Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
611/15.0PBGMR.G1
Relator: MÁRIO SILVA
Descritores: ACUSAÇÃO
AUSÊNCIA DE FACTOS CRIMINOSOS
REJEIÇÃO
ARTº 311º DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/25/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1- A rejeição da acusação manifestamente infundada por os factos descritos não constituírem crime, tem que ser absolutamente incontroversa e inquestionável, sob pena de violação do princípio do acusatório.

2- Um pré-juízo divergente formulado pelo Juiz e apoiado na análise do contexto em que ocorreram os factos, não preenche tal requisito.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1. No processo comum (singular) com o nº 611/15.0PBGMR, a correr termos no Tribunal Judicial da comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães – Juiz 1, foi proferido despacho de saneamento do processo, ao abrigo do disposto no art. 311º do Código de Processo Penal, datado de 09/07/2018, do seguinte teor (transcrição parcial):

“I - O tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal.
(...)
Face ao exposto, decido:
- Rejeitar a acusação particular deduzida pelo assistente C. A., bem como o PIC, quanto aos factos referentes aos imputados crimes de injúria, e em consequência, determinar o arquivamento dos autos, nesta parte.
Custas a cargo do assistente, com taxa de justiça que se fixa em 2 U.C.
(…)

Face ao exposto, decido:

- rejeitar a acusação pública deduzida pelo M°P°, e acompanhada pelo assistente C. A., bem como o PIC, e em consequência, determinar o arquivamento dos autos, nesta parte.
Sem custas.
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Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
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II — Registe e autue corno processo comum com intervenção do tribunal singular.
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III — Recebo a acusação deduzida pelo M°P° contra o arguido C. A., pelos factos descritos a fis. 411 e segts. dos autos, subsumíveis ao tipo de crime cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido nos termos e para os efeitos do disposto no art° 313°, n° 1°, al. a) do Código de Processo Penal.
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IV — Para a realização da audiência de julgamento, neste tribunal, designo o próximo dia 19/03/2019, às 10.00, e, em caso de adiamento nos termos previstos no art° 333°, n° 1° do CPP, na redacção conferida pelo DL. 320-C/00, de 15/12, ou para audição dos arguidos a requerimento do respectivo advogado ou defensor nomeado ao abrigo do n°3 do aludido preceito legal, designo o próximo dia 26/03/2019, pelas 10h00.”
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2 – Não se conformando com a decisão, o assistente C. A. interpôs recurso da mesma, oferecendo as seguintes conclusões (transcrição):

1.ª O Digno Magistrado do Ministério Público deduziu acusação pública contra a arguida A. G. imputando-lhe a prática de factos que entende serem susceptíveis de integrar o crime de coacção, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 72.º, 73.º e 154.º, n.ºs 1 e 2, todos do C.P., acompanhado parcialmente pelo aqui assistente.
2.ª O assistente C. A. deduziu contra a arguida A. G. acusação particular pela prática em autoria material e concurso real de três crimes de injúrias, todos eles previstos e punidos nos termos das disposições conjugadas dos artigos 181.º, n.º 1, 13.º, 14.º e 77.º do Código Penal e formulou pedido de indemnização cível.
3.ª Não houve instrução nos termos do artigo 286.º e ss. do Código de Processo Penal.
4.ª Nos termos do art.º 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do C.P.P., o Meritíssimo Juiz Presidente, em despacho de saneamento, entre o mais, decidiu rejeitar a acusação pública deduzida pelo M.P., e parcialmente acompanhada pelo assistente C. A., e rejeitar igualmente a acusação particular deduzida pelo assistente C. A., bem como o PIC, e em consequência determinar o arquivamento dos autos, nestas partes.
5ª. É deste douto despacho que vem interposto este recurso.
6.ª Quanto ao não recebimento da Acusação Publica cumpre apreciar se a acusação pública padece dos vícios apontados da falta de esclarecimento de “quais as expressões que poderiam em concreto ser subsumidas no mal importante que o tipo legal impõe” isto quanto ao elemento objectivo e,
7.ª Importa igualmente apreciar se quanto ao elemento subjectivo a douta acusação publica não detalhou suficientemente o prreenchmentio factiual dele, bastando-se com meras generalidades.
8.ª isto por forma a preencher objectiva e subjectib«vãmente o tipo legal de crime do artº. 154.º do CP – coacção.
9.ª A acusação publica (acompanhada nesta parte pelo assistente) foi feita por transcrição e decalque email’s e sms’s trocados entre assistente e arguida, e necessariamente contém todos os factos necessários à imputação do crime de coação à arguida.
10.ª Separa-los, desconectá-los e tira-los desse contexto, seria desvirtuar a conduta da arguida e consequentemente esbater um comportamento integrado por factos continuados e complexos que no seu conjunto preenchem o tipo legal de crime que é o da coacção.
11.ª A materialidade objectiva do comportamento da arguida que se lê na transcrição das mensagens e os elementos de prova juntos ao processo de inquérito, e indicados na douta acusação pública, indiciam comportamento por parte da arguida revelador da intenção de coartar a liberdade do assistente.
12.ª Os elementos de prova devem ser sindicados, enquadrados e valorados como constituindo indícios fortes que tornam provável e previsível a condenação da arguida em julgamento, e por isso, mais que suficientes para serem classificados como indícios fortes para fundamentarem acusação e consequentemente o recebimento dela.
13.ª O elemento subjectivo, extrai-se automaticamente da mera materialidade do comportamento da arguida.
14.ª O Digno Magistrado do Ministério Publico não escreveu meras generalidades, detalhou e verteu para a acusação factos, o modo, o tempo, o lugar e a concreta violação dos interesses criminalmente protegidos, bem como o perfeito conhecimento por parte da arguida de ser ilícito o comportamento dela.
15.ª A douta a acusação pública contem todos os factos objectivos e subjectivos necessários à verificação em concreto da prática do crime de coacção.
16.ª Nela estão detalhados os factos e o contexto deles que configuram violência psicológica e ameaça com mal importante, que configuram o constrangimento do assistente a comportar-se de uma determinada maneira, sob pena de lhe ocorrer algum ou alguns males, designamente a destruição de vida (aqui até no limiar do crime de ameaça) perda de oportunidades de trabalho, tudo feito por forma a impor-lhe uma determinada opção de vida/acção, sob a cominação de, não o fazendo, grandes males lhe acontecerem.
17.ª Quanto ao não recebimento da acusação particular, a questão que se nos coloca é a seguinte: se nos for dirigida a expressão: “Vai-te foder (…), homens latinos (…) que depois de foderem as raparigas vão chorar para a mama (…), “ Ganha tomates” é para nós objectivamente ofensiva e injuriosa?
18.ª Ou então, aqueles ditos e o sentimento que provocam a quem são dirigidos não é o de ofensa à honra, respeito e consideração das pessoas, ou não passam de um mero incomodo, um aborrecimento, uma contrariedade, não merecedor de tutela jurídica?
19.ª Se se tratar de um mero incomodo e contratiedade, então o homem comum terá de se resignar, conformar e aceitar, pois faz parte da “vivencia em sociedade” e das suas “ contrariedades”.
20.ª A expressão “vai-te foder”, e as restantes vertidas na acusação particular, reduzidas a escrito, pensadas, e enviadas, revelam premeditação e a intenção de ofender quem a recebe e a lê, o destinatário delas, ou seja o assistente.
21.ª As expressões vertidas na acusação particular são comportamentos que, no nosso modo e postura de ver o mundo e a vida, são objectivamente e subjectivamente ofensivos, injuriosos, atentadores da honra e consideração, merecedores de censura tutelada criminalmente.
22.ª Não são meros incómodos e/ou aborrecimento, muito menos um enquadráveis no direito fundamental de liberdade de expressão, que é o direito de emitir livremente uma opinião e não o direito de chamar nomes e tratar mal as pessoas.
23.ª O não recebimento da(S) acusações deduzidas nos presentes autos não se enquadram na previsão do art.º 311.º, n.º 2 alínea a) e do n.º 3, alínea d) do Código de Processo Penal.
24.ª A acusação apenas será manifestamente infundada, na definição legal, se o entendimento sobre a irrelevância penal dos factos nela narrados for pacífico, indiscutível, aceite como válido sem objecções na doutrina e na jurisprudência - situação em que o julgamento, como nas demais alíneas daquele preceito, é previsivelmente inútil face à manifesta inviabilidade ou improcedência da acusação.
25.ª A estrutura acusatória do processo impede que o julgador se confunda com o acusador.
26.ª A alínea d), do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal não visa dar guarida a um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório - o tribunal é sempre livre de aplicar o direito (princípio da livre aplicação do direito), mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando esta for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime, o que não é manifestamente o caso em concreto.
27.ª Ou seja, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada.
28.ª Ao contrário do que se escreve no douto despacho, não estamos perante um “excesso de sensibilidade de determinadas pessoas perante afirmações que lhe sejam dirigidas ou nas quais visadas”.
29.ª Nem podemos entender que estamos perante uma simples situação de que “a vivência em sociedade traz contrariedades”.
30.ª A posição defendida no despacho recorrido sobre o mérito da causa, e que levou à rejeição da(s) acusações, apresenta-se controversa, como o demonstra a jurisprudência de tribunais superiores em sentido oposto.
31.ª E se os factos narrados na(s) acusações constituem crime segundo uma corrente jurisprudencial significativa, não pode aquela ser considerada como manifestamente infundada.
32.ª O que não ocorreu no presente caso, em que o Exmo. Juiz efectuou uma interpretação (jurídica) divergente de quem deduziu a acusação publica e particular.
33.ª Violando o princípio do acusatório - conduzindo a uma manifesta interferência no âmbito das competências da entidade a quem cabe acusar por parte de quem está incumbido do poder de julgar, pois tal conduta traduziu-se na formulação de um (pré) -juízo de julgamento sobre o mérito da acusação.
34.ª Violou o Exmo. Juiz Presidente, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no artigo no artigo 311º, nº 2 alínea a) e nº 3, al. d), do Código de Processo Penal, que deveria ter sido interpretado no sentido da inexistência de fundamentos de rejeição.
35.ª Não sendo inequívoca a tese da atipicidade da conduta imputada à arguida no despacho sob censura, não pode a acusação ser taxada de manifestamente infundada e ser liminarmente rejeitada, naquele momento processual, impondo-se que o processo prossiga para julgamento.
36.ª O douto despacho recorrido violou, na rejeição de ambas as acusações, por erro de interpretação e aplicação, os preceitos do Código Penal e Processo Penal mencionados nestas conclusões e ainda, quanto ao pedido de indemnização cível o disposto nos artigos 483.º, n.º 1, 426.º , n.º 1 e 566.º , n.ºs 1 e 3, todos do Código Civil.
37.ª Todos estes preceito deveriam ter sido interpretados e aplicados por forma a que, quer a douta acusação publica, quer a particular, tivessem sido recebidas e designada dia e hora para julgamento da matéria nelas constante.

Nestes termos e com o douto suprimento deve dar-se provimento ao presente recurso e em consequência revogarse o douto despacho recorrido, ordenando que seja substituído por outro que:

a) Receba a acusação pública na parte em que acusa a arguida A. G. pela prática de um crime de coação, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22.º, 23.º, 72.º, 73.º e 154.º, n.ºs 1 e 2 todos do C.P., todos do Código Penal.
b) Receba a acusação particular que acusa a arguida A. G. da prática em autoria material e concurso real de três crimes de injúrias, todos eles previstos e punidos nos termos das disposições conjugadas dos artigos 181.º, n.º 1, 13.º, 14.º e 77.º do Código Penal.
c) Admita o PIC deduzido.

Tudo por ser de DIREITO e de JUSTIÇA!

3 – A Exma. Procuradora-Adjunta respondeu ao recurso, mas apenas no que toca ao imputado crime de coacção tentado, defendendo a procedência do mesmo e o prosseguimento dos autos com o recebimento da totalidade da acusação (pública) deduzida.
4 – Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que:

- o crime imputado à arguida na acusação pública é o de perseguição, na forma tentada, p. e p. pelo art. 154º-A, nºs 1, 3 e 4, do Cód. Penal, e não no art. 154º (coacção) como, por mero erro grosseiro de escrita, se consignou, o que pode e deve ser corrigido;
- deve ser dado provimento ao recurso interposto pelo assistente no que concerne ao referido crime de perseguição, ordenando-se o recebimento da acusação pública nessa parte;
- deve improceder o recurso no que toca aos crimes de injúria imputados na acusação particular, por os factos descritos não integrarem qualquer ilícito.
5 – No âmbito do disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o assistente/recorrente C. A. apresentou resposta, aderindo ao parecer do Ministério Público quanto ao crime de perseguição e pugnando pela procedência do recurso quanto aos crimes de injúria.
6 – Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, do Código de Processo Penal.
* * *
II – Fundamentação

1 - O objeto do recurso define-se pelas conclusões que os recorrentes extraíram da respetiva motivação - artº 412º, n1, do Código de Processo Penal e jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ nº 7/95, de 19/10, publicado no DR de 28/12/1995, série I-A -, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com a nulidade de sentença, com vícios da decisão e com nulidades não sanadas - artigos 379º e 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal (cfr. Acórdãos do STJ de 25/06/98, in BMJ nº 478, pág. 242; de 03/02/99, in BMJ nº 484, pág. 271; Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, págs. 320 e ss; Simas Santos/Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3ª edição, pág. 48).

2 - A questão a apreciar é, somente, se os factos constantes das acusações (pública e particular) integram a prática dos imputados (ou de qualquer outro) crimes.

3Fundamentação constante do despacho recorrido (transcrição):

lI - Fis. 440 a 443: Nos termos do disposto no art,° 311°, n.° 2, al. a) do C,P.P., se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.

Para efeitos do disposto naquele preceito, considera-se a acusação manifestamente infundada se os factos nela descritos não constituírem crime ( art° 311°, n.° 3, al. d ) do C.P.P.). Isto posto, vejamos quais os factos cuja prática é imputada ao arguido. Na acusação de fis. 440 e ss., no que agora interessa, a arguida é acusada de ter proferido, nomeadamente as seguintes expressões, dirigindo-se ao assistente “Vai-te foder(...), homens latinos (...), que depois de foderem as raparigas vão chorar para a mamã, Então eu estarei na tua casa daqui a 1 hora e dizes-me isso na minha cara não no fb! Ganha tomates!”.

Estes são os factos que a assistente entende serem suficientes para integrar a prática do ilícito criminal que imputa ao arguido.

O M°P° não acompanhou a acusação particular — cfr. fis. 478.

Cumpre apreciar:

Nos termos do disposto no art.° 181°, n.° 1 do C.P., é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias quem injuriar outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração.

A questão que aqui se nos coloca é a de saber se a afirmação produzida pelo arguido, de acordo com o que vem descrito na acusação é suficiente para fundamentar a prática de um crime de injúria.

O bem jurídico que a norma em questão visa tutelar é a honra ou a consideração.

Na definição dada pelo Prof. Beleza dos Santos ( in R.L.J, Ano 92°, Pág. 167 — Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e injúria ) honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa, com legitimidade, ter estima por si e pelo que vale, sendo a consideração aquele conjunto dc requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou desprezo públicos.

Ora, da matéria de facto descrita na acusação particular, não cremos que resulte ofendido qualquer destes bens jurídicos, não assumindo, a nosso ver, gravidade suficiente, susceptível de criar uma ofensa.
O direito penal (última ratio) não se destina a tutelar o eventual excesso de sensibilidade de determinadas pessoas perante afirmações que lhes sejam dirigidas ou nas quais sejam visados. Antes pretende punir factos que sejam objectivamente graves e geradores de ofensas a bens juridicamente protegidos. A vivência em sociedade traz contrariedades, normais, por todos sentidas, sem que isso seja, todavia, bastante para fundamentar a prática de ilícitos criminais. Como bem explanou Beleza dos Santos «nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível (...).“ V. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 92°, pág. 167.

Importa distinguir o essencial do acessório, distinguir o crime do aborrecimento, distinguir o que é grave do que não tem importância suficiente para fundamentar a condenação pela prática de uma infracção criminal, ainda que tenha alguma carga pejorativa, o que pode configurar uma grosseria sem dignidade penal. Há, ainda, que considerar a liberdade de expressão como direito fundamental.

Tendo presentes as definições de honra e consideração a que atrás fizemos referência, cremos que as afirmações alegadamente dirigidas ao assistente não são de todo suficientes para o abalar moralmente, reduzindo a sua auto-estima, nem a faz ser alvo de falta de consideração ou desprezo públicos, pelo que não se encontra preenchida, objectivamente, a previsão do art.° 181°, n.° 1 do C.P..

Concluindo, somos a entender que os factos constantes da acusação particular não configuram a prática de qualquer crime por parte da arguida, nos termos do disposto no art.º. 31 1°, n.° 2, al. a) e n.° 3, al. d) do C.P.P.”.
(…)
III - O Ministério Público deduziu acusação contra A. G., imputando-lhe a prática de factos que entende serem susceptíveis de integrar um crime de coacção, na forma tentada, p. e p. pelos art.°s 22°, 23°. 72°. 73° e 154°. n°s 1 e 2 do C.P., acompanhado pelo assistente.
2. Nos termos do disposto no art.° 3 11°, n.° 2. al. a) do C.P.P., se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
Para efeitos do disposto naquele preceito, considera-se a acusação manifestamente infundada se, entre outras circunstâncias, os factos nela descritos não constituírem crime ( art° 311°, n.° 3, al. d) do C.P.P.).
3. Isto posto, vejamos os factos cuja prática é imputada ao arguido.
Concretamente, o Ministério Público alega as mensagens que constam na acusação pública, concluindo genericamente o aludido em 8° e 9° da mesma peça processual.

Estes, são, os factos que o Ministério Público entende serem suficientes para integrar a prática do ilícito criminal que imputa à arguida.

4. Cumpre apreciar:

Dispõe o art.° 154.º, n.° 1 do Cõd. Penal que “Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.” (negrito nosso)

O tipo em questão constitui o tipo fundamental dos crimes contra a liberdade de decisão e de acção.

O bem jurídico protegido pela norma é, assim, a liberdade de decisão e de acção, que são como que o lado interno e o lado externo da liberdade, respectivamente.

Através da incriminação da descrita conduta, pretendeu o legislador reprimir jurídico penalmente os ataques ou afectações ilícitas da liberdade individual, na sua vertente de liberdade de acção e decisão, acolhendo-a como bem jurídico intrassocial e tutelando-a enquanto interesse jurídico individual e próprio de cada indivíduo à imperturbada formação e actuação da sua vontade, bem como à possibilidade de, nas múltiplas formas de interacção social, tranquilamente se conformar e dispor de si próprio, dentro dos limites traçados pela lei. O tipo objectivo consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento. Assim, abrange. de acordo com Américo Taipa de Carvalho, “não só as acções que apenas restringem a liberdade de decisão e de acção — as acções de constrangimento em sentido estrito, ou seja a tradicional vis compulsiva — mas também as acções que eliminam, em absoluto, a possibilidade de resistência — a chamada vis absoluta — bem como as acções que afectam os pressupostos psicológico-mentais da liberdade de decisão, isto é, a própria capacidade dc decidir (...)“.

Dispondo-se o tipo legal convocado à tutela da liberdade de acção em geral, a conduta coagida (acção, omissão ou tolerância) pode ser toda e qualquer uma, tenha ou não relevância jurídica e/ou social.
Posto é que haja sido conseguida mediante o emprego de violência ou de ameaça com mal importante.
A violência abarca a violência física como a violência psicológica, directa ao coagido como a terceiros com proximidade existencial a este, bem como directa a coisas.

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal (...), UCE, pág. 416, A violência pode incidir sobre as coisas da vítima, como meio indirecto de agressão física ou meio de pressão psicológica (...).“

A ameaça com mal importante reconduz-se ao conceito de ameaça, pelo que as características essenciais do conceito são o mal, futuro, dependência da vontade do agente. Quanto ao mal importante tanto pode ser ilícito como não ilícito, isto é, o mal ou dano (pessoal ou patrimonial, seja este directo ou indirecto) não tem de ser, necessariamente, ilegítimo. (... )

O segundo critério orientador da definição concreta do “mal importante” é o da adequação da ameaça a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exigência do ameaçante. Isto é, só deverá considerar-se mal importante aquele mal que é, nas circunstâncias do caso concreto, susceptível ou adequado a fazer “dobrar” a vontade do ameaçado.”

In casu, o M°P° , bastou-se pela mera transposição em bloco das mensagens trocadas pela arguida e assistente, sem cuidar de, na verdade, esclarecer quais as expressões que poderiam em concreto ser subsumidas no mal importante que o tipo legal impõe — isto quanto ao elemento objectivo — parecendo querer deixar para o julgador a escolha das mesmas (numa aproximação ao inquisitório).

Depois, quanto ao elemento subjectivo, mais uma vez, basta-se com meras generalidades, nomeadamente “A arguida A. G. pela forma reiterada como contactava telefonicamente o arguido C. A., a horas diversas, perturbando quer a sua rotina diária quer o seu descanso: deslocava-se à sua residência, procurando encontrar-se com o mesmo, ou então, rondando-o bem como os seus progenitores, para controlar a sua rotina diária: dizendo que lhe destruiria a vida e o emprego, agiu com o propósito de provocar ao arguido medo e prejudicar e limitar os seus movimentos, bem sabendo que desse modo a lesava na sua liberdade pessoal, como pretendeu e conseguiu.

9. A arguida agiu sempre com intenção de, com a sua conduta, impor a C. A. que reatassem a relação de namoro, desiderato que apenas não logrou por circunstâncias alheias à sua vontade.” Com efeito, a primeira parte do trecho nada tem a ver com o crime de coacção. A segunda parte “dizendo que lhe destruiria a vida e o emprego”, é retirada do contexto (fim de relação de namoro) e alegada, como se disse, dc forma genérica, sendo que parece confundir o simples incómodo que em regra os fins de relacionamento acarretam, com provocar ao arguido efectivo medo e prejudicar e limitar os seus movimentos, devido aquela conduta. Acresce que em lado algum se vislumbra que exista uma efectiva conduta ameaçadora com um mal importante de molde a obrigar (ou tentar) o arguido a aceitar a retoma do relacionamento.

O direito penal (última ratio) não se destina a tutelar o eventual excesso de sensibilidade de determinadas pessoas perante afirmações que lhes sejam dirigidas ou nas quais sejam visados. Antes pretende punir factos que sejam objectivamente graves e geradores de ofensas a bens juridicamente protegidos. A vivência em sociedade traz contrariedades, normais, por todos sentidas, sem que isso seja, todavia, bastante para fundamentar a prática de ilícitos criminais.

Concluindo, somos a entender que os aludidos factos constantes da acusação pública não configuram a prática de qualquer crime por parte da arguida, nos termos do disposto no art.º° 311°, n,° 2, aI. a) e n,° 3, al. d) do C.P.P.”.
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III - Apreciação do recurso

O presente recurso foi interposto da decisão do Mmo. Juiz a quo que, ao proferir o despacho de saneamento do processo (art. 311º do CPP), rejeitou:

- a acusação particular - que o Ministério Público não acompanhou - deduzida pelo assistente C. A. contra a arguida A. G., pela prática de três crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1, do Cód. Penal, bem como o respectivo pedido cível de indemnização;
- a acusação pública formulada contra a mesma arguida, pela prática de um crime de perseguição (coacção), p. e p. pelo art. 154º, nº 1, 3 e 4, do Cód. Penal - que o assistente C. A. acompanhou - bem como o respectivo pedido cível de indemnização.

Constituiu fundamento para a decisão, o entendimento de que os factos constantes das acusações não configuram qualquer ilícito criminal por parte da arguida.
Passemos à apreciação das questões concretas suscitadas, com início numa questão prévia.
*
Erro de escrita

No douto parecer formulado pelo Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto nesta instância, consigna-se que o crime imputado à arguida A. G. é o de perseguição, p. e p. pelo art. 154º-A do Código Penal e não o de coacção, p. e p. pelo art. 154º do mesmo diploma legal, alegando tratar-se de erro (grosseiro) de escrita, que pode e deve ser corrigido, dado a acusação conter todos os factos integradores desse ilícito.

Transcreve-se a parte conclusiva do despacho acusatório público:

“Incorreu, pelo exposto:
- o arguido C. A. (…);
- a arguida A. G., na prática em autoria material e na forma tentada de um crime de perseguição, p. e p. pelos art. 154°, n° 1, 3 e 4, do Código Penal.”

Por sua vez, o assistente (e ora recorrente) C. A. veio declarar - fls. 8 e segs. do presente traslado - aderir parcialmente à acusação pública na parte em que é acusada a arguida A. G., imputando-lhe um crime de coacção, na forma tentada, na previsão, entre outros, do art. 154º do Código Penal.

Esta conclusão do assistente resulta do seguinte entendimento: “Julga-se haver manifesto lapso material na indicação no crime de perseguição, pois tudo leva a crer que se quis escrever crime de coacção e não crime de perseguição.”.

E justifica o assinalado lapso, por:

- os factos constantes da acusação integram os pressupostos deste tipo legal de crime;
- o crime de perseguição só foi aditado ao C. Penal pela Lei nº 83/2015, de 5 de Agosto, e com entrada em vigor em 04 de Setembro do mesmo ano;
- os factos ilícitos imputados são anteriores à entrada em vigor daquela lei, pelo que não podiam ser punidos como crime de “perseguição”.

Apreciando a questão.

Efetivamente, a acusação pública imputa à arguida A. G. a prática do crime de “perseguição”, afirmando estar previsto no art. 154º, nºs, 1, 3 e 4, do Código Penal.

Preceitua o citado art. 154º, sob a epígrafe “Coacção”:

1 – Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 – A tentativa é punível.
3 – O facto não é punível:
a) Se a utilização do meio para atingir o fim visado não for censurável; ou
b) Se visar evitar suicídio ou a prática de facto ilícito típico.
4 – Se o facto tiver lugar entre cônjuges, ascendentes e descendentes, adoptantes e adoptados, ou entre pessoas, de outro ou do mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges, o procedimento criminal depende de queixa.”.

Por sua vez, o art. 154º-A do Cód. Penal, sob a epígrafe “Perseguição”, estabelece:

1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 - A tentativa é punível.
3 - Nos casos previstos no n° 1, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição.
4 - A pena acessória de proibição de contacto com a vitima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
5 - O procedimento criminal depende de queixa.”.

Como bem assinala o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer formulado, a situação factual descrita na acusação pública preenche todos os elementos típicos do crime de perseguição, além de que só relativamente a este ilícito faz sentido a menção aos nºs 3 e 4 da norma legal.

Daí, a sua conclusão de que o lapso não ocorreu na designação nominal do tipo de crime – perseguição – mas na indicação da norma legal que o prevê – o art. 154º-A – e não o art. 154º indicado na peça acusatória.

Pressupondo, também, que foi a referência ao artigo 154º que levou o Mmo. Juiz a quo a considerar, no despacho de rejeição, tratar-se do crime de coacção.

A verdade, porém, é que o artigo 154º-A (“perseguição”) só foi aditado ao Código Penal pela Lei nº 83/2015, de 05/08, com entrada em vigor a partir de 04/09/2015.

Ora, como se alcança da acusação, os factos que consubstanciam o ilícito imputado à arguida A. G. tiveram lugar entre Janeiro e Junho de 2015, sendo o último datado de 22/06/2015, isto é, antes da entrada em vigor (e até da publicação) da norma que prevê e pune o crime de “perseguição”.

Portanto, a ter ocorrido lapso de escrita, este só pode ter sucedido na designação nominal do ilícito (e não no indicado artigo), como parece ter concluído o Mmo. Juiz a quo.

Nestes termos, importa, então, analisar o fundamento do despacho recorrido.
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Crimes de coacção e de injúria

O Mmo. Juiz a quo, após análise abstracta sobre os elementos típicos do ilícito (coacção), afastando a existência de qualquer tipo de violência, centra-se no conceito de “ameaça com mal importante”, bem como da respectiva adequação “a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exigência do ameaçante”, ou seja, aquele que é “nas circunstâncias do caso concreto, susceptível ou adequado a fazer “dobrar” a vontade do ameaçado”.

Acrescenta que o acusador não esclareceu quais as expressões que poderiam ser subsumidas no “mal importante”, limitando-se a transpor, em bloco, as mensagens trocadas entre a arguida e o assistente.

Mais acrescenta que, quanto ao elemento subjectivo – pontos 8 e 9 da acusação pública -, não passam de “meras generalidades” que nada têm a ver com o crime de coacção e com expressões retiradas do contexto – o fim do “namoro” – quando afirma que lhe “destruiria a vida e o emprego”, que nada têm que ver com provocar efectivo medo ao assistente, prejudicando-lhe e limitando-lhe os movimentos.

Conclui não se vislumbrar “uma efectiva conduta ameaçadora com um mal importante de molde a obrigar (ou tentar) o arguido a aceitar a retoma do relacionamento”.
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Quanto ao crime de injúria, dispõe o art. 181º, nº 1, do Cód. Penal que: “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido (…)”.

O Mmo. Juiz a quo manifesta o entendimento de que as expressões “Vai-te foder (…), homens latinos (…), que depois de foderem as raparigas vão chorar para a mamã (…) Ganha tomates!”, não são suficientes para expor o destinatário das mesmas à falta de consideração e desprezo públicos.

Acrescenta que o “direito penal (ultima ratio) não se destina a tutelar o eventual excesso de sensibilidade de determinadas pessoas (… ) ainda que tenha alguma carga pejorativa, o que pode configurar uma grosseria sem dignidade penal.”.

Percorrida a peça acusatória, designadamente as mensagens de texto e de correio electrónico transcritas nos pontos 5 e 6, apenas se conseguem destacar, com eventual interesse para a decisão – acerca de ambos os crimes -, as seguintes:

- ”Então eu estarei na tua casa daqui a 1 hora e dizes-me isso na minha cara não no fb (Facebook)! Ganha tomates!”;
- Tu dás-me paz com as pessoas, então eu dou-te paz com outras coisas. Se tu me tratares, eu farei igual. Algo por algo. …”
- “… Tu não tens coração. Eu quero ajudar-te e tu insultaste-me. Estarás fodido com os teus amigos, família e emprego no futuro. Eu não quero isso para ti. Mas tu queres. É melhor ser assim e perder tudo? Eu sei o que é perder tudo por tua causa. Eu não quero o mesmo para ti.”
- “Eu vou colocar todas as provas se tu me tratares desta forma e mesmo depois da minha proposta tu não queres ajuda para pôr isto sem problemas. Tu começaste a guerra. Eu vou-me defender. …”
- Eu tenho muitas provas de como me bateste. Eu gravei no sábado como tu me bateste e insultaste em GS. 23 minutos. Ontem eu gravei os teus pais como eles me insultaram e como têm pensamentos doentios. Isto é anormal. Tu vais pagar no tribunal por bater. Se queres mais casos, luta. Tu disseste que eles mentiriam por ti. Tenta. Eu tenho estas palavras gravadas também. Eu quero justiça com o bater. Nada mais. Eu não quero estar contigo e o teu dinheiro. Eu não te quero ver. Tu podes bater-me. Fica longe de mim.”
- “Vai-te foder e toda a tua vida. Tu destruíste a minha, eu destruí a minha porque te quis ajudar. A. G.”
- “… Tu vais receber outros papéis do meu médico. Tu fodeste-rne aqui como me disseste. Mas eu também te posso foder depois do que tu me fizeste. EU NÃO ME IMPORTO. Eu posso mostrar para toda a gente o que tu queres. A. G.”
- “Toda a gente na Polónia ouviu falar sobre os homens latinos. Nós apenas servimos para ser fodidas por eles, não para ser amadas. E tu és assim. Foder raparigas e depois ir chorar para a mamã.”
- “Eu vou-te encontrar em todo o lado. Não te preocupes! Tu vais pagar pelo que eu sofri contigo todo este tempo! Eu odeio-te porque tu brincaste com a minha vida e isto não é nada para ti. Eu estava a pensar em fazer um aborte (aborto?). Nem pensar! Não me escrevas. Espera pela justiça da vida. Não poderias ser humano para mim, tu usaste-me por isso agora eu vou ser igual. Eu nunca te vou perdoar e todos aqui e na Polónia vão saber o que tu fizeste. E tu vais pagar com dinheiro no mínimo 25 anos. Só porque tu me mentiste durante todo este tempo! ! ! A. G.”
- “… Eu nunca ouvi falar sobre algum homem que tenha ganho em tribunal um caso de dinheiro para criança. Vai lá e vais voltar rápido para Portugal como um zero! Tu vais perder tudo lá porque esta é a minha frente (sic). Tu és apenas um homem latino lá! Eu vou provar tudo porque eu tenho tudo o que preciso para te foder lá como tu me fodeste aqui. Eu sou tua inimiga agora. Eu não vou chorar mais. Tu deste-me poder para lutar contigo. …”
- “… Hoje vou dormir na estação de comboios e amanhã vou tentar arranjar sítio para dormir grátis. Sobre a Polónia eu trabalhei para o governo com empregos então os meus colegas são capazes de verificar se o teu nome vai estar em alguma companhia na Polónia. Se tu fores lá tu vais ter muitos problemas comigo. Eu não tenho medo de te colocar em tribunal e fazer merda como tu me fizeste aqui. …”.
Do teor das mensagens, não restam dúvidas de que a “perfeita” qualificação jurídica da conduta da arguida seria no crime de perseguição. Porém, já se analisou a impossibilidade da mesma.
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O Mmo. Juiz a quo, aquando da prolação do despacho de saneamento do processo, podia extrair tais conclusões?

Preceitua o art. 311º do CPP (na parte pertinente à presente análise):

“1 – Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 – Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
(…)
3 – Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
(…)
d) Se os factos não constituírem crime.” (sublinhados nossos).

Ora, como se refere no Acórdão do TRP de 18/01/2017 (processo nº 984/15.4T9VFR.P1, disponível nas bases de dados da DGSI): “Decorre deste normativo que quando o juiz recebe o processo para julgamento tem de o sanear, ou seja, certificar-se da inexistência de nulidades ou de questões prévias que obstem á apreciação do mérito da causa. Ademais se não tiver havido instrução o juiz pode ainda rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada. Este conceito encontra-se densificado nas diversas alíneas do número 3 e, para o que aqui nos importa, sê-lo-á, quando os factos dela constantes não constituírem crime.

Foi exactamente este o entendimento tido no tribunal recorrido e que congruentemente levou à rejeição da acusação.

No entanto como tem sido entendido na jurisprudência, esta conclusão tem de se impor como inquestionável, ou seja, a leitura que se fizer dos factos não pode suscitar dúvidas a ninguém, de que aqueles concretos factos imputados ao arguido não constituem crime.”.

Também o TRL, em acórdão de 07/12/2010, citado naquela decisão (processo 475/08.0TAAGH.L1-5), concluiu:

“I - Quando o juiz rejeita a acusação por manifestamente infundada considerando que os factos não constituem crime mediante uma interpretação divergente de quem deduziu essa acusação viola o princípio acusatório.
II – Face a este princípio, ao proferir o despacho a que alude o art. 311°, n° 2 CPP, o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada.
Ill – Uma opinião divergente, como a manifestada pelo M.°. Juiz recorrido, apoiada numa análise do contexto em que ocorreram os factos, por muito válida que seja, não assegura o princípio do acusatório, conduzindo a uma manifesta interferência no âmbito das competências da entidade a quem cabe acusar, por quem está incumbido do poder de julgar, pois traduz-se na formulação de um pré-juízo pelo juiz de julgamento sobre o mérito da acusação.”

Ora, das mensagens supra transcritas, verifica-se que a arguida, dirigindo-se ao assistente, afirmou “vai-te foder”, “homens latinos (…) que depois de foderem as raparigas vão chorar para a mamã”, “ganha tomates”, “Estarás fodido com os teus amigos, família e emprego no futuro”, “Eu vou-te encontrar em todo o lado. Não te preocupes! Tu vais pagar pelo que eu sofri contigo todo este tempo! (…) Eu nunca te vou perdoar e todos aqui e na Polónia vão saber o que tu fizeste”, “Vai lá e vais voltar rápido para Portugal como um zero! Tu vais perder tudo lá porque esta é a minha frente (sic). Tu és apenas um homem latino lá! Eu vou provar tudo porque eu tenho tudo o que preciso para te foder lá como tu me fodeste aqui. Eu sou tua inimiga agora. Eu não vou chorar mais. Tu deste-me poder para lutar contigo. …” e “Sobre a Polónia eu trabalhei para o governo com empregos então os meus colegas são capazes de verificar se o teu nome vai estar em alguma companhia na Polónia. Se tu fores lá tu vais ter muitos problemas comigo. Eu não tenho medo de te colocar em tribunal e fazer merda como tu me fizeste aqui. …”.

Destas expressões, impõe-se concluir que assiste razão ao recorrente.

Na verdade, do teor das mesmas não pode concluir-se, de modo inequívoco e incontroverso e sem suscitar dúvidas a ninguém, que elas não sejam injuriosas ou ameaçadoras.

Tal conclusão só pode obter-se mediante a formulação de alguns “pré-juízos” sobre o mérito da acusação, os quais devem ficar reservados para a fase posterior à produção de prova.

Assim, mal andou o Tribunal “a quo” ao rejeitar as acusações, que devem ser recebidas, seguindo-se os posteriores termos.
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IV – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo assistente C. A., revogando o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que receba as acusações e ordene a normal tramitação posterior.
Sem custas.
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários – artigo 94º, nº 2, do Código de Processo Penal).
Guimarães, 25 de Fevereiro de 2019

(Mário Silva)
(Maria Teresa Coimbra)