Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2359/18.4T8GMR.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: SOCIEDADE UNIPESSOAL
CESSÃO DE CRÉDITO
EXTINÇÃO DA SOCIEDADE
DECLARAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE ACTIVO OU PASSIVO A LIQUIDAR
REMISSÃO ABDICATIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I– Tendo o Autor invocado ser titular de um direito de crédito sobre a Ré por lhe ter sido cedido pela anterior credora, sociedade unipessoal por quotas da qual era o único sócio, cabia-lhe demonstrar essa cessão de créditos.

II– Um negócio jurídico de cessão de créditos entre a sociedade unipessoal por quotas e o sócio único deve observar, pelo menos, a forma escrita.

III– Demonstrando-se que a credora, sociedade unipessoal por quotas, encontra-se dissolvida e liquidada desde o dia 30.06.2015, a cessão de créditos, entre aquela sociedade e o seu sócio único, tinha necessariamente de ser celebrada antes de tal data.

IV– A declaração, prestada pelo sócio único no âmbito do procedimento administrativo de extinção imediata da sociedade, de que «não existe activo ou passivo a liquidar», consubstancia renúncia a todos os créditos que possam emergir da actividade societária – uma remissão abdicativa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

1.1. H. M. intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra X – Unipessoal, Lda., pedindo a condenação desta a pagar-lhe: «a) do preço em falta, correspondente ao montante das prestações vencidas e não pagas, a partir de Março de 2016, inclusive, no montante de 36.600,00€, no âmbito da celebração do contrato “transmissão de estabelecimento comercial, com reserva de propriedade”, celebrado entre a Ré e a sociedade Y – Unipessoal, Lda., cujo objecto é o estabelecimento comercial de restauração e bebidas que vem girando sob o nome “restaurante W”, instalado no rés-do-chão e 1º andar do prédio urbano sito na Praça de …, freguesia de ..., ..., do concelho de Guimarães, e cujo crédito foi cedido ao Autor; b) acrescido de 2.500,00€ a título de cláusula penal; c) bem como, juros de mora até efectivo e integral pagamento e custas processuais».

Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em síntese, que é credor da Ré pela quantia de € 36.600,00, em resultado de cessão desse crédito a seu favor pela Y, Unipessoal, Lda., outorgada em 01.06.2015. Esse crédito que lhe foi cedido é proveniente de um contrato de trespasse celebrado em 28.05.2014, entre aquela Y, Unipessoal, Lda., e a Ré, que tinha por objecto o estabelecimento “Restaurante W”, sito na Praça de ..., na cidade de Guimarães, e cujo pagamento do preço deveria ter sido efectuado em prestações. A Ré deixou de pagar as prestações acordadas a partir de Fevereiro de 2016 e, não obstante tal cessão de créditos ter sido sempre do perfeito conhecimento da Ré, foi-lhe comunicada através de notificação judicial avulsa de 17.10.2017, mantendo-se em mora, estando já todas as prestações vencidas.
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A Ré contestou e reconveio, pedindo a condenação do Autor a pagar-lhe a quantia de € 19.700,00, correspondente a dez prestações do preço do trespasse pagas através de cheques, na convicção de estarem a ser entregues ao gerente da Y, Unipessoal, Lda., para pagamento a esta daquelas prestações, quantia que o Autor fez sua sem qualquer justificação.
Impugnou a factualidade alegada pelo Autor, confirmou a outorga do contrato de trespasse, negou ter tido qualquer conhecimento da cessão de créditos e de que esta tenha existido.
Alegou que a Y, Unipessoal, Lda., se encontra dissolvida e liquidada desde 30.06.2015, do que a Ré tomou conhecimento no início de 2016, já depois de uma reunião havia em 02.07.2015 entre o Autor, a Ré e a Y, Unipessoal, Lda., com vista a ser assinado um contrato cessão de crédito, o qual, contudo, não foi assinado por existirem questões pendentes entre a Ré e aquela Y, Unipessoal, Lda. Em nova reunião, já em 29.02.2016, a Ré recusou-se a assinar nova cessão de créditos com data anterior à do registo de dissolução e encerramento da Y Unipessoal, Lda. No que respeita às comunicações por si recebidas, invocou a falsidade dos documentos juntos com essas comunicações, quer no que respeita à data que dos mesmos consta, quer quanto à assinatura do Autor neles aposta, afirmando que, antes da extinção da sociedade, não foi celebrada qualquer cessão de créditos.
Pediu a condenação da Ré como litigante de má-fé em multa e indemnização correspondente ao reembolso das despesas por si suportadas, designadamente honorários da mandatária.
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Replicou o Autor, afirmando que a Ré concordou em que se efectivasse a cessão de créditos e que, apesar das promessas, a Ré nunca assinou a cessão da posição contratual, concluindo que a Ré conhecia a intenção do Autor em encerrar a sociedade e que falta propositadamente à verdade. Alegou ainda que, com o encerramento daquela Y, Unipessoal, Lda., o Autor assumiu todos os débitos e créditos da sociedade e pugnou pela inexistência de qualquer falsidade no documento que corporiza a cessão de créditos, mais impugnando o pedido reconvencional formulado.
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A Ré respondeu, reiterando o já anteriormente alegado.
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1.2. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho-saneador, definido o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de julgamento, proferiu-se sentença a decidir:

«a). julgar a acção procedente e, em consequência, condenar a Ré X – Unipessoal, Lda., a pagar ao Autor a quantia de € 39.100,00 (trinta e nove mil e cem euros), acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, calculados, à taxa legal sucessivamente emergente do disposto no artigo 559º do C. Civil, desde a data de vencimento de cada uma das prestações mencionadas supra em I.3.B). e sobre os respectivos montantes, e desde o dia 13 de Janeiro de 2018 sobre a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), tudo até integral pagamento;
b). julgar a reconvenção improcedente e, em consequência, absolver o Autor do pedido reconvencional».
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1.3. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação da sentença e formulou, a terminar as suas alegações, as seguintes conclusões:

«1ª - O Autor formulou o pedido contra a Ré, invocando a titularidade de crédito e sustentando essa titularidade na cessão do crédito, ocorrida a 1 de Junho de 2015, juntando, para prova do alegado, documento escrito, designadamente o contrato, que diz ter celebrado.
2ª - Na sentença ora em crise, o douto tribunal a quo deu como provado, no PONTO 11 e 12 dos Factos Provados, que “11. Em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015, a Y Unipessoal, Lda., transmitiu o crédito sobre a Ré, decorrente do contrato referido em I.2, para o Autor.” e “12. Desde dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015 que a Ré tem conhecimento do referido em I.11.”.
3ª – Em momento algum, o Autor alega que a cessão do crédito ocorreu em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015 e muito menos que a Ré dela tenha tinha conhecimento no mês de Maio de 2015. Pelo contrário, o Autor alega reiteradamente, nos articulados por si apresentados, uma data específica da cessão do crédito – 1 de Junho de 2015 – e junta documento para prova desse facto.
4ª – A alegação feita pelo Autor, de que a cessão de créditos teve lugar no dia 1 de junho de 2015, é o facto essencial da sua causa de pedir.
5ª - Ocorre excesso de pronúncia quando o tribunal conheça de causas de pedir não invocadas ou de exceções não deduzidas pelas partes e que estejam na exclusiva disponibilidade destas (artigo 608,º, n.º 2 do Código de Processo Civil) – neste sentido Lebre de Freitas, “A Ação Declarativa Comum”, pág. 335.
6ª - Existe excesso de pronúncia quando os limites processuais forem ultrapassados com o tribunal a pronunciar-se sobre questão que nenhuma das partes suscitou no processo, excedendo-se, no âmbito da solução do conflito, nos limites por elas pedidos e definidos, sendo que a nulidade prevista na 2ª parte, da alínea d), do nº 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil, terá lugar se a sentença conheceu de questões que nenhuma das partes submeteu à apreciação do Juiz, dentro dos referidos limites legais.
7ª - Ao Tribunal cabe o dever de conhecer o objeto do processo, definido pelo pedido deduzido e respetiva causa de pedir, de acordo com as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação nos articulados apresentados.
8ª - A data de cessão do crédito e a data conhecimento da mesma pela Ré constituía matéria controvertida, porque impugnada pela Ré, mas a discussão apenas se reconduzia à alegação da Ré sobre a cessão do crédito em data posterior àquela que havia sido invocada pelo Autor.
9ª – Estando de acordo, Autor e a Ré, na impossibilidade da cessão do crédito ter ocorrido em data anterior a 1 de Junho de 2015, ao tribunal a quo caberia, apenas, decidir se a cessão ocorreu, ou não, na data invocada pelo Autor.
10ª – Ao dar como provado facto não alegado pela parte, a sentença proferida encontra se, assim, ferida de nulidade, nos termos do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, porquanto conhece de questões de que não podia tomar conhecimento.
11ª – Tal facto, reitera-se, não foi alegado pelo Autor, pelo que, nem se admita que este venha agora, em eventual contra-alegação, e depois de alegar e reiterar um facto, dar o dito por não dito, tentando suprimir o facto alegado, dada que tal representaria uma intolerável manipulação das regras processuais, a bel contento de interesses egoístas da parte, no seu afã de alcançar os seus propósitos substantivos de procedência do peticionado, sem respeito da boa-fé processual.
12ª - Seria um abuso de direito processual, na modalidade de venire contra factum proprium, o que está vedado ao Autor, nos termos resultantes dos princípios gerais estabelecidos nos artigos 334.º do Código Civil e 542º, nº 1, d), do Código de Processo Civil, a propósito da litigância de má-fé.
13ª - Os factos dados como provados nos PONTOS 11 E 12 não têm o mínimo suporte em prova documental, nem na prova testemunhal produzida nos presentes autos, e que a mesma sentença indica como fundamento da decisão proferida sobre a matéria de facto.
14ª - O tribunal a quo dá como provada a celebração do contrato de cessão de créditos em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015, não só contrariando a posição das partes, mas também sem qualquer meio de prova documental que sustente tal decisão.
15ª – Sendo certo que a prova documental é único meio de prova que poderia sustentar o facto constante do PONTO 11, designadamente a existência do contrato de cessão de créditos. Ora, nos termos do disposto no artigo 577.º do Código Civil, o credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, sendo que, de acordo com o nº 1 do artigo 578.º do Código Civil, “ Os requisitos e efeitos da cessão entre as partes definem-se em função do tipo de negócio que lhe serve de base”, ou seja, os requisitos da cessão de créditos, designadamente o requisito formal, afere-se através dos requisitos de validade do negócio jurídico causal.
16ª – O autor juntou, com a petição inicial, cópia da notificação judicial avulsa à qual tinha junto documento sob a epígrafe “CONTRATO DE CESSÃO DE CRÉDITOS”, no qual alicerça o crédito peticionado, e nos termos do referido contrato, concretamente da cláusula terceira: “A presente cessão é efetuada pelo preço nominal de 56.300,00 €, servindo o mesmo para ser creditado na conta do cessionário, por conta dos débitos a apurar no momento da liquidação da cedente, os quais o cessionário se obriga a pagar, nas respetivas datas de vencimento, aos credores da cedente, pelo que a cedente dá integral quitação.”. Daqui resulta que, apesar de ter sido estabelecido um “preço”, este serviria para ser creditado na conta do cessionário, ou seja, o Autor, aqui Recorrido.
17ª - Para existir uma venda, o preço devido teria que ser entregue à Cedente, que, como contrapartida, transmitiria o crédito que detinha sobre a Ré. No entanto, conforme resulta da cláusula transcrita, quem recebeu o “preço” foi o cessionário, o que demonstra que a alegada cessão de créditos foi gratuita, tratando-se, assim, o negócio base de uma doação.
E a doação sem tradição da coisa, como é o caso (aliás tratava-se de cessão de créditos não vencidos), só pode ser feita por escrito conforme prescreve o nº 2 do artigo 947º do Código Civil. Em suma, a cessão de créditos em causa nos presentes autos teria que revestir a forma escrita.
18ª - Dessa forma, único meio de prova que poderia sustentar a matéria de facto dada como provada no PONTO 11 seria a prova documental, isto é, o tribunal a quo apenas poderia considerar provada a cedência do crédito da sociedade Y, Unipessoal, Lda. ao Autor em Maio de 2015, se nos autos existisse um contrato de cessão de crédito celebrado, entre estes, em Maio de 2015. Porém, dos autos não consta qualquer contrato celebrado em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015.
19ª - Na verdade, o que nos autos existe é um contrato de cessão de créditos com data de 1 de Junho 2015, mas, sobre este documento, junto pelo Autor para prova da transmissão, entendeu o tribunal a quo o seguinte: “Em face disso, o julgador não ficou convencido da versão dos factos apresentada pela Ré, não se afigurando que a posterior emissão, pelo Autor, de documentos sob a epígrafe de “cessão de créditos” (cfr. fls.121 e seg.), com a mesma data, mas em diferentes momentos e moldes seja suficiente para inferir o que supra se vem de referir. Efectivamente, o teor de tais documentos apenas faz verdadeiramente suscitar dúvidas no que se refere à concreta data em que se operou tal cessão de créditos, sendo certo que também o Autor não logrou clarificar, em audiência de julgamento, em que data ocorreu tal cessão.” – sublinhado e negrito nossos.
20ª – Ou seja, o tribunal a quo entendeu que o contrato junto pelo autor, e as suas várias versões, foram emitidos “posteriormente”, “com a mesma data, mas em diferentes momentos e moldes”, suscitando-lhe “dúvidas no que se refere à concreta data em que se operou tal cessão de créditos”, sendo notório que o tribunal a quo desconsidera por completo, e bem, a prova documental junta pelo Autor para sustentar a titularidade do direito alegado.
21ª - Se nos autos inexiste qualquer documento que suporte a cessão de créditos em Maio de 2015 (nem tal, reitera-se, foi alegado pelo autor), como pôde o tribunal a quo dar como provada a factualidade constante do ponto 11 dos factos provados? Aquele que invoca a transmissão tem que a provar (artigo 342º, nº 1 do Código Civil), sob pena de não se poder considerar como titular do mesmo. A ele cabe-lhe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, ou seja, a prova do contrato de cessão de créditos que titula o crédito de que se arroga, concretamente a data em que o mesmo se deu.
22ª - Se o tribunal a quo ficou com dúvidas no que se refere à concreta data em que se operou tal cessão de créditos, deveria ter resolvido a questão contra a parte a quem o facto aproveita (artigo 414º do CPC). O juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, no entanto, a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial.
23ª - O contrato que está na base da cessão de créditos é uma doação e, por tal facto, a cessão teria que revestir a forma escrita, logo, o tribunal a quo não poderia ter dado como provado o facto constante do ponto 11 da factualidade assente. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 414º e 607º, nº 5 do CPC e o artigo 342º do Código Civil, pelo que, deve o PONTO 11 dos facto provados, ser eliminado da matéria de facto dada como provada e acrescentado, ao elenco dos factos não provados, o seguinte facto: “A Y Unipessoal Lda. transmitiu o crédito sobre a Ré, decorrente do contrato referido em I.2, para o Autor”.
24ª – Para além de inexistir prova documental, toda a prova testemunha produzida impõe decisão diversa da proferida sobre este ponto da matéria de facto. Uma leitura atenta da motivação revela, quanto ao Ponto 11, que o tribunal assenta a sua convicção essencialmente no depoimento da testemunha C. B., então advogado da Ré, concluindo que o facto de ter existido “em Maio de 2015 um contacto telefónico entre então Advogada do Autor e o então Advogado da Ré, no sentido de agendar uma reunião, dada a “intenção de encerrar” a Y e, em consequência, ser celebrado um contrato de transmissão da posição contratual com o Autor”, a “posterior reunião” e “A forma com contabilisticamente foram apuradas as contas da Y.(…) vão não sentido de, já antes da dissolução da sociedade, ter sido realizada a cessão de créditos ente o Autor e a Y, a qual, obviamente, só dependia da vontade daquele”, chegando ao ponto de afirmar que “apresentação, em reunião havida em Julho de 2015 (…), de um contrato a ser assinado pelas três partes, com vista à transmissão da posição contratual para o Autor, torna-se manifesta a já prévia existência da referida cessão de créditos (…)”.
25ª – Ora, por que motivo pretendia o Autor a assinatura de um contrato de transmissão da posição contratual em julho de 2015, caso já existisse a cessão de créditos? De que forma um contrato de transmissão de posição contratual pressupõe a existência de uma cessão de créditos anterior?
26ª - O que resulta do depoimento da testemunha C. B., prestado em sede de audiência de julgamento, gravado em suporte digital, 00:00:00 a 00:13:40, 00:15:53 a 00:23:10 e 00:00:00 a 00:20:24, conforme ata de audiência de discussão e julgamento do dia 30/04/2019, e transcrito no corpo das presentes alegações, é que o Autor pretendia encerrar a sociedade Y, que a Advogada do Autor transmitiu ao Advogado da Ré essa intenção em Maio de 2015, que no mesmo contacto, a Advogada do Autor transmitiu ao Advogado da Ré que pretendia transmitir o crédito da sociedade Y para o Autor através de um contrato de transmissão de posição contratual, que a Advogada do Autor excluiu a possibilidade de celebração de contrato de cessão de créditos, que Advogada do Autor apresentou o contrato de transmissão da posição contratual, em reunião que teve lugar a 2 de Julho de 2015, com data anterior, e que nessa reunião foi omitido o encerramento da sociedade Y.
27ª – Do depoimento transcrito resulta, também, que pela então Advogada do Autor, em momento algum foi referida a existência de um contrato de cessão de créditos, nem mesmo no ano de 2016, facto que também das comunicações juntas aos autos pela testemunha C. B. (em audiência de julgamento), designadamente das comunicações eletrónicas de 18 de Maio de 2018 e 19 de Maio de 2019. Estando em causa a eventual obrigação de pagamento por parte da Ré, o normal seria que a então Advogada do Autor invocasse a existência e conhecimento dessa cessão de créditos. Mas não o fez. A então Advogada do Autor não referiu a existência de qualquer contrato de cessão de créditos, seja de Maio, de Junho, de Julho, Agosto ou qualquer outro mês anterior a estes contactos! E não o fez, por uma razão óbvia, o contrato de cessão de créditos não existia e a então Advogada do Autor sabia que o então Advogado da Ré sabia disso mesmo!
28ª - É por demais evidente que, pelo menos antes de Maio de 2016, não existia qualquer contrato de cessão de créditos, caso contrário a Advogada do Autor teria invocado tal facto, o atual Advogado do Autor não solicitaria a assinatura de qualquer contrato, com data anterior ao encerramento da sociedade Y, assinado pelo Autor, Ré e por aquela sociedade (que já não existia naquela data), nem o próprio tribunal a quo concluiria que o contrato de cessão de créditos junto aos pelo Autor foi celebrado em momento anterior a 1 de Junho de 2015.
29ª - Ora, não tendo sido produzida qualquer prova que sustente o ponto 11 da matéria de facto dada como provada, o PONTO 11 dos facto provados deverá ser eliminado da matéria de facto dada como provada e acrescentado, ao elenco dos factos não provados, o seguinte facto: “A Y Unipessoal Lda. transmitiu o crédito sobre a Ré, decorrente do contrato referido em I.2, para o Autor”.
30ª - Como consequência da impugnação do ponto 11 dos Factos Provados, o ponto 12 também deverá ser eliminado daquele elenco. Mas sempre se dirá que, também quanto a este facto, inexiste prova documental ou testemunhal produzida que o sustente. Como pôde o tribunal a quo dar como provado o conhecimento da alegada cessão, pela Ré, algures em Maio de 2015, sem qualquer prova testemunhal nesse sentido? O Autor não soube indicar quaisquer datas – atente-se, a propósito, no depoimento de parte do autor, prestado em sede de audiência de julgamento, gravado em suporte digital, 00:00:00 a 00:56:52, conforme ata de audiência de discussão e julgamento do dia 30/04/2019 – e, por sua vez, o Legal representante da Ré foi perentório ao afirmar que apenas recebeu comunicações a partir de 2016, conforme depoimento/declarações de parte do Legal Representante da Ré, prestadas em sede de audiência de julgamento, gravadas em suporte digital, 00:00:00 a 00:23:36, conforme ata de audiência de discussão e julgamento do dia 30/04/2019, transcrito no corpo das presentes alegações. Também a testemunha C. B. (então advogado da Ré), foi claro ao afirmar que “nunca” lhe foi dado a conhecer qualquer cessão de créditos, não obstante todo o assunto ser tratado entre advogados, conforme depoimento prestado em sede de audiência de julgamento, gravado em suporte digital, 00:00:00 a 00:13:40, 00:15:53 a 00:23:10 e 00:00:00 a 00:20:24, conforme ata de audiência de discussão e julgamento do dia 30/04/2019, igualmente transcrito no corpo das presentes alegações.
31ª – Em suma, não foi produzida qualquer prova que sustente o ponto 12 da matéria de facto dada como provada, pelo que este ponto ser eliminado da matéria de facto dada como provada e acrescentado, ao elenco dos factos não provados, o seguinte facto: “O Autor não comunicou, antes do encerramento da sociedade Y Unipessoal Lda., a cedência de qualquer crédito sobre a Ré, decorrente do contrato referido em I.2, para o Autor”.
32ª - O tribunal a quo deu como não provado, no PONTO 1 e 2 dos Factos não provados, que:“1. Os cheques referidos em I.9 foram entregues pela Ré.” e “2. Os cheques referidos em I.9 foram entregues na convicção de que estaria a entregá-los ao gerente daquela sociedade.”, contrariando a prova testemunhal produzida, concretamente as declarações prestadas pelo Autor, em sede de audiência de julgamento. Ademais, encontra-se assente que até Março de 2016, todas as prestações previstas no contrato de transmissão de posição contratual com reserva de propriedade, celebrado entre a Ré e a sociedade Y, foram pagas.
33ª - Dar como provado, por um lado, que o Autor recebeu os cheques melhor identificados no ponto 9 dos Factos Provados (o que resulta de acordo entre as partes), o Autor considerar que a Ré lhe pagou essas prestações e, por outro lado, dar como não provado que os cheques foram entregues pela Ré, trata-se de uma contradição. Note-se que o Autor confessa nas suas peças processuais, transcritas no corpo das presentes alegações, o recebimento, pela Ré, dessas quantias.
34ª - Tratando-se de facto admitido por acordo, não sujeito à livre apreciação do juiz, conforme o disposto no nº 5 do artigo 607º do Código de Processo Civil.
35ª – Já quanto à convicção com que os pagamentos foram efectuados, atendendo-se às declarações do Legal Representante da Ré, prestadas em sede de audiência de julgamento, gravadas em suporte digital, 00:00:00 a 00:23:36, conforme ata de audiência de discussão e julgamento do dia 30/04/2019, transcritas no corpo das presentes alegações, o tribunal não poderia deixar de dar como provado que o pagamento foi feito pela Ré na convicção de que estaria a pagar à sociedade Y. É que tais declarações, aliadas aos restantes factos, já enumerados no corpo das presentes alegações, designadamente a omissão, à Ré e ao então advogado da Ré, da circunstância da sociedade Y ter sido dissolvida e liquidada, bem como o facto de os cheques continuarem a ser emitidos à Y, sendo posteriormente endossados pelo Autor (que, de resto, não obstante alegar a cessão e a sua comunicação à Ré, não legrou demonstrar que transmitiu a esta meio de pagamento alternativo), impunham, numa análise conjunta e ponderada da prova produzida, dar como provado que os pagamentos foram efectuados na convicção de que estariam a ser feitos à sociedade Y. Porém, o tribunal a quo deu tal facto como não provado, violando o disposto no artigo 607º, nº 4 do CPC.
36ª - O que deverá determinar a eliminação dos PONTOS 1 e 2, da matéria de facto dada como não provada, devendo ser, em consequência, tais factos acrescentados ao elenco dos factos provados.
37ª – Já quanto à matéria de direito, e na procedência da impugnação à matéria de facto, impõe-se a alteração da sentença recorrida. Isto porque, conforme resulta do Ponto 8 do Factos Provados, o Autor, enquanto único sócio da sociedade Y – Unipessoal, Lda., lançou mão do procedimento especial de extinção imediata da sociedade, previsto no Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de entidade comerciais (Anexo III do DL. 76-A/2006, de 26 de Março), fazendo-o sem antes aquela sociedade transmitir o crédito que detinha sobre a Ré.
38ª - A extinção da sociedade, ocorrida a 30 de Junho de 2015, acarreta a cessação da sua personalidade e capacidade jurídicas, isto é, a impossibilidade da extinta sociedade ser sujeito de qualquer relação jurídica.
39ª - Por outro lado, a dissolução e liquidação da sociedade operada ao abrigo do Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de entidade comerciais (Anexo III do DL. 76-A/2006, de 26 de Março) contempla um procedimento especial de extinção imediata da sociedade, divergindo do estabelecido no Código das Sociedade Comerciais sobre a dissolução da sociedade.
40ª – O autor, aqui recorrido, declarou, no procedimento de extinção de que lançou mão, e na qualidade de sócio único da sociedade Y, “Que a aprovação das contas foi na presente data e que não existe activo ou passivo a liquidar” o que tem óbvias implicações no que respeita ao crédito por parte da sociedade, entretanto declarada extinta.
41ª - Remissão abdicativa constitui uma das causas de extinção das obrigações, traduzindo-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida, feita com a aquiescência da contraparte, caracterizando-se como uma verdadeira renúncia do credor ao poder de exigir a prestação que lhe é devida pelo devedor.
42ª - Não sendo a remissão um negócio solene, nada impede que a declaração de aceitação seja tácita. Veja-se, a propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19-10- 2015, Processo 122702/13.5YIPRT.P1, Relator: OLIVEIRA ABREU, disponível em www.dgsi.pt: “V - A declaração do único sócio da sociedade declarada extinta, prestada no âmbito do procedimento instaurado ao abrigo do Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais (Anexo III do DL 76-A/2006 de 29 de Março), qual seja, a inexistência de activo e passivo a liquidar da sociedade, afigura-se-nos ser o de renunciar a todos os créditos que pudessem emergir da sua actividade societária.”
43ª – Pelo que, não tendo o autor, aqui recorrido, demonstrado, conforme lhe competia, que a cessão de créditos teve lugar antes da extinção da sociedade Y, considerando que esta sociedade foi extinta a 30 de Junho de 2015 cessando, consequentemente, a partir desta data, a sua capacidade jurídica e, por fim, a declaração do Autor, de inexistência de passivo e de ativo, no procedimento de extinção da sociedade Y, a obrigação da Ré decorrente do contrato de transmissão de estabelecimento comercial com reserva de propriedade, extinguiu-se, por força de tal remissão abdicativa, não podendo decidir-se de outra forma que não seja pela improcedência da ação e pela procedência da reconvenção, esta última por inexistência de causa justificativa para o enriquecimento do Autor.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, deverá ser julgada verificada a invocada nulidade, determinando-se a revogação da sentença proferida, e, sem prescindir, deverão as alegações ser julgadas procedentes, revogando-se a sentença recorrida, substituindo-se por outra que julgue a acção improcedente e procedente a reconvenção, fazendo assim V.as. Ex.as. a acostumada Justiça!».
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O Autor apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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1.4. QUESTÕES A DECIDIR

Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso. Por outro lado, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, não podendo o tribunal ad quem analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes ao tribunal a quo. Em matéria de qualificação jurídica dos factos a Relação não está limitada pela iniciativa das partes - artigo 5º, nº 3, do CPC.

Neste enquadramento, constituem questões a decidir:

i) Nulidade da sentença por excesso de pronúncia;
ii) Verificar se existiu erro no julgamento da matéria de facto, no que respeita aos pontos nºs 11 e 12 dos factos provados e aos pontos nºs 1 e 2 dos factos considerados não provados;
iii) Quanto à matéria de direito, em consonância com a modificação da matéria de facto proposta pela Recorrente, saber se a sentença deve ser alterada, julgando a acção improcedente e a reconvenção procedente, esta última por inexistência de causa justificativa para o enriquecimento do Autor.

Trata-se de apreciar se não ocorreu cessão de créditos antes da extinção da sociedade Y em 30.06.2015 e, na afirmativa, se, tendo o Autor declarado inexistir passivo e activo, no procedimento de extinção daquela sociedade, a obrigação da Ré decorrente do contrato de transmissão de estabelecimento comercial com reserva de propriedade se extinguiu.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. A Ré é uma sociedade comercial, unipessoal, cujo representante legal é A. M..
2. Em 28 de Maio de 2014, a sociedade Y – Unipessoal, Lda., outorgou com a Ré um contrato de trespasse denominado “contrato de transmissão de estabelecimento comercial com reserva de propriedade” do estabelecimento comercial de restauração e bebidas que vem girando sob o nome “Restaurante W”, instalado no rés-do-chão e 1º andar do prédio urbano sito na Praça de ..., freguesia de ..., ..., do concelho de Guimarães, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... (cfr. documento de fls. 10, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
3. Na cláusula terceira, ficou a constar a obrigação do pagamento do preço – num total de € 95.000,00 – pela Ré à sociedade Y – Unipessoal, Lda., a efectuar prestacionalmente da seguinte forma: A). - Nos meses de Maio de 2014 a Março de 2015, o montante de 1.500,00€ mensais, no dia 15 de cada mês; - No dia 30 do mês de Março de 2015, o montante de 6.200€; - Nos meses de Abril de 2015 e Setembro de 2015, o montante de 1.500,00€ mensais, até ao dia 15 de cada mês; - No dia 30 do mês de Setembro de 2015, o montante de 6.200,00€; - Nos meses de Outubro de 2015 a Março de 2016, o montante de 1.500,00€ mensais, no dia 15 de cada mês; B). - No dia 30 do mês de Março de 2016, o montante de 6.200,00€; - Nos meses de Abril de 2016 a Setembro de 2016, o montante de 1.500,00€ mensais, até dia 15 de cada mês; - No dia 30 de Setembro de 2016, o montante de 6.200,00€; - Nos meses de Outubro de 2016 a Março de 2017, o montante de 1.500,00€ mensais, no dia 15 de cada mês; - No dia 30 do mês de Março de 2017, o montante de 6.200,00€.
4. No contrato de transmissão de estabelecimento comercial celebrado entre a Ré e a sociedade “Y – Unipessoal, Lda.”, esta sociedade reservou para si a propriedade do estabelecimento, até efectivo e integral pagamento do preço, conforme cláusula quinta do referido contrato.
5. O somatório das prestações vencidas e não pagas cifra-se no montante global de 36.600,00 €.
6. O Autor requereu ao Tribunal, em 17 de Outubro de 2017, a notificação judicial avulsa da Ré nos seguintes termos: “A) De que, como já é do conhecimento desta, o crédito que a sociedade Y – Unipessoal, Lda., pessoa colectiva nº ..., era titular, resultante do contrato de “transmissão de estabelecimento comercial, com reserva de propriedade”, celebrado entre ambas, cujo objecto é o estabelecimento comercial de restauração e bebidas que vem girando sob o nome “restaurante W”, instalado no rés-do-chão e 1º andar do prédio urbano sito na Praça de ..., freguesia de ..., ..., do concelho de Guimarães, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., celebrado esta e aquela, foi cedido ao requerente, através de contrato de cessão de credito que se junta como documento nº 1. B) Para cumprir a sua obrigação de pagamento do preço em falta, correspondente ao montante das prestações vencidas e não pagas, a partir de Março de 2016, inclusive, no montante de 36.600,00€, constituída no âmbito da celebração do contrato “transmissão de estabelecimento comercial, com reserva de propriedade”, celebrado entre a requerida e a sociedade Y – Unipessoal, Lda., cujo objecto é o estabelecimento comercial de restauração e bebidas que vem girando sob o nome “restaurante W”, instalado no rés-do-chão e 1º andar do prédio urbano sito na Praça de ..., freguesia de ..., ..., do concelho de Guimarães, e cujo crédito foi cedido ao requerente, acrescido de 2.500,00€ a título de clausula penal; bem como, juros de mora até efectivo e integral pagamento, no prazo de 30 dias. Findo o prazo supra fixado o requerente exigirá o cumprimento da obrigação, pela sua totalidade, cujo valor deverá ser pago por transferência bancaria, para a conta com o número IBAN PT50 0007 …; Banco .../Endereço SWIFT …CPTPL. Caso tal não suceda, o requerente impetrará – sem mais delongas – a acção judicial que reputar pertinente para fazer valer o eu direito.”. (cfr. documento de fls.15 verso e seg. cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
7. Mesmo perante a notificação judicial avulsa, recebida pela Ré em 13 de Dezembro de 2017, o certo é que a esta não pagou ao Autor, as prestações vencidas no prazo adicional e peremptório de 30 dias a contar da recepção de tal notificação.
8. A sociedade Y – Unipessoal, Lda., encontra-se dissolvida e liquidada desde o dia 30 de Junho de 2015 – cfr. documento de fls. 47 verso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
9. O Autor recebeu 10 (dez) cheques para cumprimento do contrato celebrado com aquela sociedade, a saber: • Cheque nº 6539842033, com data de 15.07.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros). • Cheque nº 4739842035, com data de 15.08.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros). • Cheque nº 5639842034, com data de 15.09.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros). • Cheque nº 9039842041, com data de 30.09.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 6.200,00 (seis mil e duzentos euros). • Cheque nº 8139842042, com data de 15.10.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros). • Cheque nº 7239842043, com data de 15.11.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros). • Cheque nº 633984204, com data de 15.12.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros). • Cheque nº 5439842045, com data de 1501.2016, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros). • Cheque nº 4539842046, com data de 15.02.2016, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros). • Cheque nº 3639842047, com data de 15.03.2016, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), no total de € 19.700,00 (dezanove mil e setecentos euros).
10. A partir de 30 de Março de 2016, inclusive, a Ré não entregou quaisquer montantes ao Autor, por conta do contrato de transmissão do estabelecimento comercial.
11. Em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015, a Y Unipessoal, Lda., transmitiu o crédito sobre a Ré, decorrente do contrato referido em 2., para o Autor.
12. Desde dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015 que a Ré tem conhecimento do referido em 11.
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Factos não provados:

O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos:
1. Os cheques referidos em 9. foram entregues pela Ré.
2. Os cheques referidos em 9. foram entregues na convicção de que estaria a entregá-los ao gerente daquela sociedade.
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Nulidade da sentença

Nas conclusões 1ª a 12ª das suas alegações, a Recorrente invoca que o Tribunal recorrido deu como provado facto não alegado pela parte, pelo que a sentença proferida encontra-se ferida de nulidade, nos termos do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, porquanto conhece de questões de que não podia tomar conhecimento.
Alega que o pedido do Autor alicerça-se no facto essencial de que a cessão de créditos teve lugar no dia 01.06.2015 e que o Tribunal a quo deu como provado que «11. Em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015, a Y Unipessoal, Lda., transmitiu o crédito sobre a Ré, decorrente do contrato referido em 2., para o Autor» e que «12. Desde dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015 que a Ré tem conhecimento do referido em 11.».
Mais alega que «em momento algum, o Autor alega que a cessão do crédito ocorreu em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015 e muito menos que a Ré dela tenha tinha conhecimento no mês de Maio de 2015. Pelo contrário, o Autor alega reiteradamente, nos articulados por si apresentados, uma data específica da cessão do crédito – 1 de Junho de 2015 – e junta documento para prova desse facto».

Estando invocada a nulidade da sentença por excesso de pronúncia, importa delinear os contornos e consequências de tal vício.
Nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d), do CPC, a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de actividade que afecta a validade da sentença.
Esta nulidade está directamente relacionada com o disposto no artigo 608º, nº 2, do CPC, segundo o qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
O excesso de pronúncia ocorre quando o juiz se ocupa de questões que as partes não tenham suscitado, sendo estas questões os pontos de facto ou de direito relativos à causa de pedir e ao pedido, que centram o objecto do litígio. Há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, não podendo o julgador condenar, além do pedido, nem considerar a causa de pedir que não tenha sido invocada. Contudo, quando o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas, não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia susceptível de integrar nulidade.

Conforme já ensinava Alberto dos Reis(1), «quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art. 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art. 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão. (…) uma coisa é o erro de julgamento, por a sentença se ter socorrido de elementos de que não podia socorrer-se, outra a nulidade de conhecer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento. Por a sentença tomar em consideração factos não articulados, contra o disposto no art. 664.º, não se segue, como já foi observado, que tenha conhecido de questão de facto de que lhe era vedado conhecer».

Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2017 (relator Tomé Gomes), proferido no processo 7095/10.7TBMTS.P1.S1 (2), «os vícios de omissão ou de excesso de pronúncia incidem sobre as “questões” a resolver, nos termos e para os efeitos dos artigos 608.º e 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, com as quais se não devem confundir os “argumentos” expendidos no seu âmbito. (…) em sede de decisão de facto, não se afigura, em princípio, aplicável o regime das nulidades da sentença previsto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC. Por outro lado, o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. Reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte».

Feitas estas considerações gerais, facilmente se verifica que na sentença não ocorreu excesso de pronúncia, uma vez que o Tribunal a quo apenas se pronunciou sobre os pedidos deduzidos, as causas de pedir em que aqueles se alicerçam e em lado algum abordou excepções de que oficiosamente não podia conhecer.
Primeiro, o equívoco da Recorrente decorre de uma errada percepção do que é uma “questão”, pois só esta releva para efeitos de excesso de pronúncia e não as razões ou argumentos invocados pelas partes para concluir sobre as questões suscitadas. Questões são pontos fáctico-jurídicos estruturantes da posição dos pleiteantes, por fundamentarem as suas pretensões, nomeadamente os que se prendem com a causa de pedir, pedido e excepções. Constituem as concretas controvérsias centrais a dirimir e não propriamente os factos que para elas concorrem.
No caso dos autos, o fundamento da acção alicerçava-se numa alegada cessão de créditos a favor do Autor ocorrida antes da dissolução e liquidação – portanto extinção – da sociedade cedente. O vector fundamental ou controvérsia central era saber se a cessão de créditos invocada pelo Autor ocorreu antes ou depois da dissolução e liquidação da sociedade Y, operada em 30.06.2015: o Autor alegava que era em 01.06.2015 e a Ré sustentava que o documento que alegadamente a corporiza foi falsamente elaborado depois de 30.06.2015, o que significava que não existia qualquer cessão (uma vez que a alegada cedente já se mostrava extinta) e, por isso, servia de fundamento ao contra-ataque da Ré. Essa questão foi correctamente autonomizada como tema de prova sem indicar qualquer data.
Na economia tanto da acção como da defesa (e da reconvenção) era irrelevante saber se a cessão de créditos ocorreu em Junho ou em Maio de 2015. O que relevava para a tese do Autor era saber se ocorreu antes de 30.06.2015, enquanto para a defesa bastava que o Autor não conseguisse demonstrar que a cessão tinha ocorrido antes de tal data. O próprio Tribunal a quo, no despacho em que apreciou a invocada nulidade, enfatizou devidamente tal argumento, ao dizer que «tendo a sociedade gerida pelo Autor sido encerrada em 30 de Junho de 2015, acaba por ser irrelevante, para a decisão do pleito e mesmo para a defesa da Ré, que a cessão tenha sido efectivada em 1 de Junho de 2015, em Maio de 2015 ou em Janeiro de 2015, porquanto a Ré sempre alegou saber que “antes da extinção da sociedade não foi celebrado qualquer contrato de cessão de créditos” e o que era efectivamente determinantes para a decisão da causa era apurar se tal cessão existiu e, na afirmativa, qual a data em que a mesma ocorreu (isto é, se a mesma ocorreu antes ou depois do encerramento da sociedade)».

Neste enquadramento, o Tribunal recorrido, ao dar demonstrado que a Y transmitiu o crédito sobre a Ré “em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015”, quando o essencial estava em saber se era anterior a 30.06.2015, não conheceu propriamente de questão de que não podia tomar conhecimento.

Segundo, essa matéria, ou seja, a alegada consideração de um facto que não devia ser atendido nos termos do artigo 5º, nºs 1 e 2, do CPC, não traduzindo um vício de excesso de pronúncia, dado que tal facto não constitui, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608º, nº 2, do CPC, reconduz-se antes a um eventual erro de julgamento quanto à data em que ocorreu a cessão de créditos, passível de ser corrigido através da impugnação da matéria de facto. É por isso que a Recorrente impugna também a decisão de tal facto como provado, cuja apreciação se fará infra.
Pelo exposto, a sentença não padece da nulidade que a Recorrente lhe aponta, seja em que vertente for, improcedendo esta questão suscitada no recurso.
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2.2.6. Da impugnação da decisão da matéria de facto

2.2.6.1. Em sede de recurso, a Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.
Estão efectivamente atribuídos à Relação poderes de reapreciação da matéria de facto no âmbito de recurso interposto, que a transformam num tribunal de instância que também julga a matéria de facto, garantindo um duplo grau de jurisdição.

Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, que dispõe assim:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º».

No fundo, recai sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorrectamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.

Em todo o caso importa enfatizar que não se trata de uma repetição de julgamento, foi afastada a admissibilidade de recursos genéricos sobre a decisão da matéria de facto e o legislador optou «por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente» (3).

Delimitado pela negativa, segundo Abrantes Geraldes (4), o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado no caso de se verificar «alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b);
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
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Aplicando os aludidos critérios ao caso que agora nos ocupa, verifica-se que a Recorrente indica os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifica os meios probatórios que imporiam decisão diversa e menciona a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre as questões de facto controvertidas. No que se refere à prova gravada em que faz assentar a sua discordância, procede à indicação dos elementos que permitem minimamente a sua identificação e localização.
Por isso, podemos concluir que a Recorrente cumpriu minimamente o ónus estabelecido no citado artigo 640º do CPC e, por outro lado, tendo sido gravada a prova produzida na audiência de julgamento e dispondo dos elementos que serviram de base à decisão sobre os factos em causa, esta Relação pode proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662º do CPC, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu nº 1 que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Por isso, passa-se a reapreciar a matéria de facto impugnada.
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2.2.6.2. Por referência às suas conclusões, extrai-se que a Recorrente considera incorrectamente julgados os seguintes pontos de facto:

A) Dos factos provados:

11. Em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015, a Y Unipessoal, Lda., transmitiu o crédito sobre a Ré, decorrente do contrato referido em 2., para o Autor.
12. Desde dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015 que a Ré tem conhecimento do referido em 11.

B) Dos factos não provados:

1. Os cheques referidos em 9 foram entregues pela Ré.
2. Os cheques referidos em 9 foram entregues na convicção de que estaria a entregá-los ao gerente daquela sociedade.

Quanto ao concreto resultado da impugnação, pretende que:

- «29ª - Ora, não tendo sido produzida qualquer prova que sustente o ponto 11 da matéria de facto dada como provada, o PONTO 11 dos facto provados deverá ser eliminado da matéria de facto dada como provada e acrescentado, ao elenco dos factos não provados, o seguinte facto: “A Y Unipessoal Lda. transmitiu o crédito sobre a Ré, decorrente do contrato referido em I.2, para o Autor”»;
- «31ª – Em suma, não foi produzida qualquer prova que sustente o ponto 12 da matéria de facto dada como provada, pelo que este ponto ser eliminado da matéria de facto dada como provada e acrescentado, ao elenco dos factos não provados, o seguinte facto: “O Autor não comunicou, antes do encerramento da sociedade Y Unipessoal Lda., a cedência de qualquer crédito sobre a Ré, decorrente do contrato referido em I.2, para o Autor”»;
- «36ª - O que deverá determinar a eliminação dos PONTOS 1 e 2, da matéria de facto dada como não provada, devendo ser, em consequência, tais factos acrescentados ao elenco dos factos provados».
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2.2.6.3. O Tribunal a quo exprimiu a motivação da decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:

«A convicção do julgador que fundamenta o juízo probatório positivo sobre a factualidade provada e, bem assim, sobre toda a factualidade não provada, resultou da apreciação crítica e conjugada de todos os meios de prova produzidos, nomeadamente, do teor dos documentos juntos aos autos, com os depoimentos/declarações de parte do Autor e do legal representante da Ré e com os depoimentos testemunhais recolhidos em sede de audiência de julgamento, sendo certo que estava já provada, documentalmente, por acordo ou confissão das partes, a matéria referida em I.1 a I.10.
No que tange ao vertido em I.11 e I.12 dos factos provados, há a considerar, desde logo, a inelutável circunstância de, logo em Maio de 2015 e como confirmado pela testemunha C. B., ter existido um contacto telefónico entre a então Advogada do Autor e o então Advogado da Ré no sentido agendar uma reunião, dada a “intenção de encerrar” a Y e, em consequência, ser celebrado um contrato de transmissão da posição contratual com o Autor.
Tal contacto e a posterior reunião, bem como a forma como contabilisticamente foram apuradas as contas da Y (nos termos explicitados pela testemunha J. M., que foi o contabilista da Ré) vão no sentido de, já antes da dissolução da sociedade, ter sido realizada a cessão de créditos entre o Autor e a Y, a qual, obviamente, só dependia da vontade daquele.
E, note-se, que a intenção do Autor era mesmo a de encerrar a sociedade para evitar despesas, dado que passou a trabalhar na Holanda onde, inclusivamente, casou, como decorreu das suas declarações de parte e do depoimento da testemunha T. F., irmão do Autor.
Nessa medida e vista a posterior apresentação, em reunião havida em Julho de 2015 (e na qual esteve presente o legal representante da Ré, como este assumiu em depoimento de parte, após primeiramente o ter negado dizendo que só esteve presente na reunião de Fevereiro de 2016), de um contrato a ser assinado pelas três partes, com vista à transmissão da posição contratual para o Autor, torna-se manifesta a já prévia existência da referida cessão de créditos, sendo que a intenção de formalização a transmissão da posição contratual se pretendia, tão só e como referido pela testemunha C. B. (então Advogado da Ré), com o facto de a então Mandatária do Autor ter dúvidas sobre a manutenção da reserva de propriedade a favor do Autor em resultado da simples cessão de créditos.
Ademais, a recusa do legal representante da Ré em assinar tal contrato prendeu-se então com um alegado acerto de contas em falta e relacionado com questões de água e luz (o que os emails à data trocados entre Mandatários também evidenciam), pelo que se afigura inverosímil o invocado desconhecimento da transmissão de créditos para o Autor.
Efectivamente, atentas as regras da experiência e a normalidade do acontecer, a apresentação de tal documento para assinar é revelador da prévia cessão de créditos operada, dado que com o mesmo se visava apenas garantir, com certezas, a manutenção da reserva de propriedade consagrada no contrato de trespasse.
Em face disso, o julgador não ficou convencido da versão dos factos apresentada pela Ré, não se afigurando que a posterior emissão, pelo Autor, de documentos sob a epígrafe de “cessão de créditos” (cfr. fls.121 e seg.), com a mesma data, mas em diferentes momentos e moldes seja suficiente para inferir o que supra se vem de referir.
Efectivamente, o teor de tais documentos apenas faz verdadeiramente suscitar dúvidas no que se refere à concreta data em que se operou tal cessão de créditos, sendo certo que também o Autor não logrou clarificar, em audiência de julgamento, em que data ocorreu tal cessão.
De todo o modo, em face do que se expendeu e vista a data do primeiro contacto realizado pela então Advogada do Autor, não restaram dúvidas que tal transmissão de créditos se deu ainda em Maio de 2015.
Ademais, é de referir que o depoimento de parte do legal representante da Ré foi, em parte, desmentido pelo depoimento da testemunha C. B., então seu Advogado. Com efeito, o legal representante da Ré referiu que na reunião de 2 de Julho de 2015 não lhe foi mostrado, nem entregue qualquer documento para assinar, ao passo que aquele Ilustre Causídico afirmou que, nessa reunião de 2 de Julho de 2015, a então Advogada do Autor trazia já consigo o documento corporizador do contrato de transmissão da posição contratual do trespasse.
De resto, também a testemunha D. M., companheira do legal representante da Ré, revelou que “provavelmente” o seu companheiro já tinha visto o documento que se pretendeu fazer assinar na reunião de Fevereiro de 2016, porquanto já tinha existido uma anterior reunião (que situou entre a Páscoa e o verão anteriores, a coincidir, portanto, com a reunião de Julho de 2015).
Por outro lado, a realização dessa reunião de 2 de Julho de 2015, na sequência do prévio contacto entre Advogados, só faz sentido no pressuposto da existência do prévio conhecimento da intenção de encerrar a sociedade e, bem assim, do conhecimento da cessão de créditos.
Aliás, a realização dessa reunião só tem lógica e faz verdadeiramente sentido no pressuposto de ter existido prévio acordo da Ré no sentido de subscrever tal contrato, ademais quando o mesmo já ía elaborado e, como referido pela testemunha C. B., nada mais aí foi proposto.
Ou seja, se nada mais foi proposto, se a então Mandatária do Autora se apresentou já munida do contrato pronto para assinar, a reunião só poderia ter como fito a recolha da assinatura do legal representante da Ré, posto que, se assim não fosse e nada tivesse sido previamente acordado, a reunião serviria para materializar negociações ou fechar acordo ainda pendente de pormenores, sendo certo que, nesse caso (de prévia inexistência de acordo) a então Advogada do Autora, vista a normalidade do acontecer, nunca traria já consigo o escrito do contrato.
Mais cabe dizer que nem o legal representante da Ré, nem a testemunha C. B. invocaram então qualquer discordância quanto à transmissão da posição contratual, tendo a recusa de subscrição ancorado antes na alegada necessidade de acerto de contas, o que também depõe fortemente no sentido de que a Ré tinha já conhecimento da cessão e tinha acordado no sentido da transmissão da posição contratual.
Igual sentido se colheu do depoimento da testemunha A. M., pai do legal representante da Ré, que referiu, espontaneamente, ser já sabedor da intenção do Autor em encerrar a empresa através do pai do Autor e em reunião havida no escritório do filho.
Em suma e visto o expendido, a Ré não podia ignorar a existência da cessão de créditos operada pelo Autor na sua dupla veste de pessoa singular e de legal representante da Ré, o que logo determinou, por decorrência, a não prova do constante em II.2.
Já a não prova do vertido em II.1 assentou nos depoimentos do legal representante da Ré e da testemunha A. M., pai daquele, dos quais resultou inequívoco que os pagamentos das prestações eram feitos pela entrega de cheques da conta pessoal do pai do legal representante da Ré, sendo os respectivos valores da propriedade daquele seu progenitor».
*
2.2.6.4. Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à análise de todos os documentos juntos aos autos e à audição integral da gravação do depoimento de parte do Autor H. M., do depoimento e declarações de parte do legal representante da Ré, A. M., e dos depoimentos das testemunhas J. M. (contabilista, que foi o responsável pela contabilidade da sociedade Y), T. F. (irmã do Autor), D. M. (companheira do legal representante da Ré), A. O. (pai do legal representante da Ré) e C. B. (advogado, que representou anteriormente a Ré).

Revistos todos os meios de prova produzidos, este Tribunal da Relação chegou às conclusões que a seguir se expõem.
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2.2.6.5. Pontos nºs 11 e 12 dos factos provados

Na decisão ora impugnada o Tribunal a quo deu como provado:

«11. Em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015, a Y Unipessoal, Lda., transmitiu o crédito sobre a Ré, decorrente do contrato referido em 2., para o Autor.
12. Desde dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015 que a Ré tem conhecimento do referido em 11.».

Pretende a Recorrente que tais factos sejam considerados não provados, pelos motivos que se expuseram no relatório do presente acórdão, onde se transcreveram as conclusões das alegações do recurso, que agora aqui se consideram.

Percorridos todos os meios de prova produzidos, este Tribunal da Relação não encontrou nos mesmos qualquer referência no que respeita à transmissão do crédito sobre a Ré ter ocorrido no mês de Maio de 2015, seja em que dia for. Não é um problema de livre convicção do julgador, mas sim de ausência de prova, pelo que não se pode elaborar uma convicção sem substrato probatório. Ninguém o afirmou e não consta de qualquer documento junto aos autos. Também não se vislumbra a possibilidade de estabelecer uma presunção judicial a partir de outros elementos.
Portanto, nunca, em caso algum, podia ser considerado provado que tal transmissão ocorreu «em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015». Consequentemente, se a transmissão não ocorreu em Maio de 2015, por maioria de razão também não se podia dar como demonstrado que «desde dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015 que a Ré tem conhecimento» dessa transmissão.

Posto isto pergunta-se: mas se tal facto não ocorreu em Maio de 2015 quando é que terá ocorrido, se é que ocorreu?

No artigo 3º da petição inicial o Autor afirmou, claramente e sem margem para dúvidas, que «3) Tal constituição do crédito na esfera jurídica do autor adveio da transmissão do crédito do primitivo credor Y – Unipessoal, Lda.”, pessoa colectiva nº ..., para aquele, por contrato de cessão de créditos, em que o Autor é cessionário e a Ré figura como cedente, celebrado em 1 junho de 2015, conforme documento nº 2 que se junta».
Portanto, está claramente definido, na versão do Autor, em que momento foi celebrado o contrato de cessão de créditos: não em qualquer dia incerto do mês de Maio de 2015, mas sim em 01.06.2015.
Tal data de 01.06.2015 consta efectivamente no referido documento nº 2, intitulado de “Contrato de Cessão de Créditos”.
Sucede que a Ré, no artigo 7º da contestação, resume assim a sua posição relativamente ao facto invocado pelo Autor: «Não corresponde à verdade que a Ré tinha conhecimento da alegada “cessão do crédito” e muito menos que essa alegada cessão tenha realmente existido». Além disso, afirmou que antes da extinção da sociedade Y – Unipessoal, Lda., não foi celebrado qualquer contrato de cessão de créditos entre o Autor e esta sociedade. E no artigo 61º da contestação invocou expressamente «a falsidade do contrato de cessão de créditos junto aos autos».
Também invocou a falsidade dos documentos juntos com as comunicações enviadas pelo Autor à Ré a 15.01.2017, 26.05.2017 (recebida a 06.06.2017) e com a notificação judicial avulsa recebida a 13.12.2017, concretamente o “contrato de cessão de créditos” junto a cada uma delas, quer quanto à data que nos mesmos consta, quer quanto às assinaturas neles apostas. Mais disse que o documento nº 2 da p.i. correspondia ao que lhe foi enviado com a notificação judicial avulsa de Dezembro de 2017 (v. artigo 45 da contestação), notificação judicial que também estava junta como doc. nº 4 da p.i. e continha o tal “contrato de cessão de créditos”, e impugnou esse documento, invocando a sua “falsidade”. Afirmou que nos autos existem pelo menos três documentos intitulados de “Contrato de Cessão de Créditos”, quando no contrato apenas se alude a um duplicado e que por isso só podem existir dois originais.
Aliás, a existência dessa impugnação, e do correspondente incidente, foi expressamente reconhecido em despacho proferido em 04.02.2019.

Posto isto, tendo por base a circunstância de o Autor invocar que o contrato de cessão de créditos foi celebrado em 01.06.2015, perscrutamos a prova produzida e em lado algum se mostra confirmado que tal contrato foi celebrado em 01.06.2015. Para além de ser uma data aposta no documento nº 2 (mas impugnada) e de não resultar demonstrada da demais prova documental, pura e simplesmente ninguém aludiu ou confirmou tal data: não o fez o Autor (que no seu depoimento de parte nunca conseguiu indicar qualquer data para situar os factos sobre que depôs; o único facto que conseguiu demarcar temporalmente, foi a sua ida para a Holanda, que mesmo assim situou apenas em finais de 2015 e depois de anteriores hesitações), o legal representante da Ré (depoimento e declarações de parte), a testemunha J. M. (contabilista da sociedade Y, que negou ter conhecimento de qualquer contrato de cessão de créditos), a testemunha T. F. (irmã do Autor), D. M. (companheira do legal representante da Ré), A. O. (pai do legal representante da Ré) e C. B. (anterior advogado da Ré).
Portanto, também não pode ser dada como demonstrada a celebração de tal contrato em 01.06.2015, que correspondia ao concreto facto que integrava a causa de pedir invocada pelo Autor.
Neste ponto, a tese factual do Autor, tal como alegada na p.i., já não pode ser dada como demonstrada.
Sendo assim, neste quadro, importa agora averiguar uma tese factual alternativa ou subsidiária àquela que tinha sido alegada na p.i.: será que esse contrato foi celebrado, ao contrário do declarado no mesmo, noutro dia de Junho de 2015, até ao dia 30, inclusive, do mesmo?
Fazendo a revisão de todos os meios de prova produzidos, este Tribunal da Relação, pelos motivos que a seguir se expõem, não pode considerar demonstrado que o contrato de cessão de créditos, junto com a p.i. como doc. nº 2, foi celebrado em qualquer outro dia de Junho de 2015 e por conseguinte também não pode considerar provado que a Ré teve conhecimento de tal contrato.
Em primeiro lugar, verifica-se que o Tribunal a quo parece ter decidido partindo de uma situação de dúvida. Afirmou na decisão da matéria de facto que se lhe suscitaram «dúvidas no que se refere à concreta data em que se operou tal cessão de créditos, sendo certo que também o Autor não logrou clarificar, em audiência de julgamento, em que data ocorreu tal cessão». E efectivamente assim é: nem o Autor nem a sua irmã (a testemunha T. F.) disseram onde, quando e em que circunstâncias foi celebrado o contrato de cessão de crédito junto à p.i. como documento nº 2. A testemunha J. M., contabilista da sociedade Y, negou ter conhecimento de qualquer contrato de cessão de créditos e afirmou não ser sequer necessária a sua celebração. Todas as demais pessoas ouvidas negaram, directa ou indirectamente, a possibilidade de ter sido celebrado em Maio ou Junho de 2015. Portanto, não há nos autos prova directa e concreta sobre a data da elaboração e assinatura daquele documento nº 2, intitulado de “contrato”.

Em segundo lugar, observa-se que na decisão recorrida se sobrepõe a «“intenção de encerrar” a Y» com a realização da cessão de créditos. Parece assentar neste pressuposto: se o Autor queria “encerrar” a sociedade Y, então necessariamente realizou a cessão de créditos, havendo como que uma espécie de incindibilidade dos dois factos. Chegou-se a considerar que como «em Maio de 2015» existiu «um contacto telefónico entre a então Advogada do Autor e o então Advogado da Ré no sentido agendar uma reunião, dada a “intenção de encerrar” a Y e, em consequência, ser celebrado um contrato de transmissão da posição contratual com o Autor», daí decorre que o contrato de cessão de créditos foi celebrado em dia indeterminado de Maio de 2015. As premissas não conduzem àquela conclusão: por um lado, se em Maio aquela Advogada manifestou ao seu colega a intenção de o Autor “encerrar” a empresa e que queria agendar uma reunião, isso, só por si não permite dar como demonstrado que foi celebrado o contrato de cessão de créditos nesse mês ou mesmo em Junho; por outro lado, se aquilo que a Advogada do Autor queria era celebrar «um contrato de transmissão da posição contratual com o Autor», envolvendo as três partes (Autor, Ré e sociedade Y), daí não decorre que o Autor tenha celebrado com a sociedade Y, da qual era o único sócio, o contrato de cessão de créditos e muito menos em Maio. Como é que o agendamento de uma reunião para finalizar «um contrato de transmissão da posição contratual» permite dar como demonstrada, sem mais, a celebração de um contrato de cessão de créditos?

Em terceiro lugar, a única cessão de créditos invocada pelo Autor na petição inicial foi a corporizada no documento nº 2, que alegou ter sido celebrada em 01.06.2015, como dele consta.
Na decisão da matéria de facto não se aborda o concretamente alegado pelo Autor, que se cinge à cessão de créditos que consta do documento nº 2 da p.i., e o facto de conter a data de 01.06.2015.

Alude-se, em abstracto, a «transmitiu o crédito sobre a Ré», «realizada a cessão de créditos» e «operou tal cessão de créditos», sem nunca relacionar isso com o documento nº 2 invocado pelo Autor. Por isso, fica-nos a dúvida sobre que cessão de créditos é que o Tribunal a quo se está a referir: será à do documento nº 2 ou a outra de conteúdo meramente verbal?

Será por isso que se relacionou directamente a intenção de encerrar a empresa com a realização da cessão de créditos? Basta querer dissolver e liquidar uma sociedade para daí resultar (antes da dissolução e liquidação), sem mais, uma cessão de créditos?
As dúvidas ainda mais se adensam quando a determinado passo da motivação se afirma que na reunião de 02.07.2015, quando a Advogada do Autor apresenta um contrato para «ser assinado pelas três partes, com vista à transmissão da posição contratual para o Autor, torna-se manifesta a já prévia existência da referida cessão de créditos». E mais à frente concretiza: «a realização dessa reunião só tem lógica e faz verdadeiramente sentido no pressuposto de ter existido prévio acordo da Ré no sentido de subscrever tal contrato»; «se a então Mandatária do Autora se apresentou já munida do contrato pronto para assinar», a reunião só tinha como «fito a recolha da assinatura do legal representante da Ré» e que, como a Ré não manifestou «qualquer discordância quanto à transmissão da posição contratual, tendo a recusa de subscrição ancorado antes na alegada necessidade de acerto de contas», isso também depunha «fortemente no sentido de que a Ré tinha já conhecimento da cessão e tinha acordado no sentido da transmissão da posição contratual».
Parece estar a querer dizer-se que, como os advogados já tinham chegado previamente a um consenso sobre a celebração do contrato de cessão da posição contratual, faltando apenas assiná-lo na posterior reunião, isso significava que, no momento em que entre os dois se gerou o consenso sobre a transmissão da posição contratual passou a ter existência a cessão de créditos, que não é aquela que consta do documento nº 2. Sobre isto parece haver algum equívoco: os contratos que as partes pretendem vir a celebrar por escrito não são “contratos” enquanto não estiverem outorgados pelas respectivas partes intervenientes. Depois, mesmo havendo consenso verbal sobre a futura celebração do contrato por escrito, relativo a uma cessão de posição contratual, daí não resulta uma prévia cessão de créditos no momento em que é atingido o consenso verbal.
Em todo o caso, importa reter que todos os negócios jurídicos entre o sócio único e a sociedade unipessoal por quotas obedecem à forma legalmente prescrita e, em todos os casos, devem pelo menos observar a forma escrita. Qualquer que seja o negócio jurídico entre o sócio e a sociedade unipessoal, pelo menos tem de ser observada a forma escrita. É isso que resulta do disposto no artigo 270º-F, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais.
Por isso, no caso dos autos não tinha qualquer cabimento discutir se houve ou não qualquer acordo verbal susceptível de operar a cessão de créditos. Tal acordo só podia ser celebrado por escrito.
E se tinha que ser celebrado por escrito, só poderia sê-lo – para ser válido – antes da dissolução e liquidação da sociedade unipessoal. Portanto, de duas, uma: ou à data da dissolução e liquidação tal documento escrito já existia ou não. Se não existia, não há cessão.
Por outro lado, um tal documento escrito celebrado entre o sócio único e a sociedade unipessoal tinha necessariamente que integrar a documentação da sociedade (v. artigo 270º-F, nº 3, do CSC), pelo menos aquilo que leigamente se denomina de contabilidade (5). Ora, se nos detivermos no depoimento do contabilista da sociedade Y (a testemunha J. M.), somos surpreendidos com a afirmação de que no seu entender não era necessário qualquer documento escrito para “passar” o crédito da sociedade para o sócio. No seu entender, é tudo uma operação contabilística e automática: com a dissolução e liquidação da sociedade “todos os activos e passivos passam para o sócio”, sem necessidade de qualquer documento escrito para operar a transmissão do crédito emergente do contrato de trespasse. Afirmou desconhecer a existência de um contrato escrito de cessão de créditos. O que se conclui deste depoimento é que inexistia na documentação da sociedade um contrato escrito de cessão de créditos na altura da sua dissolução e liquidação.

Em quarto lugar, tendo na petição inicial invocado que o contrato de cessão de créditos, corporizado no documento nº 2, foi celebrado em 01.06.2015, o Autor explicitou na sua réplica que «colocou duas hipóteses à Ré – e ao seu representante legal –: ou aquele elaborava um contrato de cessão de créditos em que a sociedade Y, Unipessoal, Lda. lhe cedia o seu crédito sobre a Ré.

7) Ou, fariam uma cessão da posição contratual, em que a Ré daria consentimento àquela cessão da posição contratual.
8) Após reuniões havidas entre o Autor e a Ré, ambos acordaram que, o contrato que melhor defendia os interesses de cada uma das partes era a cessão da posição contratual.
9) Acto contínuo, foi elaborado o documento de cessão da posição contratual e, no final de Maio de 2015, Autor e Ré reuniram-se para assinar o mesmo.
10) Contudo, no dia agendado para a assinatura da cessão da posição contratual – dia que o Autor não consegue precisar, mas que se situa em Maio de 2015 –, a Ré alegou que precisava de mais tempo para analisar o contrato, e não o assinou conforme estava amplamente acordado;
11) Sendo certo que não assinou nesse dia, nem nunca mais o assinou, apesar de promessas sucessivas que o iria fazer!
12) Dada a mudança de posição da Ré, ao arrepio do acordado na fase pré-negocial à decisão da elaboração cessão da posição contratual, o Autor, porque pretendia extinguir a sociedade Y, Unipessoal, Lda., foi obrigado a alterar a cessão da posição contratual para um contrato de cessão do crédito, o que o fez nos moldes alegados na petição inicial».

O Autor, durante o seu depoimento, numa primeira fase, referiu que informou verbalmente o legal representante da Ré da sua intenção de encerrar a Y (o legal representante da Ré negou ter tido qualquer reunião com o Autor sobre esse assunto em 2015) e que depois entregou o assunto à sua Advogada para tratar dele. O que se demonstra, nomeadamente pelas comunicações trocadas entre a Advogada do Autor e o Advogado da Ré (C. B.), que foi ouvido na audiência e esclareceu integralmente os factos, é que tal reunião foi agendada e teve efectivamente lugar no dia 02.07.2015 (6). Aliás, isso é corroborado pelos depoimentos do Autor, legal representante da Ré e testemunhas D. M., A. O. e T. F., embora nenhuma das testemunhas tenha conseguido indicar a data certa. Também resulta do depoimento da testemunha C. B. que a Advogada do Autor lhe colocou as duas hipóteses referidas pelo Autor na sua réplica: a celebração de um contrato de cessão de créditos ou de um contrato de cessão de posição contratual. Como a Advogada do Autor entendia que o contrato que melhor defendia os interesses do Autor era o de cessão de posição contratual, foi por esse que se optou. Nessa reunião, em que estavam os dois referidos Advogados e o legal representante da Ré, a Advogada do Autor trouxe consigo um contrato previamente elaborado, de cessão de posição contratual, com data de Maio de 2015, mas o legal representante da Ré recusou-se a assiná-lo por entender que previamente era necessário proceder a determinados acertos de contas (que o Tribunal a quo explicita na sua decisão) (7).

Ora, se de harmonia com a própria versão do Autor constante da réplica, as partes «acordaram que, o contrato que melhor defendia os interesses de cada uma das partes era a cessão da posição contratual» e no «dia agendado para a assinatura da cessão da posição contratual», que já vimos ter sido no dia 02.07.2015 (e não na data em que na réplica se diz não se recordar ao certo mas situar-se em finais de Maio), a Ré «não o assinou conforme estava amplamente acordado» e devido a esse facto o Autor «foi obrigado a alterar a cessão da posição contratual para um contrato de cessão do crédito», então necessariamente que esse “contrato” foi “celebrado” posteriormente a 02.07.2015.
E se foi “celebrado” (rectius, elaboração e assinatura do documento nº 2 junto com a p.i.) posteriormente a 02.07.2015, verifica-se que o foi já depois de a sociedade Y ter sido dissolvida e liquidada (v. ponto 8 dos factos provados: «A sociedade Y – Unipessoal, Lda. encontra-se dissolvida e liquidada desde o dia 30 de Junho de 2015 – cfr. documento de fls.47 verso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido»). Portanto, esse documento, elaborado e assinado posteriormente à reunião de 02.07.2015, nem é “contrato”, por a Y já não ter personalidade jurídica, nem opera qualquer cessão de créditos.

Em quinto lugar, se já existisse cessão de créditos em 02.07.2015, que sentido faria ocorrer então uma reunião? Estando o crédito já na esfera jurídica do Autor qual o objectivo que este pretendia atingir, sendo certo que também a transmitente já se encontrava extinta e por isso nada podia transmitir?
Estando tanto o Autor como a Ré representados por Advogados, caso já existisse cessão de créditos, naturalmente que a então Advogada do Autor não necessitaria de propor qualquer contrato, com data de Maio de 2015, para ser assinado pelo Autor, pela Ré e a sociedade Y. Além disso, deontologicamente, teria de avisar o Advogado da contraparte da prévia existência da cessão de créditos.
Embora já sem contributo decisivo para a formação da convicção, se já tivesse sido celebrado o contrato de cessão que sentido faria estar a insistir com o legal representante da Ré, como sucedeu em 2016, para que este assinasse um contrato com data anterior à dissolução e liquidação da sociedade Y? Tal sucedeu, designadamente, na reunião ocorrida em finais de Fevereiro de 2016, na casa da testemunha A. O., na qual participaram o actual Advogado do Autor, A. M., D. M. e o Autor. Também a troca de comunicações dos Advogados, juntas aos autos durante a audiência de julgamento (na sequência da competente dispensa do sigilo por parte da Ordem dos Advogados), evidencia que em 2016 ainda se colocava a hipótese de celebração de tal contrato (8), não obstante a transmitente já não existir.
E a realidade objectiva é esta: o primeiro contrato de cessão de créditos só é fisicamente exteriorizado, pela primeira vez, quando foi enviada à Ré uma carta datada de 15.01.2017, remetida pelo Autor, mas com o carimbo da sociedade Y, então já extinta.
Se até pelo menos 2016 nunca ninguém – fora o Autor e a sua irmã – tinham ouvido falar naquele contrato de cessão de créditos (que o Autor apelidou de “documento interno”) e até Janeiro de 2017 ninguém tinha visto o contrato escrito (naturalmente excluindo o Autor), a partir daí assiste-se a uma proliferação de documentos. O próprio Tribunal recorrido, embora não tenha tirado qualquer ilação dessa circunstância, afirma «a posterior emissão, pelo Autor, de documentos sob a epígrafe de “cessão de créditos” (cfr. fls.121 e seg.), com a mesma data, mas em diferentes momentos e moldes».
Mas se isto é estranho, ainda mais o é o facto de a sua anterior Advogada nunca ter mencionado a existência de tal contrato de cessão de créditos corporizado no documento nº 2 junto com a p.i.. Nunca o mencionou ao Advogado da Ré (v. depoimento do Dr. C. B.), designadamente na reunião de 02.07.2015, em que apresenta a este e ao legal representante da Ré um contrato de transmissão de posição contratual que já não tinha significado face à extinção da Y e se existisse o contrato de cessão de posição contratual já careceria nessa parte de objecto (o crédito já estaria na titularidade do Autor). Nem sequer nas trocas de comunicações ocorridas em 2016, entre esses dois Advogados, referiu, em qualquer momento, a existência do contrato de cessão de créditos. Por isso, de duas, uma: ou violou um dever deontológico ou tal contrato ainda não existia em 02.07.2015. O que é mais plausível é esta última hipótese. É a que mais se adequa à versão constante da réplica, onde se afirma que na sequência da reunião para a assinatura do contrato de cessão de posição contratual (sabe-se que ocorreu em 02.07.2015 e que foi a mandatária do Autor que levou o contrato para ser assinado pelo legal representante da Ré), perante a recusa de o representante da Ré em assinar o contrato, o Autor «foi obrigado a alterar a cessão da posição contratual para um contrato de cessão do crédito».
Em suma, por todos estes motivos (e outros ainda se poderiam expor, mas estes já nos parecem suficientes), os pontos nºs 11 e 12 não podiam ser considerados provados pelo Tribunal a quo.

Termos em que, na procedência da apelação nesta parte, se determina a eliminação dos pontos 11 e 12 dos factos provados e a sua passagem para os factos não provados:

3. Em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015, a Y Unipessoal, Lda., transmitiu o crédito sobre a Ré, decorrente do contrato referido em 2., para o Autor.
4. Desde dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015 que a Ré tem conhecimento do referido no parágrafo antecedente.
*
2.2.6.6. Ponto nº 1 dos factos não provados

Na decisão ora impugnada o Tribunal a quo deu como não provado que «1. Os cheques referidos em 9 foram entregues pela Ré».

Nesta parte, a Recorrente argumenta que:

«32ª - O tribunal a quo deu como não provado, no PONTO 1 e 2 dos Factos não provados, que:“1. Os cheques referidos em I.9 foram entregues pela Ré.” e “2. Os cheques referidos em I.9 foram entregues na convicção de que estaria a entregá-los ao gerente daquela sociedade.”, contrariando a prova testemunhal produzida, concretamente as declarações prestadas pelo Autor, em sede de audiência de julgamento. Ademais, encontra-se assente que até Março de 2016, todas as prestações previstas no contrato de transmissão de posição contratual com reserva de propriedade, celebrado entre a Ré e a sociedade Y, foram pagas.
33ª - Dar como provado, por um lado, que o Autor recebeu os cheques melhor identificados no ponto 9 dos Factos Provados (o que resulta de acordo entre as partes), o Autor considerar que a Ré lhe pagou essas prestações e, por outro lado, dar como não provado que os cheques foram entregues pela Ré, trata-se de uma contradição. Note-se que o Autor confessa nas suas peças processuais, transcritas no corpo das presentes alegações, o recebimento, pela Ré, dessas quantias.
34ª - Tratando-se de facto admitido por acordo, não sujeito à livre apreciação do juiz, conforme o disposto no nº 5 do artigo 607º do Código de Processo Civil».

Vejamos.

No artigo 63º da contestação/reconvenção, a Reconvinte alegou o seguinte:

«O Autor recebeu 10 (dez) cheques que lhe foram entregues pela Ré na convicção de que estaria a entrega-los ao gerente daquela sociedade e para cumprimento do contrato celebrado com aquela sociedade, a saber (DOC. 5):
- Cheque nº 6539842033, com data de 15.07.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
- Cheque nº 4739842035, com data de 15.08.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
- Cheque nº 5639842034, com data de 15.09.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
- Cheque nº 9039842041, com data de 30.09.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 6.200,00 (seis mil e duzentos euros).
- Cheque nº 8139842042, com data de 15.10.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
- Cheque nº 7239842043, com data de 15.11.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
- Cheque nº 633984204, com data de 15.12.2015, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
- Cheque nº 5439842045, com data de 1501.2016, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
- Cheque nº 4539842046, com data de 15.02.2016, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
- Cheque nº 3639842047, com data de 15.03.2016, sacado sob a conta 59645710001, do Banco ..., no montante de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros)».
Os cheques em causa são os referidos no ponto 9 dos factos provados.

No artigo 40º da réplica, no que respeita ao alegado naquele artigo pela Reconvinte, o Reconvindo/Autor disse:

«O Autor apenas admite como verdadeiro parte dos factos alegados no item 63 da reconvenção, uma vez que corresponde à verdade que a Ré entregou àquele, por conta do contrato de transmissão do estabelecimento comercial, identificado no item 4 da petição inicial, num primeiro momento, na qualidade de representante legal da sociedade Y e, posteriormente, como cessionário, os cheques identificados no item 63 da reconvenção».
Portanto, foi admitido por acordo que «Os cheques referidos em 9 foram entregues pela Ré». E se assim é, tal facto tem de agora ser levado aos factos provados (v. artigo 607º, nº 4, 2ª parte, do CPC).

Termos em que se determina a eliminação do ponto 1 dos factos não provados e o aditamento do seguinte facto aos factos provados, com o nº 11:
«11. Os cheques referidos em 9. foram entregues pela Ré.».
*
2.2.6.6. Ponto nº 2 dos factos não provados

Na decisão ora impugnada o Tribunal a quo deu como não provado que «2. Os cheques referidos em 9. foram entregues na convicção de que estaria a entregá-los ao gerente daquela sociedade».

A impugnação assenta essencialmente na seguinte argumentação:

«35ª – Já quanto à convicção com que os pagamentos foram efectuados, atendendo-se às declarações do Legal Representante da Ré, prestadas em sede de audiência de julgamento, gravadas em suporte digital, 00:00:00 a 00:23:36, conforme ata de audiência de discussão e julgamento do dia 30/04/2019, transcritas no corpo das presentes alegações, o tribunal não poderia deixar de dar como provado que o pagamento foi feito pela Ré na convicção de que estaria a pagar à sociedade Y. É que tais declarações, aliadas aos restantes factos, já enumerados no corpo das presentes alegações, designadamente a omissão, à Ré e ao então advogado da Ré, da circunstância da sociedade Y ter sido dissolvida e liquidada, bem como o facto de os cheques continuarem a ser emitidos à Y, sendo posteriormente endossados pelo Autor (que, de resto, não obstante alegar a cessão e a sua comunicação à Ré, não legrou demonstrar que transmitiu a esta meio de pagamento alternativo), impunham, numa análise conjunta e ponderada da prova produzida, dar como provado que os pagamentos foram efectuados na convicção de que estariam a ser feitos à sociedade Y. Porém, o tribunal a quo deu tal facto como não provado, violando o disposto no artigo 607º, nº 4 do CPC».

Apreciando.

A Recorrente alicerça a sua impugnação apenas num meio de prova: as «declarações do Legal Representante da Ré, prestadas em sede de audiência de julgamento, gravadas em suporte digital, 00:00:00 a 00:23:36, conforme ata de audiência de discussão e julgamento do dia 30/04/2019, transcritas no corpo das presentes alegações».
O referido legal representante começou por dizer que os cheques eram entregues pelo seu pai ao “Sr. H. M.” (Autor), no restaurante que este tinha em …, o que fazia de seis em seis meses. Nunca referiu, de motu próprio, a Y, mas apenas o Sr. H. M.. Somente quando a Sra. Advogada da Ré o direcciona para a resposta é que referiu: «Porque era o sócio-gerente da Y».
Parece-nos que isso é insuficiente para dar como demonstrado tal facto, sendo certo que também resulta dos depoimentos da irmã do Autor e do pai do legal representante da Ré, uma pessoalização do destinatário: os cheques foram “entregues ao Sr. H. M.”, eram “para o H. M.”, foram deixados no restaurante para o Sr. H. M. e todo um conjunto de expressões semelhantes. Quando essas duas pessoas falaram sobre os cheques sempre os relacionaram com a pessoa do Autor e não, nunca por sua iniciativa, com a Ré.
Aliás, a credibilidade que nos merece o depoimento e declarações de parte do legal representante da Ré é igual à que nos merece o depoimento de parte do Autor, que é pouca, sendo patente nos mesmos que o interesse que tinham na causa se sobrepunha ao dever de esclarecer a verdade. Só admitiam e desenvolviam o que lhes interessava. “Fugiam” das questões que os podiam comprometer.
No caso concreto do legal representante da Ré, entre muitos outros pontos, começou por negar ter tido qualquer reunião com o Autor ou seus representantes. A muito custo, como se fosse algo sem importância ou trivial, lá admitiu ter participado na reunião de 02.07.2016. Depois, negou ter visto qualquer documento, quando até o seu próprio Advogado da altura, que participou na reunião, disse que a Advogada do Autor apresentou um documento para o legal representante da Ré assinar. E poderíamos continuar a enumerar as incongruências do que disse, muitas das quais até são patentes face ao confronto com o depoimento prestado pelo seu pai (também A. M.).
Em suma, a prova produzida, designadamente aquela que o Recorrente invoca, não convence da realidade deste ponto de facto.

Termos em que nesta parte improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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2.2.7. Reapreciação de Direito

2.2.7.1. Da cessão de créditos

Em 28.05.2014, a sociedade Y – Unipessoal, Lda., outorgou com a Ré um contrato de trespasse, denominado contrato de transmissão de estabelecimento comercial com reserva de propriedade, do estabelecimento comercial de restauração e bebidas que vem girando sob o nome “Restaurante W”, instalado no rés-do-chão e 1º andar do prédio urbano sito na Praça de ..., freguesia de ..., ..., do concelho de Guimarães.
A Ré ficou obrigada a pagar à sociedade Y o preço de € 95.000,00, em prestações, nos termos referidos no ponto nº 3 dos factos provados.
O Autor, invocando ter adquirido, por contrato de cessão de créditos celebrado em 01.06.2015, o crédito que a sociedade Y detinha sobre a Ré em consequência do contrato de trespasse celebrado entre estas duas sociedades, peticionou nesta acção a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 39.100,00, acrescida de juros de mora, em virtude de a Ré ter deixado de pagar as prestações vencidas a partir de Fevereiro de 2016.
Na sentença recorrida considerou-se que a Y Unipessoal, Lda., em dia não concretamente apurado do mês de Maio de 2015, transmitiu para o Autor o crédito sobre a Ré decorrente do contrato de trespasse, pelo que julgou a acção totalmente procedente e condenou a Ré no pedido.
No âmbito do recurso a Recorrente pugnou pela modificação da decisão sobre a matéria de facto, invocando não ter existido qualquer cessão de créditos até 30.06.2015.
Em conformidade com o disposto no artigo 577º, nº 1, do Código Civil, a cessão de crédito não é mais do que a transmissão da titularidade de um direito de crédito. O credor transmite-o a quem o adquire.
Interessa-nos apenas a cessão que tem por fonte um negócio jurídico de transmissão do crédito entre cedente e cessionário, para o qual não é necessário obter o consentimento do devedor.
A forma do negócio é definida pelo tipo base pelo qual se opera a cessão do crédito. Já vimos que, desde logo face ao disposto no artigo 270º-F, nº 2, do CSC, tal negócio tinha necessariamente de ser reduzido a forma escrita.
No caso dos autos, o Autor invocou que o contrato de cessão foi celebrado no dia 01.06.2015 e assumiu a forma escrita, corporizado no documento nº 2 junto com a p.i. Foi essa concreta causa de pedir que foi invocada e não qualquer outra, pelo que é sobre essa que importa pronunciarmo-nos.
Em consequência da modificação da decisão sobre a matéria de facto, conclui-se que o Autor não logrou demonstrar que no dia 01.06.2015 foi celebrado um contrato escrito de cessão de créditos entre a sociedade Y e o Autor. Não demonstrou a cessão do crédito no dia 01.06.2015 nem em qualquer outro dia anterior à dissolução e liquidação da sociedade Y, ocorrida em 30.06.2015.
Portanto, o Autor não demonstrou que o crédito que a sociedade Y detinha sobre a Ré lhe foi transmitido por negócio jurídico com a forma por si invocada.
Não tendo o Autor demonstrado a titularidade do direito de crédito, não existe fundamento para a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia que peticionou, relativa a prestações vencidas e não pagas, emergentes do contrato de trespasse anteriormente celebrado entre a Ré e a sociedade Y.
Termos em que a apelação deve nesta parte ser julgada procedente e a Recorrente absolvida do pedido.
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2.2.7.2. Do enriquecimento sem causa

Em consequência do contrato de trespasse, a sociedade Y passou a deter sobre a Ré um direito de crédito relativo ao preço estabelecido, cujo pagamento ficou acordado ser feito em prestações.
A titular do direito de crédito – a sociedade Y – Unipessoal, Lda. – encontra-se dissolvida e liquidada desde o dia 30 de Junho de 2015.
Posteriormente a essa data, estando a titular do direito de crédito já extinta, o Autor recebeu da Ré dez cheques para cumprimento do contrato celebrado com a Y, no valor global de € 19.700,00 (dezanove mil e setecentos euros), que fez seu.
A Ré deduziu reconvenção contra o Autor peticionando a condenação deste no pagamento da aludida quantia de € 19.700,00.
Alicerçou tal pedido no enriquecimento sem causa, argumentando que «os mencionados 10 cheques foram creditados na conta sociedade Y – Unipessoal, Lda., apesar de tal sociedade já não existir nas datas de apresentação a pagamento» e, dada «a extinção da sociedade, só o Autor como único sócio e gerente poderia movimentar a conta bancária», o qual «fez sua a quantia supra referida, correspondente à soma das quantias ínsitas nos cheques vindos de referir, bem sabendo que a mesma não lhe pertencia e sem qualquer causa que o justificasse».
Sustentou que «o crédito do cheques na conta bancária da sociedade Y – Unipessoal, Lda., traduz-se num empobrecimento da Ré/Reconvinte que viu o seu património diminuir, também sem justificação, uma vez que já nada mais devia à sociedade Y – Unipessoal, Lda., atenta a renuncia a qualquer crédito operada aquando da declaração de inexistência de passivo e de ativo por parte do seu único sócio (o Autor) no âmbito do procedimento especial de extinção imediata da sociedade, previsto Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de entidade comerciais (Anexo III do DL. 76-A/2006, de 26 de Março)».

Dito isto, incumbe apreciar se estão reunidos os requisitos do enriquecimento sem causa, figura prevista no artigo 473º, nº 1, do Código Civil.
Determina esse preceito que «aquele que, sem causa justificativa enriquecer à causa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente e locupletou».
O conceito de causa do enriquecimento é um dos mais discutidos e dos mais difíceis de precisar, pela extrema variedade de situações a que tem de aplicar-se. A lei civil não o definiu, limitando-se cautelosamente a facultar ao intérprete algumas indicações capazes de, como meros subsídios, auxiliarem a sua formalização pela doutrina e pela jurisprudência.

São três os requisitos constitutivos, de verificação cumulativa, do enriquecimento sem causa:

a) Existência de um enriquecimento, ou seja, a obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial;
b) Obtenção desse enriquecimento à custa de outrem;
c) Ausência de causa justificativa para o enriquecimento.

Este instituto não se confunde com a responsabilidade, na medida em que não visa operar qualquer reparação de danos e não é indispensável a existência de qualquer acto censurável do enriquecido.
Ora, no caso dos autos, a Ré/Reconvinte logrou demonstrar esses três requisitos.
O Autor fez sua a quantia de € 19.700,00 que a Ré lhe entregou para pagamento das prestações do preço do contrato de trespasse celebrado com a sociedade Y.
E o Autor não tinha direito a embolsar essa quantia, uma vez que não era titular de direito de crédito sobre a Ré, e a sociedade Y já se mostrava extinta. Não podia embolsar o montante dessas prestações que lhe foi entregue pela Ré, nem em nome próprio, por não ter demonstrado que lhe havia sido transmitido o crédito, nem em representação da sociedade Y, uma vez que esta já não existia.
Além disso, até à extinção da sociedade Y, era esta sociedade a titular do direito de crédito. Embora sem interferência decisiva na solução (9), na acta em que o Autor deliberou requerer a extinção imediata da sociedade Y, declarou, enquanto sócio único, que «não existe activo ou passivo a liquidar» e que considerava «a empresa liquidada a partir da presente data». Nessa sequência, recorreu ao procedimento administrativo de extinção imediata da sociedade e em 30.06.2015 foi inscrito definitivamente no registo comercial o acto de dissolução e encerramento da liquidação da sociedade, através da inscrição 2, apresentação 244/20150630.
Ao declarar que inexiste activo produziu uma renúncia abdicativa (10) ao crédito que a sociedade Y tinha sobre a Ré, pelo que nada mais poderia haver desta, sendo certo que também o Autor não era titular de um direito de crédito sobre a Ré que lhe permitisse receber os cheques e embolsar os correspondentes valores.
Assim se decidiu também no acórdão da Relação do Porto de 19.10.2015, proferido no processo 122702/13.5YIPRT.P1 (11) (relator Oliveira Abreu), onde se fez constar que o sentido a conferir a uma declaração como aquela que aqui está em causa, produzida pelo único sócio da sociedade «afigura-se-nos ser o de renunciar a todos os créditos que pudessem emergir da sua actividade societária. Através da declaração em apreço, a sociedade D…, Lda. renunciou aos créditos a que eventualmente ainda tivesse direito. É certo que o documento em causa nada diz, nem tinha que dizer, sublinhamos, atenta a natureza e particularidade do mesmo, quanto à aceitação por parte do aqui Réu (…), mas isso não significa que este não tenha dado a sua anuência à remissão de eventuais dívidas. Com efeito, reiteramos, o artº. 863º, do Código Civil não exige que o consentimento do devedor, a aceitação da proposta de acordo, seja manifestado por forma expressa, pelo que, a aceitação pode ser tácita e válida como tal, nos termos dos conjugados artºs. 217º, e 219º do Código Civil. De resto, o Réu (…) ao invocar a remissão abdicativa, sustentando a renúncia da sociedade credora, cuja extinção imediata foi declarada por inexistência de activo e passivo a liquidar, consubstancia inequívoca e válida aceitação tácita, considerada enquanto tal. Afigura-se-nos que estamos perante uma remissão abdicativa que, nos termos do citado artº. 863º, do Código Civil, fez extinguir a obrigação reclamada nos presentes autos».

Concluiu-se no aludido acórdão que «a declaração do único sócio da sociedade declarada extinta, prestada no âmbito do procedimento instaurado ao abrigo do Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais (Anexo III do DL 76-A/2006 de 29 de Março), qual seja, a inexistência de activo e passivo a liquidar da sociedade, afigura-se-nos ser o de renunciar a todos os créditos que pudessem emergir da sua actividade societária».

Em suma: o Autor obteve uma vantagem patrimonial, à custa da Ré, e não tinha direito à mesma por não ser o titular do direito de crédito.
Por isso, também nesta parte procede a apelação. A reconvenção deve ser julgada procedente.
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2.3. Sumário

1 – Tendo o Autor invocado ser titular de um direito de crédito sobre a Ré por lhe ter sido cedido pela anterior credora, sociedade unipessoal por quotas da qual era o único sócio, cabia-lhe demonstrar essa cessão de créditos.
2 – Um negócio jurídico de cessão de créditos entre a sociedade unipessoal por quotas e o sócio único deve observar, pelo menos, a forma escrita.
3 – Demonstrando-se que a credora, sociedade unipessoal por quotas, encontra-se dissolvida e liquidada desde o dia 30.06.2015, a cessão de créditos, entre aquela sociedade e o seu sócio único, tinha necessariamente de ser celebrada antes de tal data.
4 – A declaração, prestada pelo sócio único no âmbito do procedimento administrativo de extinção imediata da sociedade, de que «não existe activo ou passivo a liquidar», consubstancia renúncia a todos os créditos que possam emergir da actividade societária – uma remissão abdicativa.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e, em sua substituição, decide-se:

a) Absolver a Ré do pedido;
b) Condenar o Reconvindo a pagar à Reconvinte a quantia de € 19.700,00 (dezanove mil e setecentos euros).
Custas pelo Recorrido.
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Guimarães, 17.10.2019
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Alberto Taveira (2º adjunto)


1. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 143.
2. Disponível em www.dgsi.pt.
3. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pág. 163. No mesmo sentido Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, pág. 463.
4. Ob. cit., págs. 168 e 169.
5. A deliberação social de «liquidação com extinção imediata da referida sociedade» teve lugar no dia 16.06.2015 (v. doc. nº 2 junto com a contestação) e consta da respectiva acta que nessa data foram aprovadas as contas, momento em que o sócio único declarou que «não existe activo ou passivo a liquidar». Necessariamente que nessa prestação de contas deveria o doc. nº 2 junto com a p.i. integrar os documentos de suporte daquela.
6. Além do depoimento, existe nos autos, a fls. 156, uma comunicação escrita daquele Advogado da Ré para a Advogada do Autor, onde a determinado passo diz: «Como não poderia deixar de ser, lembro-me bem dessa reunião, sendo que não posso deixar de transmitir que tive o cuidado de verificar que a mesma ocorreu no dia 02.07.2015, data em que a Y já se encontrava dissolvida e liquidada, sem que tenha sido transmitido tal facto quer a mim, quer ao meu cliente. Na reunião agendada foi apresentado o documento a que me referi na minha anterior comunicação (o mesmo que a Colega refere), que não foi assinado pelo meu cliente, Sr. A. O. (filho), pelas razões que a Colega também refere (na minha opinião legítimas)».
7. Em comunicação de 18.05.2016, junta a fls. 155, a então Advogada do Autor explicitou expressamente: «No final de Maio de 20115, contactei o Colega informando que pretendia dissolver a Y e assim transferir o crédito sobre a X para o sócio gerente. Relembro que, depois de o Colega ter consultado o seu constituinte, marcamos reunião, no seu escritório, para assinar documentação nesse sentido - onde constava inclusive o NIB para onde o seu constituinte deveria fazer os pagamentos!!..Em tal reunião, previamente agendada para recolher a assinatura do Sr. A. O. (sócio gerente da X) estivemos nós e o Sr. A. O. (filho). Surpreendentemente, ou não, o seu constituinte manifestou que apenas assinaria os documentos após um acerto de contas (Luz, agua e computador). Assim, o seu cliente ficou na posse do documento afirmando que apenas no faria chegar depois do acerto de contas e através do Colega.
8. Na comunicação junta a fls. 147, o Exmo. Advogado do Autor, ao responder a um email do anterior Advogado do Autor que imputava àquele a colocação da hipótese de «celebração de um contrato de cessão de créditos com data anterior à do encerramento da sociedade, sempre foi recusada pelo meu cliente, tendo tal hipótese sido apresentada por uma outra Colega em outras ocasiões», disse que existia «um lapso de percepção que o Ilustre Colega teve resultante da nossa conversa, sobre uma eventual intenção “de celebração de um contrato de cessão de créditos com data anterior à do encerramento da sociedade», mas acabou por dizer que na conversa telefónica que antecedeu a troca de comunicações electrónicas «é que foi sugerido fazermos uma declaração entre todos – cedente, cessionário e o devedor – de modo a facilitar a justificação contabilística dos pagamentos por parte do V. constituinte, e nessa declaração é que colocaríamos a data que o V. constituinte entendesse». Porém, a testemunha C. B. afirma que recusou a celebração de qualquer contrato com data anterior à dissolução e liquidação da sociedade e que a sua posição está retratada no email de 29.02.2016, junto a fls. 145.
9. Fundamental é o facto de a sociedade Y já se encontrar extinta e de o Autor não ser titular de direito de crédito sobre a Ré.
10. A remissão abdicativa constitui uma das causas de extinção das obrigações, traduzindo-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida – art. 863º, nº 1, do Código Civil. Embora tenha natureza contratual, nada impede que a aceitação da renúncia seja tácita.
11. Disponível em www.dgsi.pt.