Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
204/23.8GBCHV-A.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: METADADOS
DADOS DE BASE
DADOS DE TRÁFEGO
DADOS DE CONTEÚDO
DADOS DE LOCALIZAÇÃO CELULAR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE COM 2 DECLARAÇÕES DE VOTO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- A Lei nº 32/2008 transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva nº 2006/24/CE, do Parlamento e do Conselho, de 15 de março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações. Com a sua entrada em vigor o regime processual das comunicações telefónicas previsto nos artigos 187.º a 190.º do Código de Processo Penal deixou de ser aplicável à recolha de prova por «localização celular conservada», respeitante à localização de comunicações relativas ao passado, ou seja, arquivadas, o que é uma das formas de recolha de prova eletrónica.
II- Situação que se mantinha, uma vez que na Lei do Cibercrime, que é posterior àquela, o legislador fez questão de proclamar expressamente (no artigo 11º, nº 2) não ficar prejudicado o regime da Lei nº 32/2008, de 17de julho.
III- Afastada a Lei 32/2008 por força da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do seu artigo 4.º, conjugada com a do artigo 6.º, com fundamento de que elas permitiam uma lesão desproporcionada da reserva da intimidade e da vida privada dos cidadãos (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022), não podem, em vez delas – e como defende o recorrente – serem repristinadas e aplicadas as disposições conjugadas dos artigos 189.º, n.º 2 e 167.º ambos do Código de Processo Penal, artigo 6.º da Lei nº 41/2004 de 18.08 (concretamente o artigo 6.º, nº 7) e 14.º, nº 3 da Lei nº 109/2009, de 15.09.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

No processo de inquérito (atos jurisdicionais) nº 204/23...., da Procuradoria do Juízo Local Criminal de Chaves – Secção de Inquéritos -, em que se investigam factos suscetíveis de integrarem a prática, pelo arguido AA e pelo suspeito BB, de um crime de violência doméstica, alegadamente ocorridos (no que ora interessa) em 17.09.2023 e 02.10.2023, a Exma. Senhora Juíza de Instrução não autorizou o a obtenção dos dados de tráfego/localização celular requeridos pelo Ministério Público, por despacho de 15.11.2023 (Ref.ª citius 38887427), com o seguinte teor:
«Nos presentes autos de inquérito, em que se investiga, a prática, pelo arguido AA e pelo suspeito BB de factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica, alegadamente ocorridos, no que ao caso ora interessa em 17-09-2023 e 02-10-2023, veio o Ministério Público requerer a obtenção, junto das operadoras de telecomunicações, ... e ..., o registo Trace-Back, bem como a respetiva localização celular da ativação (com identificação da CELL ID) dos n.ºs de telemóvel ...68..., pertencente ao suspeito BB, ...70 este pertencente ao arguido AA, e ...62 e ...09 estes pertencentes à vítima CC e assim obter dados que levem à identificação do(s) autor(es) do ilícito.
Cumprindo apreciar e decidir, sempre salvo o devido respeito, desde já se anuncia que não poderemos autorizar a obtenção de tais dados.
Com efeito, dispõe o artigo 187.º, n.º1, alínea a) do Código de Processo Penal, que a interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público quanto a crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.
Por outro lado, decorre do n.º 4, alínea a) da mesma norma legal que a interceção e a gravação previstas nos números anteriores podem ser autorizadas, independentemente da titularidade do meio de comunicação utilizado, contra suspeito ou arguido (ou seja, pode o telemóvel não pertencer ao visado).
E estatui o n. º 2 do artigo 189.º do Código de Processo Penal que “a obtenção e junção aos autos de dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas, em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no n.º 1 do artigo 187.º e em relação às pessoas referidas no n.º 4 do mesmo artigo.”
Em termos similares, também prescreve o artigo 3.º, n.º 2 da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, que: “A transmissão dos dados às autoridades competentes só pode ser ordenada ou autorizada por despacho fundamentado do juiz, nos termos do artigo 9.º”.
Logo prevendo o artigo 9.º, n.ºs 1 e 3 do mesmo diploma que: “A transmissão dos dados referentes às categorias previstas no artigo 4.º só pode ser autorizada, por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, deteção e repressão de crimes graves” relativamente a “suspeito ou arguido”.
No caso, é preciso notar que não se pretende a obtenção de dados de tráfego em tempo real, mas sim de dados referentes a comunicações ou ativações ocorridas no passado, mais concretamente nos dias 17-09-2023 e 02-10-2023.
Assim, o regime a aplicar é o da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho.
Acontece que, nos termos do art.º 4.º, n.º 1, al. c) e f) deste diploma, essas informações dizem respeito a dados de tráfego e esse normativo, bem como os seus artigos 6.º e 9.º, foram declarados inconstitucionais, pelo ac. do Tr. Constitucional n.º 268/2022, de 19-04, com força obrigatória geral.
Esse acórdão do Tribunal Constitucional segue uma interpretação conforme ao Direito Europeu e à jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, pois está em causa a transposição da Diretiva n.º 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março.
Não nos cabe, obviamente, nesta sede, pôr em causa ou discutir essa jurisprudência e esse acórdão. Cabe-nos tão só obedecer-lhes, face à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral.
Não se ignoram os inconvenientes que desse acórdão resultam para a investigação e punição da criminalidade, para que o Ministério Público apela, douta e veementemente, nestes autos.
E são de todo compreensíveis as inquietações manifestadas.
Tal como se mostra clara a vantagem, na perspetiva da investigação em causa, do conhecimento dos dados requeridos pelo MP.
Mas, cremos nós, não podem os tribunais substituir-se ao legislador suprindo omissões de onde resultam esses inconvenientes.
De igual forma não podemos tentar tornear o referido acórdão do Tribunal Constitucional, “deixando entrar pela janela” aquilo a que ele “fechou a porta”. Ou seja, não podemos recorrer a outras normas, ou diplomas, para obter o mesmo efeito que resultaria da aplicação das normas declaradas inconstitucionais sem que essas outras normas contenham aquelas garantias que faltam a estas e que levaram à predita declaração de inconstitucionalidade.
Nestes termos e ao abrigo do exposto, não autorizo a obtenção dos dados de tráfego/localização celular requeridos pelo Ministério Público.»
*
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«A. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido em 15/11/2023, Ref.ª ...27, que não autorizou a obtenção dos dados de tráfego/localização celular requeridos pelo Ministério Público, em suma, por, no seu entender, o regime que regula o requerido é o previsto nos artigos 4º, n.º1, alíneas c) e f), e 6.º e 9.º, da Lei n.° 32/2008, de 17 de julho, consequentemente, tendo tal regime sido declarado inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 268/2022. de 19/04, «... não podemos tentar tornear o referido acórdão do Tribunal Constitucional “deixando entrar pela janela” aquilo a que ele “fechou a porta”. Ou seja não podemos recorrer a outras normas ou diplomas para obter o mesmo efeito que resultaria da aplicação das normas declaradas inconstitucionais sem essas outras normas contenham aquelas garantias que faltam a estas e que levaram à predita declaração de inconstitucionalidade»
B. Salvo melhor opinião e o devido respeito, afigura-se que o Tribunal a quo decidindo como decidiu, não interpretou, nem aplicou correctamente o direito atinente.
C. A questão que move o presente recurso consiste em saber se o regime que regula o requerido é o previsto nos artigos 4.º, n.º 1, alíneas c) e f), e 6.º e 9.º, da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, como entende o Tribunal a quo, ou se, pelo contrário, aplica-se o regime decorrente das disposições combinados dos artigos 187º, n.ºs 1, alínea a) e 4, alíneas a) e c), 189.º, n.º 2, 269.º, n.º 1, alínea e), e 167.º, n.°1, todos do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 2º, n.º 1, alíneas d) e e), e 6.º e seguintes da Lei n.º 41/2004, de 18/08, e 10.º da Lei n.º 23/96, de 26/07, como entende o Ministério Público.
D. Importa contextualizar o requerimento do Ministério Público sobre o qual recaiu o despacho recorrido: investigam-se nos presentes a pratica de 1 (um) crime de violência doméstica (agravado) p. e p. no artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas a) e 2, alínea a), e 4 a 5, do Código Penal, por banda do arguido AA como autor material e, eventualmente, do suspeito BB, como co-autor, pelo factos melhor descritos no auto de 1º interrogatório judicial de arguido (fls. 378 e sgs), que aqui se dão por integralmente reproduzidos por brevidade de exposição.
E. Requereu o Ministério Público que as operadoras de telecomunicações ... e ... forneçam o registo Trace-Back bem como a respectiva localização celular da activação dos seguintes n.ºs de telemóvel ...68.... pertença do suspeito BB, ...70, pertença do arguido AA e ...62 e ...09, pertença da vítima CC, nos seguintes períodos temporais e locais: 17 de Setembro 2023, entre as 20h20 e as 20h40, junto à residência da vítima, sita na rua ..., .... ... ...; e 02 de Outubro de 2023, entre as 11h50 e as 12h00, na Avenida ..., ....
F. Tal pretensão visa apurar o(s) autor(es) dos factos descritos nos pontos 34 a 38, do aludido auto de interrogatório judicial, mais precisamente identificar os respectivos agentes, uma vez que a vítima não os conseguiu identificar, nem existem outras testemunhas com conhecimento directo e indirecto sobre tais factos, e ainda os factos descritos nos pontos 39 a 43.
G. O Ministério Público sustentou e sustenta tal pretensão nas disposições combinados dos artigos 187.º. n.ºs 1, alínea a) e 4, alíneas a) e c). 189.º, n.º 2, 269.º n.°1, alínea e), e 167.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 2.º, n.º 1, alíneas d) e e), e 6.º e seguintes da Lei n.º 41/2004, de 18/08, e 10.0 da Lei n.º 23/96. de 26/07.
H. Tais normativos mantém-se plenamente em vigor e habilitam a obtenção de tais meios prova, subscrevendo na integra, entre outros os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de P.12/23.6 PBGMR-AG1, de O2/O5/2O23, e do Tribunal da Relação do Porto, 47/22.6PEPRT-Z.P1, de 29/03/2023.
I. De acordo com os normativos citados, é permitida a obtenção e junção aos autos de dados armazenados, in casu Trace-Back bem como a respectiva localização celular da activação (com identificação da CELL ID) — dados de tráfego/localização que podem ser solicitados em qualquer fase do processo, por decisão do juiz quanto aos crimes de catálogo do artigo 187º, n.º 1 e quanto aos  visados previstos no catálogo do artigo 187.º, n.º 4 desde que a diligência se revista de relevância probatória, isto é, de acordo com o critério de mera necessidade para a prova e com o juízo proporcionalidade previsto no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da Republica Portuguesa.
J. Estão, pois, preenchidos in casu todos os requisitos de fado e de direito para a obtenção dos requeridos dados de tráfego/localização junto das operadoras de telecomunicações, concretamente os conservados pelo período de 6 (seis) meses.
K. Com efeito, o crime de violência doméstica em investigação, em que se inserem tais ocorrências, é punível com pena de prisão até 5 (cinco) anos - artigo 187.º, n.º 1, a) do Código de Processo Penal.
L. Os visados são suspeitos e vítima da prática dos aludidos factos - dr. artigo 187.º, n.º 4, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal.
M. De resto, a obtenção dos referidos elementos de prova, mostra-se indispensável à descoberta da verdade, designadamente. para descortinar a identidade do agente de tais factos, o que de outra forma não é possível, mormente os articulados nos pontos 34 a 38 do aludido auto de interrogatório, pelas razões já mencionadas, conforme todas as diligências já encetadas, sendo a prova de outra forma, impossível.
N. Por fim, o prazo de 6 (seis) meses não se mostra ultrapassado, considerando o período temporal visado — cfr. os artigos 2.º, n.º 1, alíneas d) e e), e 6.º e seguintes da Lei n.º 41/2004, de 18/08, e 10.0 da Lei n.º 23/96, de 26/07. O. As diligências promovidas são indispensáveis para a descoberta da verdade material dos factos e de quem são os seus autores e a impossibilidade de obtenção dos dados cujo acesso ora se promove, conduzirá necessária e fatalmente ao arquivamento dos autos relativamente àqueles factos, impedindo, desta forma, a investigação, detecção e repressão de crimes e um aumento do sentimento de impunidade dos autores e de insegurança da comunidade.
P. Termos em que, salvo melhor opinião e o devido respeito, o Tribunal a quo, decidindo como decidiu violou as disposições combinados dos artigos 187.º, n.ºs 1, alínea a) e 4, alíneas a) e c, 189.º, n.º 2, 260.º, n.º 1, alínea e), e 167.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 2.º, n.º 1, alíneas d) e e), e 6.º e seguintes da Lei n.º 41/2004, de 18/08, e 10.º da Lei n.º 23/96, 26/07.»
*
Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu parecer, sustentando a procedência do recurso.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer[1].

1. Questão a decidir

Apreciar se estão reunidos os requisitos legais do levantamento do sigilo das comunicações, que permitem autorizar as operadoras de telecomunicações móveis a fornecer dados que permitirão conhecer a localização celular da ativação dos números de telemóvel pertença de um suspeito e de um arguido, com vista a apurar o local onde estes se encontravam (presumindo que teriam os telemóveis consigo) em determinados dias e em determinado período horário, nos quais terão alegadamente ocorrido alguns dos factos integradores de crime de violência doméstica.
***
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Nos presentes autos de inquérito investigam-se factos suscetíveis de integrarem a prática, pelo arguido AA e pelo suspeito BB, de um crime de violência doméstica, alegadamente ocorridos (no que ora interessa) em 17.09.2023 e 02.10.2023.
O Ministério Público, com o fundamento na importância de tais diligências para se conseguir chegar à identificação do(s) autor(es) daqueles factos em investigação, requereu ao Juiz de Instrução Criminal a obtenção junto das operadoras de telecomunicações de determinados dados de tráfego, que permitirão conhecer a localização dos telemóveis do arguido e do suspeito nos dias e horas em causa, argumentando que é comum as pessoas trazerem consigo os telemóveis e, dessa forma, saber-se-ia onde aqueles sujeitos se encontravam.
O que foi indeferido pelo despacho recorrido (já supratranscrito) e contra o qual se insurge o recorrente, argumentando que o regime a aplicar à sua pretensão é o previsto nos artigos 187.º, n.ºs 1, alínea a) e 4, alíneas a) e c), 189.º, n.º 2, 260.º, n.º 1, alínea e), e 167.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos 2.º, n.º 1, alíneas d) e e), e 6.º e seguintes da Lei n.º 41/2004, de 18.08, e 10.º da Lei n.º 23/96, 26.07, que permitem as diligências probatórias requeridas, e não o da Lei n.º 32/2008, de 17.07, invocado naquele despacho.
Vejamos.
As diligências probatórias requeridas pelo Ministério Público reconduzem-se à recolha de dados de tráfego armazenados por operadoras de telecomunicações e, como tal, respeitam a um meio de prova digital.
O enquadramento jurídico da prova digital é constituído por três diplomas essenciais: a Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime), complementada (em tudo o que a contrarie) com o Código de Processo Penal; e a Lei n.º 32/2008, de 17 de julho[2].
A Lei do Cibercrime, como o legislador fez questão de nela proclamar expressamente – no artigo 11.º, nº 2 – é cumulativa com a Lei nº 32/2008, de 17 de julho[3].
A Lei nº 32/2008 transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva nº 2006/24/CE, do Parlamento e do Conselho, de 15 de março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações. Com a sua entrada em vigor o regime processual das comunicações telefónicas previsto nos artigos 187.º a 190.º do Código de Processo Penal deixou de ser aplicável à recolha de prova por «localização celular conservada», respeitante à localização de comunicações relativas ao passado, ou seja, arquivadas, o que é uma das formas de recolha de prova eletrónica.
Situação que se mantinha, uma vez que na Lei do Cibercrime, que é posterior àquela, o legislador fez questão de proclamar expressamente (no já citado artigo 11º, nº 2) não ficar prejudicado o regime da Lei nº 32/2008, de 17de julho.
Conjuntamente com tais diplomas, temos agora também que considerar o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, que decidiu:
«a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos números 1 e 4 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo n.º 18.º, todos da Constituição;
b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, deteção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição.»
Neste momento, afastada a Lei 32/2008 por força da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do seu artigo 4.º, conjugada com a do artigo 6.º, com fundamento de que elas permitiam uma lesão desproporcionada da reserva da intimidade e da vida privada dos cidadãos, não podem, em vez delas – e como defende o recorrente – serem repristinadas e aplicadas as disposições conjugadas dos artigos 189.º, n.º 2 e 167.º ambos do Código de Processo Penal, artigo 6.º da Lei nº 41/2004 de 18.08 (concretamente o artigo 6.º, nº 7) e 14.º, nº 3 da Lei nº 109/2009, de 15.09.
Como a propósito se pode ler no sumário do acórdão do TRC de 12.10.2022, proc. 538/22.9JALRA.C1, relator Paulo Guerra[4], «“Caída” a Lei 32/2008, e na impossibilidade de aplicação do CPP e da Lei 41/2004, recorrer, na questão da localização celular, às normas da Lei 109/2009 seria seguir um caminho espúrio, face à enunciada declaração de inconstitucionalidade e aos fundamentos que a determinaram.
O que significa que no caso específico de obtenção por localização celular conservada, isto é, a obtenção dos dados previstos no artigo 4.º, n.º 1, da Lei 32/2008, o regime processual aplicável assume especialidade nos artigos 3.º e 9.º deste diploma (para estes casos ganhando relevo o conceito de «crime grave», já que nos termos do artigo 3.º, n.º 1, ainda do mesmo compêndio legislativo, a obtenção de prova da localização celular conservada só é prevista para crimes que caibam nesse conceito) - desaparecendo a especialidade, não é consentido recorrer à generalidade e permitir localização celular para além desses crimes é defraudar o espírito do legislador.»
No mesmo sentido, pode ver-se também o acórdão desta Relação de Guimarães de 23.01.2024, proferido no processo 743/23.0JAVRL-A.G1, de que foi Relatora Isabel Gaio Ferreira de Castro (e uma das adjuntas a ora Relatora)[5].
De notar, ainda, que a própria Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), em face da declaração de inconstitucionalidade decidida pelo Acórdão n.º 268/2022 do Tribunal Constitucional, no exercício dos poderes conferidos pelo artigo 58.º, n.º 2, alínea d), do Regulamento (UE) 2016/679 (RGPD), já ordenou às operadoras de comunicações a eliminação dos dados pessoais conservados ao abrigo do artigo 4.º da Lei 32/2008; eliminação dos conservados e, naturalmente, a não conservação para o futuro.
De tudo assim decorrendo, em síntese conclusiva, que no contexto legal vigente não há cobertura legal para a pretensão do Ministério Público, pelo que nenhuma censura nos merece a decisão recorrida.
***
III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em negar provimento ao recurso do Ministério Público.
Sem tributação, por dela estar isenta o recorrente.
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Guimarães, 19 de março de 2024
(Texto integralmente elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal –, encontrando-se assinado na primeira página, nos termos do artigo 19.º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.) 

Fátima Furtado (Relatora)
Isilda Maria Correia de Pinho (vota a decisão, com declaração) (1ª Adjunta) Paulo Almeida Cunha (vota a decisão, com declaração)
 (2º Adjunto)

Declaração de voto apresentada conjuntamente pelos Juízes Desembargadores adjuntos:

Votamos a decisão porque sufragamos o entendimento de que, afastada a aplicação da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho, em virtude da declaração da inconstitucionalidade com força obrigatória geral decorrente do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022, de 19-04-2022, a conservação de dados de localização pelos operadores de comunicações móveis e a respetiva transmissão à autoridade judicial fica integralmente sujeita ao regime previsto no artigo 189.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (redaçcão da Lei n.º 48/2007) e na Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, maxime artigos 1.º, n.ºs 2, 4 e 5, artigo 2.º, n.º 1, al. e), 5.º, 6.º, n.ºs 2 e 3, e 7.º (redacção da Lei n.º 46/2012), incluindo a remissão aqui operada para o prazo de prescrição de seis meses do direito ao recebimento do preço dos serviços prestados, previsto no artigo 10.º, n.º 1, da Lei 23/96, de 26 de Julho (redacção da Lei n.º 24/2008), pelos fundamentos vertidos nos Acórdãos deste Tribunal da Relação de Guimarães, datados de  02-05-2023, proferido no âmbito do Processo nº 12/23.6 PBGMR-A.G1, relatado por Armando Azevedo; 03-10-2023, proferido no âmbito do Processo n.º 241/20.4JAVRL.G1, relatado por António Teixeira e 17-10-2023, proferido no âmbito do Processo nº 308/19.1JAVRL.G1, relatado pelo aqui adjunto Paulo Almeida Cunha, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
Porém, pese embora tal entendimento, o circunstancialismo subjacente ao presente recurso sempre imporia a sua improcedência, pois quanto à factualidade reportada a 17-set-2023, deparamo-nos com a impossibilidade superveniente de ordenar às operadoras de telecomunicações em causa a transmissão dos dados pretendidos pelo recorrente, uma vez que já decorreu o aludido prazo dos 6 meses e relativamente aos factos reportados a 02-out-2023 a procedência da pretensão do recorrente violaria os subjacentes princípios da necessidade e da proporcionalidade, não só porque a vítima visualizou o alegadamente ocorrido, tento até interagido com o suspeito, como apresentou duas testemunhas quanto a tal factualidade, mediante requerimento dirigido aos autos a 06-12-2023.


[1] Cfr. artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Que, por sua vez, se cumulam ainda com o Dec. Lei nº 7/2004, de 07 de janeiro (Lei do Comércio Eletrónico).
[3] Sendo que todas as medidas, gerais ou excecionais, e obrigações previstas na Lei nº 109/2009, cumulam-se ainda, em tudo o que as não contrarie, com as estabelecidas no CPP
[4] Disponível em www.dgsi.pt
[5] O qual não se encontra publicado.