Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5510/19.3T8VNF-A.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
GESTÃO PROCESSUAL
ADEQUAÇÃO FORMAL
CONVOLAÇÃO
TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Mais do que um poder, a gestão processual é um dever do juiz, que, uma vez iniciado o processo por impulso da parte, deverá adoptar uma postura proactiva, norteada pela optimização do tempo e dos recursos disponíveis.
II - A adequação formal pode consistir na alteração da sequência de actos da tramitação legal, na eliminação de acto previsto na tramitação legal, na alteração do conteúdo ou da forma do acto, no adicionamento de acto não previsto na lei, mas que se considera que facilitará (agilizará) a realização dos fins do processo.
III - O guião processualmente previsto pode e deve ser alterado quando tal se justifique, nos termos previstos nos artigos 6.º n.º 1 e 547.º do CPC, principalmente no caso, como o presente, quando só com tal alteração for possível assegurar a tutela jurisdicional efectiva do direito que o requerente pretende fazer valer.
IV- Tutela jurisdicional que não se mostra esgotada, nem precludida com o indeferimento dos embargos de terceiro, pois como se refere na decisão recorrida sempre a requerente poderia/deveria ter antes lançado mão de incidente inominado, a tramitar nos próprios autos com vista ao reconhecimento dos seus direitos como arrendatária.
V – Acrescendo, que ainda está em tempo de o fazer, não configurando a impugnada convolação mais do que o aproveitamento de um acto (requerimento), evitando duplicação inútil.
VI – Não ocorre a excepção do caso julgado quando, no mesmo processo, são proferidas duas decisões, versando sobre a mesma questão processual, mas sob previsões legais que autorizam a alteração de uma decisão inicial. O mesmo sucede se os pressupostos em que assentou a 2ª decisão são distintos.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
 
I – RELATÓRIO

Por apenso aos autos de execução para pagamento de quantia certa, que EMP01... STC S.A. move a AA, veio EMP02... Unipessoal Lda. deduzir Embargos de Terceiro.

Alegou para tanto, em síntese:

– É arrendatária da fracção autónoma penhorada nos autos, estando o respectivo contrato de arrendamento em vigor desde 01/01/2017, conforme documento que anexa.
– O facto de a fracção autónoma estar onerada com uma hipoteca anterior à celebração do contrato de arrendamento, apesar de ter ocorrido a venda judicial da dita fracção, não faz caducar os direitos da arrendatária, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código de Processo Civil;
- Só ontem (26 de Junho de 2023) teve conhecimento de que esta fracção autónoma fora penhorada nos autos principais.
– Também só hoje teve conhecimento do douto despacho proferido nestes autos que autoriza a tomada de posse da referida fracção autónoma por parte da Exma. Sra. Agente de Execução nomeada nos autos;
– BB, foi notificado para exercer o direito de preferência de aquisição desta fracção autónoma e para juntar o respectivo contrato de arrendamento que onera esta fracção, e, em dia 12 de Maio de 2023, tendo respondido que não era o arrendatário da dita fracção autónoma e identificado a arrendatária, aqui requerente.
– A Exma. Sr.ª Agente de Execução nomeada nos autos tinha prévio conhecimento que a fracção autónoma penhorada nos autos se encontrava onerada com um contrato de arrendamento uma vez que no anúncio de venda da referida fracção autónoma (referência leilão online ...23) consta que este imóvel possui uma arrendatária (conferir anúncio de venda que se encontra nos autos);
– O direito (posse) que resulta da titularidade por parte da embargante do aludido contrato de arrendamento é incompatível com o âmbito (tomada de posse) da realização da diligência judicialmente ordenada de entrega de bem por ofender a posse da embargante da dita fracção autónoma.
Termina, requerendo: «a procedência dos embargos aqui deduzidos e que se profira despacho a dar sem efeito quer o douto despacho que autorizou a tomada de posse do referido imóvel quer a consequente realização da diligência de entrega do bem agendada para 3 de Julho de 2023, reconhecendo o direito da embargante à posse do imóvel por força do contrato de arrendamento».
Indicou o valor de € 10.000.
*
Os autos foram conclusos, tendo sido proferido o seguinte despacho liminar:

«Dispõe o art.º 342º, n.º 1 do Código de Processo Civil:
«Fundamento dos embargos de terceiro
1 - Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.»
Sobre a oportunidade da dedução de embargos de terceiro, prevê o art.º 344º n.º 2 do Código de Processo Civil:
« 2 - O embargante deduz a sua pretensão, mediante petição, nos 30 dias subsequentes àquele em que a diligência foi efetuada ou em que o embargante teve conhecimento da ofensa, mas nunca depois de os respetivos bens terem sido judicialmente vendidos ou adjudicados, oferecendo logo as provas.»
Ora, revertendo ao caso em apreço, desde logo há a ponderar que nos autos de execução foi já realizada a venda da « Fracção autónoma designada pela letra ..., destinada a habitação, Tipo T-3, com a área de 123,20m ², no ... andar, a segunda a contar do lado poente, contígua às fracções ... e ... e à caixa de escadas e varandas com a área de 19,90 m², integrada no prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., freguesia e concelho .... Inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...49 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... ...» , a qual foi adjudicada, por decisão da Sr. (ª) Agente de Execução de 29-03-2023, à proponente EMP03... Unipessoal, Lda – cfr. decisão junta aos autos principais em 29/0/2022.
Donde se conclui, portanto, que os presentes Embargos de Terceiro são extemporâneos.

Em face do exposto, indefiro liminarmente os presentes Embargos de Terceiro.
Custas pela Embargante.
Valor da acção: o indicado pela Embargante.
*
Sem prejuízo do que fica sobredito, sempre a EMP02... UNIPESSOAL LDA poderia/deveria ter antes lançado mão de incidente inominado, a tramitar nos próprios autos com vista ao reconhecimento dos seus direitos como arrendatária.

Assim,
Uma vez que foi junto aos presentes autos um contrato de arrendamento do imóvel vendido na execução;
Considerando que, efectivamente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2021, publicado no Diário da República n.º 151/2021, Série I de 2021-08-05, fixou a seguinte jurisprudência:
«A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3, do CIRE, conjugado com o artigo 1057,º do Código Civil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil»;
Considerando ainda que, embora a jurisprudência tenha sido fixada no âmbito do processo de insolvência, a mesma pode ser transposta para a venda em processo de execução, conforme defendido, entre outros, pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo: 2418/16.8T8FNC.L1.S1, Relator: MARIA OLINDA GARCIA, de 03-11-2021;
Considerando que a Sr. (ª) Agente de Execução no requerimento de autorização do auxílio da força pública para entrega o imóvel ai adquirente não fez qualquer referência à existência de um contrato de arrendamento, tendo apenas frisado a inexistência de um contrato de arrendamento a favor de frisado BB;
Ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº1, do Código de Processo Civil [que estabelece que estabelece que cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável]; e do preceituado no artigo 547º, do mesmo diploma legal [que o juiz deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo];;
Conclui-se, salvaguardando o devido respeito por entendimento distinto, que o que o indeferimento liminar dos embargos não deve ter como consequência que se desconsidere toda a actividade já produzida, forçando a arrendatária a apresentar um novo requerimento.
Termos em que, não obstante o referido indeferimento liminar, se decide que os presentes autos deverão prosseguir como incidente a tramitar nos próprios autos com vista ao eventual reconhecimento dos alegados direitos da EMP02... UNIPESSOAL LDA como arrendatária.
Assim, por ora, determino que os efeitos do despacho de autorização de auxílio das forças policiais para a entrega do imóvel vendido, fique sem efeito, até a decisão do correspondente incidente.
 Notifique, sendo o Exequente e a adquirente para, querendo, deduzirem oposição, sob a cominação prevista no artigo 293º, nº3, do Código de Processo Civil.
Comunique à Sr. (ª) Agente de Execução pela via mais expedita
(realce nosso)
*
Inconformada com o decidido (partes realçadas), a Exequente interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

«1. No despacho recorrido o Tribunal a quo ilegalmente:
a) fixou o valor do Incidente no montante de €10.000,00 que não corresponde ao da causa que é de €41.096,57;
b) decidiu, não obstante o indeferimento liminar dos Embargos de Terceiro, que “os presentes autos deverão prosseguir como incidente a tramitar nos próprios autos com vista ao eventual reconhecimento dos alegados direitos da EMP02... Unipessoal Lda como arrendatária”;
c) determinou “que os efeitos do despacho de autorização de auxílio das forças policiais para entrega do imóvel vendido fique sem efeito, até decisão do correspondente incidente”;
d) ordenou a notificação da Adquirente/Apelante para deduzir oposição ao incidente sob cominação prevista no art. 293º, nº3 do CPC,
2. O valor da execução é de €41.093,57, pelo que não podia a Mª Juiz a quo fixar o valor dos Embargos de Terceiro no valor indicado pela ora Apelada (€10.000,00), violando, assim, o nº1 do art. 304º CPC.
3. Os Embargos de Terceiro foram rejeitados liminarmente porque foram deduzidos após a venda judicial, ou seja, não foram deduzidos tempestivamente.
4. A intempestividade é uma exceção peremptória (576.º, n.º 3 e 579.º do CPC) que impede a análise de qualquer questão jurídica e obsta à convolação dos Embargos noutro incidente (cfr. art. 130.º do CPC).
5. Pelo que não podia depois a Mª Juiz a quo, pronunciar-se sobre qualquer questão dos mesmos, ainda que de conhecimento oficioso, o que fez, pronunciando-se sobre:
a) a Embargante/Apelada dever ter “lançado mão de incidente inominado”;
b) a junção nos Embargos de Terceiro “de um contrato de arrendamento do imóvel vendido na execução”,
c) tecendo considerações sobre o Acordão de Uniformização de Jurisprudência nº 2/2021 invocado pela Embargante/Apelada na petição de Embargos e que essa jurisprudência pode ser transposta para a venda em processo executivo;
d) apelidou a Embargante, ora Apelada, de “arrendatária”;
e) convolou os Embargos de Terceiro liminarmente indeferidos noutro Incidente Inominado, ad hoc, atribuindo-lhe o efeito suspensivo próprio dos Embargos de Terceiro porquanto entendeu aproveitar “a actividade já produzida” e suspender o despacho de autorização de auxílio das forças policiais para entrega do imóvel vendido até decisão do novo incidente.
6. A convolação dos Embargos de Terceiro liminarmente indeferidos noutro incidente inominado, anómalo, “ad hoc” e com efeito suspensivo, é ilegal violando:
a) os princípios da preclusão, da autorresponsabilidade das partes e da igualdade das partes no processo;
b) o principio do esgotamento do poder jurisdicional (art. 613º, nº1 CPC) que impede o juiz de voltar a proferir nova decisão sobre a mesma questão fazendo regredir o já concretamente decidido.
c) o art. 346º CPC que determina que o embargante que vir os Embargos rejeitados liminarmente (por preclusão do prazo perentório previsto no artigo 344.º, n.º 2 CPC) pode instaurar ação declarativa autónoma da executiva, não sendo incidente nem apenso desta.
d) As regras de competência material, já que tal ação autónoma não é da competência do juiz da execução uma vez que a competência declarativa deste apenas lhe está conferida para os Embargos de Terceiro (cfr. Ac. TRE de 23/03/017, Proc. 654/11.2TBSLV-E.E1; art. 129º/1 LOSJ)
e) As regras de competência material cuja infração configura um caso de incompetência absoluta (art. 96º, alínea
a) do CPC), exceção dilatória de conhecimento oficioso, que se invoca com as legais consequências.
7. A rejeição liminar dos Embargos de Terceiro implica o normal prosseguimento dos termos da execução, pelo que carece de fundamento legal a decisão da Mº Juiz a quo suspender “os efeitos do despacho de autorização de auxílio das forças policiais para entrega do imóvel vendido”.
8. E sendo o incidente ilegal, nada a Apelante tem que contestar nem fica sujeita a qualquer cominação.
9. Deve ser revogado o despacho recorrido nas partes indicadas em 1 destas conclusões, por violação do art. art. 304º/1 CPC, 576.º/3 CPC, art. 579.º CPC, 130º CPC, art. 346º CPC, art. 96º/a CPC e art. 129º/1 LOSJ,
10. Em consequência, deve o despacho ser substituído por outro que não admita a convolação dos Embargos de Terceiro noutro incidente, e que ordene o prosseguimento da execução com vista à desocupação do imóvel e a sua entrega, desonerado e livre de pessoas e bens, à Requerida, com o auxílio das forças policiais.

NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO QUE V. EXAS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, Deverá ser conferido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o despacho recorrido na parte em que:

a) fixou o valor do incidente no montante de €10.000,00 que não corresponde ao da causa que é de €41.096,57;
b) convola os Embargos de Terceiro indeferidos liminarmente num Incidente Inominado e anómalo;
c) suspende a desocupação do imóvel e a sua entrega, desonerado e livre de pessoas e bens, à Requerida, com o auxílio das forças policiais;
d) ordena a notificação da Apelante para contestar querendo o incidente sob cominação do art. 293º, nº3 do CPC..»
*
Dos autos não constam contra-alegações.
*
O recurso foi admitido na 1ª instância como apelação, a subir de imediato, em separado e com efeito devolutivo – 647º, nº3 al. b) CPC. Instruído o apenso foi o mesmo remetido a esta Relação.
 Por entendermos que o recurso subia nos próprios autos (do apenso de embargos de terceiro), o apenso foi devolvido à 1ª instância, a fim de ser eliminado e nos ser remetido o apenso dos embargos.
Recebido o apenso de embargos de terceiro, com o recurso e alegações aí apresentadas e despacho de admissão do recurso nele proferido, foi o mesmo por nós admitido e inscrito em tabela.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

 O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC). 
As questões a resolver são as que constam das conclusões acima reproduzidas e que assim se sintetizam:
A - Do valor dos embargos de terceiro.
B - Da convolação da petição de embargos de terceiro em incidente inominado tramitado nos autos de execução.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

A factualidade com interesse para a apreciação das questões suscitadas no recurso é a constante do relatório supra, que aqui se dá por reproduzida, acrescentando-se apenas o teor do contrato de arrendamento junto com a P.I. dos embargos, nomeadamente o valor da renda acordada (€5.400 por ano, a pagar em duodécimos de €450).

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A) Valor dos embargos de terceiro.

A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido, valor este a que se atende para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal, bem como o montante das custas judiciais, neste caso complementado com o disposto no Regulamento das Custas Processuais (art.º 296º do CPC).
Estabelece o art.º 304.º n.º 1 do CPC que o valor dos incidentes é o da causa a que respeitam, salvo se o incidente tiver realmente valor diverso do da causa, porque neste caso o valor é determinado em conformidade com os artigos anteriores.
Em sede de embargos de terceiro o valor processual tem por referência o valor do bem ou do direito sobre que incidem, e não o valor da acção ou execução principal.
No caso em apreço os embargos de terceiro tinham por fundamento a existência de um arrendamento sobre a fracção alienada nos autos de execução e o direito que se pretende salvaguardar é o direito ao arrendamento. Direito esse que não corresponde ao valor do imóvel.
Assim, ponderando-se a utilidade económica da pretensão subjacente ao incidente e atenta a similitude das situações, entendemos ser extensivamente aplicável ao caso dos autos o disposto no art.º 298º nº 1 do CPC, relativamente ao valor das acções de despejo, pois, o fim útil dos embargos de terceiro, que foram liminarmente rejeitados, era o de fazer prevalecer o alegado direito ao arrendamento e evitar o despejo (entrega do local objecto do suposto arrendamento).
Considerando o disposto no citado normativo, o valor deste incidente corresponde à renda de dois anos e meio do alegado contrato de arrendamento.
No caso, sendo a renda prevista no contrato junto com o Requerimento inicial de €5.400 por ano, paga em duodécimos de €450, o valor deste incidente é €13.500.
Consequentemente, fixa-se o valor do incidente de embargos de terceiro em €13.500.
Esta alteração do valor não produz quaisquer efeitos em termos da alçada do Tribunal, nem de taxa de justiça (tabela II do RCP), pelo que a parcial procedência do recurso nesta parte não tem quaisquer efeitos processuais.

B)  DA CONVOLAÇÃO

 No caso sob recurso a Mmª Sra. Juiz “a quo”, apesar de ter indeferido liminarmente a petição de embargos de terceiro, decidiu, ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº1, do Código de Processo Civil, que tal indeferimento não deve ter como consequência que se desconsidere toda a actividade já produzida, forçando a arrendatária a apresentar um novo requerimento na execução e, consequentemente, determinou que “os presentes autos deverão prosseguir como incidente a tramitar nos próprios autos com vista ao eventual reconhecimento dos alegados direitos da EMP02... UNIPESSOAL LDA como arrendatária”.
A apelante sustenta, que “a convolação dos embargos de terceiro liminarmente indeferidos noutro incidente inominado, anómalo, “ad hoc” e com efeito suspensivo, é ilegal violando:
a) os princípios da preclusão, da autorresponsabilidade das partes e da igualdade das partes no processo;
b) o principio do esgotamento do poder jurisdicional (art. 613º, nº1 CPC) que impede o juiz de voltar a proferir nova decisão sobre a mesma questão fazendo regredir o já concretamente decidido.
c) o art. 346º CPC que determina que o embargante que vir os Embargos rejeitados liminarmente (por preclusão do prazo perentório previsto no artigo 344.º, n.º 2 CPC) pode instaurar ação declarativa autónoma da executiva, não sendo incidente nem apenso desta.
d) As regras de competência material, já que tal ação autónoma não é da competência do juiz da execução uma vez que a competência declarativa deste apenas lhe está conferida para os Embargos de Terceiro (cfr. Ac. TRE de 23/03/017, Proc. 654/11.2TBSLV-E.E1; art. 129º/1 LOSJ)
e) As regras de competência material cuja infração configura um caso de incompetência absoluta (art. 96º, alínea a) do CPC), exceção dilatória de conhecimento oficioso, que se invoca com as legais consequências.»
Apreciando.
O poder-dever da adequação formal foi consagrado no processo civil pela reforma de 1995/1996, através da introdução no CPC de 1961 do art.º 265.º-A, o qual, sob a epígrafe “Princípio da adequação formal”, estipulava que “Quando a tramitação processual prevista na lei não se adequar às especificidades da causa, deve o juiz oficiosamente, ouvidas as partes, determinar a prática dos actos que melhor se ajustem ao fim do processo, bem como as necessárias adaptações”.
Com a entrada em vigor do actual Código de Processo Civil o “dever de gestão processual” figura no Título inicial, alinhado junto a outros princípios fundamentais do processo civil.
Assim, no art.º 6.º, sob o n.º 1, estipula-se que
“Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.”
Trata-se de uma norma concretizadora do art.º 20º da Constituição – o direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva – que se realiza por meio de um processo célere e equitativo.
Assim, o juiz passou a ser especialmente responsabilizado pela consecução desses objectivos (celeridade com equidade), embora em regime de cooperação com as partes (cfr. art.º 7.º).
Como refere o Excelentíssimo Conselheiro Jorge Manuel Leitão Leal, no artigo  publicado na Revista Electrónica De Direito, Junho 2021, N.º 2, VOL. 25, “AECOP, em compensação e gestão processual” – WWW.CIJE.UP.PT/REVISTARED (págs. 201/204):
– «Mais do que um poder, a gestão processual é um dever do juiz que, uma vez iniciado o processo por impulso da parte, deverá adoptar uma postura proactiva, norteada pela optimização do tempo e dos recursos disponíveis.
Nos termos do n.º 1 do art.º 6.º a gestão processual passa também pela adopção de “mecanismos de simplificação e agilização processual”.
Trata-se de aplicar ao conjunto da tramitação processual o princípio que vigora quanto a cada acto processual: “Os actos processuais têm a forma que, nos termos mais simples, melhor correspondam ao fim que visam atingir” (art.º 131.º n.º 1).
Sendo certo que segundo o “princípio da limitação dos actos”, proclamado no art.º 130.º, “Não é lícito realizar no processo atos inúteis”.
A simplificação e agilização processual concretizam-se através da adequação formal, regulada no art.º 547.º
Este artigo insere-se no Título VII do Livro II do CPC, ou seja, no Título que contém as disposições gerais enunciadoras das formas do processo de declaração e do processo de execução.
É neste “ambiente normativo” que o legislador confere expressamente ao juiz não só o poder mas também o dever da adequação formal, nos termos que aqui se transcrevem:
“O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.”
A adequação formal pode consistir na alteração da sequência de atos da tramitação legal, na eliminação de ato previsto na tramitação legal, na alteração do conteúdo ou da forma do ato, no adicionamento de ato não previsto na lei, mas que se considera que facilitará (agilizará) a realização dos fins do processo.
No final do art.º 547.º subordina-se a adequação formal ao modelo do processo equitativo. Também no n.º 1 do art.º 6.º se pauta o cumprimento do dever de gestão processual pela justa composição do litígio.
A adequação formal significa que o juiz não está obrigado a cumprir à risca o guião processual legalmente previsto
No caso em apreço, apesar de quem se apresenta como arrendatária de fracção vendida em execução e a cuja entrega se vai proceder, ter optado por deduzir embargos de terceiro, os quais se decidiu serem intempestivos, nada impede antes se impõe, que existindo outro meio de tutela jurisdicional efectiva do invocado direito, que está em tempo para ser apreciado nos autos principais, e o requerimento inicial contenha todos os elementos para tanto, se determine que o acto seja aproveitado e, após contraditório e produção de prova, a pretensão da Requerente seja apreciada e decidida nos autos principais.
Pois, como se refere na obra citada, embora às formas do processo previstas na lei subjaza a convicção, assente na experiência e na investigação, de que aquelas são as que melhor se adequam, em termos médios, à resolução do tipo de litígio e à prossecução do particular interesse para que foram destinadas, fornecendo a lei às partes e ao tribunal “um “guião” mínimo que confere ao trabalho forense a necessária previsibilidade, o guião legalmente previsto deverá ser alterado quando se justifique, nos termos previstos nos artigos 6.º n.º 1 e 547.º do CPC. Principalmente no caso, como o presente, quando só com tal alteração for possível assegurar a tutela jurisdicional efectiva do direito que o requerente pretende fazer valer.
Tutela jurisdicional que não se mostra esgotada, nem precludida com o indeferimento dos embargos de terceiro, pois como se refere na decisão recorrida “sempre a EMP02... UNIPESSOAL LDA poderia/deveria ter antes lançado mão de incidente inominado, a tramitar nos próprios autos com vista ao reconhecimento dos seus direitos como arrendatária”.
Acrescendo que ainda está em tempo de o fazer, não configurando a impugnada convolação mais do que o aproveitamento de um acto (requerimento), evitando duplicação inútil.
Não se trata de uma acção autónoma, mas de um mero incidente inominado, tramitado nos próprios autos de execução, inserido no procedimento de entrega previsto no o art.º 828.º do CPC, que segue os termos prescritos no artigo 861.º, devidamente adaptados, não tendo assim qualquer fundamento o argumentado pela apelante sob as alíneas c), d) e), supra reproduzidas.
Também não ocorre “violação do principio do esgotamento do poder jurisdicional (art. 613º, nº1 CPC) que impede o juiz de voltar a proferir nova decisão sobre a mesma questão fazendo regredir o já concretamente decidido”, pois que a decisão (proferida e a proferir) não assenta nos mesmos pressupostos.
Efectivamente, o despacho de autorização de auxílio das forças policiais para a entrega do imóvel vendido foi proferido no pressuposto de que o imóvel não se encontrava arrendado à Requerente, por tal ter sido afirmado no requerimento apresentado pela A.E., como se fez constar do despacho recorrido: “Considerando que a Sr. (ª) Agente de Execução no requerimento de autorização do auxílio da força pública para entrega o imóvel ai adquirente não fez qualquer referência à existência de um contrato de arrendamento, tendo apenas frisado a inexistência de um contrato de arrendamento a favor de frisado BB”.
É certo que o art.º 620º do CPC determina que as sentenças e os despachos, que recaiam unicamente sobre a relação processual, têm força obrigatória dentro do processo, excluindo deste regime apenas os despachos previstos no artigo 630.º.
Contudo, se no mesmo processo são proferidas duas decisões, versando sobre a mesma questão processual, mas sob previsões legais que autorizam a alteração de uma decisão inicial, não ocorre a excepção do caso julgado.
O mesmo sucede se os pressupostos em que assentou a 2ª decisão são distintos.
Reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos.
Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela sobre a decisão; os pressupostos da decisão são cobertos pelo caso julgado, ficando fora do caso julgado tudo o que esteja contido na sentença, mas que não seja essencial ao iter iudicandi. [[1]]”,
Pois, como refere Rodrigues Bastos, em “Notas ao Código de Processo Civil”, 3.°-253: “A economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportando à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidas por aquele critério ecléctico, que sem tornar extensiva a eficácia de caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado” – Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, 3.°-253.
Assim, e no que tange ao caso julgado formal (art.º 620º do CPC), se determinadas circunstâncias foram omitidas e, por isso, não foram pressuposto da decisão proferida sobre a relação processual, essas circunstâncias, ou novos pressupostos, podem justificar que se profira nova decisão alterando a anterior, sem que tal constitua violação do caso julgado formal.
 Pelo exposto, alteradas as circunstâncias em que assentou o despacho que autorizou o recurso às autoridades policiais para efectivar a entrega (e desocupação) da fracção, nada obsta a que se profira decisão diferente, sem violação do princípio da o principio do esgotamento do poder jurisdicional (art.º 613º, nº1 CPC).
Assim como, perante o alegado, verificado o que anteriormente já constava dos autos, nomeadamente do anúncio da venda e dos documentos juntos pela Requerente, justifica-se que se suspenda a execução desse despacho, não se mostrando esgotado o poder jurisdicional, pois que, estas circunstâncias, que não foram consideradas nesse despacho, aliadas à citada jurisprudência (aliás invocada pela Requerente), poderão conduzir a decisão diversa.
Pelo exposto não acolhemos as doutas conclusões da apelante, impondo-se confirmar a decisão recorrida.

V - DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando as decisões recorridas, excepto no tocante ao valor dos embargos, que se altera para €13.500, mas sem qualquer repercussão processual ou a nível de custas.
Custas pela apelante.
Guimarães, 24-04-2024

Eva Almeida
Alexandra Rolim Mendes 
Alcides Rodrigues                                       


[1] Acórdão do STJ de 26-9-2019 (238/17.1T8VLF.C1) in www.dgsi.pt. e Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, págs. 578 e seguinte.