anulação do processado posterior à sua interposição” (cf. decisão desta Relação de 1/12/2010, proferida no processo n.º 102/08....). O que se pretende evitar é, deste modo, a inutilidade do recurso, e não dos actos processuais entretanto praticados, eventualidade que o legislador previu e com a qual se conformou. Deste modo, o recurso só será inútil se em nada aproveitar ao recorrente, o que ocorrerá apenas quando, revogada embora a decisão impugnada, a situação se mantenha inalterada por os efeitos desta se terem tornado irreversíveis por via da demora na apreciação do recurso.”

Supremo Tribunal de Justiça, de 14.4.1994, Relator Tomé de Carvalho:

A subida imediata do agravo, nos termos do disposto no artigo 734 n. 2 do CPC67, só tem lugar quando a retenção tornaria o recurso absolutamente inútil, i.e., sem finalidade, o que não é o caso se do provimento do recurso apenas resulta a inutilização de processado.”

Retornando ao caso concreto, cremos ser manifesto que a situação não se pode qualificar como de absoluta inutilidade, de acordo com o conceito anteriormente definido e caraterizado. Na verdade, o recurso da decisão que considerou que o credor tem direito de voto não é absolutamente inútil no caso de apenas poder ser impugnada com a decisão final pois a sua procedência continua a ter efeitos práticos e úteis para os recorrentes, implicando unicamente a inutilização dos atos processuais praticados como consequência desse despacho, sendo possível fazer retornar o processo ao estado em que se encontrava antes dos efeitos dele decorrentes.
Naturalmente que esta anulação de atos, a ocorrer, colide com a celeridade processual. Mas também colide com a celeridade processual a possibilidade de interpor recurso autónomo de decisões interlocutórias. E o legislador, sopesando as vantagens e desvantagens de ambas as situações, fez a sua opção, tendo afastado a possibilidade de recurso de decisões interlocutórias, salvos os casos de absoluta inutilidade do recurso.
E, como decidiu o Acórdão do Tribunal Constitucional, de 16.3.1993, (in BMJ 425º/142), a propósito da subida imediata dos agravos, mas que mantém plena validade quanto à questão da recorribilidade imediata de decisões interlocutórias, essa restrição “não ofende o princípio constitucional da igualdade, expressando tal regime uma opção legislativa, baseada na tutela da celeridade processual, que não se pode configurar como injustificada, irrazoável ou arbitrária”.

Deste modo, a impugnação com o recurso da decisão final do despacho que considerou que o credor tem direito de voto não é absolutamente inútil, pelo que não se enquadra na al. h), do nº 2, do art. 644º, do CPC.

Portanto, resta concluir que a decisão interlocutória proferida em 8.11.2022 não pode ser objeto de apelação autónoma e apenas poderá ser impugnada no recurso que venha a ser interposto da decisão final, ou, não havendo recurso, se mantiver interesse para os apelantes, nos termos referidos nos nºs 3 e 4 do art. 644º, do CPC.

Por conseguinte, não se admite o recurso interposto em 14.11.2022, relativo ao despacho proferido em 8.11.2022 que considerou que o credor Banco 1..., S.A. tem direito de voto, por tal despacho não admitir recurso de apelação autónoma.
*
III – b) Admissibilidade da ampliação de recurso apresentada por requerimento de 12.12.2022 (ref. Citius ...08)

Depois de proferida decisão final, em 25.11.2022, com o seguinte teor:

“Atenta a informação que antecede, declara-se encerrado o processo negocial sem aprovação do acordo de pagamento.
Notifique o Sr. AJP para juntar o parecer previsto no art. 222º-G, nº 3 do CIRE.”

vieram os recorrentes, em 12.12.2022, apresentar o seguinte requerimento:

“AA, NIF ... e BB, NIF ..., melhor identificados nos autos à margem referenciados, na sequência da sentença proferida nos presentes autos, a que coube referência Citius ...28, com a mesma não se conformando, dela vêm, nos termos nº 8 artigo 688º requerer a ampliação do recurso, passando o mesmo a versas as decisões de referência ...08 e ...28, com os exatos mesmos argumentos das alegações dos Devedores de fls… ...24.”

Por despacho proferido em 27.1.2023, a 1ª instância, referindo-se ao requerimento de 12.12.2022, admitiu a requerida ampliação, nos termos do art. 638º, nº 8, do CPC.

Importa aferir da admissibilidade desta denominada ampliação do recurso.

Em primeiro lugar importa esclarecer que a expressão “ampliação do recurso” utilizada pelos recorrentes não pode, neste caso, ser entendida em sentido técnico jurídico.

A figura jurídica da ampliação do recurso encontra-se prevista no art. 636º, do CPC, e, como claramente resulta da sua epígrafe e do seu conteúdo, encontra-se reservada à recorrida ou parte vencedora possibilitando que a mesma, a título subsidiário, peça a apreciação de fundamento em que, apesar de vencedora, decaiu, prevenindo assim a necessidade de apreciação desse fundamento, permitindo ainda que, também a título subsidiário, o recorrido possa arguir a nulidade da decisão e possa também impugnar a matéria de facto não impugnada pelo recorrente, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.

Ora, nos autos, os recorrentes não são partes vencedoras, são partes vencidas, porque viram as suas pretensões indeferidas. Por assim ser, nunca poderiam ampliar o objeto do recurso à luz do art. 636º, do CPC. Também não tem no caso qualquer aplicação o art. 638º, nº 8, do CPC, que o tribunal recorrido invocou para admitir a ampliação, porquanto esta norma não rege sobre a possibilidade de ampliação, mas sim sobre o direito de resposta à matéria da ampliação, caso esta seja admissível, admissibilidade que tem que ser aferida à luz do art. 636º, normativo que contém os respetivos pressupostos.

Assim, a expressão “ampliação do recurso” usada pelos recorrentes no requerimento de 12.12.2022 tem que ser entendida no sentido corrente ou vulgar do termo, significando que os recorrentes pretendem que o recurso abranja as duas decisões proferidas nos autos com as referências ...08 e ...28, ou seja, as decisões proferidas em 8.11.2022 e 25.11.2022.

Os recorrentes formulam esta pretensão remetendo para os argumentos das alegações dos devedores, ou seja, remetem para as alegações do recurso que interpuseram em 14.11.2022.

Esta forma de interposição de recurso não é admissível.

Em primeiro lugar, verifica-se que os recorrentes remetem para alegações de um recurso que foi considerado inadmissível. Em segundo lugar, ainda que assim não fosse e tal recurso fosse admissível, não se encontra legalmente prevista a possibilidade de interposição de recurso por remissão.

Dispõe o art. 637º, do CPC, que:
1 - Os recursos interpõem-se por meio de requerimento dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida, no qual se indica a espécie, o efeito e o modo de subida do recurso interposto.
2 - O requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; quando este se traduza na invocação de um conflito jurisprudencial que se pretende ver resolvido, o recorrente junta obrigatoriamente, sob pena de imediata rejeição, cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento.

Por seu turno, dispõe o art. 639º, do CPC, na parte que aqui releva, que:
1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.

Por último, dispõe a al. b), do nº 2, do art. 641º, do CPC, que o requerimento de recurso é indeferido quando não contenha ou junte a alegação do recorrente ou quando esta não contenha conclusões.

Da leitura conjugada destas disposições resulta que o recurso tem de cumprir estes requisitos sendo certo que não se encontra legalmente prevista a possibilidade de interpor recurso por remissão para um outro recurso anteriormente interposto.

Ora, o requerimento de 12.12.2022 não observa os enunciados requisitos legais, não contendo alegação nem conclusões, pelo que, nos termos do art. 641º, nº 2, al. b), do CPC, esse recurso não pode ser admitido.
*
Perante a anterior conclusão fica prejudicada a apreciação da última questão pois esta dependia da admissibilidade do recurso e da denominada ampliação do recurso, admissibilidade essa que não ocorre.
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
No que respeita ao recurso referente ao valor da causa, o mesmo foi julgado procedente, mas não existe parte vencida, posto que não foram apresentadas contra-alegações, pelo que, atento o critério do proveito, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respetivas.
Quanto aos outros dois recursos, uma vez que os mesmos não foram admitidos, são os recorrentes responsáveis pelas custas.
Naturalmente que, em qualquer dos casos, sempre sem prejuízo do apoio judiciário que lhes foi concedido (cf. e-mail de 19.10.2022).

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação:

A) em julgar procedente a apelação interposta em 14.2.2023 e, em consequência, revogam a decisão recorrida e fixam à causa o valor de € 99 357,70;
B) em não admitir o recurso interposto em 14.11.2022, relativo ao despacho proferido em 8.11.2022 que considerou que o credor Banco 1..., S.A. tem direito de voto, por tal despacho não admitir recurso de apelação autónoma;
C) em não admitir o recurso interposto em 12.12.2022, referente às decisões proferidas em 8.11.2022 e 25.11.2022, por o mesmo não conter alegação nem conclusões.

Custas de todos os recursos pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário que lhes foi concedido.
Notifique.
*
Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I - O valor da causa indicado pelos requerentes na petição inicial é meramente indicativo, não vinculando o juiz, única entidade a quem compete fixar o valor da causa e que tem de efetuar essa fixação em função dos critérios legais aplicáveis.
II - O despacho proferido no PEAP que considera que um credor tem direito de voto não admite recurso de apelação autónoma porquanto não se integra em nenhuma das situações previstas no art. 644º, nºs 1 e 2, do CPC, só podendo ser impugnado no recurso que venha a ser interposto da decisão final, ou, não havendo recurso, se mantiver interesse para os apelantes, nos termos referidos nos nºs 3 e 4 do art. 644º, do CPC.
III - Não é admissível a interposição de recurso por meio de mero requerimento no qual não são apresentadas alegações ou conclusões e se remete para as alegações de um outro recurso anteriormente interposto.
*
Guimarães, 27 de abril de 2023

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas