Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
304/17.3T8PTL-G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
MINISTÉRIO PÚBLICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I A intervenção do MP nos processos de insolvência, nomeadamente a legitimidade para recorrer, para além dos casos expressamente previstos, terá de ser aferida em função dos interesses públicos subjacentes à decisão, ou da defesa da legalidade.
II Não terá por isso legitimidade para recorrer quando o que está em causa é a divergência interpretativa do artº. 23º do EAJ.
Decisão Texto Integral:
I RELATÓRIO.
           
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

Nos presentes autos foi proferido despacho que, além do mais, fixou a remuneração do Administrador de Insolvência (AI) nos seguintes termos:
“Importa fixar a remuneração do AI, o que obrigará, entre o mais, a analisar e aferir da bondade dos critérios e cálculos efectuados pelo mesmo.---
Desde logo, serão aplicáveis as normas introduzidas pela Lei n.º 9/2022 de 11 de Janeiro, referentes ao regime remuneratório dos administradores judiciais.---
Ora, e nos termos conjugados do disposto nos art.ºs 23.º e 29.º do EAJ, o administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos actos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de € 2.000,00, sendo paga em duas prestações de igual montante, vencendo-se a primeira na data da nomeação e a segunda seis meses após tal nomeação, mas nunca após a data de encerramento do processo. E, auferirem ainda aqueles uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes: (a) 10% da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor; (b) 5% do resultado da liquidação da massa insolvente.---
Aqui chegados e atendendo ao cálculo efectuado nos autos pelo AI, desde logo, “considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência” [n.º 6 do art.º 23.º do EAJ], sendo que “ o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles” [n.º 7 do art.º 23.º do EAJ].-
Ora, em cumprimento do disposto no art.º 23.º, n.º 4, al. b) do EAJ, aplicou-se a taxa de 5% sobre o resultado da liquidação, no valor de € 144.596,71, o que resultou num produto de € 7.229,84, a solver ao mesmo a esse título.---
Entretanto, a AI indicou, ainda, em função do disposto no n.º 7º do mesmo art.º 23.º do EAJ, o factor de majoração de 5% incidente sobre o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, de € 133.244,01, o que resultou num produto de € 6.662,20 [€ 133.244,01 x 5%]. Segundo entendemos, efectivamente, o cálculo apresentado pelo AI mostra-se correcto, na medida em que leva em conta o efectivo grau de satisfação dos créditos, atendendo ao valor total das receitas e das despesas e à sua efectiva diferença, da qual resultará entretanto a respectiva distribuição pelos credores atendendo em concreto à proposta de distribuição já apresentada.---
Por conseguinte, fixa-se a remuneração variável no valor calculado pelo AI, autorizando-se o seu pagamento por levantamento da massa, o que deverá ser comprovado nos autos.”
*
O M.P. apresentou recurso, alegando a sua legitimidade para o efeito no requerimento de interposição do seguinte modo:

“O Ministério Público nesta comarca, em representação própria e do Estado-Comunidade, vem apresentar as alegações de recurso oportunamente interposto nos autos.
A. Legitimidade de intervenção do MºPº no recurso
Sendo certo que em boa parte das situações processuais, o MºPº intervém na qualidade de representante do Estado enquanto Administração, tipicamente representando a Fazenda Pública, no que respeita a reclamação de créditos devidos por tributos, a verdade é que o MºPº tem no processo de Insolvência outras atribuições e funções.
Nos temos constitucionais o MºPº representa o Estado e os interesses que a lei determinar, bem como a legalidade democrática ( artº 219º nº 1 da CRP).
Nos termos da Lei, mormente do respectivo Estatuto, no artº 1º al m) da Lei n.º 2/2020, de 31/03, compete ao MºPº, além do mais:
m) Intervir nos processos de insolvência e afins, bem como em todos os que envolvam interesse público.
Tais disposições conferem ao MºPº a possibilidade de intervenção em processos de Insolvência não só como representante de interesses da Administração Pública do Estado, no caso da Fazenda Pública, como também a intervenção em prol de interesses colectivos de outra natureza, mormente interesses colectivos que nesse caso implicam a intervenção a título principal e por direito próprio.
No domínio específico do processo de insolvência o MºPº intervém como parte legítima para requerer insolvências, em representação do Estado e para aferir a legalidade de constituição de sociedades comerciais compete ao MºPº a faculdade de requerer a dissolução e liquidação em casos justificados, junto das Conservatórias respectivas.
Compete ainda ao MºPº nessa qualidade de representante de interesses colectivos a apreciação, nos processos de insolvência, da natureza culposa ou fortuita das respectivas insolvências.
Assim, como refere Catarina Serra, em Lições de Direito de Insolvência, Almedina, 2018, pag. 119, “além do poder de acção que lhe é atribuído para defesa dos interesses de carácter patrimonial do Estado e de outros credores públicos e deve ser exercido em representação destes últimos, o Ministério Público é titular de um poder de acção próprio, orientado para a defesa de interesses públicos de tipo diverso, associados, designadamente, aos valores do crédito e da economia.”
Nesse sentido a mesma autora considera que a alusão ao MºPº no artº 20º nº 1 do CIRE terá essa dimensão ampla, devendo a mesma ser “interpretada como uma possibilidade de acção para a defesa exclusiva daqueles interesses de tipo diverso” a que se refere o artº 13º nº 1 do CIRE.
No caso concreto o MºPº interveio nessa qualidade e na defesa de interesses colectivos, o que lhe está legalmente garantido, mesmo em processos de insolvência.
Entender o contrário significaria que o MºPº estaria sempre ao serviço dos interesses do Estado-Administração, no caso da Fazenda Pública porque tal destrinça e respectiva limitação de actuação processual não se evidencia como tendo suporte legal.
Para além do mais, como se referiu porque o MºPº no âmbito dos processos de natureza falimentar ou de insolvência actua noutras vestes, em diversas circunstâncias.
O Ministério Público na qualidade de representante de interesses próprios e do Estado enquanto tal, está isento de pagamento de custas, mormente taxa de justiça por tal apresentação de peça processual- artº 4º nº 1 al. a) RCP.”

Após a respetiva motivação, termina o recurso com as seguintes:
“CONCLUSÕES.

1. O MºPº, neste caso intervém como titular de interesses colectivos e da Comunidade e deverá assim ser entendido como interventor na acção e na respectiva peça processual.
2. O despacho que determina a fixação da remuneração variável atribuível à A.Insolvência e do qual se recorre, reporta-se ao cálculo efectuado pelo próprio Administrador de Insolvência.
3. Tal cálculo evita a contabilização da percentagem de créditos satisfeitos na insolvência, atendo-se apenas ao grau de satisfação de créditos sem a consequente relação entre os créditos satisfeitos e os que ficaram por satisfazer, com indicação da respectiva percentagem.
4. A contabilização de tal percentagem incidindo depois sobre o cálculo da majoração prevista no artº 23º nº 7 do EAJ resultaria em valor inferior ao contabilizado pela A.I. no cálculo apresentado nos autos e seguido pelo tribunal no despacho em recurso.
5. Tal omissão prejudicou a adequação legal de tal cálculo, implicando a violação do disposto no artº 23º nº 4, b) e 7 do EAJ.”
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O AI apresentou contra-alegações, apresentando as seguintes
CONCLUSÕES.

“A)
O Recurso apresentado pelo Ministério Público, tem apenas por objecto a discordância relativamente ao modo de cálculo da remuneração variável apresentado pelo A.I., (ora, Apelado), designadamente, no que concerne à aplicação da majoração prevista no nº. 7 do artigo 23º do E.A.J.
B)
No entendimento do Recorrente, tal cálculo evita a contabilização da percentagem de créditos satisfeitos na insolvência, atendendo-se apenas ao grau de satisfação de créditos, sem a consequente relação entre os créditos satisfeitos e os que ficaram por graduar, com a indicação da respectiva percentagem, sobre a devria incidir o cálculo da majoração prevista no nº. 7 do artigo 23º do E.A.J., resultando, desse modo, um valor remuneratório inferior.
C)
O Recorrente faz uma interpretação do nº. 7 do artigo 23º do E.A.J. que não é compatível, nem como elemento literal, nem como elemento teleológico da norma, na medida em que a remuneração alcançada nos termos do n.º 5 e 6 é majorada em 5% dos créditos satisfeitos e os créditos satisfeitos são aqueles que é possível pagar com a quantia que resta após pagamento das custas, despesas aprovadas e remuneração variável apurada nos termos dos n.ºs 5 e 6.
D)
O cálculo apresentado pelo A.I, mostra- se em consonância com a Jurisprudência vertida no Acórdão proferido pelo Ilustríssimo Tribunal da Relação e Coimbra, do qual resulta o seguinte entendimento:
“ I – Para determinação da remuneração variável a que tem direito o administrador da insolvência, ao abrigo do disposto no art. 23.º, n.º 7, do Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26-2 e alterado pela Lei n.º 9/2022, de 11-1, deve atender-se ao grau de satisfação dos créditos.
II – Assim, no cálculo da majoração importa ter em conta a percentagem de satisfação dos créditos reclamados que foram admitidos” (sic, sublinhado nosso) (Ac. Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. 318/12...., de 25/10/2022)
Termos estes em que deve o douto despacho recorrido ser integralmente mantido, fixando a remuneração variável do aqui Apelado, nos termos fixados em tal despacho.”
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O Tribunal de 1ª instância admitiu o recurso nos seguintes termos:

“Uma vez que versa sobre decisão recorrível, foi instaurado por pessoa dotada de legitimidade, para tal devidamente representada, e apresentado tempestivamente, admite-se o recurso interposto, o qual é de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo [art.º 14.º do CIRE e art.ºs 627.º, 629.º, 631.º, 637.º, 638.º, 639.º e 641.º, todos do CPC].”
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A relatora, após prévio contraditório, não admitiu o recurso, por entender que o despacho do Tribunal recorrido relativo à admissão do recurso não vincula o Tribunal “ad quem”, cabendo ao relator verificar se alguma circunstância obsta ao conhecimento do mesmo, e por no caso não reconhecer ao MP legitimidade para a sua intervenção, tudo nos termos que infra melhor constarão.
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No exercício daquele contraditório, pugnou o MP:
“…Em nosso entender e salvo o devido respeito por opinião em contrário, parece-nos que não é de aplicar no caso dos autos o requisito de recorribilidade relativo à sucumbência.
O Ministério Público, como alegado no recurso, não apresentou o recurso enquanto representante da Autoridade Tributária, mas sim no âmbito das suas atribuições e de acordo com os art.ºs 219º nº 1 da CRP e 1º da Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto ( alterada pela Lei n.º 2/2020, de 31/03 (Estatuto do Ministério Público), atribuições, entre as quais, a de:
m) Intervir nos processos de insolvência e afins, bem como em todos os que envolvam interesse público.
j) Defender a independência dos tribunais, na área das suas atribuições, e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis;
Ora a questão a decidir no recurso interposto consiste em saber qual a interpretação que deve ser dada ao artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, concretamente nos seus nºs 4, alínea b), 6 e 7 na redacção introduzida pela Lei nº 9/2022 de 11 de Janeiro.
Tal questão tem sido suscitada junto dos Tribunais Superiores mercê da sua ambiguidade e entendimentos diversos, como disso é demonstrativo os seguintes arestos dos anos de 2022 e 2023: Acórdãos da Relação do Porto, nos Processos n.ºs 2631/20.3T8OAZ-E.P1, de 11-10-2022, n.º 3454/20.5T8STS-K.P1, de 10-01-2023, n.º 1211/17.5T8AMT.P1, de 26-09-2022 Acórdãos. da Relação de Lisboa no Processo n.º 4841/20.4T8SNT-E.L1, de 07-02-2023; no Processo n.º 2051/12.3TYLSB-G.L-1, de 24-01-2023, no Processo n.º 22770/19.2T8LSB-F.L1-1, de 20-12-2022, no Processo n.º 7269/14.1T2SNT-F.L1-1, de 20-12-2022, no Processo n.º 415/13.4TYLSB-E.L1-1, de 20-12- 2022 Acórdãos. da Relação de Coimbra no Processo n.º 462/12.3TJCBR-AF.C1, de 09-11-2022, no Processo n.º 318/12.0TBCNT-V.C1, de 25-10-2022, no Processo n.º 3947/08.2TJCBR-AY.C1, de 11-10-2022, no Processo n.º 2495/20.7T8ACB.C1, de 28-09-2022 Acórdãos da Relação de Évora no Processo n.º 1157/17.7T8OLH-M.E1, de 15-12-2022 e no Processo n.º 260/14.0TBTVR.E1, de 29-09-2022, entre outros, obtidos em www.itij.pt.
Ao aplicarem-se as normas que regem tal matéria não se decide um litígio, cumpre-se e interpreta-se a lei.
Assim, a decisão recorrida não aprecia o mérito ou procedência de um pedido controverso e ainda que se possa considerar prejudicado o interesse público em razão da incorreta interpretação e aplicação das normas atinentes, nem por isso há um decaimento com expressão patrimonial, carecendo de sentido falar-se em sucumbência.
E o Ministério Público, enquanto garante de interesses públicos e da legalidade nos termos expostos, tem legitimidade para suscitar a correcta interpretação das referidas normas.
Nestes termos e pelas razões expostas é nosso parecer que o recurso dos autos não está sujeito ao requisito da sucumbência do artigo 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, requerendo-se, pois, a sua admissão e apreciação….”
O recorrido, citando o Acórdão por nós referenciado no despacho proferido, salienta a ilegitimidade por falta de interesse em agir.
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Não se conformando com a despacho da relatora, o MP veio apresentar reclamação para a conferência, reiterando:

“Da razão do recurso interposto nos autos:
O Ministério Público interpôs recurso do despacho proferido nos autos em 26 de Janeiro de 2023, através do qual se fixou a remuneração variável ao Sr. Administrador de Insolvência em funções, por entender que o valor fixado em tal despacho não se encontra correcto, tendo sido indevidamente aplicada a fórmula prevista no art.º 23.º do Estatuto do Administrador Judicial, concretamente nos seus nºs 4, alínea b), 6 e 7 na redacção introduzida pela Lei nº 9/2022 de 11 de Janeiro.
Sucede que a Exmª Relatora, após notificação para os fins do art.º 655.º 1 do CPC, proferiu decisão de não conhecimento do recurso interposto por falta de legitimidade para o efeito por parte do MP/recorrente.
Ora, com o devido respeito que, obviamente é muito, não se pode concordar com tal decisão.
II.
Da legitimidade do MP para intervir nos processos de insolvência:
Como se clarificou nos autos e se alegou no recurso interposto, o Ministério Público, não o interpôs enquanto representante da Autoridade Tributária, mas sim no âmbito das suas atribuições e de acordo com os art.ºs 219º nº 1 da CRP e 1º da Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto ( alterada pela Lei n.º 2/2020, de 31/03 ( Estatuto do Ministério Público), atribuições, entre as quais, a de:
m) Intervir nos processos de insolvência e afins, bem como em todos os que envolvam interesse público.
j) Defender a independência dos tribunais, na área das suas atribuições, e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis;
A questão em apreciação no recurso tem sido suscitada junto dos Tribunais Superiores mercê da sua ambiguidade e entendimentos diversos, como disso é demonstrativo os seguintes arestos dos anos de 2022 e 2023:
Acórdãos da Relação do Porto, nos Processos n.ºs 2631/20.3T8OAZ-E.P1, de 11-10-2022, n.º 3454/20.5T8STS-K.P1, de 10-01-2023, n.º 1211/17.5T8AMT.P1, de 26-09-2022 Acórdãos. da Relação de Lisboa nos Processos n.º 4841/20.4T8SNT-E.L1, de 07-02-2023; no Processo n.º 2051/12.3TYLSB-G.L-1, de 24-01-2023, no Processo n.º 22770/19.2T8LSB-F.L1-1, de 20-12-2022, no Processo n.º 7269/14.1T2SNT-F.L1-1, de 20-12-2022, no Processo n.º 415/13.4TYLSB-E.L1-1, de 20-12-2022 Acórdãos. da Relação de Coimbra nos Processos n.º 462/12.3TJCBR-AF.C1, de 09-11-2022, no Processo n.º 318/12.0TBCNT-V.C1, de 25-10-2022, no Processo n.º 3947/08.2TJCBR-AY.C1, de 11-10-2022, no Processo n.º 2495/20.7T8ACB.C1, de 28-09-2022 Acórdãos da Relação de Évora nos Processos n.º 1157/17.7T8OLH-M.E1, de 15-12-2022 e no Processo n.º 260/14.0TBTVR.E1, de 29-09-2022, entre outros, obtidos em www.itij.pt.
Ao aplicarem-se as normas que regem tal matéria não se decide um litígio, cumpre-se e interpreta-se a lei.
O Ministério Público, enquanto garante de interesses públicos e da legalidade, tem legitimidade para suscitar a correcta aplicação das referidas normas.
Como é consabido, o Ministério Público actua, em sede cível, a título de parte acessória, mercê de um interesse colectivo, no exercício de um poder próprio e exclusivo, sem semelhança com qualquer outro interveniente processual.
E tanto assim é que, conforme dispõe o art.º. 325.º, do CPC n.º 2 compete ao MP “ como interveniente acessório, zelar pelos interesses que lhe estão confiados, exercendo os poderes que a lei processual confere à parte acessória e promovendo o que tiver por conveniente à defesa dos interesses da parte assistida “ (n.º 2).
Para tanto, o M. P. conforme dispõe o n.º 3 desse normativo, é notificado para todos os atos e diligências, bem como de todas as decisões proferidas no processo, nos mesmos termos em que o devam ser as partes na causa, tendo legitimidade para recorrer quando o considere necessário à defesa do interesse público ou dos interesses da parte assistida” .
Em tal intervenção, possui ainda o M.P. legitimidade para recorrer independentemente de não ser a parte afectada pela decisão de que recorre, por a lei expressamente lha conferir, para aquele preciso efeito (defesa da legalidade).
Ora, a intervenção do M. P. nos processos de insolvência, para além das situações em que representa ou patrocina uma entidade cujos interesses lhe compete defender, na maior parte das vezes, a Autoridade Tributária e os trabalhadores ( v.g., requerendo a insolvência, reclamando créditos como disposto nos artºs 20.º, 128.º e 146.º do CIRE), tem, por outro lado, como referido, uma intervenção que lhe é conferida pelo art.º 4.º n.º 1 al. m) do CIRE, na defesa de um interesse público e de legalidade, como disso é exemplo a sua intervenção no acompanhamento dos actos de liquidação da massa insolvente, na apreciação e aprovação das contas ( art.º 64.º do CIRE), na qualificação da insolvência ( art.º 188.º do CIRE) na participação nas assembleias de credores mesmo não sendo representante de um credor ( art.º 72.º n.º 6 do CIRE).
Foi precisamente nesta actuação do Ministério Público em nome próprio, na defesa dos interesses colectivos mercê da ( salvo melhor opinião) ilegalidade do despacho recorrido, que o M. P. interpôs o presente recurso, no exercício de legitimidade própria para o efeito.
Nesta conformidade, requer-se a Vªs Exªs se dignem proferir Acordão que admita o recurso apresentado.”
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II   QUESTÕES A DECIDIR.

Ao abrigo do artº. 652º, nº. 3, do C.P.C., o apelante requer que sobre o despacho que não admitiu o recurso interposto recaia um acórdão.
No caso sujeito a reclamação em primeiro lugar há que apreciar a matéria sobre que recaiu o despacho em causa, e outras que se afigurem de conhecimento oficioso.
No caso concreto, e se a conferência decidir pela sua admissibilidade, pode desde logo ser conhecido o objeto do recurso –artº. 652º, nº. 4, C.P.C.; nesta parte, decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo; impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas questões e conclusões decidir se:
-o recurso é admissível por se considerar que ao recorrente assiste legitimidade para a sua interposição;
-se for admissível, qual o valor da remuneração a atribuir ao AI.
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III MATÉRIA A CONSIDERAR para apreciação da reclamação apresentada e que se constata da análise do processado: a que elencamos no relatório.
Caso se conclua pela admissibilidade do recurso, importa ainda reter (valores apresentados pela AI no requerimento de 4/1/2023 que não ofereceram controvérsia):
-o resultado da liquidação situa-se no valor de € 144.596,71;
-a satisfação dos créditos reclamados e admitidos situa-se no valor de € 133.244,01.
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IV- O MÉRITO DA RECLAMAÇÃO/RECURSO.

Estando em causa em primeira linha a admissibilidade do recurso interposto pelo M.P., e pelo qual pretende a revogação do despacho que fixou em 6.662,20 o valor da remuneração variável a atribuir ao AI em função da majoração (tal como pelo mesmo peticionado), e sua substituição por decisão que fixe tal valor em € 5.593,17, a posição a tomar nesta matéria delimita e condiciona a apreciação da restante; ou seja, caso se conclua pela sua inadmissibilidade nada mais haverá que apreciar, designadamente as razões invocadas pelo recorrente para a revogação do despacho.

Relativamente à admissão do recurso, o requerimento em que é solicitada a prolação de acórdão não tem de ser motivado, ou seja, o requerente não tem de justificar a razão pela qual pede que sobre o objeto da reclamação recaia acórdão, porquanto o n.º 3 do art. 652º apenas prevê que a parte que se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão, sem exigir, portanto, mas também sem vedar, qualquer justificação para essa iniciativa da parte ou que esta tenha de motivar o seu inconformismo em relação à decisão individual prolatada pelo relator -Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil”, vol. I, 2ª ed., pag. 816, nota 9; Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., pag. 246, em que se lê: “Das decisões do relator podem as partes, em regra, reclamar para a conferência. Mais do que encarar esta iniciativa como uma forma de impugnação da decisão singular, trata-se de um instrumento que visa a substituição dessa decisão por uma outra com intervenção do coletivo (…). Atenta esta configuração, a atuação da parte pode consistir tão-só na manifestação de vontade e que a matéria em causa seja levada à conferência integrada pelo relator e pelos respetivos adjuntos. Com efeito, a lei (…), sem exigir expressis verbis (mas também sem vedar) qualquer justificação para essa iniciativa ou sequer a motivação que a leva a sustentar uma posição diversa”, acrescentando na pag. 247 que: “Em qualquer dos casos, é sobre o projeto elaborado pelo relator que o coletivo irá incidir, com manutenção, revogação ou alteração da decisão reclamada, de acordo com o entendimento que se revelar maioritário”.
No caso, ao reclamar para a conferência, o MP salientou a sua intervenção em sede cível, a título de parte acessória, mercê de um interesse colectivo, no exercício de um poder próprio e exclusivo, ao abrigo do artº. 325º, nºs. 2 e 3, do C.P.C., e ainda invocando o art.º 4.º n.º 1 al. m) do seu Estatuto, na defesa de um interesse público e de legalidade, mais concluindo pela intervenção em nome próprio na defesa de interesses coletivos.
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A concreta atuação e poderes atribuídos ao MP em sede de processos de insolvência tem sido alvo de discussão, nomeadamente neste Tribunal da Relação de Guimarães. Já se discutiu da sua legitimidade para recorrer, como já se discutiram os termos da sua intervenção –através da abertura de vista para o efeito ou da notificação para os termos do processo. São disso exemplos, entre outros, os Acs. (disponíveis em www.dgs.pt, como todos os que se citarão sem outra indicação) de 5/11/2020 (relator Jorge Santos, a propósito da abertura de vista), de 3/12/2020 (relator Ramos Lopes, igual tema), 8/10/2020 relatora Maria João Matos, igual tema), de 8/4/2021 (mesma relatora, a propósito da legitimidade/posição do MP para contra-alegar em recurso), e de 16/3/2023 (mesma relatora, a propósito da legitimidade do MP para apresentar recurso e concluindo na afirmativa, com voto de vencido do adjunto José Alberto Martins Moreira Dias, embora antes por não se verificar o critério da sucumbência).
No processo nº. 749/22.7T8VCT.7T8VCT.G1 foi proferida decisão singular em caso em tudo semelhante ao nosso, em que igualmente foi considerado que o MP não detinha legitimidade para apresentar recurso.
No nosso entender, em primeiro lugar, há que manter os termos da decisão singular que reiteramos, acrescentando apenas algumas explicitações que o caso requer, desde logo face ao conteúdo da reclamação apresentada.
E, assim, dizemos que: prévia à questão da sucumbência é a da qualidade em que o MP intervém neste caso concreto, pois que, se não for em representação, neste caso, do Estado-Administração, propendemos a considerar afastado o critério da sucumbência, nesse sentido concordando com o M.P., uma vez que a invocada defesa da legalidade e interesse público não terá também para nós uma dimensão mensurável, nem pode ser vista pelo prisma das bagatelas jurídicas que a introdução desse pressuposto quis evitar que chegassem ao Tribunal superior (cfr. “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, António Santos Abrantes Geraldes, pags. 42 a 44 da 4ª edição). Igualmente o interesse em agir é perspetivado numa outra dimensão, como melhor veremos.
Tal como nos afigurava, o MP clarificou uma vez mais que não atua neste recurso em representação da Autoridade Tributária.
Afastamos por isso sem necessidade de mais argumentação os óbices que colocamos à admissão do recurso respeitantes ao pagamento de taxa de justiça e à sucumbência.
Situamo-nos por isso no âmbito das atribuições legais conferidas constitucionalmente –artº. 219º da Constituição da República Portuguesa- e estatutariamente ao M.P. –artºs. 2º e 4º da Lei citada (Estatuto do Ministério Público)-, e sua concretização no âmbito do regime da insolvência.
Também aqui afastamos a análise (e interpretação conjugada) dos artºs. 13º e 20º do CIRE, matéria que respeita “apenas” à legitimidade para requerer a insolvência, igualmente não estando em causa uma situação enquadrável no artº. 13º já que o MP não age aqui em representação de nenhuma entidade pública, afirmado pelo próprio. Também afastada a situação do artº. 128º CIRE.
Note-se que as palavras de Catarina Serra citadas pelo MP situam-se no contexto da interpretação do artº. 20º, nº. 1, CIRE (cfr. pag. 119  das “lições de Direito da Insolvência”, 2ª edição.
Salientava-se o âmbito das suas atribuições, de acordo com os artºs. 219º nº. 1 da CRP e 2º do Estatuto do Ministério Público, e artº. 4º, designadamente alíneas m) e j).
Muito embora em sede de reclamação o MP tenha incidido a sua posição e realçando o alcance que dá à alínea m) e ao artº. 325º do C.P.C., cremos que se justifica atentar melhor neste artº. 4º que trata das atribuições do M.P..

Assim, temos, e destacando o que ao caso importa: “1 - Compete, especialmente, ao Ministério Público:

a) Defender a legalidade democrática;
b) Representar o Estado, as regiões autónomas, as autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta;
c) Participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania;
d) Exercer a ação penal orientado pelo princípio da legalidade;
e) Dirigir a investigação e as ações de prevenção criminal que, no âmbito das suas competências, lhe incumba realizar ou promover, assistido, sempre que necessário, pelos órgãos de polícia criminal;
f) Intentar ações no contencioso administrativo para defesa do interesse público, dos direitos fundamentais e da legalidade administrativa;
g) Exercer o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de caráter social;
h) Assumir, nos casos previstos na lei, a defesa de interesses coletivos e difusos;
i) Assumir, nos termos da lei, a defesa e a promoção dos direitos e interesses das crianças, jovens, idosos, adultos com capacidade diminuída, bem como de outras pessoas especialmente vulneráveis;
j) Defender a independência dos tribunais, na área das suas atribuições, e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis;
k) Promover a execução das decisões dos tribunais para que tenha legitimidade;
l) Fiscalizar a constitucionalidade dos atos normativos;
m) Intervir nos processos de insolvência e afins, bem como em todos os que envolvam interesse público;
n) Exercer funções consultivas, nos termos da presente lei;
o) Fiscalizar a atividade processual dos órgãos de polícia criminal, nos termos do presente Estatuto;
p) Coordenar a atividade dos órgãos de polícia criminal, nos termos da lei;
q) Recorrer sempre que a decisão seja efeito de conluio das partes no sentido de fraudar a lei ou tenha sido proferida com violação de lei expressa;
r) Exercer as demais funções conferidas por lei.

2 - A competência referida na alínea j) do número anterior inclui a obrigatoriedade de recurso nos casos e termos previstos na Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.
3 - Para cumprimento das competências previstas nas alíneas i), j), k), l) e q) do n.º 1, deve o Ministério Público ser notificado das decisões finais proferidas por todos os tribunais.”

Conjugue-se esta última menção com o artº. 252º, nº. 1, do C.P.C. referindo-se à necessidade de notificação para efeito de eventual interposição de recursos obrigatórios por força da lei.
Vejamos a densificação do artº. 4º, j), do Estatuto do Ministério Público.
Ora, quanto ao exercício dessas atribuições, em causa está em causa a fiscalização da constitucionalidade e da legalidade, incumbindo ao MP interpor recurso sempre que o Tribunal recorrido haja recusado a aplicação de uma norma constante de convenção internacional, de ato legislativo ou de decreto regulamentar com fundamento na inconstitucionalidade ou na ilegalidade de tal diploma ou norma; o recurso do MP também é obrigatório quando o Tribunal recorrido tenha aplicado norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional, ou tenha recusado a aplicação de uma dada norma legal sustentando que a mesma é contrária à constituição ou a convenção internacional, estando a sua atuação delimitada no artº. 72º, da Lei do Tribunal Constitucional.
Acrescente-se que cabe ainda ao MP nos termos da alínea q) do Estatuto recorrer sempre que a decisão seja efeito de conluio das partes no sentido de fraudar a lei ou tenha sido proferida com violação de lei expressa.
Ora, como é bom de ver, no despacho e recurso aqui em causa não é nenhuma destas situações que se coloca. Discorda-se da interpretação feita pelo Tribunal de uma determinada norma e propugna-se por outra interpretação.
*
Vejamos então as alíneas a), m) e r) do mesmo artigo.

Ora, não obstante a mudança de paradigma operada pelo CIRE no sentido da prevalência da satisfação dos interesses privados dos credores (…), o interesse público não foi esquecido.

Fazendo uso das palavras e ilações daquele acórdão desta Relação já aludido de 3/12/2020, diríamos então que (eliminando-se as remissões para notas):
“…forçoso será constatar que as faculdades (poderes de acção) que lhe são cometidas no âmbito do processo de insolvência radicam na defesa (como função também essencial) dos interesses que a lei determine (art. 219º da CRP e art. 2º do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei 68/2019, de 27/08, actualizada pela Lei 2/2020, de 31/03), pois lhe compete, especialmente, intervir nos processos de insolvência e afins, bem como em todos os que envolvam interesse público (art. 4º, nº 1, m) do Estatuto) – referência normativa que denúncia a presença do interesse público no processo insolvência, sendo de considerar que este interesse público que a norma identifica no processo de insolvência não se circunscreve a interesses patrimoniais, outros se detectando, relacionados, sobretudo, com os bens públicos do crédito e da economia (fundamentalmente, interesses do crédito em sentido objectivo – a confiança, a segurança e a estabilidade nos compromissos jurídico-económicos como factor decisivo para o bom funcionamento do sistema económico), desenvolvendo-se neste âmbito a actividade do Ministério Público à margem dos seus poderes de representação. Descortina-se assim, como um dos domínios da acção do Ministério Público, ‘a tutela das exigências gerais do crédito e da economia’ – os ‘órgãos do Estado estão vinculados ao dever de exercer vigilância sobre o funcionamento das empresas e dos outros operadores económicos’, incumbindo-lhes ‘garantir a legalidade e assegurar a eliminação dos fenómenos patológicos, designadamente no domínio das sociedades comerciais’.
Pode, pois, concluir-se ‘que, no processo de insolvência, incumbe também ao Ministério Público defender os interesses públicos associados ao crédito e à economia’, conferindo-lhe o art. 20º, nº 1 do CIRE a possibilidade de acção para defesa exclusiva de tais interesses – os numerosos indicadores no sentido de uma privatização do processo de insolvência português convivem com o facto de a ‘lei conceder (continuar a conceder) ao Ministério Público a possibilidade de requerer a declaração de insolvência se isso for necessário ou conveniente à realização do interesse público’, podendo fundar-se o exercício de tal poder de acção ‘na convicção de que, designadamente, a crise de uma empresa virá a afectar de forma irreversível a satisfação das necessidades comuns dos membros da colectividade, de que advirão dificuldades na distribuição de certos bens essenciais, de que, enfim, a situação põe em causa a estabilidade das relações creditícias e a competitividade da economia’, conduzindo ao ‘empobrecimento geral das comunidades e a perdas de confiança nos sistemas comerciais, financeiros, bancários e políticos (a insolvência de uma grande empresa pode produzir não apenas desemprego e outros prejuízos para a comunidade, mas criar problemas na disponibilização do crédito comercial, em consequência das políticas mais restritivas de empréstimos)’.
Mesmo quem entende que tal defesa de interesses públicos associados ao crédito e à economia não se estende ao ponto de incluir no art. 20º, nº 1 do CIRE um poder de acção autónomo do Ministério Público para, em defesa exclusiva de tais interesses, dar início ao processo, não poderá negar que no processo de insolvência ‘são tutelados os interesses do crédito em sentido subjectivo (são tutelados os interesses privados dos credores) e os interesses do crédito em sentido objectivo (são tutelados os interesses públicos do crédito e da economia)’ – e que a intervenção do Ministério Público, por eles justificada, vê por eles enquadrados (consoante a actividade desempenhada tenha em vista um ou outro interesse) os meios ou instrumentos processuais de que dispõe para os tutelar.
Desenvolve o Ministério Público, no âmbito da insolvência, para lá do exercício da acção penal que ao caso caiba, a defesa de certos interesses, em representação de entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados (arts. 13º, nº 1 e 20º, nº 1 do CIRE e arts. 2º e 4º, nº 1, b) do Estatuto do Ministério Público) e a defesa da legalidade no curso do processo, em conformidade com o disposto no art. 219º, nº 1 da CRP e arts. 2º e 4º, nº 1, a) do Estatuto do Ministério Público.
Encontram-se no CIRE normas que atribuem o exercício de funções variadas ao Ministério Público, desde o seu poder de acção (legitimidade activa) enquanto representante das entidades cujos interesses lhe estão confiados (art. 20º, nº 1 do CIRE), à faculdade de participar na assembleia de credores (art. 72º, nº 6 do CIRE) e ao ónus de reclamação de créditos (art. 128º, nº 1 do CIRE).
Se quando reclama créditos o Ministério Público actua representando as entidades públicas titulares de créditos, em conformidade com a regra geral estabelecida no art. 13º, nº 1 do CIRE, defendendo os interesses patrimoniais destas, já nos outros casos actua para tutela doutros interesses – por isso lhe deve ser notificada a sentença declaratória da insolvência (art. 37º, nº 2 do CIRE) e lhe é facultada a participação na assembleia de credores independentemente de as entidades públicas titulares de créditos terem tal direito de participação à luz da norma geral do art. 72º, nº 1 do CIRE, enquanto credoras da insolvência. A lei admite, pois, que ‘o Ministério Público actue, por vezes, noutra qualidade que não a de representante dos credores públicos e para a defesa de outros interesses que não os respectivos interesses de tipo patrimonial’.
Como garante da legalidade no curso do processo, em conformidade com o disposto no art. 219º, nº 1 da CRP e artigos 2º e 4º, nº 1, a) do Estatuto do Ministério Público, é chamado a pronunciar-se e formular parecer sobre as contas apresentadas pelo administrador da insolvência (art. 64º, nº 2 do CIRE), participa no incidente da qualificação da insolvência, pronunciando-se sobre os factos relevantes ao incidente (art. 188º, nº 3 do CIRE), é autorizado a estar presente na assembleia de credores (art. 72º, nº 6 do CIRE) e é notificado da sentença declaratória da insolvência, mesmo não sendo requerente (art. 37º, nº 2, do CIRE), o que se enquadra também na função (residual) prevista no art. 4º, nº 1, r) do Estatuto.
Pode reconhecer-se, assim, que o Ministério Público actua no âmbito do processo de insolvência:
- como representante da parte (o Estado-credor) – parte será, em tais situações, o representado, facultando-se ao Ministério Público os instrumentos de tutela que à parte caibam,
- como parte, na hipótese (admitindo-se essa possibilidade) em que intervém buscando tutela para interesses públicos de tipo não patrimonial, não encabeçados exactamente pelo Estado mas antes pela colectividade (se se preferir, não pelo «Estado-Administração», mas pelo «Estado-Colectividade»), relacionados com o crédito e a economia; para defesa destes interesses é, em tal hipótese (ressalve-se uma vez mais – para quem admita tal possibilidade), admitido a intentar o processo e ocupa a posição de parte, podendo e devendo usar os instrumentos que à parte caiba usar,
- como garante da legalidade, quando, p. ex., intervém no incidente de qualificação da insolvência, dá parecer nas contas apresentadas pelo administrador, está presente na assembleia de credores ou é notificado da sentença declaratória da insolvência.
Note-se que se a actuação do Ministério Público como representante da parte (do Estado-credor) ou até como parte (mais uma vez – admitindo-se essa possibilidade) é eventual – é possível a existência de situações em que os devedores não tenham na sua lista de credores entidades públicas que ao Ministério Público caiba representar e, mais ainda, cuja situação não colida com os ‘interesses públicos do crédito e da economia’ a justificar a actuação do referido poder de acção autónomo ou próprio do Ministério Público para dar início ao processo –, já a sua actuação como garante da legalidade é obrigatória e necessária, ocorrendo em todos os processos. Actuação como garante da legalidade que acresce à que, eventualmente, lhe cumpra desempenhar como representante de parte (ou como parte).
A actuação do Ministério Público no âmbito do processo de insolvência desenvolve-se, pois, consoante os interesses que seja chamado a tutelar – sempre, porém, desenvolverá a actividade que os trâmites do processo prevêem enquanto garante da legalidade, que cumulará com a actividade de parte (admitida essa possibilidade) ou de representante da parte, caso venha a exercer qualquer destas.
Da concreta actuação que for de considerar, resultará o meio processual que deve utilizar.
Actuando em representação da parte (ou como parte, se se admitir essa possibilidade), usará o Ministério Público aos meios e formas que à parte são disponibilizadas pela lei processual, não lhe facultando o ordenamento jurídico, nessa situação, qualquer meio especial ou privilegiado para se pronunciar no processo – em tal caso, apresentará articulados ou requerimentos, tal qual o fazem as partes.
Na sua actuação como garante da legalidade vê determinados pela lei, relativamente a cada situação, os termos em que a mesma se objectiva nos autos –promoção (em vista para o efeito aberta), quando previsto que tome expressa posição sobre a matéria (assim, nos casos previstos nos arts. 64º, nº 2 e 188º, nº 4 do CIRE), recebendo cópias de elementos existentes no processo (art. 36º, nº 1, h) do CIRE), sendo notificado da decisão (art. 37º, nº 2 do CIRE) ou, o que releva, para a situação em análise nos autos, tendo a faculdade de estar presente na assembleia de credores (art. 72º, nº 6 do CIRE).”
Naquela decisão sumária que identificamos a questão foi assim colocada: “Sendo certo, ainda, que sempre está em causa, para a parte “vencida” quanto à interpretação normativa que propugna mas não seja acolhida,  um prejuízo com expressão concreta, resta saber se – considerando que aqui, realmente “vencidos”,  “prejudicados”, pela decisão recorrida, serão os credores (uma vez que quanto maior for a remuneração cabível ao AI, menor será o remanescente a distribuir por eles  no rateio, apesar do que nenhum se assumiu como impugnante) –, no processo de insolvência, e particularmente nesta matéria, não havendo qualquer “prejuízo”, “vencimento”, do Ministério Público, por si propriamente, ou do Estado-Comunidade que pretende representar [[1]], o não acolhimento ali da tese tal como por aquele propugnada,  constitui ofensa, com uma tal expressão, extensão e profundidade, ou seja, com tamanha e tão fundamental gravidade e dignidade, que, apesar de nenhuma repercussão colectiva, em termos prático-concretos, se verificar mas atingindo ela o interesse público, comunitário, ao nível do interesse geral de preservação do ordenamento jurídico e respeito pela ideia ou valor imaterial de “legalidade”, ainda assim deve ser-lhe reconhecida legitimidade, fundada no seu estatuto constitucional, orgânico e legal, para intervir como parte, a título próprio, e defender, por via de recurso, a sua interpretação, ao arrepio da manifestamente escassa importância em questão nestes nos autos.”
Temos para nós, e tentando exprimir a nossa resposta à questão, que a intervenção do MP no âmbito dos processos de insolvência terá sempre de se situar no âmbito da promoção de interesses públicos e/ou na defesa da legalidade nos casos em que tal função lhe é cometida. De facto, em primeiro lugar, e usando das regras interpretativas do artº. 9º do C.C., as diversas disposições (entre elas as alíneas do nº. 1 do artº. 4º) têm de ser lidas de modo a que cada uma seja preenchida com situações distintas das demais, e não são normas “em branco”, sendo o seu preenchimento feito em cada caso concreto face ao interesse que se prossegue.
Pergunta-se então: ao fiscalizar o modo como o juiz interpreta a lei o M.P. está a defender a legalidade democrática (alínea a) do nº. 1) –cfr. artºs. 2º, 3º, nº. 2, 9º, b), da Constituição? Os Tribunais exercem a função jurisdicional no respeito, entre outros, da legalidade democrática, sendo tarefa do juiz, nesse propósito e prima facie interpretar e aplicar a lei –cfr. artºs. 202º, nºs. 1 e 2, 203º, 204º, 205º, nº. 1, da Constituição, e artºs. 2º, 4º, 22º e 24º da Lei nº. 62/2013 de 26/8 (LOSJ).
A interpretação e aplicação da lei no respeito da independência de poderes e por decisão fundamentada (ainda que controversa, ou contraditória com outras posições –cfr. a propósito o recurso de revista previsto no C.P.C.) é precisamente o funcionamento das instituições, não se vislumbrando a violação da legalidade democrática no seu sentido objetivo, que é o que aqui nos importa. Assim o modo de reação à discordância das decisões nesse campo situa-se no critério de parte vencida.
Note-se que esta alínea a) é transversal a toda a atuação e a todos as jurisdições e processos, pelo que outra interpretação levaria a que o M.P. (não só em processos de insolvência) tivesse de recorrer de decisões judiciais, administrativas…, em que houvesse divergência jurisprudencial interpretativa. Como se salienta na citação que fizemos, esta função de garante da legalidade é obrigatória e necessária em todos os processos.
De facto, em sede de preenchimento da norma, e salvo disposição legal expressa em contrário, cremos ser de excluir tudo quanto não represente ofensa a direitos e liberdades fundamentais, interesses especialmente relevantes, ou defesa de bens e valores constitucionalmente protegidos, bem como as meras ilegalidades processuais.
No que concerne á alínea m) do nº. 1 do artº. 4º, a bitola da defesa do interesse público é o critério que deve nortear a intervenção do M.P. em nome próprio.
Pode discutir-se se a defesa do interesse público e da legalidade dá-se exclusivamente por via da intervenção tal como prevista no CIRE e que se resume à previsão nas normas já mencionadas na transcrição que fizemos, ou se deve ser aferido em cada caso e conforme se situe a discussão –daí que o termo “nomeadamente” usado no Ac. desta Relação de 8/10/2020 (“Surge, assim, consagrada, em processo de insolvência, a sua actuação em nome próprio, consubstanciando o cumprimento de um dever de tutela de interesses públicos, nomeadamente os relativos: à legalidade e regularidade das contas apresentadas pelo administrador da insolvência, conforme art. 64.º do CIRE; à condenação do afectado pela qualificação da insolvência como culposa (de onde vai resultar a sua obrigação de ressarcir pessoalmente os credores que não sejam satisfeitos no rateio, além das sanções civis dali derivadas, com reflexos obrigatórios em termos registais), conforme art. 188.º do CIRE; e, ainda, à fiscalização das decisões tomadas em assembleia de credores que com aqueles interesses possam contender, por isso sendo facultada a sua participação na mesma, conforme art. 72.º, n.º 6 do CIRE.”), possa ter esse alcance (…), diferentemente do que parece resulta da posição defendida no Ac. de 8/4/2021.
De facto, a questão é se, não atuando o MP como parte principal ou em representação de uma parte, não tendo intervenção acessória, e atuando no âmbito de um direito próprio, na defesa da legalidade (desde logo no âmbito do C.P.C.) ou desta e do interesse público (CIRE), viu o legislador ordinário definir taxativamente as situações em que essa intervenção é legitima (e até obrigatória).
Porém, ainda que se veicule a interpretação mais ampla, não é seguramente a situação em apreço. Não é no caso da defesa da legalidade na interpretação que lhe demos; não é na defesa do interesse público dado que aqui importa unicamente o interesse do AI e dos credores da massa, a medida da satisfação dos seus interesses privados reclamados no processo (também diversamente do que se entendeu verificar-se no recente Ac. de 16/3/2023).
Por último a alínea r) do nº. 1 prevê residualmente todas as situações que por força da lei expressa se imponha a intervenção do M.P., o que também não resulta nomeadamente da leitura do Estatuto do Administrador Judicial.
Ora, aqui chegados, relativamente à aplicação do artº. 23º do Estatuto do Administrador Judicial (Lei nº. 22/2013 de 26/2 na atual versão) não está em causa uma das situações em que o legislador cometeu ao MP a sua atuação por direito próprio, nem a defesa da legalidade. Tão pouco se trata de matéria regulada no CIRE, mas em diploma autónomo. O que bem se compreende pois que não é matéria que contenda com os interesses patrimoniais relevantes no processo de insolvência, nem com os bens públicos atinentes ao crédito e economia.
Se verificarmos a norma, repete-se, não está prevista a pronúncia do MP quanto à fixação do valor remuneratório. Nem lhe está atribuída qualquer atuação, nomeadamente a vertente recursória.
De facto, e conforme se analisou no citado acórdão agora de 5/11/2020, “A antiga orientação do Estatuto Judiciário que cometia ao Ministério Público, na qualidade de síndico da falência, a tarefa de “orientar e fiscalizar os actos do administrador e providenciar para que este proceda com a devida diligência no exercício do cargo” (artº 73º als. c) e i) E.J.), foi expressamente revogada pelo artº 9º do Decreto Preambular do CPEREF e de modo algum poderá ser repristinada para a actualidade do CIRE.”
Acrescentaríamos nós, se tal não lhe compete, muito menos competirá sindicar a matéria respeitante à sua remuneração.
A fiscalização da interpretação da norma, nestes termos, não cabe por isso nas funções do MP.
Novamente recorrente às palavras daquela decisão sumária diz-se, apelando ao C.P.C. e após referência ao artº. 629º (e ultrapassada a discussão sobre ser o MP parte principal vencida, ou acessoriamente prejudicada para os efeitos dos artº. 631º e 325º, do C.P.C.) que: “Dispersas por aquele compêndio, encontram-se variadas normas que, a diferentes títulos, legitimam a intervenção do Ministério Público: artigos 17º, nºs 4 e 5, 18º, nº 3, 21º, nº 1, 22º, 23º, 24º, 111º, nº 2, 252º, 325º, 982º.
O mesmo sucede no Código de Insolvência: artºs 13º, 20º, nº 1, 37º, nº 2, 64º, nº 2, 72º, nº 6, 128º, nº 1, 188º, nºs 7 e 8.
De nenhuma, porém, emana regra capaz de resolver a questão aqui suscitada, já que a intervenção do Ministério Público para recorrer, não sendo ele parte principal nem acessória, sequer estando prevista a sua intervenção no contexto específico da determinação e pagamento ao AI da respectiva remuneração variável, não encontra respaldo expresso.
Na verdade, invocando, logo no recurso, como fundamento de legitimidade para intervir e recorrer a título principal e “por direito próprio”, alegados interesses colectivos ou comunitários – outros de tal natureza não explicitando que não seja o da interpretação dos nºs 4, alínea b), 6 e 7, do artº 23º, do EAJ, e sua consequente aplicação concreta ao cálculo matemático da parcela a aditar à remuneração do AI respeitante à majoração ali prevista –, o Ministério Público não mostra nem se vê das indicadas normas constitucionais e orgânicas que a matéria e questão em apreço estejam compreendidas no âmbito da previsão de qualquer das que indica – artº 219º, nº 1, e alíneas m) e j), do EMP.”
Resta aferir se o artº. 325º do C.P.C. cobre esta atuação, situação realçada na reclamação apresentada e em apreço.
O disposto no artº. 325º do C.P.C. confere legitimidade ao MP para recorrer nos casos em que tem intervenção acessória, subordinado à defesa do interesse público ou da parte assistida, situação que não se verifica na divergência interpretativa ou de aplicação da norma.
Aliás, no último acórdão por nós mencionado de 16/3/2023, e não obstante ter-se apelado ao critério da defesa da legalidade (em situação que é diversa da que nos ocupa), foi afastada essa disposição, dizendo-se (omitindo-se as notas 2 e 3 e colocando-se no local a menção da nota 4): “Os arts. 9.º e 10.º seguintes adjectivam a intervenção substantiva do Ministério Pública prevista no art. 4.º. Assim, lê-se no art. 9.º, n.º 1, als. a) e f), que o «Ministério tem intervenção principal nos processos» quando «representa o Estado», ou quando «representa interesses coletivos ou difusos»; e lê-se no art. 10.º, n.º 1 e n.º 2, que o «Ministério Público intervém nos processos acessoriamente» quando, não se verificando nenhum dos casos do n.º 1 do artigo anterior, «sejam interessados na causa as regiões autónomas, as autarquias locais, outras pessoas coletivas públicas, pessoas coletivas de utilidade pública, incapazes ou ausentes, ou a ação vise a realização de interesses coletivos ou difusos», zelando então «pelos interesses que lhe estão confiados, promovendo o que tiver por conveniente».
Dir-se-á ainda que, no que diz respeito ao Estado-Administração, a legislação processual civil comum contém também uma outra norma complementar, o art. 24.º, n.º 1.º do CPC (que reafirma o princípio da representação do Estado pelo Ministério Público em sede cível).
Por fim, harmonizando-se com o preceito constitucional e com as normas estatutárias, o art. 6.º, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), estabelece, no seu art. 3.º, n.º 1, que o «Ministério Público representa o Estado, defende os interesses que a lei determinar, participa na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exerce a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defende a legalidade democrática, nos termos da Constituição, do respetivo estatuto e da lei».
Ora, quando o Ministério Público actue em representação das entidades referidas antes, a título de intervenção principal, actuará processualmente em posição idêntica à das suas outras partes; e só assim não sucederá quando, expressa e excepcionalmente, a lei o disser, pela ponderação pontual de outros valores (v.g. arts. 569.º, n.º 4 e 574.º, n.º 4, ambos do CPC) [2].
Já quando o Ministério Público actue, em sede cível, a título de parte acessória (isto é, já não lhe cabendo o impulso processual do processo - seja de acção, seja de contestação -, em representação de quem a lei defina para o efeito), caber-lhe-á a assessoria oficiosa a uma das suas partes (v.g. Regiões Autónomas, Autarquias Locais, incapazes), mercê de um interesse colectivo que justifica essa sua actuação. Não actua, então, como parte, mas sim no exercício de um poder próprio e exclusivo, sem paralelo com qualquer outro interveniente processual [3].
Da mesma forma, de resto, actuará oficiosamente em defesa do ordenamento jurídico como um todo, atribuindo-lhe igualmente a lei, e de forma expressa, essa legitimidade (v.g. recursos obrigatórios - para o Tribunal Constitucional e para outros Tribunais -, conflitos de jurisdição e de competência, processo especial de revisão de sentença estrangeira) [4 Só deste modo se compreende, aliás, que todas as sentenças cíveis proferidas lhe tenham que ser notificadas (isto é, ainda que não seja parte), conforme art. 252.º, n.º 1, do CPC, já que só assim se viabiliza o conhecimento por si de eventuais violações de lei expressa; e o posterior cumprimento do seu dever de recurso (nomeadamente, quando obrigatório).]. Quando assim o faça, dúvidas não existem de que a sua actuação em nada se confunde com a de qualquer parte, pronunciando-se nomeadamente nos processos cíveis, não por meio de articulados ou requerimentos (à semelhança daquelas), mas sim por meio de promoções, em vistas abertas para o efeito (arts. 156.º, n.º 2 e 194.º, ambos do CPC).
Compreende-se, igualmente, que, nestas situações, possua legitimidade para recorrer independentemente de não ser a parte afectada pela decisão de que recorre, por a lei expressamente lha conferir, para aquele preciso efeito (defesa da legalidade).”
Repete-se que não é este o caso dos autos, em que não está sequer prevista na lei a pronuncia do MP quanto a esta matéria.
A este propósito veja-se ainda o disposto no artº. 686, nº. 2, do C.P.C., quanto à legitimidade do MP para o julgamento ampliado de revista –a sua legitimidade depende da anterior interposição de recurso pela parte vencida (quando o MP não intervém como representante de uma das partes, e quando não se trate de um recurso por si interposto com fundamento na violação de lei expressa) –cfr. Abrantes Geraldes, agora a pags. 459 da mesma obra, e Ac. do STJ de 9/5/2002 (relator Joaquim de Matos), ali citado e que mantém pertinência.
Termina aquela decisão sumária, concluindo em termos que merecem a nossa total adesão: “Em suma: reconhecendo-se ao Ministério Público, como se lhe reconhece, fundado no artº 219º, consagrado nos artº 2º e 4º, especialmente no seu nº 1, alínea m), do seu Estatuto, um poder (competência, legitimidade) para nele actuar, a título próprio, como defensor da legalidade, tal actuação e a forma da respectiva tramitação, há-de pautar-se pelas situações no Código de Insolvência previstas e balizar-se pelos termos nele para o efeito definidos.
Não é de se lhe reconhecer uma generalizada possibilidade de intervenção em todas aquelas situações propiciadas pelo desenvolvimento do procedimento insolvencial não tipificadas nem disciplinadas quanto aos respectivos termos ainda que a pretexto de defesa da legalidade, sempre questionável em qualquer litígio e processo [[2]], maxime no de insolvência, seus incidentes e apensos, e, portanto, não consideradas como verdadeiramente implicantes do interesse geral ou da comunidade e, assim, não eleitas pelo legislador como justamente merecedoras da intervenção do Ministério Público na sua veste de defensor da legalidade, como será, por certo, o caso da mera discordância com a interpretação normativa seguida numa determinada decisão que concretamente não tem aptidão ofensiva com um grau de extensão e profundidade que, indo além dos interesses dos sujeitos processuais presentes, atinja os da cidadania em geral.
Não prevê a lei que o Ministério Público intervenha na discussão da fixação da remuneração ao AI nem sobre a forma de calcular a majoração nela incidente – que é o que está aqui em causa. A fixação e pagamento de tal remuneração prende-se, afinal, em regra, com as despesas da massa, sendo uma entre as várias (artº 29º, nº 1, do EAJ).
Permite-lhe, outrossim, pronunciar-se sobre as contas, porém já antes disso aprovadas.
Sendo, apenas, controvertida a interpretação normativa dos nºs 4, alínea b), 6 e 7, do artº 23º, do EAJ, traduzindo-se o reflexo concreto da opção por qualquer das duas teses em confronto na diferença de umas centenas de euros – sucumbência que a lei nem sequer considera merecedora do acesso ao recurso pelas partes afectadas, quanto mais pelo Ministério Público em alegada defesa do ordenamento jurídico –, e lesando aquela primordialmente os interesses directos e imediatos do Administrador ou dos Credores reconhecidos e só muito abstracta e remotamente os mais gerais da Colectividade, enquanto presumida interessada no respeito de todos pelo cumprimento das regras do Estado-de-Direito e, para tal, na descoberta do seu verdadeiro sentido, conclui-se que, mesmo para quem defenda uma mais vasta e genérica possibilidade de intervenção vigilante da legalidade em desenvolvimento das competências estatutárias, mormente no processo de insolvência de que as indicações pontuais dadas no CIRE seriam meros exemplos, o presente recurso é, por falta da necessária legitimidade do recorrente que deveria radicar-se em sérios interesses comunitários notoriamente reconhecidos e justificativos – como são os amplamente ligados ao controlo e saneamento do estado patológico dos agentes de actividade económica ou, mais particularmente, os do regular procedimento insolvencial e da acção dos sujeitos processuais em questões relevantes, desde que harmonizáveis com o paradigma do regime que se quis marcadamente inspirado na supremacia dos credores em ordem à satisfação eficiente dos seus créditos e ancorado num processo fortemente desjudicializado senão quase privatístico – mas que aqui o próprio não aponta concretamente, ao menos explicitando a respectiva natureza, legalmente inadmissível. “
A legitimidade para recorrer é um pressuposto processual subjetivo, objeto de apreciação liminar, e que condiciona a admissão do recurso.
Concluindo-se que o recurso não é admissível por falta de legitimidade do MP/recorrente, fica prejudicada a demais matéria suscitada, designadamente a reapreciação do despacho que fixou o valor da remuneração do AI.
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar a reclamação improcedente e, em consequência, mantém-se o despacho que julgou o recurso apresentado não admissível por falta de legitimidade do recorrente, não se conhecendo do mesmo ao abrigo do artº. 652º, nº. 1, b), do C.P.C.
Sem custas.
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Guimarães, 27 de abril de 2023.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2º Adjunto: Eugénia Pedro


[1] Note-se que nenhum crédito do Estado é afectado, sequer o de Custas, que estão precipuamente garantidas.
[2] O que, no limite, em todos os processos cíveis então justificaria sempre a actuação do Ministério Público caso este entendesse estar a decisão proferida eivada de errada interpretação por desconforme ao verdadeiro sentido legal.