Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2451/23.3T8GMR.G1
Relator: FERNANDA PROENÇA FERNANDES
Descritores: CRÉDITO DOCUMENTÁRIO
RECUSA DE PAGAMENTO
CARTA DE CRÉDITO
APRESENTAÇÃO DE DOCUMENTO
QUESTÃO NOVA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DA AUTORA IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I.O que importa no crédito documentário são os documentos cuja entrega, em conformidade, pelo beneficiário ou por um seu representante, determina a obrigação do banco emitente, ou do banco confirmador, se o houver, de honrar o crédito.
II. Tendo o banco emitente do crédito documentário, instado o ordenador sobre as anomalias/divergências detectadas nos documentos entregues pela beneficiária, a aceitação por aquele das divergências, não inibe o banco emitente de recusar o pagamento do crédito quando, para além de divergências, está em causa a falta de entrega dos documentos (CMR e lista de embalagem) constantes da carta de crédito.
III. Não resulta das RUU, que o banco emitente fique, neste contexto, obrigado a honrar o crédito.
IV. Não sendo uma situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal Superior apreciar uma questão nova.
V. Para que se verifique o venire, tem de existir uma situação de confiança, justificada pela conduta da outra parte e geradora de um investimento, e surgir uma actividade dessa parte, a destruir a relação negocial, ao arrepio da lealdade e da boa fé negocial, esperadas face à conduta pregressa.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório (feito com base no relatório da decisão apelada).

Nos presentes autos de processo comum, EMP01..., LDA., NIPC ...16, demanda a Banco 1..., S.A., NIPC ...46, pedindo, a final, a condenação desta no pagamento da quantia global de € 104.971,71 (cento e quatro mil, novecentos e setenta e um euros e setenta e um cêntimos), acrescida de juros à taxa legal, a contar da citação e até efetivo pagamento.
Alega, para tanto e em síntese que, para garantir o pagamento dos serviços prestados, a sociedade “EMP02..., S.A.” procedeu à constituição e abertura de um crédito documentário (sob ref.ª ...) a favor da autora, junto da ré, no montante de € 103.492,20.
Por alteração de fornecimento, houve necessidade de proceder ao aumento do montante do crédito documentário, em € 1.479,51.
Apesar de, na sequência da comunicação de existência de divergências, a ordenante EMP02... as ter aceitado, a ré recusou a utilização do crédito, sem que existam motivos para tal e já depois de ter perguntado se a ordenante as aceitava, o que se traduz num abuso de direito.
A ré apresentou contestação, concluindo pela improcedência da acção, alegando em síntese, que, apresentados os documentos para a utilização do crédito documentário, a ré constatou a falta de elementos essenciais e a existência de divergências, que comunicou ao ordenante, sem as aceitar, e sem criar expetativa que tal viesse a acontecer, decorrendo a referida entrega da mercadoria apenas da confiança existente entre as empresas e numa altura em que a ordenadora já se tinha apresentado à insolvência, sem possibilidade de controlo pela ré.
Foi agendada audiência prévia, e atendendo que não foi possível alcançar o acordo, pronunciaram-se as partes sobre a imediata prolação de sentença, reconhecendo-se logo que a questão se reconduz à aplicação do direito, sobre a legitimidade de recusa de pagamento do crédito documentário e eventual abuso de direito.
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Foi proferida decisão, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgo a presente ação improcedente e, em consequência, absolvo a Réu Banco 1..., S.A. do pedido.
Custas pela Autora (artigo 527.º do Código de Processo Civil).
Valor da ação: € 104.971,71.-
Registe e notifique.”
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Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):
“V. CONCLUSÕES

1. Num contrato de crédito documentário, se, face a divergências nos documentos apresentados, o Banco optar por interpelar o Ordenador para que este diga se as aceita, e este as aceitar, não pode o mesmo Banco depois recusar o pagamento.
2. Num contrato de crédito documentário, se, face a divergências nos documentos apresentados, o Banco comunicar ao apresentante a sua recusa em proceder ao pagamento para além do prazo de cinco dias úteis previsto no artº 15º das Regras e Usos Uniformes Relativas aos Créditos Documentários aprovadas em Viena pelo Congresso da Câmara internacional do Comércio e com a versão mais recente reportada a julho de 2007 (RUU 600), fica obrigado a honrar o crédito.
3. A recusa de pagamento do crédito documentário aberto a pedido da “EMP02..., S.A.” em benefício da aqui Autora comporta uma atuação em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium nos termos do disposto no art.º 334.º do Cód. Civil.
4. violou a decisão recorrida o disposto no artº 762º e 798º do CCivil, bem como os artºs 14º, 15º e 16º das RUU.

TERMOS EM QUE
pelo exposto, pelo mérito dos autos e pelo que doutamente será suprido deve à Apelação ser concedida provimento, revogando-se a decisão recorrida e julgando-se a presente ação inteiramente procedente porque assim se fará J U S T I Ç A !”.
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A ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido, como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC) – ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, consistem em saber:

1. da legitimidade de recusa de pagamento do crédito documentário;
2. da invocação do prazo de cinco dias úteis previsto no artº 15º das Regras e Usos Uniformes Relativas aos Créditos Documentários aprovadas em Viena pelo Congresso da Câmara internacional do Comércio e com a versão mais recente reportada a julho de 2007 (RUU 600);
2. do eventual abuso de direito.
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III. Fundamentação de facto.

Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:

1. A Autora, no exercício da atividade de comércio de produtos têxteis, estabeleceu relações comerciais com a sociedade sob firma “EMP02..., S.A.”.
2. Por forma a garantir o pagamento dos serviços prestados, a sociedade sob a firma “EMP02..., S.A.” procedeu à constituição e abertura de um crédito documentário irrevogável (sob ref.ª ...) a favor da Autora junto da instituição bancária aqui Ré, nos termos do documento junto e que aqui se dá por reproduzido.
3. O crédito seria pago à beneficiária, ora Autora, contra a entrega dos seguintes documentos:
a. Faturas de fornecimento de: CETIM CRU 100 PCT ALGODAO 80/100 225x88/3 124 INCHS (TC500). - 7.000 MTS AT EUR.3,80/MT + 23PCT IVA; CETIM CRU 100 PCT ALGODAO 100/100 225x86/4 124 INCHS (TC600). - 14.000 MTS AT EUR.4,11/MT + 23PCT IVA
b. Lista de Embalagem/ Packing List
c. Carta de Porte International (CMR)/ Road Waybill (CMR) emitido à ordem da Banco 1...
4. Na sequência da abertura do aludido crédito documentário, a Ré obrigou-se a aceitar e a proceder ao pagamento à Autora, beneficiária, dos serviços prestados à ordenante EMP02... no montante de € 103.492,20.
5. A Autora foi notificada pela Ré dos termos da abertura do crédito.
6. No âmbito da relação comercial foram emitidas pela Autora faturas no montante de 104.971,71 euros:
- Fatura ..., CETIM CRU 100 % ALGODÃO 100/100, 225x86/4 124 INCHS, - 14.215 mts at EUR.4,11/mt, emitida a .../.../2021, com vencimento a 17-07-2021, no valor de €71.861,09;
- Fatura FA 2021/..., CETIM CRU 100 % ALGODÃO 80/100, 225x88/3 124 INCHS, - 7.084 mts at EUR.3,80/m, emitida a .../.../2021, com vencimento a 29-07-2021, no valor de €33.110,62.
7. Apresentadas a pagamento a 21 de abril de 2021, a Ré informou a Ordenante EMP02... da existência de divergências quanto ao montante excedido, mas também concernentes aos documentos “CMR e Lista de embalagem não apresentado” e “Fatura: quantidades superiores ao permitido”.
8. Na mencionada comunicação a Ré, após dar conhecimento e elencar as divergências, acrescentou: “Queiram informar-nos, o mais breve possível, se aceitam os documentos com as citadas divergências e autorizam o respetivo pagamento.”
9. A EMP02... apresentou-se à insolvência, que veio a ser decretada por sentença proferida a 21/04/2021.
10. A ordenante EMP02... (já através do administrador de insolvência), em 14 de maio de 2021, informou a Ré que aceitava as divergências verificadas.
11. Em 08/07/2021, a Ré notificou a Autora que a utilização do crédito documentário de €104.971,71 foi recusado.
12. A Autora instou a Ré ao cumprimento do crédito através de interpelação admonitória, datada de 28 de outubro de 2021.”.
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IV. Do objecto do recurso.      

1. Vejamos então da legitimidade de recusa de pagamento do crédito documentário.
“Diz-se crédito documentário a situação jurídica pela qual um banqueiro se compromete, perante um seu cliente, a pagar uma certa quantia a um terceiro mediante a entrega, por este, de determinados documentos”. (cfr. António Menezes Cordeiro, in Créditos Documentários, publicado na Revista da O.A., 2007, Ano 67, vol. 1, e também no seguinte endereço ou ligação online:
http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=30777&idsc=59032&ida=59051
Em si, o crédito (documentário), resultante desse contrato, “é um meio de pagamento contra a apresentação dos documentos nele elencados e probatórios do cumprimento do contrato base pelo vendedor/beneficiário” (cfr. João Calvão da Silva, in Direito Bancário, 2001, Almedina, p. 370).
No ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.09.2021, relatora Isabel Salgado, disponível in www.dgsi.pt, define-se o crédito documentário do seguinte modo: “é uma obrigação complexa, na qual intervêm necessariamente as partes no contrato comercial que está na sua origem – em que o devedor pecuniário, na relação do crédito documentário, assume a designação de ordenante ou ordenador do crédito e o credor a de beneficiário – bem como o banco, que emite o crédito – banco emitente – e cuja obrigação é a de realizar o crédito uma vez que, após a sua verificação, considere correctos os documentos apresentados; o banqueiro assume perante o mandante e o beneficiário, a obrigação de executar o pagamento ou a negociação previstos no contrato.”
Como afirma Calvão da Silva (ob. cit., p. 370), essa operação de crédito desdobra-se numa relação trilateral: o contrato entre o comprador e o vendedor; a abertura de crédito documentário e a realização do crédito documentário.
Essas relações, regem-se essencialmente pelas denominadas Regras e Usos Uniformes que desde da Conferência de Viena, em 1933, vêm sendo adoptadas e compiladas pela C.C.I. (Câmara de Comércio Internacional) no que simplificadamente se vêm denominando RUU (Regras e Usos Uniformes), no sentido de melhor materializar o propósito desses contratos – a segurança do comércio internacional.
O crédito documentário diz-se irrevogável, quando todas as partes interessadas assim o acordaram, o que significa que o banco emitente assume um compromisso firme, observados os termos e condições do crédito, de efectuar a favor do beneficiário, nas condições e modalidades delineadas no artigo 9.º, alínea a), o pagamento do montante estipulado.
A obrigação dessa forma contraída pelo banco emitente é uma obrigação autónoma e independente da relação jurídico-comercial subjacente ao crédito e, bem assim, da relação jurídica entre ordenante e emitente mercê da qual este último se vincula, as quais não podem fundar excepções (v. g., incumprimento ou cumprimento defeituoso da compra e venda subjacente) susceptíveis de afectar aquela obrigação, salva a hipótese de fraude do beneficiário (cfr. artigo 3.º das RUU, e “Calvão da Silva”, «Estudos de Direito Comercial», 1996, pág. 69).
O compromisso firme do banco emitente perante o beneficiário não pode unilateralmente ser alterado ou cancelado, mas tão-só mediante acordo destes interessados (artigo 9.º, alínea d)).
No caso dos autos temos que, subjacente ao contrato de emissão do crédito documentário está um contrato de compra e venda de tecidos, firmado entre a autora e a empresa EMP02..., sendo o crédito documentário, a forma de pagamento do preço convencionado.
Temos também que as partes não suscitam qualquer dúvida acerca da natureza do crédito emitido ou da conformação da carta emitida com a prática bancária e comercial internacional sob o que se acha estabelecido nas RUU, emitidas pela Câmara Internacional de Comércio, na versão mais recente de 1.07.2007.
A autora/apelante entende que a ré está obrigada a pagar-lhe o valor do preço da mercadoria/tecido que vendeu à EMP02..., face à emissão a favor da apelante de um crédito documentário irrevogável do valor correspondente, e atendendo a que, face às divergências nos documentos apresentados, tendo a ré optado por interpelar o ordenador para que este dissesse se as aceita e tendo este aceite, não pode a ré depois recusar o pagamento.
Já a ré/apelada, entende que legitimamente declinou o pagamento em causa, vistas as discrepâncias e falta de junção de documentos constantes da carta de crédito e que a tal não obsta a interpelação feita ao ordenador.
A decisão apelada, no seguimento da defesa da ré, seguiu tal posição, julgando a acção improcedente.
E cremos que com toda a razão.
Efectivamente, resulta da factualidade apurada que o crédito seria pago à beneficiária, ora autora/apelante, contra a entrega dos seguintes documentos:
a. Faturas de fornecimento de: CETIM CRU 100 PCT ALGODAO 80/100 225x88/3 124 INCHS (TC500). - 7.000 MTS AT EUR.3,80/MT + 23PCT IVA; CETIM CRU 100 PCT ALGODAO 100/100 225x86/4 124 INCHS (TC600). - 14.000 MTS AT EUR.4,11/MT + 23PCT IVA;
b. Lista de Embalagem/ Packing List;
c. Carta de Porte International (CMR)/ Road Waybill (CMR) emitido à ordem da Banco 1....
Mais resulta que foram emitidas pela autora facturas no montante de € 104.971,71, que foram apresentadas a pagamento a 21 de abril de 2021, tendo a ré informado a ordenante EMP02... da existência de divergências quanto ao montante excedido, mas também concernentes aos documentos “CMR e Lista de embalagem não apresentado” e “Fatura: quantidades superiores ao permitido”.
Ora, o crédito (irrevogável) funciona perante a apresentação dos documentos previstos na respectiva carta.
Dos termos dessa carta documentária em que a autora/apelante figurava como beneficiária estava a mesma perfeitamente inteirada e ciente dos termos do seu crédito, maxime dos documentos exigidos e condicionantes da obrigação de pagamento da ré emitente.
Tais documentos deviam ser entregues à ré/apelada, à qual competiria o seu exame subsequente, seguindo as regras exaradas nos artigos 14º e 15º das RUU.
Como afirma Marta Daniela Vieira Martins in “A Fraude no Crédito Documentário” Dissertação apresentada no âmbito do 2.º ciclo de Estudos em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Maio/2017, disponível in https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/84246/1/A%20Fraude%20no%20Cr%C3%A9dito%20Document%C3%A1rio.pdf “O que importa no crédito documentário são os documentos cuja entrega, em conformidade, pelo beneficiário ou por um seu representante, determina a obrigação do banco emitente, ou do banco confirmador, se o houver, de honrar o crédito, estipulando o artigo 5.º das RUU que os bancos lidam com documentos e não com as mercadorias, serviços ou prestações às quais esses documentos se possam reportar”.
Cabe aos documentos uma dupla função: a de representar a própria entrega da mercadoria e a de constituir para o banco a garantia dos seus desembolsos, dizendo Fernando Olavo in “Abertura de Crédito Documentário”, pág.28 que devem apresentar-se em termos de poderem ser negociados ou transmitidos para que o banco possa ficar investido na qualidade de respetivo titular para sua garantia e, após haver sido reembolsado, transferi-los ao comprador seu cliente.
De acordo com o mesmo autor, ob. cit. pág. 29, a apreciação é feita pelo banco, a quem compete verificar cuidadosamente se os documentos estão em conformidade com as instruções recebidas e que, na falta de instruções completas ou em caso de dúvida, deve conformar-se com os usos do comércio relativos à interpretação e ao valor ou equivalência dos diversos documentos. Esta verificação respeita apenas aos documentos em função das indicações expressas na abertura de crédito documentário visando apreciar se estão conformes as características exigidas para realizar o fim a que se destinam.
A exigência de que os documentos a apresentar estejam em conformidade com os termos da carta de crédito tem por base o princípio do formalismo do crédito documentário.
Assim, temos que a obrigação de pagamento assumida pelo banco réu, não se encontra isolada, pois o banco para pagar ao beneficiário o montante do preço, terá de o fazer mediante uma apresentação conforme dos documentos exigidos na carta de crédito, e depois, para saber se os mesmo estão conformes ou não, terá de os examinar, o que constitui seu dever de verificação dos documentos.
“Ou seja, o banco, com a emissão da carta de crédito, especificando nela o compromisso de pagamento, fica obrigado em seu nome e por conta do comprador – ordenante a pagar ao beneficiário o montante do crédito, perante a apresentação dos documentos previstos na carta de crédito.
Essa apresentação integral e em regularidade com os termos definidos na carta constitui um dos requisitos fundamentais para a execução do crédito documentário, ou seja, para a exigibilidade da obrigação de pagamento; quaisquer alterações estão sujeitas ao regime estabelecido no artigo 10º das RUU, designadamente a aceitação do ordenante das divergências dos documentos” (cfr. ac. da Relação de Lisboa acima citado).
Entre os documentos a constar na operação da carta de crédito assumem particular destaque os documentos de transporte relativos à mercadoria transacionada - artigo 19º das RUU.
Entende a apelante que a partir do momento em que a Banco 1..., enquanto banco emitente do crédito documentário, instou o ordenador – a insolvente EMP02... S A – sobre as anomalias/divergências detectadas nos documentos entregues pela beneficiária e da decisão daquela de aceitar tais divergências, a ré Banco 1... estava inibida de recusar o pagamento do crédito.
Contudo, no caso dos autos, para além das divergências apontadas nos valores das facturas, temos que nem o CMR nem a lista de embalagem foram entregues pela autora à aqui ré.
Ora, constando o CMR e a lista de embalagem do conteúdo expresso da carta emitida, enquanto condição de satisfação do pagamento do crédito e do pleno conhecimento da beneficiária autora, não pode esta entender que, face à aceitação das divergências por parte da EMP02..., não poderia a ré recusar o pagamento.
É que não eram apenas divergências em documentos que estavam em causa, mas a efectiva falta de entrega dos documentos previstos na carta emitida. Não tendo sido entregue o CMR e a lista de embalagem, a documentação entregue nem sequer demonstrava que as mercadorias tivessem sido entregues (e, em caso afirmativo, quando, pela autora à EMP02...).
Por outro lado, não resulta das RUU, que o banco emitente fique, neste contexto, obrigado a honrar o crédito.
Como bem refere a apelada nas suas contra-alegações “Bem pelo contrário, as RUU, no seu art 16.º, sobre a notificação a enviar ao beneficiário dando conhecimento da sua recusa, prevista no ponto c., estabelecem como obrigatória, entre outras, a propósito dos documentos na posse do banco e entre as alternativas possíveis, a indicação “(…) que o banco emitente mantém os documentos em seu poder até receber o acordo às divergências por parte do ordenador e concordar em aceitá-lo (sublinhado e assinalado a bold da nossa autoria)
Resulta do segmento transcrito que a aceitação das divergências por parte do Ordenador não é suficiente para determinar o pagamento do crédito, tornando-se necessária (e cumulativa) para este efeito, a concordância do banco emitente relativamente à aceitação/acordo manifestado”.
É o que resulta do disposto pelo art. 16º c) das RUU, que tem o seguinte teor:
“c) Sempre que um banco designado actuando nos termos da sua designação, um banco confirmador, se houver, ou o banco emitente decidir recusar-se a honrar ou a negociar, terá de dar conhecimento disso ao apresentador, mediante uma única notificação.

Essa notificação terá obrigatoriamente de indicar:
i. que o banco se recusa a honrar ou a negociar; e
ii. cada uma das divergências em virtude das quais o banco se recusa a honrar ou a negociar; e
iii. a) que o banco mantém os documentos em seu poder aguardando novas instruções do apresentador; ou
b) que o banco emitente mantém os documentos em seu poder até receber o acordo às divergências por parte do ordenador e concordar em aceitá-lo, ou até receber novas instruções do apresentador antes de ter concordado em aceitar o acordo do ordenador às divergências;
…”.
Diga-se finalmente que, cumprindo o banco uma obrigação própria e não uma obrigação do ordenador, não é aceitável que não pudesse tomar a sua própria decisão quanto ao cumprimento ou não dessa obrigação, sujeitando-se a decisão vinculatória de terceiros.
Improcede, pois, este fundamento do recurso.
2. Da invocação do prazo de cinco dias úteis previsto no artº 15º das Regras e Usos Uniformes Relativas aos Créditos Documentários aprovadas em Viena pelo Congresso da Câmara internacional do Comércio e com a versão mais recente reportada a julho de 2007 (RUU 600).
Quanto a esta questão, que foi pela primeira vez invocada em sede de alegações de recurso, há que dizer que, não sendo a mesma de conhecimento oficioso, não pode ser conhecida por este Tribunal.
Com efeito, quando é colocada por um recorrente perante o Tribunal Superior uma questão que não foi abordada nos articulados, não foi incluída nas questões a resolver, e não foi tratada na sentença recorrida, então estamos perante o que se costuma designar de questão nova. Ora, por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido, pois só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido. A única excepção a esta regra são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes. Não sendo uma situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal superior apreciar uma questão nova, por pura ausência de objecto: em bom rigor, não existe decisão de que recorrer. É um caso de extinção do recurso por inexistência de objecto (cfr. ac. desta Relação de Guimarães de 08.11.2018 relator Afonso Cabral de Andrade).
Assim, não é lícito à apelante vir invocar em sede de recurso, questão que as partes não suscitaram perante o tribunal recorrido.
3. Entende finalmente a apelante que a recusa de pagamento do crédito documentário aberto a pedido da EMP02..., em benefício da aqui autora comporta uma actuação em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium nos termos do disposto no art.º 334º do Cód. Civil.
Para tanto invoca que a comunicação datada de 21 de Abril de 2021, quando a ré/apelada se dirige à ordenadora no sentido de aquela informar se renunciava às divergências constantes dos documentos - o que veio a suceder -, criou na apelante a convicção de que, havendo a aceitação das discrepâncias existentes nos documentos, o crédito documentário prosseguiria para pagamento, e não seria recusado com fundamento na verificação de divergências documentais.
Invoca que assim a ré criou na autora uma situação objetiva de confiança de que o pagamento do crédito documentário iria ser autorizado, na medida em que as divergências haviam sido aceites pela ordenadora, assim como, autorizado o respetivo pagamento. E que a decisão de recusa do pagamento do crédito documentário com fundamento em “divergências objetivas” consubstancia um comportamento contraditório levada a cabo pela ré, ferindo a confiança legítima depositada pela apelante e pela ordenadora de que o crédito documentário seria efetivamente honrado.
Também aqui não cabe razão à autora/apelante.
Dispõe o art. 334º do Cód. Civil que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Como refere o Professor Antunes Varela, in “Revista de Legislação e de Jurisprudência”, 128º, 241, este instituto é uma das válvulas de segurança mais úteis do sistema, que, ao lado da ‘correcção do enriquecimento sem causa’, da redução equitativa da cláusula penal excessiva e de outras soluções afins, melhor garantem a sobrevivência de inúmeros ‘direitos subjectivos’, “não obstante o seu carácter essencialmente formal, perante o sentimento implacável da justiça que habita permanentemente no espírito do homem de recta consciência”.
Afirma o citado Professor que o artigo 334.º “aponta de modo inequívoco para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente, a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo”.
Tal instituto relaciona-se com situações em que a invocação ou o exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça.
Pretende-se ainda com ele assegurar expectativas e direccionar condutas (uma das funções primárias do Direito): assegurar, por um lado, a confiança fundada nas condutas comunicativas das «pessoas responsáveis», assente na própria credibilidade que estas condutas reivindicam; e, por outro, dirigir e coordenar dinamicamente a interacção social e criar instrumentos aptos a dirigir e coordenar essa interacção, por forma a alterar as possibilidade de certas condutas no futuro. Ambas as funções relacionam-se com aquela «paz jurídica» que, ao lado da «justiça» é referida como uma das expressões da própria «ideia de direito» (Baptista Machado, Obra Dispersa, Volume I, Scientia Jurídica, Braga, 1991, pág. 346).
Na tipologia do abuso de direito sobressai o venire contra factum proprium, que equivale a dar o dito por não dito e radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, ao pressupor duas atitudes antagónicas, sendo a primeira (factum proprium) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé.
Ensina o Prof. Baptista Machado (in “Obra Dispersa”, I, 415 e ss) o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.
Todavia, para que o venire se verifique não basta a existência de condutas contraditórias. É sempre necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que com base nessa situação de confiança a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis, isto é, que tenha investido nessa confiança.
Ou seja, tem de existir uma situação de confiança, justificada pela conduta da outra parte e geradora de um investimento, e surgir uma actividade dessa parte, a destruir a relação negocial, ao arrepio da lealdade e da boa fé negocial, esperadas face à conduta pregressa.
Na situação dos autos, não resulta da factualidade apurada qualquer comportamento adoptado pela ré/apelada, após a emissão do crédito documentário em causa, que pudesse criar na autora a confiança, a expectativa de que iria solver esse crédito quaisquer que fossem as irregularidades dos documentos a entregar ou, mais tarde, em face das detectadas irregularidades.
Em momento algum a ré/apelada afirmou ou sugeriu que, caso a EMP02... aceitasse as alterações, pagaria o crédito em causa.
Em momento algum, a ré/apelada abdicou de tomar a sua própria decisão, em função das discrepâncias detectadas na documentação entregue pela autora.
E o facto de a ré/apelada ter instado o ordenador do crédito documentário sobre se aceitava ou não as divergências documentais constatadas, não é fundamento para que a autora/apelante confiasse que a ré aceitaria a posição do ordenador no sentido de pagar o valor em causa, apesar das divergências assinaladas e da falta de documentos, como o CMR e a listagem de embalagem.
A tal acresce que também não resulta da factualidade dos autos que a apelante tenha feito qualquer investimento na confiança que lhe pudesse ter criado a decisão da ré de “ouvir” o ordenador.
Improcede, pois, totalmente, a apelação.
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º n.º 7 do CPC):

I.O que importa no crédito documentário são os documentos cuja entrega, em conformidade, pelo beneficiário ou por um seu representante, determina a obrigação do banco emitente, ou do banco confirmador, se o houver, de honrar o crédito.
II. Tendo o banco emitente do crédito documentário, instado o ordenador sobre as anomalias/divergências detectadas nos documentos entregues pela beneficiária, a aceitação por aquele das divergências, não inibe o banco emitente de recusar o pagamento do crédito quando, para além de divergências, está em causa a falta de entrega dos documentos (CMR e lista de embalagem) constantes da carta de crédito.
III. Não resulta das RUU, que o banco emitente fique, neste contexto, obrigado a honrar o crédito.
IV. Não sendo uma situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal Superior apreciar uma questão nova.
V. Para que se verifique o venire, tem de existir uma situação de confiança, justificada pela conduta da outra parte e geradora de um investimento, e surgir uma actividade dessa parte, a destruir a relação negocial, ao arrepio da lealdade e da boa fé negocial, esperadas face à conduta pregressa.
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V. Decisão.

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, e consequentemente confirmam a decisão recorrida.
Custas do recurso pela autora/apelante.
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                            Guimarães, 1 de Fevereiro de 2024

Assinado electronicamente por:
Fernanda Proença Fernandes
Jorge dos Santos
Elisabete Moura Alves
 (O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações/transcrições” efectuadas que o sigam)