Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1446/15.5T9BRG.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: CRIME DE DESCAMINHO
ELEMENTOS TÍPICOS DO ILÍCITO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
OMISSÃO DE FACTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: TOTALMENTE IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - O crime de descaminho, previsto no art. 355º do C. Penal, protege a autonomia intencional do Estado, concretizada através da ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública, e as modalidades da respectiva acção típica – destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair – englobam (apenas) todas as condutas que sonegam a coisa ao poder público, ainda que não seja requerida uma intenção de apropriação no desapossamento da coisa do poder público.

II - Da mera imputação de o arguido nada dizer na sequência de ter sido notificado para se pronunciar quanto à localização dos bens, não se pode inferir (presumir), com apelo às regras extraíveis da lógica e da experiência comuns, a factualidade suficiente para se afirmar o preenchimento da modalidade de acção típica “subtracção”, ainda que se considere que a mesma decorreria implicitamente da narração contida na acusação formulada.

III - A estrutura acusatória do processo implica que a acusação fixa os limites da actividade cognitiva e decisória do tribunal e, por isso, esta deve ser considerada manifestamente infundada e rejeitada, ao abrigo do art. 311º do CPP [n.ºs 2, al. a), e 3, al. d)], se não contiver a narrativa dos factos passíveis de integrar os elementos do ilícito típico do crime imputado ao arguido.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

No processo comum, com intervenção de tribunal singular, com o nº 1446/15.5T9BRG, que corre termos no Juízo Local Criminal de Braga, Comarca de Braga, foi proferido despacho, ao abrigo do art. 311º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do CPP, a rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido J. R., imputando-lhe a autoria de um crime de descaminho¸ previsto e punido pelo artigo 355º do C. Penal.

Inconformado com a referida decisão, o Ministério Público interpôs recurso, cujo objecto delimitou com as seguintes conclusões:

«1) Na sequência da acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido J. R., pela prática de um crime de descaminho, p. e p. pelo artigo 355º, do Código Penal, o Mmo. Juiz, entendendo que a mesma era manifestamente infundada uma vez que os factos nela descritos não constituem crime, nos termos do artigo 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3 al. d) do CPP, rejeitou-a e determinou o arquivamento dos autos.
2) No despacho de que ora se recorre, o Mmo Juiz considerou que os factos descritos na acusação não configuram um crime de descaminho porquanto na descrição objectiva da acusação não consta qualquer concreto ato de destruição, danificação ou inutilização, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtracção ao poder público dos bens penhorados.
3) Ora, discordamos por considerar que os factos constantes da acusação configuram a prática pelo arguido de um crime de descaminho, devendo o mesmo, por conseguinte, ser sujeito a julgamento por tais factos.
4) Entendemos que para haver o preenchimento do desenho típico previsto no artigo 355ºdo Código Penal, não se mostra necessário apurar que destino foi dado aos bens sujeitos ao poder público, bastando pois que o arguido, notificado para se pronunciar quanto à localização mesmos, nada diga ou não apresente qualquer justificação para a sua conduta.
5) Com efeito, são diversos os acórdãos que consideram que não se mostra necessário apurar que destino foi dado pelo arguido aos bens para que estejamos perante a prática do crime de descaminho.
6) Assim, sendo controversa a questão jurídica em análise o Mmo Juiz à quo não poderia com base na mesma, tomando logo partido por uma das várias posições defendidas pela jurisprudência, rejeitar a acusação, considerando-a manifestamente infundada.
7) Tal posição apenas poderia ser tomada em julgamento, momento em que lhe é pedido que faça tal ponderação.
8) Uma decisão de rejeição de uma acusação apenas pode incidir sobre as situações em que os factos constantes da mesma não constituem crime de forma inequívoca.
9) Concluindo, resta dizer que a acusação deduzida nos autos contém todos os elementos típicos (objectivos e subjectivos) do crime de descaminho, p. e p. pelo artigo 355º do Código Penal imputado ao arguido;
10) Em conformidade com o explanado, discorda-se inteiramente com o despacho recorrido, que violou, designadamente, o disposto nos art.º 355º do Código Penal e o artigo 311º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal.».

Por concluir que os factos descritos na acusação preenchem todos os elementos do tipo do crime de descaminho, pede a substituição da decisão recorrida por outra que receba a acusação e designe data para a realização da audiência de discussão e julgamento.

O recurso foi regularmente admitido.

O arguido J. R. respondeu, defendendo que dos factos constantes da acusação não se retira que, enquanto fiel depositário, intencionalmente, tenha destruído ou feito desaparecer parte dos bens, de forma a causar a impossibilidade de ser satisfeito o direito do credor no âmbito da acção executiva, pelo que não se pode concluir pela subsunção do seu comportamento ao tipo de crime previsto no art. 355º do C. Penal.

Neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto e fundamentado parecer no sentido expendido pelo Ministério Público na 1ª Instância, sustentando que a acusação contém todos os elementos objectivos e subjectivos do crime que é imputado ao arguido e que, de todo o modo, estando-se numa fase de mera indiciação, é precipitada a sua rejeição, uma vez que a questão ainda não se encontra sedimentada na jurisprudência, existindo posições contraditórias.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.
Efectuado exame preliminar, foram colhidos os vistos.
*
II – Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscita-se neste recurso a questão de aferir se a acusação pública, rejeitada pelo despacho recorrido, é manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime. Para tanto, deve considerar-se como pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso os elementos considerados na decisão recorrida (excertos):

«(…) QUESTÃO PRÉVIA: Nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – adiante designado pela sigla C.P.P. -, “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

O n.º 3 do artigo 311.º do C.P.P., estatui que “para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

d) Se os factos não constituírem crime”.

(…) O arguido J. R. encontra-se acusado da prática de um crime de descaminho, previsto e punido pelo artigo 355.º do C.P..
Estatui o supra referido tipo-de-ilícito jurídico-penal: “Quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objeto móvel, bem como coisa ou animal que tiverem sido arrestados, apreendidos ou objeto de providência cautelar, é punido com pena de prisão até 5 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”

Como refere a Dra. Cristina Líbano Monteiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Coimbra Editora, 2001, tomo III, página 419, o bem jurídico protegido é a autonomia intencional do Estado, concretizada através de uma ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública.

Seguindo de perto o Acórdão do Tribunal de Relação do Porto de 5 de novembro de 2014, (…) http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/47a1e834d01dc95f80257d94003c2ac4?OpenDocument&Highlight=0, descaminho, “a ação típica consiste em destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer forma, subtrair.

As três primeiras modalidades de ação configuram-se em termos semelhantes à descrição típica do crime de dano. (…)

Por sua vez, no conceito de «subtração ao poder público», cabem tão só as condutas que sonegam a coisa ao poder público, sem que, no entanto, seja exigida uma intenção de apropriação. É um dos casos excecionais em que a subtração da coisa sem intenção de apropriação é punida, no âmbito do conceito «por qualquer forma subtrair ao poder público a que está sujeito». Efetivamente, como salienta Cristina Líbano Monteiro [8], deve entender-se por subtrair o mesmo que no crime de dano, com a seguinte precisão: caso a “subtração” seja levada a cabo pela pessoa oficialmente encarregada da guarda da coisa, o verbo mais apropriado não será esse (subtrair), na medida em que não se verifica a quebra do domínio do facto de outrem para constituir um domínio próprio. Melhor se falaria nestes casos de “descaminho”. De todo o modo, a ação terá de traduzir-se numa conduta de apropriação da coisa, com o reverso do poder público dela ficar desapossado, nomeadamente, através de atos em que o agente, por exemplo, extravia a coisa, a esconde ou a entrega a terceiro [9].”. (…)

Como já se decidiu no Ac. desta Relação de 20.06.2007 [Recurso n.º 1135/07-1], muito embora seja censurável, atento os deveres gerais do depositário e, em particular, de prevenir situações de frustração de contactos para venda do bem penhorado, a conduta do fiel depositário que muda de residência sem comunicar essa ocorrência não é, só por si, suficiente para se concluir que houve extravio do bem penhorado.

É que ao proceder-se desse modo não ficou frustrado, total ou parcialmente e de forma definitiva, a finalidade da custódia pública do Estado, que é o que se pretende tutelar com o crime de descaminho da previsão do art. 355.º.”.

Ora, é nosso entendimento que da descrição objetiva da acusação não consta qualquer concreto ato de destruição, danificação ou inutilização, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtração ao poder público dos bens penhorados.

Com efeito, na acusação apenas é referido que “o arguido notificado no âmbito da supra referida acção executiva para se pronunciar quanto à localização dos bens penhorados, nada tendo dito, assim como não apresentou justificação para tal conduta inviabilizando, assim, a satisfação da quantia exequenda e legais acréscimos, através da venda dos referidos bens”, o que é manifestamente insuficiente para se concluir que o arguido subtraiu os bens penhorados.

Neste mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de junho de 2015, (…) http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/cb56bf58ff899c6b80257e7500398b70?OpenDocument&Highlight=0, descaminho, concluiu que “a conduta do fiel depositário que muda de residência e transfere os bens para outro local, sem comunicar, não é suficiente para se concluir que houve destruição, danificação, inutilização ou subtração dos bens à sua guarda.”.

Por outro lado, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05 de janeiro de 2009, (…) http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/54fe9a87724b5aef8025755a004ddcd1?OpenDocument&Highlight=0, descaminho, decidiu que quando na acusação não se esclarece o que verdadeiramente o arguido fez ao bem “Vendeu-o ? Doou-o ? Escondeu-o ? Entregou-o a 3º ? Destruiu-o? Danificou-o?
(…) também não é possível saber se a sua actuação constitui ou não crime.”, pelo que “não tendo a acusação fundamento, por ausência de factos que a suportem, as consequências de tal omissão, face ao disposto no artº 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea b), do C.P.P., não podem deixar de ser a rejeição dessa peça processual, por manifestamente infundada.”.

Assim, impõe-se a conclusão de que não se encontram desde logo preenchidos os requisitos objetivos do crime de descaminho.

Pelo exposto, a conduta objetiva do arguido descrita na acusação do Ministério Público não constitui a prática de qualquer ilícito jurídico-penal de descaminho, pelo que rejeito a acusação por ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do C.P.P., e determino o arquivamento do presente processo.».
*
III – O Direito

Cumpre apreciar e decidir a enunciada questão analisando se a acusação pública que imputa ao arguido J. R. um crime de descaminho p. e p. pelo art. 355º, do C. Penal, deve ser considerada manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime, enquadrando-se, pois, na previsão da al. d) do n.º 3 do art. 311º do CPP (1), permitindo a sua rejeição ao abrigo da al. a) do n.º 2 do mesmo preceito, conforme foi determinado no despacho recorrido.

Como se sabe o objecto do processo é o objecto da acusação, no sentido de que é esta que fixa os limites da actividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, seja, o thema probandum e o thema decidendum. O objecto do processo penal é, assim, constituído pelos factos alegados na acusação e a pretensão nela também formulada.

Se é a acusação que delimita o objecto do processo, são os factos dela constantes imputados a um concreto arguido que fixam o campo delimitador dentro do qual se tem de mover a investigação do tribunal, a sua actividade cognitiva e decisória. Essa vinculação temática do tribunal consubstancia os princípios da identidade – segundo o qual o objecto do processo (os factos) deve manter-se o mesmo, desde a acusação ao trânsito em julgado da sentença –, da unidade ou indivisibilidade – os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente – e da consunção do objecto do processo penal – mesmo quando o objecto não tenha sido conhecido na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo) (2).
O T. Constitucional, no Ac. 358/04, de 19/05 (P. 807/03, in DR II, de 28/06/04) ponderou:

«A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados.»

Donde, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32º, nº. 5, da CRP), os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação.

Por outro lado, os “factos” que constituem o “objecto do processo” têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea (3).

E, nos termos do art. 283º, n.º 3, b), a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a «narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».

Dito por outras palavras, da estrutura acusatória do processo, decorre que impende sobre o Ministério Público, na veste de acusador a exposição total dos factos que imputa ao arguido. É ao acusador que cabe a iniciativa da definição do objecto da acusação e, através dela, do processo.

No despacho de recebimento da acusação (art. 311º) está constitucional e legalmente vedado ao juiz acrescentar ou suprimir factos da acusação, alterar ou compor uma acusação eventualmente deficiente, sendo actualmente incontroverso que, o juiz não pode, interferir na descrição da factualidade imputada ao arguido na acusação pública.

A estrutura acusatória do processo impede o desvio do juiz da posição de terceiro imparcial e supra-partes na tríade juiz-acusador-arguido, decorrendo que o acusador não pode ser ajudado nem corrigido pelo juiz, sob pena de violação desse modelo acusatório (4).

Este modelo acabou por ser reforçado pela reforma operada pela Lei n.º 59/98 de 25/8 (5) na medida em que veio aclarar as funções dos vários sujeitos processuais, afastando várias dúvidas e divergências jurisprudenciais, como sucedeu com o aditamento do n.º 3 do art. 311º, segundo qual:

«(…) 3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.».

Com esta alteração, definiu-se expressa e taxativamente os casos que podem levar à conclusão de se estar perante uma acusação manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição, impedindo-se que o juiz, ao proferir o despacho de saneamento do processo, previsto no art. 311º, tenha um papel equivalente ao do sujeito processual que deduziu a acusação, fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que a sustentam.

No caso vertente, remetido o processo para a fase de julgamento, sem que tivesse sido requerida a instrução, o Sr. Juiz titular do processo no despacho a que alude o art. 311º, por considerar que a acusação ora em apreço não contém a narrativa dos factos passíveis de integrar os elementos objectivos do ilícito típico do crime imputado ao arguido, rejeitou-a, considerando-a manifestamente infundada, por entender que a conduta descrita não integra os elementos objectivos do referido crime de descaminho.

É pois chegado o momento de determinar se existe fundamento para rejeitar a acusação pelas razões invocadas no despacho recorrido e, mais precisamente se os factos vertidos na acusação são suficientes para o preenchimento do tipo legal de crime cuja prática foi imputada ao arguido, em particular o respectivo elemento objectivo.

O recorrente insurge-se contra a mencionada rejeição, defendendo que não se mostra necessário apurar que destino foi dado aos bens sujeitos ao poder público, bastando pois que o arguido, notificado para se pronunciar quanto à localização dos mesmos, nada diga ou não apresente qualquer justificação para a sua conduta.

O que nos remete, desde logo, para a análise do tipo legal de crime em questão, o crime de descaminho, com a previsão no art. 355º do C. Penal, que preceitua: «Quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer outra forma subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objecto móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objecto de providência cautelar, é punido com pena de prisão até 5 anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.».

O bem jurídico protegido com esta incriminação «é a autonomia intencional do Estado, aqui concretizada através de uma ideia de inviolabilidade das coisas sob custódia pública. Afasta-se qualquer assomo de uma compreensão patrimonialista do preceito (…) Interessa apenas a afectação de uns objectos a uma finalidade concreta, por parte da autoridade pública (…) o delito em análise configura um crime de lesão do bem jurídico (…), consumando-se tão-só quando o agente frustra – total ou parcialmente – a finalidade da custódia, através de uma acção directa sobre a coisa: inutilizando-a ou descaminhando-a. Neste caso, o “dano” coincide com o resultado material previsto no tipo: a “modificação” ou a deslocação definitiva da coisa para fora da custódia. Afinal, o tornar a coisa imprestável para o fim em causa; desviá-la do destino que lhe fora oficialmente traçado.» (6).

Uma coisa passa a pertencer ao universo das coisas sujeitas ao poder público no preciso instante em que o respectivo titular perde a sua “liberdade” em relação à mesma, quando um acto de império (judicial ou administrativo) lhe fixa um destino e se reserva o poder de o garantir guardando-a, real ou simbolicamente. Num tempo futuro, cumprido o desígnio estadual, esses bens virão a ser reentregues aos seus proprietários, expropriados, declarados perdidos a favor do Estado, vendidos para a satisfação dos créditos a que serviam de garantia, etc.

As modalidades da acção típica – destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair – têm como denominador comum a inutilização. «A conduta proibida resume-se em tornar a coisa inútil, do ponto de vista do destino que justificava a sua custódia oficial. Ainda que continue porventura a servir para satisfazer utilidades do seu detentor, que não tenha sido aniquilada ou sequer danificada na sua integridade física, se a actividade sobre ela exercida a tornou imprestável para o fim em vista do qual foi sujeita ao poder público, verifica-se o delito em questão.» (7).

Enquanto a acção de destruição, danificação ou inutilização coincide com a conduta típica do crime de dano, a de subtracção coincide com a do crime de furto «com a particularidade de ser irrelevante apurar se o agente tem intenção de apropriação da coisa subtraída ou não» (8).

Consequentemente a acção de fazer desaparecer ou dissimular uma coisa colocada sobre o poder público é ilícita. «Por isso, comete o crime o fiel depositário dos bens móveis penhorados numa execução que os não apresenta quando foi notificado para o efeito e os retirou do local onde se encontravam, ausentando-se para parte incerta, pois desse modo sonega a coisa ao poder público (…). A acção de subtracção inclui ainda os actos de disponibilidade jurídica da coisa em favor de terceiro (…), bem como os actos de dissipação da coisa em proveito próprio» (9).

Em síntese, pode-se dizer que se englobam, aqui, todas as condutas que sonegam a coisa ao poder público, sem que seja requerida uma intenção de apropriação. É, um dos casos excepcionais em que a subtracção da coisa sem intenção de apropriação é punida, sob a fórmula “por qualquer forma subtrair ao poder público a que está sujeito”.

De qualquer modo, terá de tratar-se de uma conduta de apossamento da coisa, com o reverso de o poder público dela ficar desapossada: extraviar a coisa, escondê-la, por exemplo.

Revertendo agora à análise da factualidade constante da acusação e com interesse para o preenchimento do elemento objectivo, nela se descreve que no âmbito de um processo executivo que correu termos no 2º Juízo do Tribunal de Trabalho de Braga, o arguido em 07/07/2010, enquanto representante legal da executada, foi nomeado fiel depositário de bens que totalizaram o valor de € 30.000, tendo ficado ciente de que lhe cabia a obrigação de os guardar, apresentar e entregar os mesmos quando lhe fosse exigido pelo tribunal. Acrescenta-se ainda, que o arguido foi notificado em 22/03/2013, para se pronunciar quanto à localização dos bens penhorados, nada tendo dito, nem apresentado justificação para tal conduta, inviabilizando a satisfação da quantia exequenda.

Desde já se adianta, que, em nosso entender, não merece qualquer censura o despacho colocado em crise.

Efectivamente, como se disse, a acção típica do ilícito em questão consiste em destruir, danificar ou inutilizar, ou por qualquer forma, subtrair, abrangendo todos os atentados à substância ou à integridade física da coisa que a tornam inútil do ponto de vista que justificava a sua custódia oficial.
Como é sustentado na motivação do recurso, é claro que bastaria que na acusação se imputasse ao arguido a remoção dos bens penhorados do poder público, a sua subtracção, desde que factualmente concretizada por qualquer forma.

Tem sido entendido que a simples «não entrega do bem penhorado por parte do fiel depositário, na sequência de notificação que para o efeito lhe foi feita, e a não justificação dessa omissão não preenchem, só por si, o tipo objectivo» do crime em questão. Ou seja, sem se demonstrar o destino dado pelo arguido aos bens não pode deduzir-se que houve descaminho (10).

Mas, mesmo aceitando que, como alega o recorrente, a modalidade típica (subtracção) se pode ter por preenchida não só com o mero ocultar ou extraviar da coisa, mas também com a sua venda, troca, cedência, sendo evidenciador de tal desapossamento do Estado, o facto de a coisa não ser entregue quando solicitado, nem ser indicado o local onde a mesma se encontra, o resultado seria sempre o mesmo, no caso de que nos ocupamos: o arguido apenas foi acusado de nada ter dito quando foi notificado para se pronunciar quanto à localização dos bens. Não se deu o necessário passo seguinte, ou seja, a enunciação/descrição de factos que facultassem a extracção da ilação de que o arguido, em termos definitivos, subtraíra os bens ao poder público. Tanto mais que, sendo um tipo de crime doloso, seria ainda exigível que qualquer das concretas condutas que lhe fossem imputadas teria sido praticada com dolo, cobrindo todos os elementos objectivos do tipo, sob qualquer das formas previstas pelo artigo 14.º do C. Penal.

Ora, parte alguma da descrição objectiva contida na acusação consubstancia a acção típica do suposto atentado aos bens, uma vez que nela não consta qualquer concreto acto de destruição, danificação ou inutilização, ou, por qualquer forma, subtracção ao poder público dos bens. Nela apenas se menciona – e nada mais – que o arguido foi notificado para se pronunciar quanto à localização dos bens e nada disse: a matéria fáctica imputada não seria susceptível de preencher todos os elementos objectivos do crime imputado ao arguido, daí decorrendo a atipicidade da sua conduta.

E, contra o que parece pretender o recorrente, da mera imputação de o arguido nada dizer na sequência de ter sido notificado para se pronunciar quanto à localização dos bens, não se poderia presumir a factualidade suficiente para se afirmar o preenchimento da modalidade de acção típica “subtracção”. Não seria legítimo inferi-la (presumi-la), com apelo às regras decorrentes da lógica e da experiência comuns, ainda que se considerasse que a mesma decorreria implicitamente da narração contida na acusação formulada.
Como se disse, as exigências que decorrem dos princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente as colocadas pelas disposições combinadas dos arts. 287º, nº 2 (segunda parte) e 283º, nº 3, alíneas b) e c), do CPP, arredam a viabilidade de qualquer proposta de afirmação subentendida ou implícita dos factos, não dispensam a alegação com suficiente concretude dos factos que integram a tipicidade. De tais exigências flui que a acusação deve conter a narração da totalidade dos factos (objectivos e subjectivos) constitutivos do crime imputado e que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, uma vez que não existe crime e responsabilidade penal sem que todos os seus elementos se encontrem preenchidos. O princípio da vinculação temática e a garantia de defesa assim o impõem.

Por conseguinte, não se podendo ter como implícita ou subentendida na acusação a factualidade suficiente para se afirmar a aludida “subtracção”, não podemos deixar de concordar com a decisão recorrida e, assim, improcede o recurso.
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IV- Decisão:

Nos termos expostos, julgando-se totalmente improcedente o recurso, decide-se confirmar a decisão recorrida.

Sem tributação.
Guimarães, 5/11/2018

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado


[1] Diploma a que pertencem as normas subsequentemente citadas sem indicação de proveniência.
[2] Cf. Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1974, pág. 145), Ac. do STJ de 13-10-2011 (proc.141/06.0JALRA.C1.S1-Rodrigues da Costa) e Desembargador Cruz Bucho (no estudo “Alteração Substancial dos Factos em Processo Penal”, que apresentou, nomeadamente, numa comunicação feita no Tribunal da Relação de Guimarães, no dia 2 de Abril de 2009).
[3] Assim, concluiu o STJ no Ac. de 17-06-2004 (04P908 - Santos Carvalho): «Não são “factos” susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado (“procediam à venda de produtos estupefacientes”, “essas vendas eram feitas por todos e qualquer um dos arguidos”, “a um número indeterminado de pessoas consumidoras de heroína e cocaína”, utilizavam também “correios”, “utilizavam também crianças”, etc.). As afirmações genéricas, contidas no elenco desses “factos” provados do acórdão recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não se sabe em que locais os citados arguidos venderam os estupefacientes, quando o fizeram, a quem, o que foi efectivamente vendido, se era mesmo heroína ou cocaína, etc. Por isso, a aceitação dessas afirmações como “factos” inviabiliza o direito de defesa que aos mesmos assiste e, assim, constitui uma grave ofensa aos direitos constitucionais previstos no art. 32º da Constituição.». Ou no Ac. de 2-07-2008 (07P3861 - Raul Borges): «Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. de 06-05-2004, Proc. n.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. n.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. n.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. n.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. n.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. n.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. n.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. n.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. n.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. n.º 4197/07 - 3.ª.».
[4] Cfr. Ac. da RE de 20-10-2015, proc. 25/13.6TABJA.E1, relatado pela Desembargadora Ana Brito.
[5] Vinício Ribeiro in “Código de Processo Penal Anotado”, p. 879.
[6] Cfr. Cristina Líbano Monteiro, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo III, pág. 419.
[7] Obra citada p. 420 a 423.
[8] Paulo Albuquerque in Comentário do C. Penal, p. 1119
[9] Idem Paulo Albuquerque obra e pag. Citada.
[10] Com efeito, mesmo a não entrega dos bens penhorados, sem justificação dessa omissão, na sequência da notificação que tenha sido efectuada ao arguido, apenas revela a recusa de acatar a notificação, mas é insuficiente para se afirmar o preenchimento da modalidade de acção típica “subtracção”. Neste sentido, ver, entre outros, os acórdãos da RP de 14/06/2006 (p. 0641179), 05/11/2014 (p. 755/04.3TAVFR.P1), 11/10/2006 (p. 0511368), 07/01/2009 (p. 0815986), 29/ 2/2012 (p. 2093/10.3TAVNG.P1) e da RC de 04/02/2015 (p. 1021/13.9TALRA.C1).