Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2062/17.2T8BCL.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
EMPREITADA DE CONSUMO
DEFEITOS
PRAZO DE DENÚNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
“1. Deve ser qualificado como empreitada de consumo o contrato pelo qual um empresário, no âmbito da sua actividade profissional, se obriga a realizar obras de caixilharia e carpintaria na casa de habitação da contraparte.

2. Em tal caso, é de três anos, a contar da denúncia dos defeitos, o prazo para o dono da obra exercer judicialmente o direito à respectiva eliminação”.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

1 – RELATÓRIO

Francisco e Maria intentaram contra Abel e Eva acção declarativa comum, pedindo que os Réus sejam condenados a:

a) Num prazo de trinta dias, reparar os defeitos/patologias existentes na obra de carpintaria e caixilharia realizada no imóvel dos Autores e que se encontram discriminadas nos artigos 12º a 14º da petição inicial;
b) Ou, caso não sejam reparadas, pagar aos Autores o valor correspondente ao valor dos danos sofridos, de € 20.130,77;
c) Ou ainda, pagar aos Autores o valor correspondente ao valor de indemnização pelo interesse contratual positivo, decorrente do cumprimento defeituoso, que se computa em € 20.130,77;
d) Ou ainda, subsidiariamente, pagar aos Autores a quantia de € 20.130,77, decorrente do enriquecimento tido à custa dos Réus e sem qualquer causa que o justifique.

Para fundamentar a sua pretensão alegaram, em síntese, que aquando da reconstrução do seu prédio urbano, sito na Rua (…), concelho de Barcelos, destinado à sua habitação, os Autores solicitaram ao Réu marido, empresário em nome individual que usa a designação de fantasia “X”, orçamento para a obra de carpintaria e caixilharia, tendo este fornecido o orçamento solicitado no valor total de € 52.385,34; a obra de carpintaria e caixilharia total acabou por ser adjudicada ao Réu, sem que tivesse reduzido a escrito o contrato de empreitada; a última fase da obra, em 2013, referiu-se à cozinha e acabamentos gerais; o Réu facturou os serviços e materiais fornecidos perfazendo a quantia de € 53.874,10; ainda que contrariados, os Autores pagaram a totalidade do valor reclamado pelo Réu.

Sucede que a obra não está de acordo com o que foi orçamentado e padece de defeitos que têm que ser corrigidos ou compensados aos Autores, e que estes elencam na petição inicial; apesar de os Autores terem solicitado ao Réu a reparação dos defeitos existentes ou a redução do preço, a verdade é que o Réu se recusa.

Sustentaram ainda que o contrato tem a particularidade de ter sido celebrado entre uma pessoa que exerce com carácter profissional uma actividade económica e um “consumidor”, enquanto aquele a quem foi prestado um serviço destinado a uso não profissional.
Regularmente citados, os Réus impugnaram os factos alegados pelos Autores, excepcionaram a ilegitimidade da Ré mulher e a caducidade do direito e acção, concluindo pela procedência das excepções deduzidas e a improcedência da acção, com a consequente absolvição dos pedidos.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia e no saneador julgou-se improcedente a excepção de ilegitimidade da Ré mulher e «procedente a excepção peremptória de caducidade, nos termos do disposto no artigo 1225º, nº 1 e 2, do Código Civil, absolvendo os Réus do pedido, nos termos do disposto nos artigos 571º, nº 1, 576º, nº 3, do Código de Processo Civil».
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Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação da sentença e formularam, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pela Mª Juiz “a quo” que julgou, em despacho saneador, a ação improcedente, absolvendo os RR. Do pedido, nos termos do disposto nos artigos 571º, n.º 1, 576º, n.º 3, do Código de Processo Civil, por considerar válida a exceção perentória de caducidade, nos termos do disposto no artigo 1225º, n.º 1 e 2, do Código Civil.
2. Os AA. não se conformam com a decisão adotada pelo Tribunal de Comarca, por entenderem que a mesma padece de errónea aplicação de Direito.
3. O Tribunal de 1ª Instância apoiou a sua decisão na mera aplicação aos autos do regime da empreitada comum nos termos dos CC, mormente do artigo 1124º que prevê a caducidade do direito de ação decorrido que seja 1 ano da denúncia dos defeitos.
4. Os AA. não concordam com a aplicação ao presente caso de tal regime, por entenderem que deve antes aplicar-se, atenta a relação contratual subjetiva em causa, mormente, profissional-consumidor final, o regime previsto no DL n.º 67/2003, de 08 de Abril,
5. Regime que, atentas as considerações supra expostas, será de aplicar, não só à construção de imóvel, como também, à sua modificação ou remodelação,
6. Bastando para tal, que se verifique uma relação de consumo.
7. Resulta do supra exposto que as obras executadas pelo R., cujos defeitos/desconformidades ora se invocam, remontam a 2013, altura em que ele exercia atividade comercial em nome individual, utilizando a sua empresa a designação de fantasia de “X”, sita, aliás, no mesmo local onde se situa agora a sede da sociedade “X, LDA.”, de que o R. se diz sócio gerente.
8. Bem como, que o contrato em causa de reparação/remodelação de imóvel foi celebrado, a título oneroso, no âmbito da sua atividade.
9. E, tendo em conta que o imóvel objeto do contrato diz respeita à habitação própria dos AA., conforme alegado em sede de PI., não restarão dúvidas de que a situação dos presentes autos se enquadra na tutela do DL. 67/2003!
10. Verificando-se assim os pressupostos que permitem pela aplicação, in casu, do regime previsto no DL. 67/2003.
11. Atento o preceituado pelos artigos 5º e 5º-A do citado diploma legal, o consumidor pode exercer os seus direitos quando: (i)a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de cinco anos a contar da entrega do bem (atento estarmos no âmbito de reparações ou remodelações de partes integrantes do imóvel- cfr. artigo 204º CC), (ii)devendo a denúncia dos defeitos ser efetivada no prazo de 1 ano após o seu conhecimento, (iii)caducando os direitos atribuídos ao consumidor quando este não exerça o direito de acção decorridos 3 anos a contar da data da denúncia.
12. Considerando o alegado na PI, bem como em sede de resposta às exceções, os trabalhos objeto do contrato de empreitado terminaram em 2013 e, nessa altura foi o empreiteiro várias vezes alertado para o facto de terminar a obra em conformidade com o contratado,
13. Não obstante, foi na decorrência do processo judicial supra referido, com a perícias nele efetuadas, que os AA., conheceram realmente das desconformidades/defeitos que ora reclamam,
14. Conhecimento que nunca foi anterior a meados/finais do ano de 2015.
15. E, por isso, apresentaram a denúncia em 2 de Fevereiro 2016, na qual concederam ao dono da obra prazo (30 dias) para a reparação e/ou substituição dos bens/obra.
16. Além disso, deve salientar-se que, não obstante ter sido feita a denúncia no ano de 2016, foi só no ano de 2017 que os AA., com a realização de uma perícia profunda sobre os materiais aplicados na obra é que ficaram a saber, a verdadeira densidade dos defeitos da obra, bem como, o prejuízo quantitativo advindo da necessária reparação ou substituição dos bens/obra,
17. Portanto, os AA. apresentaram a denúncia antes de se passar 1 ano sobre o efetivo e integral conhecimento dos vícios (tiveram conhecimento em meados/finais 2015 e denunciaram em 16 de Fevereiro de 2016), bem como, antes de decorridos 5 anos desde a entrega da obra (entregue em 2013, com garantia extensível a 2018) …
18. E, tendo a presente ação dado entrada em juízo em 11 de setembro de 2017 (1 ano e sete meses após a denúncia), fácil, é de perceber, ao contrário do que é adotado pelo Tribunal de Primeira Instância, que exerceram em tempo o seu direito de Ação (direito que sempre poderia ser exercido até ao ano de 2018!)
19. Portanto, os AA. exerceram os seus direitos ainda antes de decorridos os 5, 1 e 3 anos, conforme previsto na lei!
20. SEM PRESCINDIR, conforme o alegado na PI e na resposta às exceções a que houve lugar, sempre estaremos perante uma situação de cumprimento defeituoso das obrigações ou até de incumprimento definitivo, o que dará lugar a um direito de indemnização do dono da obra, incorrendo por sua vez o devedor/empreiteiro em responsabilidade civil nos termos gerais,
21. Sendo, em ambos os casos, de aplicar o prazo de prescrição ordinária de 20 anos, nos termos do artigo 309º CC.
22. Isto porque, tendo o dono da obra, aquando da denúncia (Fevereiro de 2016), concedido um prazo de 30 dias para a reparação e/ou substituição dos mesmos,
23. E, não tendo sido o mesmo respeitado,
24. Passou o empreiteiro, a estar em situação de incumprimento definitivo,
25. Ora, ao direito de indemnização por danos colaterais dos defeitos da obra ou originados pelo incumprimento da obrigação de eliminação desses defeitos não é aplicável o prazo especial de caducidade previsto no art.° 1224°, do Código Civil, mas antes o prazo ordinário da prescrição do art.º 309º do mesmo Código.
26. Estes danos sequenciais dos defeitos da obra estão sujeitos ao regime geral da responsabilidade contratual, porque esta é a responsabilidade que originam, não se lhes aplicando, em princípio, e nomeadamente, as regras especiais relativas à atribuição e exercício dos direitos conferidos nos artigos 1221º a 1225º, entre as quais, as atinentes aos prazos de caducidade.
27. Assim, a indemnização dos prejuízos colaterais, provocados pelos defeitos da obra, que impliquem uma responsabilidade contratual do empreiteiro, estará sujeita apenas às regras gerais do direito de indemnização, não se lhe aplicando as regras especiais dos artigos 1218º e seguintes, nomeadamente no que se refere à existência de prazos de caducidade.
28. Por conseguinte, ao direito de indemnização por estes danos é aplicável o prazo ordinário da prescrição (art.º 309º).
29. Mais. O incumprimento definitivo da obrigação de eliminação dos defeitos confere ao lesado (dono da obra ou empreiteiro perante o subempreiteiro) o direito a ser indemnizado pelos prejuízos causados por esse incumprimento (art. 798.º do CC), correspondente ao custo das obras de eliminação dos defeitos, efetuadas ou a realizar por terceiro, podendo o dono da obra recorrer ao trabalho de terceiros e reclamar uma indemnização correspondente ao custo da eliminação dos defeitos indemnização que não se enquadra na previsão do art. 1223.º do CC - não estará esta, por isso, sujeita ao prazo de caducidade do art. 1224.º do CC, mas antes ao prazo de prescrição ordinário.
E ainda
30. A problemática trazida aos autos sempre configuraria uma situação de cumprimento defeituoso da obrigação, o que, dá lugar ao ressarcimento dos danos decorrentes do interesse contratual positivo.
31. Grande parte da corrente doutrinal e jurisprudencial, em matéria de bens defeituosos, à responsabilidade emergente por danos do interesse contratual positivo é de aplicar as regras gerais da prescrição, portanto, o prazo de 20 anos-Cfr. Artigo 309º do Código Civil.
32. Nestes termos, NUNCA seria de se entender, in casu, pela caducidade dos direitos dos AA. e consequentemente, NUNCA deveria ter sido decidida a absolvição dos RR. do pedido, com fundamento nessa exceção perentória!»

Terminam pedindo que seja revogada a sentença recorrida e que seja substituída por outro despacho que determine o prosseguimento dos autos.
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Os Réus não apresentaram contra-alegações.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.1. QUESTÕES A DECIDIR

Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nºs 1 a 3, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, a única questão a decidir consiste em saber se se verifica ou não a excepção peremptória de caducidade.
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2 – FUNDAMENTOS
2.1. Fundamentos de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. Os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano designado por “casa de rés-do-chão e andar”, sito na Rua (…), concelho de Barcelos, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 48º e descrito na Conservatória do Registo Predial, sob o nº (…).
2. Os Autores e Réu celebraram entre si um contrato no âmbito do qual, este último, mediante um preço previamente acordado, efectuaria a carpintaria e caixilharia no prédio referido em 1.
3. A última fase da obra, em 2013, referiu-se à cozinha e acabamentos gerais.
4. O Réu facturou os serviços e materiais fornecidos ao abrigo das facturas 08/280091, no valor de € 17.012,23, 08/280098, no valor de € 23.713,17, e CXB/4, no valor de 13.148,70, tudo perfazendo a quantia de € 53.874,10.
5. Os Autores pagaram a totalidade do valor reclamado pelo Réu.
6. Em 02 de Fevereiro de 2016, os Autores enviaram ao Réu uma missiva com o seguinte teor:

“ Assunto: Denúncia de Defeitos supervenientes/desconformidades de construção na obra situada na rua (…) Barcelos.

Vimos por este meio comunicar a V.Exª., os seguintes defeitos/desconformidades de construção agora verificados, relativamente aos quais V.Exª. é responsável, na qualidade de empreiteiro da obra acima mencionada:

1 - Armários da cozinha: o material aplicado na estrutura do interior dos armários da cozinha não é conforme o que acordamos, foi aplicado aglomerado mas tínhamos acordado seria madeira de castanho.
2 - Armário lavatório WC do R/C de 0.67x0.69m: o material aplicado no armário não é conforme o que acordamos, foi aplicado aglomerado mas tínhamos acordado que seria madeira de castanho;
3 - Armário suspenso WC piso 1, 1.20x0.48m: o material aplicado no armário não é conforme o que acordamos, foi aplicado aglomerado mas tínhamos acordado ser madeira de castanho;
4 - Armário tipo roupeiro do piso 1, 1.99x1.13m: o armário não está construído conforme o que acordamos, conforme o desenho fornecido e em madeira de castanho;
5 - Roupeiro do quarto principal, sem portas, de 2,50x4.00: o material aplicado no armário não é conforme o que acordamos, foi aplicado aglomerado mas tínhamos acordado que seria madeira carvalho;
6 - Roupeiros (3unidades) com portas lisas a toda a altura de 2,50x1,80: o material aplicado nos 3 armários não é conforme o que acordamos, foi aplicado aglomerado mas tínhamos acordado que seria madeira carvalho;
7 - Madeira das portas principais, portas interiores:
a) a madeira aplicada não é madeira de carvalho tal como foi acordado, já que foi aplicada madeira de castanho.
b) a madeira de castanho aplicado tem bicho, por falta de tratamento.
8 - Rodapé: os 56 cm de rodapé foram faturados a mais não foram nem aprovados nem aplicados, o único rodapé que foi aplicado faz parte do soalho e das escadas
9 –Área de soalho: a área do soalho aplicada é de 53,20m2 e não 60 m2 tal como foi faturado, foram faturados 7 m2 mais.
10 - Qualidade do verniz aplicado no soalho e nas escadas: o verniz apresenta um
desgaste prematuro e tem zonas a descascar.
11 - Tipo do verniz aplicado no soalho e nas escadas: o verniz aplicado no soalho e nas escadas não está conforme o que acordamos, acordamos que seria aplicado verniz poliuretano mas foi aplicado verniz aquoso.
12 - Levantamento do soalho: o soalho está descolado e levantado no corredor à entrada do WC do 1º piso;
13 - Puxador porta corredora elevadora: o eixo do puxador está desgastado e tem muita folga.
14 - Isolamento das portas de entrada, porta de correr, vidraças e janelas: falta de isolamento entre o aro e a parede (em alguns vê-se o dia de um lado ao outro), nas vidraças, portas de entrada, porta de correr e janelas;
15 - Infiltrações de água nas janelas: 2 janelas do quarto principal e uma do sequeiro têm aparecido infiltrações de água;
16 - Falta de Argon nos vidros: os vidros das janelas, vidraças e porta de correr não têm gás Argon inserido ao contrário do que acordamos.
17 - Certificado de vidros:
a) os documentos/identificados no relatório do perito Eng. V. não nos foram entregues.
b) os documentos apresentados no relatório do perito Eng. V. como sendo o certificado, não são válidos como tal.
c) os vidros maiores apresentados no relatório do perito Eng. V. não são os que foram aplicados na nossa obra.
d) os nossos nomes ( donos da obra ) não estão identificados nos documentos apresentados no relatório do perito Eng. V..
e) o nome do empreiteiro aplicador ( X )não está identificado nos documentos apresentados no relatório do perito Eng. V..
f) os documentos apresentados no relatório do perito Eng. V. não estão ligados ( não correspondem ) entre eles, do dono da obra até fabricante dos vidros.
18 - Certificado relativo composição da caixilharia: falta de certificado da composição e rotura térmica da caixilharia completa (madeira/alumínio/vidros) das janelas, portas e vidraças.
19 - Ficha técnica de desmontagem/montagem: falta de ficha técnica para desmontagem/montagem das janelas para trocar vidros se necessário.

Em face do acima descrito, convictos do vosso melhor entendimento, vimos solicitar a rápida reparação/eliminação dos defeitos supra mencionados, transmitindo-me qual a data disponível para a execução dos respetivos trabalhos, ou, na falta ou ausência de possibilidade de reparação/eliminação dos defeitos, a imediata redução do preço pago/a pagar, tudo sem prejuízo do direito a ser indemnizados pelos danos ( emergentes ) ou prejuízos ulteriormente sofridos.
Caso V.Exª. não se comprometa a efetuar as reparações supra solicitadas, no prazo de trinta dias, não me restará outra alternativa senão a do recurso à via judicial, com vista a obter, da parte de V.Exª, a reparação dos defeitos de construção agora denunciados/redução do preço pago/ a pagar. “
7. A presente acção deu entrada em juízo em 11 de Setembro de 2017.
8. Os Réus são casados entre si.
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Da qualificação do contrato

Flui das posições assumidas nos articulados e, consequentemente, dos factos considerados provados pelo Tribunal a quo, que os Autores, proprietários de uma casa de habitação, celebraram com o Réu um acordo mediante o qual este se comprometeu a fornecer e aplicar, no aludido prédio urbano, determinados bens de carpintaria e caixilharia, mediante uma contrapartida, que acabou fixada em € 53.874,10.
O Réu marido realizou a aludida obra de carpintaria e caixilharia, tendo cobrado o respectivo preço. Segundo alegado pelos Autores, a última fase da obra, em 2013, referiu-se à cozinha e acabamentos gerais.

Releva para o caso dos autos o art. 1207º do Código Civil, que define como empreitada «o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço». Esta espécie contratual entronca no contrato de prestação de serviços, prefigurado no art. 1154º daquele Código, particularizando-se pela natureza do seu objecto – realização de certa obra – e pela essencialidade da sua onerosidade.

O contrato de empreitada caracteriza-se pois da seguinte forma:

a) pela existência da obrigação de uma das partes proporcionar à outra certo resultado em relação ao credor;
b) que esse resultado se traduza na realização de uma obra;
c) que tenha como contrapartida um preço.

De salientar que a obra, objecto de empreitada, terá de se consubstanciar num “quid” material, que tanto pode consistir na construção ou criação de uma coisa como na sua modificação ou demolição(1).

Convém igualmente ter presente que a figura contratual recortada no art. 1207º abrange duas modalidades de execução autónoma da obra: a) a empreitada propriamente dita, também conhecida por contrato de empresa, que é levada a cabo por uma organização empresarial que combina os factores de produção e suporta os riscos; b) o contrato de obra executado predominantemente pelo próprio empreiteiro, sujeitando-o ao mesmo regime jurídico.

Nestes parâmetros será agora fácil concluir que entre os Autores e o Réu foi celebrado um contrato de empreitada, pelo que é de harmonia com o regime jurídico previsto para esta espécie contratual que deve ser apreciada a questão jurídica objecto destes autos.
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2.2.2. Dos efeitos do contrato e regime do cumprimento defeituoso

O devedor em geral cumpre a obrigação quando, de boa fé, realiza a prestação a que está vinculado - artigo 762º do Código Civil.
Consequentemente, a contrario sensu, o devedor não cumpre a sua obrigação quando não realiza a prestação a que está vinculado.
Ao credor incumbe alegar e provar os factos integrantes do incumprimento da obrigação do devedor, e a este os factos reveladores de que tal não procede de culpa sua – art. 799º, nº 1, do Código Civil.
O contrato de empreitada, que é aquele que está em causa nos autos, é bilateral, oneroso e sinalagmático.
O sinalagma, no contrato de empreitada, é genético e funcional. É genético porquanto a reciprocidade das prestações do empreiteiro e do dono da obra, nasce no momento em que é celebrado o contrato, e é funcional porque perdura durante a sua execução.
Um dos aspectos em que se exprime o sinalagma contratual - corolário do princípio geral da pontualidade (art. 406º do Código Civil) - é, do lado do empreiteiro, a execução da obra nos termos convencionados (cfr. art. 1208º) e, do lado do dono dela, a obrigação de caso a aceite, pagar o preço - “O preço deve ser pago, não havendo cláusula ou uso em contrário, no acto de aceitação da obra”, conforme disposto no nº 2 do art. 1211º.
Por conseguinte, a execução de um contrato de empreitada implica para o empreiteiro a assunção de uma obrigação de resultado.

Segundo geralmente é entendido, na empreitada o cumprimento ter-se-á por defeituoso quando a obra for realizada com deformidades ou com vícios. As deformidades são discordâncias com o plano convencionado, enquanto os vícios são as imperfeições que excluem ou reduzem o valor da obra ou a sua aptidão para o uso ordinário ou o previsto no contrato (cfr. art. 1208º do Código Civil), designadamente por violação de regras especiais de segurança. Ao conjunto das deformidades e dos vícios chama-se defeitos, podendo estes ser aparentes (apreensíveis usando da normal diligência) ou ocultos (apenas detectáveis pelo bonus pater familiae) (2)

A obra é havida como defeituosa quando se verifique uma execução com deformidades, com vícios, ou a realização de alterações da iniciativa do empreiteiro sem autorização do dono da obra ou em desconformidade com o plano inicialmente acordado.

Perante a existência de defeitos a lei concede ao dono da obra o direito, entre outros, de exigir a eliminação dos mesmos, para execução do contrato em cumprimento do acordado – cfr. art. 1221º, nº 1, do Código Civil.
Para além desse direito, o dono da obra pode ter direito a ser indemnizado pelos danos que lhe tenham sido causados em vista da existência dos defeitos em causa e/ou da sua tardia eliminação, nos termos gerais – cfr. arts. 562º e ss., ex vi do art. 1223º, todos do Código Civil. Não tendo havido resolução do contrato, é óbvio que o interesse a ter em causa é o interesse contratual positivo, com vista a colocar o comitente na situação em que estaria se o contrato tivesse sido pontualmente cumprido.

Cumpre também referir que o empreiteiro se torna responsável por todos os defeitos relativos à execução dos trabalhos ou à qualidade, forma e dimensão dos materiais aplicados, quer quando o contrato não fixe as normas a observar, quer quando sejam diferentes das aprovadas.

Quem invoca o direito tem de fazer prova dos factos constitutivos do direito, nos termos do preceituado no art. 342º do Código Civil, pelo que impende sobre o dono da obra, o ónus da prova da existência de defeitos, o que inclui a demonstração da sua gravidade (isto é, que são de molde a afectar o uso ou a acarretar uma desvalorização da coisa) (3).

Além da prova da existência do defeito, “como o exercício de qualquer das pretensões edilicias tem de ser precedida de denúncia, incumbe ao credor a prova da sua realização” (4).

O artigo 1225º do Código Civil estabelece regras específicas relativas à responsabilidade do empreiteiro por defeitos em empreitadas de construção, modificação ou reparação de edifícios ou outros imóveis, destinados por sua natureza a longa duração.

É essa a situação dos autos, uma vez que a obra tinha por objecto um imóvel, traduzindo-se na sua remodelação ou reparação, no qual foram aplicados os materiais fornecidos, passando a integrar o mesmo (v. artigo 204º, nºs 1, al. e), e 3, do Código Civil).

Estabelece a lei prazos para o dono da obra exercer os seus direitos relativamente ao empreiteiro, redundando na previsão de três prazos de caducidade, cujo não cumprimento leva à perda dos aludidos direitos. Em primeiro lugar, o dono da obra tem de denunciar ao empreiteiro a existência dos defeitos no prazo máximo de um ano a contar do seu conhecimento, caducando os respectivos direitos no caso de esta não ser feita tempestivamente. Em segundo lugar, estabelece um prazo de caducidade da acção, uma vez que a lei impõe o prazo de um ano, a contar da denúncia, para o dono da obra exercer judicialmente os seus direitos (eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do contrato e indemnização). Por último, estabelece-se um prazo limite de caducidade dos direitos do dono da obra, que é de cinco anos a contar da entrega – artigo 1225º, nº 1, do Código Civil.

Se considerarmos que é este o regime aplicável, é inequívoco que tendo os Autores denunciado os defeitos por carta de 02.02.2016 e intentado a acção em 11.09.2017, depois de decorrido o prazo de um ano sobre aquela denúncia, verificar-se-ia a caducidade da acção, por não terem tempestivamente exercido em juízo o direito à reparação dos defeitos.
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2.2.3. Do contrato de consumo

O Tribunal a quo, na sentença recorrida, aplicou o regime geral da empreitada.
Porém, por ter sido expressamente invocado na petição inicial, deveria ter averiguado se era aplicável o regime do direito do consumo (5).
Os Autores alegaram na petição inicial que o Réu marido é empresário em nome individual, usando a designação de fantasia “X”, e realizou a obra no exercício da sua actividade profissional.
Recorde-se que a empreitada teve por objecto a casa de habitação dos Autores, ou seja, o imóvel não se destina a uso profissional (pela positiva, destina-se a um uso privado).

Assim sendo, estamos perante um contrato de empreitada de consumo, que é um subtipo do contrato de empreitada. É-lhe aplicável o regime do direito do consumo (6).
As relações de consumo, no domínio do contrato de empreitada, mostram-se reguladas pela Lei de Defesa dos Consumidores (Lei nº 24/96, de 31 de Julho) e pelo Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril.

Nos termos do artigo 2º, nº 1, da LDC, “considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.

Embora o seu artigo 1º-A, nº 1, determine a aplicação do regime previsto no Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril, “aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores”, o artigo 1º-A, nº 2, estende a aplicação do respectivo regime, “com as necessárias adaptações, aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada”. O diploma aplica-se a qualquer bem imóvel ou móvel corpóreo, tal como resulta do artigo 1º-B, al. b), aditado pelo Decreto-Lei nº 84/2008.

No que respeita ao prazo de caducidade da acção, o artigo 5º-A, nº 3, do Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril, estabelece que os direitos – no caso vertente do dono da obra – caducam decorridos três anos (7) a partir da denúncia se se tratar de bem imóvel.
Aplicando o referido regime ao caso dos autos, verifica-se que tendo os Autores efectuado a denúncia dos alegados defeitos da obra em 02.02.2016, quando intentaram a acção, em 11.09.2017, ainda não tinha decorrido o prazo de três anos de que dispunham para exercer os seus direitos.
Por conseguinte, não se verificando a excepção peremptória de caducidade, a apelação deve ser considerada procedente e revogado o saneador-sentença recorrido.
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2.3. Sumário

1. Deve ser qualificado como empreitada de consumo o contrato pelo qual um empresário, no âmbito da sua actividade profissional, se obriga a realizar obras de caixilharia e carpintaria na casa de habitação da contraparte.
2. Em tal caso, é de três anos, a contar da denúncia dos defeitos, o prazo para o dono da obra exercer judicialmente o direito à respectiva eliminação.
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3 – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar o saneador-sentença recorrido.
Sem custas.
Guimarães, 27.09.2018

(Joaquim Boavida)
(Paulo Reis)
(Espinheira Baltar)


1. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 2ª edição, Coimbra, 1981, pág. 703.
2. Sobre esta matéria, v. Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, vol. III, 2ª edição, págs. 527 e 528.
3. Galvão Telles, Direito das Obrigações, pág. 328.
4. Cfr. Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso, em Especial, no Contrato de Compra e Venda e Empreitada, Coimbra, 1994, pág. 143.
5. O Ac. do Tribunal de Justiça da União Europeia de 05.06.2015 determinou que o tribunal nacional “está obrigado, sempre que disponha dos elementos de direito e de facto necessários para tal ou deles possa dispor mediante mero pedido de esclarecimento, a verificar se o comprador pode ser qualificado de consumidor (…) ainda que este não tenha expressamente invocado essa qualidade”.
6. Para um estudo pormenorizado desta matéria, v. Manual de Direito do Consumo, Jorge Morais Carvalho, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2018, págs. 262-343.
7. Este prazo foi alargado pelo Decreto-Lei nº 84/2008.