Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1762/22.0T8GMR.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
ALEGAÇÕES DE RECURSO
NULIDADE DA SENTENÇA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
CONTRADIÇÃO
PROVA DIRETA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS E A PROVA DE PRIMEIRA APARÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DA AUTORA IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A junção de documento com o recurso, com a alegação de ter-se tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância, tem a sua admissibilidade restringida aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida.
II - A nulidade da sentença por falta de fundamentação corresponde à ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira.
III – Por sua vez, a nulidade por contradição ocorre quando há um vício real de raciocínio do julgador em que a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direção diferente. Consequentemente, saber se o enquadramento jurídico feito na sentença e a conclusão a que nela se chegou são, ou não, acertados ou injustos, constitui questão a envolver eventual erro de julgamento e nunca fundamento de nulidade, que se prende tão só com a estrutura formal da decisão.
IV- Há situações em que é manifesta a dificuldade de prova direta dos factos constitutivos de um direito, o que remete o julgador para o recurso a técnicas de facilitação probatória, como sejam as presunções judiciais e a prova de primeira aparência.
V - Em causa não está, todavia, um mecanismo de inversão do ónus da prova, nem se dispensa o demandante da atividade probatória, sequer se faz recair sobre o demandado a prova do contrário, exigindo-se apenas, para o seu afastamento, a produção de contraprova.
VI - Logo que a parte contrária efetue a contraprova pertinente, renasce o ónus da prova pleno a cargo do autor.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

I. EMP01..., Lda, intentou a presente ação contra EMP02..., S.A., e EMP03..., S.A., pugnando pela procedência da ação e, em consequência:
a) Serem as 1ª e 2ª Rés condenadas a reconhecer o furto do veículo TP, e seja declarada a perda total do bem, nos termos da apólice contratada;
b) Serem as 1ª e 2 ª Rés condenadas a reconhecer que o furto em causa encontra-se abarcado pelas cláusulas contratuais gerais e especiais previstas na apólice de seguro contratada entre a Autora e a 1ª Ré;
c) condenar a 1ª Ré a pagar ao proprietário do veiculo (a 2ª Ré), a quantia do capital seguro contratado – no caso 116.000,00 € – nos termos da apólice contratada com a Autora e nos termos do regime do contrato a favor de terceiro, previsto no artigo 433 e ss. do Código Civil;
d) Ser a 1ª Ré condenada a pagar à Autora a quantia que esta pagou aquela, após a caducidade do seguro e por conta deste, que na data é superior a 1.414,24 €, acrescida do que vier a liquidar-se em execução de sentença, acrescidos de juros de mora, contabilizados à taxa legal;
e) Ser declarada a caducidade do contrato de locação financeira, nos termos do artigo 1051, alínea e) do Código Civil;
f) Ser a 2ª Ré condenada a restituir à Autora os valores pagos por esta àquela, desde a caducidade do contrato de locação financeira, até à presente, a titulo de prestação mensal com todos as suas componentes plasmadas no documento nº ... que se junta, que, na data, se cifram em montante superior a 7.780,56 €, e ainda a condenação da 2ª Ré a entregar à Autora, o diferencial entre o valor que receber da 1ª Ré, nos termos da apólice de seguro contratada com a 1ª Ré, e aquele que a Autora lhe deve, nos termos do contrato de locação financeira, que, na data se cifra em 22.544,23 € (116.000,00 € - 93.455,77€), num total de 30.324,79 €;
g) Tudo acrescido de juros de mora à taxa legal, contabilizados desde o dia .../.../2021.
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A Ré EMP02..., contestou pondo em causa a ocorrência do furto da viatura, pugnando pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.
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A Ré EMP03..., ofereceu contestação pugnando que, em caso de procedência do pedido de condenação da 1º Ré no pagamento à 2ª Ré do capital seguro contratado, e sempre condicionado ao efetivo pagamento da indemnização por parte da 1ª Ré à 2ª Ré, a 2ª Ré ser condenada a pagar à Autora a diferença, se positiva, entre o valor da indemnização recebida e o valor devido a título de caducidade do contrato acrescido de juros de mora desde a data da perda total até efetivo e integral pagamentos a apurar em sede de liquidação de sentença, devendo, no mais, improceder o pedido deduzido pela Autora contra a 2ª Ré na alínea f) do petitório e, em qualquer caso, deverá a presente ação ser julgada improcedente, por não provada, devendo a ora 2ª Ré ser absolvida dos demais pedidos contra si formulados.
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A autora exerceu o contraditório, pugnando pela improcedência das exceções deduzidas, concluindo como na petição inicial.
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A final foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu as Rés “EMP02..., S.A.” e EMP03..., S.A., de todo o pedido contra elas formulado.
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Inconformada com a sentença veio a autora recorrer, formulando as seguintes conclusões:

1. O presente recurso de apelação foi interposto da douta sentença proferida pela Mª Juiz “a quo”, a fls.. do processo, que julgou totalmente improcedente os pedidos formulados pela Autora.
2. A douta decisão está ferida de vícios que importam a nulidade da sentença.
3. A decisão recorrida não está, no que concerne a alguns pontos da matéria de facto, conforme os elementos de prova constantes do processo, o que é conducente à necessidade de reapreciação da prova produzida, designadamente da prova gravada, e não faz uma adequada aplicação do direito, pelo que este recurso versa sobre matéria de facto e direito.
4. O Tribunal não fez uma análise criteriosa e objetiva acerca do contributo de cada meio de prova para a demonstração de um determinado facto ou conjunto deles.
5. O Tribunal fez uma deficiente valoração crítica das provas, pelo que se impõe declarar nula a sentença recorrida por falta de fundamentação (artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC).
6. Sem prescindir, as respostas do Tribunal no que concerne à matéria de facto são contraditórias entre si ou, pelo menos, enfermam de clara ambiguidade/obscuridade que torna a decisão ininteligível.
7. A sentença recorrida padece de clara contradição entre a decisão e a fundamentação, pelo que deve ser declarada nula ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC.
8. Nesta data o Recorrente teve conhecimento dos documentos ... a ... –cuja junção se requer ao abrigo dos artigos 651.ºe 425.ºdo CPC –que infirmam o sentido da decisão do Tribunal a quo quanto à factualidade e que são essenciais para a descoberta da verdade dos factos e boa administração da justiça material.
9. Estes documentos demonstram, inequivocamente, a ocorrência e modus operandi destes furtos de viaturas de alta gama.
10. A Recorrente impugna a decisão da matéria de facto e considera incorretamente julgados os factos provados 35), 36), 37), 40), 41), 42), 43), 44), 45), 47), 48), 51), 56), 63), 65), 66), 68) e 69) e os factos não provados 92), 93), 94), 95 e 96).
11. Os autos oferecem concretos meios probatórios que impõem decisão diferente quanto à matéria de facto.
12. No dia 08 de Junho de 2021, o veículo foi furtado, por terceiros desconhecidos, à porta de casa do legal representante da Autora.
13. A prova do furto e as circunstâncias em que o mesmo ocorreu decorre da participação criminal do furto apresentada perante as autoridades policiais e das imagens gravadas em DVD com áudio e vídeo do furto captadas pelo sistema de videovigilância da habitação do legal representante da Autora - documento ... e ... da petição inicial.
14. Portanto, estes concretos documentos suportam a impugnação da decisão quanto aos factos 35, 36, 37, que deverão ser julgados como não provados e os factos 92, 94 e 95 como factos provados.
15. Devem ser valorados os depoimentos das testemunhas AA, BB e CC e do legal representante da Autora.
16. A testemunha AA prestou declarações na audiência de 19 de Janeiro de 2023, inicio 10:01 e fim 10h12 minutos e são relevantes as concretas passagens dos minutos 03:48 a 4:05, 07:50 a 8:17, 8:23 a 8:34, a testemunha BB prestou declarações na audiência de 19 de Janeiro de 2023 (inicio 10.12 e fim 10:29) e as passagens mais relevantes encontram-se nos minutos 0.30 a 1:59, 7:50 a 8:00, 11:22 a 11:50 e a testemunha CC prestou declarações audiência de 19 de Janeiro de 2023 (início 10:57 e fim 11:17) passagem do minuto 15:40.
17. As três aludidas testemunhas estavam em casa do legal representante da Autora na noite do furto, testemunharam a sua descoberta e visualizaram as imagens de videovigilância pelo que, também, estes depoimentos são idóneos a suportar a alteração da decisão quanto aos factos 35, 36 e 37, que deverão ser julgados como não provados e quanto aos factos 92, 93, 94 e 95 que deverão passar a factos provados.
18. O furto não foi simulado e não ocorreu com o recurso a chaves originais do carro.
19. As chaves existentes do veículo (e recebidas pela Autora aquando da entrega do carro) são quatro (uma de maiores dimensões com display, duas com comando e um lingote) -cfr. informação prestada pelo fornecedor EMP04... – documento ... junto com a resposta da Autora de 22.06.2022 e a informação prestada pela ... –fls 207, e corroborada pela própria 1.ª Ré, que a requerimento da Autora junta prova fotográfica do envelope enviado pela EMP03... à EMP04...;
20. Estes documentos são, assim, bastantes para demonstrar a bondade da impugnação do ponto 40 que deverá ser julgado como não provado e do ponto 96 que deverá ser julgado como provado, tudo ao contrário do decidido na sentença.
21. As declarações do legal representante legal da Autora, DD prestadas em audiência de 19 de Janeiro de 2023 (início 12:21 e fim 13:24 minutos), passagens dos minutos 09:25 a 12:25, 14:50 a 16:25), conduzem a uma diferente decisão dos referidos pontos 40 que deve ser julgado como não provado e o ponto 96 que deve passar, integralmente, à factualidade provada.
22. Este tipo de veículos de alta gama são furtados com recursos a chaves falsas, clonagem de chaves ou método de ligação direta (modus operandi).
23. Este modus operandi está atestado nos fragmentos de notícias que documentam casos de veículos que são furtados com recurso ao método “duplicação de chaves” (documento ... da resposta de 22.06.2022 e os documentos ... junto a este recurso) resulta do alinhamento do curso de investigação criminal – documento ... junto a este recurso e do teor do relatório de investigação judiciária relativo ao primeiro furto deste carro datado de 24 de Janeiro de 2023 e remetido, a 30 de Janeiro de 2023, pela Polícia de Segurança Pública ao Tribunal a quo através do ofício com a referência 237641/20....
24. Esta prova documental é, assim, suficiente para demonstrar a bondade da impugnação dos pontos 35, 36, 37, 51 que deverão ser julgados como não provados e dos pontos 92, 94 e 95 que deverão ser julgados como provados.
25. Neste ponto, devem, igualmente, ser valoradas as declarações do legal representante da Autora, DD, na audiência do dia 19 de Janeiro de 2023 (início 12:11 e fim 13:24) passagens aos minutos 14:50 a 17:21 para a alteração da resposta dos pontos 35, 36, 37, 51 que deverão ser julgados como não provados e dos pontos 92, 94 e 95 que deverão ser julgados como provados.
26. O Tribunal formou a sua convicção com base num relatório de sinistro, subscrito pelo averiguador da seguradora, EE (que não é perito) e cujas conclusões não se encontram sustentadas por qualquer perícia ou sequer em qualquer documento técnico que confirme as suas afirmações,
27. Ainda com referência às chaves do veículo, verifica-se que o documento com os resultados dos dados das chaves, porque está incompleto e mais não é do que duas folhas avulsas sem referência alguma à origem, não pode ser valorado como prova e não tem qualquer força probatória no julgamento dos factos controvertidos, pelo que os factos 41, 42, 43, 45 devem passar a não provados, em sentido diferente do decidido na sentença.
28. O veículo já havia sofrido um furto a 04 de Junho de 2021, do qual resultaram danos avultados, mais, tais danos permitem mesmo inferir, que o segundo furto devidamente documentado nos autos pelas imagens de videovigilância da residência do legal representante da Autora, pode ter sido praticado pelos mesmos autores, que desta vez consumaram os seus intentos cfr. Relatório de Inspeção Judicial junto aos autos através do ofício da PSP de ... com a referência 237641/20..., em 30 de janeiro de 2023 - prova idónea a infirmar a resposta do Tribunal ao facto 56, que deve ser julgado como não provado.
29. Estes danos decorrem, ainda, do depoimento do representante legal da Autora, DD prestado em audiência de 19 de Janeiro de 2023, (início 12:21 e fim 13:54)- passagens dos minutos 06:44 a 09:01 –e da testemunha CC, cujo depoimento foi prestado em 19 de Janeiro de 2023 (início 10:57 efim11:17) –passagem dos minutos 07:29 a 08:50, sendo ambos bastantes para infirmar a resposta dada ao facto 56 que deve ser dado como não provado, ao contrário do decidido na sentença.
30. O furto anterior e os danos daí resultantes, designadamente eletrónicos, podem estar na origem da falta de registo – ou registo desatualizado – das chaves do veículo, permitindo executar/facilitar o segundo furto.
31. Neste sentido, são relevantes as declarações do legal representante da Autora, prestadas em audiência do dia 19 de Janeiro de 2023, (início 12:21 e fim 13:24,) passagens nos minutos 10:40 a 36:28) na sustentação da impugnação aos pontos 40, 41, 42, 43, 44, 45 que devem ser julgados como não provados.
32. O depoimento do representante legal da Autora encontra reflexo e credibilidade na demais prova produzida nos autos, designadamente no Relatório de Inspeção Judiciária, no qual estão descritos os danos sofridos pelo veículo, e bem assim, a prova fotográfica dos mesmos, a prova documental que atesta os mencionados danos prévios no veículo provenientes do primeiro furto e a ocorrência, atualmente, destes furtos com recurso ao mesmo modus operandi (chaves falsas).
33. A ocorrência do furto com recurso a chaves falsas ou clonadas parece compatível (i) com o facto do veículo ter sido levado, pela primeira vez, uns dias antes (ii) com o facto de a consumação deste segundo furto ter ocorrido num local calmo, tranquilo, sem grande movimento e no qual, com tempo e sem levantar suspeitas, se podia intercetar o sinal e gerar uma nova chave.
34. Nenhuma prova foi produzida quanto à matéria do ponto 63) pelo que deverá ser julgado não provado, ao contrário da sentença.
35. O valor de mercado da viatura em causa nos autos não é inferior a Eur.116.000,00 sendo este, igualmente, o valor pela qual estava segura.
36. O veículo em causa é um ..., ..., versão especial, desportiva, Performance PACK M, com diversos extras.
37. Dos autos não resulta qualquer prova que infirme este valor.
38. Os factos 68 e 69 devem ser julgados não provados, ao contrário do decidido na sentença recorrida, por absoluta falta de prova.
39. Não há factos anormais ou perplexidades relacionadas com este furto.
40. A rua onde ocorreu o furto é calma e a garagem estava cheia de lixo e entulho, excedentes dos trabalhos a decorrer na habitação o que justifica o estacionamento, nessa noite, do carro fora da garagem, sendo, aqui, de salientar as declarações das testemunhas BB- depoimento do dia 19 de Janeiro de 2023 (início 10:12 e fim 10:29 minutos) passagens dos minutos 10:29 a 12:30 - e CC - depoimento do dia 19 de Janeiro de 2023 (início 10:57 e fim 11:17) passagens referentes aos minutos 10:30 a 13:23 – e o depoimento do legal representante legal da Autora - audiência dia 19 de Janeiro de 2023 (início 12:21 e fim 13:24) passagens dos minutos 28:55 e 30:12 e a confirmação constante do relatório elaborado pelo averiguador da 1.ª Ré, a testemunha FF;
41. As declarações destas testemunhas e o depoimento do legal representante da Autora são, assim, exímios a infirmar os factos 47 e 48 que devem ser julgados como factos não provados, em clara oposição ao decido na sentença.
42. O representante legal da Autora nunca exigiu a perda total do veículo, sendo que quanto ao registo de avarias do carro e ao acidente anterior, o legal representante da Autora esclareceu - depoimento de 19 de Janeiro de 2023 (início 12:21 e fim 13:54) – passagens dos minutos 02:30 a 05:11 e 23:44 - que o carro registou algumas avarias no grupo propulsor, todas reparadas no prazo de garantia e não existia qualquer desconforto ou litígio com a marca.
43. Este depoimento é, assim, bastante para roupar de forma diferente a resposta aos factos 65 e 66 que devem ser julgados como não provados.
44. A Autora não estava em dificuldades financeiras e nenhuma prova resulta dos autos nesse sentido, sendo o depoimento da testemunha GG, prestado no dia 19 de Janeiro de 2023 (início 11:55 e fim 12:07), passagens dos minutos 03:58 a 04:38, bastante para contradizer convicção do Tribunal quanto a esta matéria.
45. Nenhuma contraprova - que incumbia às Rés, sobretudo à 1.ª Ré Seguradora – foi conseguida no sentido de afastar ou criar séria dúvida sobre a ocorrência do sinistro, não sendo suficiente a tese e depoimento da testemunha FF, averiguador do sinistro contratado pela seguradora (depoimento não totalmente isento), que se limita a verter considerações e conclusões não corroboradas por qualquer outra prova.
46. Nenhuma prova – para além da convicção insustentada do averiguador de sinistros – foi produzida pelas Rés Recorridas que contrarie ou torne duvidosa (dúvida que se exige séria) os factos alegados pela Recorrente.
47. O Tribunal recorrido não decidiu bem, impondo-se decisão diferente quanto aos factos impugnados.
48. Assim, os factos 92), 93), 94), 95) e 96) devem dar-se como provados com a seguinte redação:
Ponto 92): No dia 08/06/2021, o veículo foi furtado por terceiros desconhecidos à porta de casa do legal representante da Autora;
Ponto 93): Pela 1 hora do dia 09/06/2021 – madrugada do dia seguinte ao furto -, legal representante da Autora encontrava-se em sua casa com uns amigos, sita da Rua ..., freguesia ..., concelho ..., sendo que, acompanhou os seus amigos ao exterior da sua residência quando, incrédulo, verificou que o veículo TP não se encontrava estacionado no local onde tinha deixado;
Ponto 94): Pelas 23 horas e 20 minutos do dia 08, um veículo, que não conseguiu identificar, aproximou-se do veículo TP e, volvidos cerca de 30 segundos, este veículo acende os piscas em sinal do mesmo ter sido aberto.
Ponto 95): De seguida, sai do veículo não identificado um individuo, com um capuz, a tapar a cabeça, em direção ao veículo TP e abre a porta do mesmo, colocando o veículo TP a funcionar e arranca com o mesmo.
Ponto 96): Aquando da compra do veículo em questão, a Autora tenha apenas recebido três chaves com comando e uma com ponta metálica que apenas serve para abrir as portas;
49. Já no que concerne aos factos provados, quer porque não resulta dos autos qualquer prova quanto à demonstração desta factualidade, quer porque a prova existente aponta em sentido diverso ao decido na sentença, devem os pontos 35), 36), 37), 40), 41), 42), 43), 44), 45), 47), 48), 51), 56), 63), 65), 66), 68) e 69) julgar-se como não provados.
50. A alteração da decisão e fundamentação de facto – nos moldes que se deixam sustentados – permite o preenchimento de todos os pressupostos do direito à indemnização no âmbito do contrato de seguro e/ou perante o seu incumprimento (cfr. artigo 1.º e 102.º do DL 72/2008 de 16 de Abril).
51. Da matéria de facto já considerada provada, bem como da decorrente da alteração pretendida pela Recorrente, resulta demonstrada a celebração de um contrato de seguro entre as partes com a verificação de todos os seus elementos típicos, designadamente as coberturas facultativas, como furto ou roubo.
52. Da factualidade provada resulta, ainda, a ocorrência do furto.
53. Verificando-se, nos presentes autos, a ocorrência do sinistro (furto ou roubo), a pretensão da Autora e, ora, Recorrente terá, necessariamente, de proceder na sua integralidade.
54. Perante a ocorrência do sinistro, deve a seguradora realizar a sua prestação indemnizatória que deve abarcar o valor da viatura furtada tendo presente o seu valor comercial, de mercado e pelo qual estava segura.
55. Verifica-se que o Tribunal a quo, não decidiu bem, sendo que a sentença proferida nos autos deve ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente procedente os pedidos da Autora.
56. Pelo que, ao assim não ter procedido, a decisão em crise fez uma desadequada aplicação do Direito, designadamente, para além do mais, dos artigos 607.º, 615.º, 414.º todos do Código de Processo Civil e artigos 342.º e 346.º, do Código Civil e artigo 1.º e 102.º do DL 72/2008 de 16 de Abril, que violou, devendo por isso, ser revogada e substituída por outra que julgue procedentes os pedidos da Autora.
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A recorrida EMP02... contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

As questões decidendas a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:

- Da admissibilidade da junção de documentos na fase de recurso;
- Saber se ocorre a nulidade da sentença;
- Saber se houve erro na apreciação da prova, devendo em consequência a decisão ser alterada no sentido da procedência da pretensão da autora.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
3.2.1. Factos Provados

Na 1ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
1) O Autor celebrou um contrato de locação financeira com a 2ª Ré, sociedade EMP03..., S.A., em Março de 2019, através do qual, esta cedeu aquela a utilização do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de ..., modelo ... ..., matrícula ..-TP-.., contra o pagamento de uma renda mensal.
2) A propriedade do veículo automóvel ligeiro de passageiros, de ..., modelo ... ..., matrícula ..-TP-.. é da 2ª Ré.
3) No âmbito do contrato de locação financeira em causa, foi constituído, na esfera jurídica da Autora o direito desta adquirir a propriedade do veículo em causa, no final do contrato, se assim o pretendesse e sem que a 2ª Ré se pudesse opor a tal intenção, mediante o pagamento do valor residual fixado por ambos os outorgantes.
4) Assim, por efeito do contrato de locação financeira (leasing), 2ª Ré cedeu a utilização do veículo identificado à Autora, por 100 meses, com inicio em 29 de Março de 2019 e fim em 28 de Julho de 2027.
5) O capital financiado do contrato de locação financeira foi 94.308,94 €, com valor residual de 23.577,24 €.
6) Nestes termos, por efeito do contrato celebrado entre a Autora e a 2ª Ré, constituiu-se um direito de opção de compra a favor da Autora, mediante o pagamento de um valor residual de 23.577,24 €, acrescido de IVA, no final do contrato.
7) O valor financiado pela 2ª Ré à Autora, deveria ser pago em 100 prestações mensais e sucessivas, sendo que, em cada prestação mensal, estavam incluídas as seguintes rubricas: valor do capital incluído na prestação, valor dos juros, valor do seguro automóvel contratado com a 1ª Ré, valor de um seguro proteção, valor das comissões, valor do IVA de cada prestação, valor total a pagar daquela prestação em concreto e o valor em divida no ato de pagamento de cada prestação.
8) No âmbito do contrato de locação financeira, a autora aceitou subscrever através de protocolo disponibilizado pela 2ª Ré, um seguro automóvel que cobrisse danos próprios, nomeadamente, em caso de furto ou roubo, assumindo a 2ª ré a posição de tomador e beneficiário do seguro, assumindo a autora a posição de segurada.
9) Nessa sequência, em 28/03/2019, foi celebrado entre o Autor e a 1ª Ré, um contrato de seguro automóvel, titulado pela apólice n.º ...70, respeitante ao veículo ligeiro de passageiros, de ..., modelo ... ..., matrícula ..-TP-.. (doravante identificado por veiculo TP).
10) Por tal apólice, e acessoriamente ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, a Autor contratou a cobertura de danos próprios, cobrindo, entre outros, atos/riscos de furto ou roubo.
11) A cobertura de furto ou roubo acordada entre a Autora e a 1º Ré, tem como capital seguro 116.000,00€, sem aplicação de qualquer franquia;
12) Sendo que, nos termos do documento nº ... que se junta, pode ler-se, no capitulo “Capital Seguro”, que “Em caso de sinistro, a Seguradora pagará: Em caso de perda total, o capital seguro calculado com a seguinte tabela de desvalorização anual: 1º ano 0%, 2º ano: 0%; 3º ano: 15%, 4º ano: 27%, 5º ano: 40% …”.
13) Nos termos das condições gerais contratadas entre a Autora e a 1ª Ré, do seguro em causa, na cláusula 2, fixou-se que “O presente contrato garante, até aos limites e nas condições legalmente estabelecidas: b) A satisfação da reparação devida pelos autores de furto, roubo, furto de uso de veículos ou de acidentes de viação dolosamente provocados.”
14) Nos termos das condições especiais contratadas pelo seguro subscrito pela Autora e 1º Ré, ficou acordado na clausula 4ª que: “Mediante a contratação desta Condição Especial, a EMP02... garante o pagamento dos danos do veículo seguro, resultantes de desaparecimento, destruição ou deterioração, em consequência de furto, roubo ou furto de uso, consumado ou tentado.
a) Desaparecimento do veículo
- A indemnização será paga decorridos 40 dias, contados desde a participação da ocorrência às autoridades competentes, se no fim desse período o mesmo não tiver sido encontrado;
- O valor da indemnização será calculado de acordo com o capital seguro, tal como previsto na Cláusula 4.ª da presente Condição Especial.
b) Roubo de peças, aparelhos, acessórios ou instrumentos
- A EMP02... pagará o valor em novo dos danos causados com o desaparecimento de peças ou acessórios que façam parte integrante do equipamento standard do veículo;
- No caso dos extras que tenham sido discriminados com indicação do respetivo valor, a EMP02... pagará o valor declarado na proposta contratual;
- No caso dos extras não discriminados e/ou cujo valor não tenha sido indicado na proposta, o pagamento abrangerá tais extras, os quais, para efeitos de indemnização como perda total, serão autonomizados do veículo seguro, sendo aplicada a tabela de desvalorização anexa às presentes condições (Anexo 2).
Caberá à EMP02... determinar a parte do capital seguro correspondente ao veículo e aos extras.
c) Danos em caso de tentativa de furto ou roubo - Serão totalmente indemnizados os danos causados ao veículo seguro em resultado de tentativa de roubo, furto ou furto de uso.
d) Reposição de chaves e substituição da fechadura
- No caso de furto ou roubo das chaves, ou de tentativa, em consequência dos quais sejam provocados danos irrecuperáveis nas chaves e/ou na fechadura do veículo seguro, a EMP02... garante a reposição das chaves e/ou a substituição da fechadura, até ao limite máximo de 350,00 € por sinistro e anuidade;
- A presente garantia funciona desde que tenha sido feita a respetiva participação às autoridades.
15) O pagamento do prémio de tal seguro contratado era efetuado de forma anual, no valor de 2.121,48 €;
16) Sendo pago, conjuntamente com a prestação mensal resultante da locação financeira, no valor mensal de 176,78 Euros, referente ao valor devido a titulo de seguro automóvel.
17) O seguro em causa renovava-se – e renovou-se – ano a ano, de forma automática.
18) O valor do capital de seguro, para efeitos de indemnização, da apólice em causa, era de 116.000,00 €.
19) Quem utilizava o veiculo TP era o legal representante da A..
20) Pelas 8.00 horas dia 09/06/2021, o legal representante da Autora dirigiu-se ao Quartel de ... da Guarda Nacional Republicana de Guimarães, e apresentou a queixa de furto do veículo TP, dando origem ao auto de inquérito com o NUIPC 274/21.....
21) No mesmo dia 09/06/2021, legal representante da Autora informou a Ré, por e-mail e por telefone, do alegado furto do veiculo TP.
22) Sucede que, decorridos os 40 dias sobre a data da participação do furto, a 1ª Ré não procedeu ao pagamento à Autora nem à 2ª Ré, de qualquer valor, no âmbito do contrato de seguro celebrado com aquela.
23) Entretanto, por despacho proferido pelo DIAP ..., em 15/10/2021, o processo de inquérito nº 274/21...., foi arquivado por “inexistência de indícios quanto à autoria do furto”.
24) Em Dezembro de 2021, a Ré enviou uma comunicação à Autora e à 2ª Ré, recusando o pagamento da indemnização, alegando que “com base nos dados facultados, nas diligências entretanto efetuadas e nos elementos recolhidos para instrução do processo, concluímos existirem irregularidades no furto, que o mesmo não terá ocorrido num contexto aleatório, súbito e imprevisto”.
25) A 2ª Ré, em Março de 2022, comunicou à Autora, por e-mail que se junta como documento nº ..., que “rescindia” o contrato de locação financeira celebrado com aquele produzindo os efeitos da rescisão “contratual à data da comunicação da seguradora (10/12/2021), por Perda Total.”
26) Nesse mesmo e-mail, a 2ª Ré solicitou à Autora o pagamento do valor de liquidação do financiamento à data de 10/12/2021, que cifrou em 94.864,21€, deduzindo a renda de 28/12/2021 de 1.408,44€ que o Autor pagou, perfazendo o montante em divida de 93.455,77€.
27) Ora, desde a data do furto até à resolução do contrato de locação financeira, a Autora pagou à 2ª Ré as rendas ns.º 28, 29, 30, 31, 32, 33 e 34 do plano de pagamento que se junta como documento nº ..., num total de 7.780,56 €.
28) Bem como a Autora pagou à 1ª Ré, no mesmo período, o prémio do seguro no valor de 1.414,24 € (176,78 € X 8 mensalidades).
29) Foi reconhecido e declarado pela 1ª Ré e 2ª Ré a perda total TP.
30) O veiculo TP tinha sido furtado na localidade de ..., no dia 04/06/2021, furto esse participado à GNR, dando origem ao NUIPC 000421/21...., veículo que foi recuperado em ..., após diligências feitas pela Autora – nomeadamente, publicação do furto nas redes sociais – acabando o mesmo veículo a ser detetado em ..., tendo a Policia de Segurança Publica, dessa localidade, apreendido o mesmo em 06/06/2021 e entregue à Autora.
FACTOS PROVADOS ORIUNDOS DA CONTESTAÇÃO DA 1ª RÉ:
31. Por escritura de fusão, ocorrida em 19/12/2018, a demandada foi incorporada na sociedade comercial EMP02..., ..., passando a ter a designação social de EMP02..., ..., S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL.
32. Sucedendo nos direitos e nas obrigações da anterior EMP02..., S.A..
33. A R., após ter recebido a participação de sinistro, encomendou uma averiguação independente, por forma a confirmar a sua efetiva ocorrência, bem como apurar as respetivas causas e circunstâncias.
34. O veículo de matrícula ..-TP-.. era um ..., modelo ..., do ano de 2017, com cerca de 55.000,00 quilómetros percorridos.
35. Trata-se de um veículo que dispõe de um avançado e sofisticado sistema eletrónico de segurança e antifurto.
36. De modo que não é possível colocar o veículo em funcionamento, e em marcha, sem a utilização de uma das suas chaves originais.
37. Designadamente, não é possível colocá-lo em marcha através de chaves falsas, ou através do método conhecido por “ligação direta”.
38. Ao perito, quando este o contactou, o DD, legal representante da A. e condutor habitual do ..-TP-.., entregou quatro  chaves, alegando serem as quatro chaves originais do veículo, ou seja, aquelas que lhe haviam sido entregues aquando da aquisição.
39. Trata-se da chave principal do veículo, automática, de maiores dimensões, e de três chaves manuais, com comando, as suplentes.
40. Acontece que, aquando da entrega das chaves ao Sr. perito, uma das três chaves suplentes encontrava-se desprovida do respetivo comando, apenas sendo entregue a ponta metálica, destinada a ser introduzida no canhão.
41. No seguimento, a R. solicitou uma leitura das chaves, diretamente, a um concessionário da ..., tendo por esta sido informada, relativamente à chave principal do veículo e às duas chaves com comando obtidas, as únicas passiveis de leitura, apenas duas estão associadas ao ..-TP-.., não tendo a terceira qualquer registo de leitura ou dados do veículo.
42. Por outro lado, das duas chaves que possuem leitura, uma indica que a data da última utilização foi no dia 06/06/2021, pelas 18h57, e a outra, a principal, indica como data da última utilização o dia 08/12/2019, pelas 21h47, não sendo utilizada há vários meses.
43. Não foi explicado ao Sr. Perito, nem à aqui R., em face da leitura das chaves, como foi possível ao condutor do ..-TP-.. colocá-lo em funcionamento e marcha no dia 07 e 08 de junho de 2021, pois nenhuma das chaves apresenta registos em tais dias.
44. Tal como não foi esclarecido o paradeiro do comando da chave manual em falta.
45. Como não foi fornecida explicação para o facto de uma das chaves com comando da viatura não apresentar qualquer leitura relativamente à mesma.
46. Por outro lado, segundo o Sr. DD informou o perito, terá alegadamente estacionado a viatura ..-TP-.. na Rua ..., em ..., alegadamente em frente à moradia que é a sua residência, pelas 20.30h do dia 08 de junho de 2021.
47. Segundo alegou, estacionou o veículo na via pública, em frente à sua residência, apesar de a mesma possuir garagem fechada destinada a veículos, onde poderia perfeitamente ter estacionado o ..-TO-...
48. Esse local em causa é via pública, em ..., com constante movimento de veículos e peões, composta de zona residencial, predominantemente moradias, com sofisticados sistemas de segurança.
49. Na versão da A., esta terá saído de casa, pela 01h00 do dia 09 de junho de 2021, para acompanhar o seu amigo AA, que lhes estava a fazer um “biscate” em pladur/gesso cartonado na mesma residência.
50. Mais informou que, após ter verificado as imagens de videovigilância, o veículo terá sido levado em 30 segundos!!
51. Tal apenas seria possível mediante a utilização de uma das chaves originais do veículo ..-TP-...
52. O perito estabeleceu diversos contactos pessoais com residentes no local do alegado furto, que indicaram que no período indicado não se aperceberam de qualquer barulho ou movimentação suspeita.
53. Acrescentando desconhecer em absoluto qualquer situação de furto nas imediações.
54. Prosseguindo com as diligências de que foi incumbido, o Sr. perito apurou, junto da G.N.R. ..., que existe uma outra ocorrência relativa ao veículo ..-TP-.., registada sob o NIUPC 421/21.... naquele órgão de polícia.
55. Com efeito, no dia 04 de junto de 2021, apenas 4 dias antes do pretenso furto alegado nestes autos, a ora A., através do mesmo Sr. DD, participou o furto do ..-TP-.., alegadamente quando o estacionara em frente a um restaurante no centro de ....
56. O veículo ..-TP-.. apareceu apenas dois dias após, em 06/06/2021, no centro de ..., em perfeito estado de conservação e sem vestígios de arrombamento ou estroncamento.
57. Tendo sido informado da localização do ..-TP-.., junto à P.S.P. ..., através da sua companheira HH, que por sua vez foi informada de tal facto por mensagem via “Messenger”.
58. Tornando o ..-TP-.. a desaparecer uma meras horas após ter sido recuperado, no dia 06/06/2021.
59. Efetuada uma pesquisa detalhada à RNA sobre eventuais pedidos de assistência em viagem, constatou-se a existência de um pedido de táxi na noite de 04/06/2021, noite do alegado primeiro desaparecimento do ..-TP ...
60. O que é de estranhar, pois o Sr. DD, condutor do ..-TP-.., estaria acompanhado de um casal de amigos, que dispunham de viatura própria, mas que alegadamente não aceitaram dar-lhe boleia até casa, ou até às autoridades policiais...
61. Segundo consta do auto policial junto à P.I. como doc. n.º ..., o legal representante da A. situa a ocorrência do furto pelas 23.20h do dia 08/06/2021, mas que apenas tenha sido pelo mesmo participado às autoridades pelas 9h00 da manhã do dia 09/06/2021.
62. Acresce que, apurou-se junto da G.N.R. ... que, na noite dos pretensos factos alegados nestes autos não ocorreu qualquer outro furto de veículo nas imediações da cidade ....
63. Não existe, na cidade ..., expressão de furtos integrais de veículos de ..., ....
64. Por outro lado, o veículo ..-TP-.. foi já objeto de uma participação de um sinistro de danos à ora R., em 2019, com o n.º de processo ...69....
65. No âmbito de tal processo de sinistro, a A. procurou que a R. assentisse em considerar o ..-TP-.. em situação de perda total e o indemnizasse com base no valor de capital seguro, o que a R. recusou.
66. O que indicia que, já nessa altura, a A. se queria “desfazer” do ..-TP-...
67. Nas alegadas circunstâncias, a R. não aceitou que tenha ocorrido o (suposto) furto da viatura, nem qualquer evento danoso – sinistro - enquadrável na cobertura de contratual de furto, assumindo-se como definição de “furto”.
68. O veículo do A., com as caraterísticas atrás alegadas, e cerca de 55.000 quilómetros percorridos, teria um valor comercial não superior 45.000 euros.
69. Valor pelo qual se encontram veículos da mesma marca e modelo, à venda no mercado automóvel, designadamente no ....
Factos oriundos da contestação da 2ª ré
70. No exercício da sua atividade e na qualidade de Locadora e proprietária do veículo, a 2ª Ré celebrou em 22.03.2019 com a Autora, na qualidade de Locatária, o Contrato de Locação Financeira n.º ...93, o qual teve por objeto o veículo automóvel ..., modelo ... e .... Aut. (G11) com a matrícula ..-TP-...
71. Para efeitos da celebração do Contrato de Locação Financeira, o veículo identificado supra identificado, e aqui em causa nos autos, foi adquirido pela ora Interveniente ao fornecedor designado EMP04..., pelo preço de € 116.000,00 (cento e dezasseis mil euros), IVA incluído.
72. Nos termos do Contrato de Locação Financeira, a Autora obrigou-se ao pagamento do montante correspondente ao financiamento concedido mediante o pagamento de 48 (quarenta e oito) rendas no montante de € 2.068,68 (dois mil e sessenta e oito euros e sessenta e oito cêntimos) acrescidas do montante de € 4,00 (quatro euros) a título de despesas de processamento, tendo ainda sido estipulado um valor residual para aquisição do veículo de € 29.000,01 (IVA já incluído).
73. O referido Contrato sofreu alterações no decurso do mesmo, os quais determinaram a alteração do montante respeitante à renda mensal e consequente prazo do Contrato.
74. Nos termos das condições particulares do Contrato de Locação Financeira celebrado, a Autora, enquanto Locatária, obrigou-se ainda a pagar mensalmente o valor de € 176,78 (cento e setenta e seis euros e setenta e oito cêntimos) referente ao valor devido a título de seguro automóvel.
75. Nos termos do disposto no Artigo 11.º n.º 1 das Condições Gerais do Contrato, o veículo dado à locação sempre teria que ser objeto de seguro “cobrindo danos    provocados a terceiros pela respetiva utilização (responsabilidade civil), incluindo passageiros transportados, com o capital seguro de € 50.000,000,00 e cobrindo os danos próprios em virtude de choque, colisão, capotamento, furto ou roubo, incêndio, raio e explosão e riscos acessórios como a quebra isolada de vidros e roubo de acessórios. O capital seguro deve ser idêntico ao Valor de Venda do Bem e considerar uma franquia não superior a 8%, devendo ser o Locador o beneficiário deste seguro”.
76. Nessa sequência, a Autora optou por subscrever o seguro automóvel através de protocolo disponibilizado pela 2ª Ré, a qual assume a posição de Tomador e Beneficiário do Seguro.
77. Conforme decorre das respetivas condições do seguro, o mesmo cobria danos próprios, designadamente, furto, roubo, incêndio, raio e explosão.
78. Nos termos do Contrato celebrado e, bem assim, nos termos do disposto no artigo 15º do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira aprovado pelo Decreto-Lei 149/95, de 24.06, o risco de perda do bem corre por conta da própria Locatária, possuidora do bem em causa.
79. A este propósito, estabelece o artigo 11º, n.º 4, alínea a) das Condições Gerais do Contrato "Em caso de perda total, o presente Contrato ter-se-á por caducado, considerando-se como data de caducidade aquela que constar do documento escrito emitido pela respetiva Seguradora onde esta declare a perda total".
80. Em conformidade com a declaração emitida pela respetiva Seguradora, veio a 2ª Ré a reconhecer a perda total do veículo e consequente caducidade do Contrato à data de 10.12.2021.
81. A EMP02... declinou a responsabilidade de pagamento da indemnização, conforme comunicação remetida a 10.12.2021.
82. Até à data da caducidade do Contrato (10.12.2021), encontravam-se liquidadas 33 prestações a título de rendas, seguro auto, seguro proteção e comissão de processamento.
83. Posteriormente à data da caducidade (10.12.2021) veio a ser liquidada a prestação de 28.12.2021, a qual veio entretanto a ser anulada pela 2ª Ré, tendo o respetivo valor sido deduzido ao valor devido a título de caducidade do Contrato.
84. A 2ª Ré procedeu à anulação das rendas vencidas posteriormente à data da caducidade do Contrato (10.12.21), tendo para o efeito emitido as respetivas notas de crédito conforme comunicação datada de 24.03.2022.
85. Sendo certo que, como referido, após a data da caducidade a Autora apenas liquidou uma prestação – prestação n.º 34 – com vencimento em 28.12.2021.
86. Na sequência da caducidade do Contrato é a Autora devedora à 2ª Ré da quantia de € 94.864,21, correspondente ao capital em dívida no âmbito do Contrato à referida data (€ 76.773,09), acrescido do proporcional dos juros remuneratório e da comissão de gestão de perda total, conforme preçário de serviços em vigor, todos acrescidos do valor do IVA à taxa legal em vigor.
87. Ao referido valor, como já referido, deduziu a 2ª Ré o valor liquidado pela Autora a título de prestação n.º 34, no valor de € 1.408,44, ascendendo assim a dívida ao valor de € 93.455,77, conforme comunicação remetida à Autora.
88. Decorre do artigo 11º das Condições Gerais do Contrato, que "Em caso de perda total, o presente Contrato ter-se-á por caducado, considerando-se como data de caducidade aquela que constar do documento escrito emitido pela respetiva Seguradora onde esta declare a perda total".
89. O presente Contrato caducou à data de 10.12.2021.
90. Porquanto, à luz do Contrato, são devidas as prestações até à data da caducidade do Contrato, ou seja, sempre seriam devidas as prestações 28, 29, 30, 31, 32 e 33.
91. Pelo que, apenas haveria lugar à devolução dos valores liquidados por referência a 28.12.2021, valor esse entretanto deduzido ao valor em dívida na sequência da caducidade do Contrato).
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3.1.2. Factos Não Provados

Inversamente, foram dados como não provadas os seguintes factos
92. No dia 08/06/2021, o veículo foi furtado por terceiros desconhecidos, à porta de casa do legal representante da Autora.
93. Pela 1 hora do dia 09/06/2021 – madrugada do dia seguinte ao furto –, legal representante da Autora encontrava-se em sua casa com uns amigos, sita na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., sendo que, acompanhou os seus amigos ao exterior da sua residência, quando, incrédulo, verificou que o veiculo TP não se encontrava estacionado no local onde tinha deixado.
94. Pelas 23 horas e 20 minutos do dia 08, um veículo, que não conseguiu identificar, aproximou-se do veiculo TP e, volvidos cerca de 30 segundos, este veiculo acende os piscas em sinal do mesmo ter sido aberto.
95. De seguida, sai do veículo não identificado um individuo, com um capuz a tapar a cabeça, em direção ao veículo TP e abre a porta do mesmo, colocando o veículo TP a funcionar e arranca com o mesmo.
96. Aquando da compra do veículo em questão, a Autora tenha apenas recebido 3 chaves com comando e uma com ponta metálica, que apenas serve para abrir as portas.
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3.2. O Direito
3.2.1. Da junção de documentos com as alegações de recurso
Com as alegações de recurso a recorrente juntou três documentos consubstanciando uma noticia de jornal publicada em 25 de Julho de 2023 sobre o desfecho de uma operação policial sobre furtos de veículos ocorridos nas cidades de Guimarães, ..., ... e ...; uma informação da GNR datada de 5 de setembro de 2023 do seguinte teor: «1. Relativamente ao vosso pedido de colaboração, na nossa pesquisa detetamos uma viatura a qual corresponde às características pretendidas, nomeadamente ano da viatura, furtada e recuperada. 2. Caso seja do seu interesse obter mais informações sobre o método de furto e outras informações deve contactar a entidade Judicial»; e um Manual do Curso de Investigação Policial – Criminalidade Automóvel – Ano 2017, justificando que os factos relatados pelos dois primeiros documentos só após o encerramento da audiência ocorreram e o outro tornou-se pertinente em face da fundamentação da sentença.
Resulta do disposto no art. 651º, n.º 1, do CPC que as partes podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o art. 425º, do CPC, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.
Por sua vez, o art. 425º, do CPC estabelece que depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
Da articulação lógica destes preceitos resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excecional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na ação um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.
Quanto à primeira situação, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objetiva ou superveniência subjetiva.
Objetivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado. Subjetivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado[1].
No caso de superveniência subjetiva é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante o carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis.
Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento.
Quanto à junção do documento ter-se tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância, tal pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.
Nesta circunstância “a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância”[2].
O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida.
E daí o documento tornar-se necessário só por virtude desse julgamento, quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperado junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado”[3].
No caso, os dois primeiros documentos têm data de 25 de Julho de 2023 e de 5 de setembro de 2023, sendo pois objetivamente supervenientes e assumem abstratamente pertinência por se relacionarem com a ocorrência de furtos de veículos na área geográfica do legal representante da autora.
Quanto à segunda situação, salvo o devido respeito, não pode ser entendido que a junção de um Manuel do Curso de Investigação Policial – Criminalidade Automóvel – Ano 2017, se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
A situação em que o argumento da necessidade é admissível relaciona-se com a novidade ou a imprevisibilidade da decisão, “com a eventualidade de a decisão ser de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo[4].
Também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa advertem que “a junção de documentos às alegações só poderá ter lugar se a decisão da 1.ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam”.
Tal significa que não é admissível a junção de documentos quando tal junção se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma direta e com a questão suscitada.
Sufragamos inteiramente o que, a propósito se escreveu no Ac. da Relação de Porto de 23.02.2023 “O que releva, portanto, é que a necessidade do documento não seja preexistente à decisão da 1.ª instância, não seja um dado com o qual a parte devesse contar já antes da decisão e independentemente desta, mas antes algo resultante da própria decisão, no sentido de que é a abordagem feita nesta que torna indispensável o documento e justifica que a parte não devesse contar antecipadamente com essa exigência. Quando, pelo contrário, a junção do documento corresponde a um dever de diligência que já antes a parte sabia ou devia saber que a onerava e a decisão de 1.ª instância é uma das que a parte tinha a obrigação de contar que pudessem ser proferidas, por mais que esperasse que a decisão fosse diferente, a junção do documento não se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância»[5]
Ora, na situação em apreço, a questão das chaves originais/falsas resultava já do teor da contestação apresentada na qual a ré, para colocar em dúvida o alegado furto, alegou que das chaves do veículo testadas uma estava inoperacional e as outras tinham registo de uso em datas anteriores desconhecendo-se como foi utilizado o veículo, pelo menos desde a data da entrega após a ocorrência do primeiro alegado furto e a data dos factos em análise (ou seja, entre o dia 6 e o dia 8).
O documento em causa (manual) relaciona-se com factos que já antes da decisão da 1.ª instância a recorrente tinha consciência de que estavam sujeitos a prova.
Não há, pois, fundamento para a junção do documento a pretexto da surpresa quanto ao resultado.
Pelo exposto, admite-se os documentos ... e ..., mas não se admite a junção do documento ... apresentado pela recorrente em sede de alegações de recurso.
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3.2.2. Da nulidade da sentença
A recorrente vem invocar a nulidade da sentença por falta de fundamentação e por contradição.
As causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615º nº 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece, além do mais, que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)), ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)).
O Prof. Castro Mendes[6], após a análise dos vícios da sentença, conclui que uma sentença é nula quando “não contém tudo o que devia, ou contém mais do que devia”.
Na senda da delimitação do conceito, adverte o Prof. Antunes Varela[7], que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário”.
Quanto ao vício de falta de fundamentação, ensina o Prof. Alberto dos Reis[8], que “uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas”, conformemente a nulidade por falta de fundamentação só ocorre quando há “ausência total de fundamentos de direito e de facto”, sendo certo que “o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”.
Para que a sentença esteja eivada deste vício de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito.
O referido vício corresponde assim à ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), vício que encerra um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutiliza o julgado na parte afetada.
Tendo presentes estas noções, é manifesto que a sentença não enferma da nulidade que lhe é apontada, visto que nela se mostram devidamente especificados os fundamentos quer de facto quer de direito em que assenta.
Justifica a recorrente a falta de fundamentação por o Tribunal se ter limitado a elencar os meios de prova – tendo optado por um mero resumo escrito dos depoimentos orais – sem que, contudo, com referência a cada um deles, tenha realizado uma análise criteriosa e objetiva acerca do seu concreto contributo para a prova de um determinado facto ou conjunto deles. Conclui, assim, que não resulta da decisão as razões atendidas pela Meritíssima Juiz para atribuir mais ou menos credibilidade ou força probatória a um meio de prova em detrimento de outro.
Cremos não ser correta esta afirmação.
Analisada a motivação de facto constata-se que após descrever sucintamente o que foi declarado pelas testemunhas e legal representante, o tribunal conjugou os depoimentos e valorou-os de forma critica e fundamentada, em especial, confrontando o teor do depoimento da testemunha EE e do legal representante da autora.
Não padece, pois, a decisão do vicio de falta de fundamentação.
Quanto à invocada contradição, decorre do artigo 615º, nº 1, al. c) do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
A nulidade da sentença contemplada nesse preceito pressupõe, como se afirmou no acórdão do STJ de 03.03.2021 “um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la. Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.”[9]
Assim, tal nulidade só ocorre quando há um vício real de raciocínio do julgador em que a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direção diferente[10].
Consequentemente, saber se o enquadramento jurídico feito na sentença e a conclusão a que nela se chegou são, ou não, acertados ou injustos, constitui matéria de que não cabe curar em sede de nulidade de sentença. Trata-se de questão a envolver eventual erro de julgamento e nunca fundamento de nulidade, que se prende tão só com a estrutura formal da decisão.
No caso não estamos perante um erro de raciocínio lógico, antes fundamento para a impugnação da matéria de facto.
Donde, a factualidade ora trazida deverá ser apreciada em sede de fundamento para a modificabilidade da decisão de facto, e não de nulidade da sentença.
Destarte, a sentença recorrida não enferma de vício que a torne nula.
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3.2.3. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto
Nos termos do artigo 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Entende a recorrente que foram incorretamente julgados os factos provados 35), 36), 37), 40), 41), 42), 43), 44), 45), 47), 48), 51), 56), 63), 65), 66), 68) e 69) e os factos não provados 92), 93), 94), 95 e 96).
Em sustento desta alteração invoca, com essencialidade, a participação criminal apresentada perante as autoridades policiais e as imagens gravadas em DVD captadas pelo sistema de videovigilância da habitação do legal representante da autora e ainda os depoimentos das testemunhas AA, BB e CC e do legal representante da autora.
A factualidade impugnada respeita, no essencial, à questão da ocorrência do furto do veículo para efeito de acionamento de um contrato de seguro com cobertura do risco «furto».
Esta questão tem reclamado dos tribunais a apreciação em termos hábeis do valor da prova indireta.
É conhecida a clássica distinção entre prova direta e prova indireta ou indiciária, incidindo aquela diretamente sobre o facto probando, enquanto esta – também chamada de prova “circunstancial”, “de presunções”, de “inferências” ou “aberta” – reporta-se sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar[11].
A multiplicidade de situações em que ocorre uma dificuldade de prova direta dos factos constitutivos de um direito, remete o julgador quase inevitavelmente para o recurso a técnicas de facilitação probatória, ou seja, técnicas que alteram, em benefício daquele que está sujeito ao ónus da prova, a forma de valorar esta.
A mais conhecida e utilizada dessas técnicas é, sem dúvida, a presunção judicial que se funda em regras práticas da experiência, nos ensinamentos retirados da observação empírica dos factos, que representa processos mentais de dedução (baseada em juízos de probabilidade) do julgador[12].
Como decorre do art. 349.º do CC, as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
A presunção judicial é um meio de prova que se insere no âmbito da prova indireta.
A presunção judicial está sujeita à livre apreciação e a sua força persuasiva pode ser afastada por simples contraprova, critério que a distingue da presunção legal, cuja ilisão depende da prova em contrário (art. 350º, nº 2, do Cód. Civil).
Ora, a contraprova não é a prova do contrário, pois com ela apenas se cria a dúvida ou a incerteza acerca da verdade dos factos, devendo, em tais circunstâncias, o tribunal decidir contra a parte onerada com a prova[13].
É assim que o art. 346.º, do CC prescreve que à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos; se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.
No acórdão desta Relação de 12.03.2020[14], referem-se outras técnicas de facilitação probatória, para além do recurso às presunções judiciais.
Destaca-se no aresto, a prova da primeira aparência, definindo-a como um mecanismo de aligeiramento do ónus probatório que extrai de elementos que apresentam uma força de convencimento inferior ao da prova direta de um facto, um valor cognoscitivo semelhante ao desta porque, provados aqueles elementos, aceita-se em primeira aparência demonstrado o facto controvertido.
Com apoio em doutrina avalizada escreve-se que:
«O ponto de partida da prova prima facie, mais do que no facto conhecido, como sucede na presunção, reside na máxima da experiência em si. O facto fixa-se (provisoriamente e, sucumbindo a prova a que nos referiremos de seguida – de infirmação do juízo de probabilidade –, de forma definitiva) com uma prova que se contenta com a probabilidade.” (Luís Pires de Sousa, in Prova por Presunção, pág. 74)
A contraparte poderá, no entanto, destruir este esboço de imagem de realidade construído num primeiro momento, se provar a verificação de factos que tornem inverosímil aquele raciocínio lógico-conclusivo, pondo a nu o incumprimento do ónus que, a todo o momento, recaiu sobre o demandante”, pelo que o referido instrumento atua, também ele, ao nível da valoração da prova e não da distribuição do ónus probatório (cfr. Rute Teixeira Pedro, obra e local citados).
A prova prima facie não é, pois, tal como o não são as presunções judiciais, um mecanismo da inversão do ónus da prova, não dispensa o demandante da atividade probatória, não faz recair sobre o demandado a prova do contrário, exigindo apenas, para o seu afastamento, a produção de contraprova. (…)
Em suma, a prova de primeira aparência só baixa o grau de prova normalmente exigido para a prova de um facto.
Assim, “logo que a parte contrária efetue a contraprova pertinente, renasce o ónus da prova pleno a cargo do autor” (Luís Pires, obra citada, pág. 76).»
Em face do que se expõe, concordamos que a prova da verificação do furto de um veículo é normalmente difícil por este ocorrer de forma sub-reptícia, pelo que se impõe ao autor não uma prova direta deste, mas sim que, tendo apresentado a respetiva queixa junto das entidades policiais, forneça ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente a essa queixa[15].
No caso, a autora apresentou queixa junto das autoridades policiais e juntou um DVD em que se visualiza um indivíduo a entrar no veículo retirando-o do local.
Também apresentou testemunhas que, declarando não ter presenciado o furto, vieram confirmar o desaparecimento do veículo.
A questão consiste agora em saber se à prova produzida pela autora, a ré seguradora opôs contraprova bastante para tornar duvidosos os factos que incumbia à autora demonstrar.
Impondo-se analisar as razões de discordância invocadas pela apelante e se as mesmas se apresentam de molde a alterar a facticidade impugnada nos termos por si preconizados, procedemos à análise de todos os documentos juntos e à audição integral da gravação dos depoimentos (e não apenas aos trechos parcelares assinalados pela apelante), por forma a ficarmos devidamente habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada.
Ora, quanto à demonstração do sinistro (furto) sufragamos inteiramente o convencimento do tribunal a quo.
Com efeito, as incongruências relacionadas com as chaves do veículo são de molde a causar desconfiança sobre a efetiva ocorrência de um furto.
O legal representante da autora procedeu à entrega de 4 chaves (uma chave maior, duas chaves confort e um lingote), que analisadas pelo técnico da marca constatou-se que uma das chaves entregues não dizia respeito ao veículo em causa e as duas chaves passíveis de leitura, uma tinha registada como ultima data de utilização 08/12/2019 e outra em 06/06/2021, pelas 18h57, data em que a viatura foi entregue após o primeiro alegado furto.
Impõe-se como inevitável a interrogação sobre qual a chave com que circulou a viatura, no período compreendido entre 06/06/2021 e 08/06/2021, período em que a viatura esteve na posse do legal representante da autora.
O legal representante não esclareceu este ponto.
A única resposta plausível é a da existência de uma terceira chave.
Visualizado o vídeo que foi apresentado verifica-se que um veículo se aproxima da viatura TP e, em cerca de 30 segundos, acendem-se os piscas em sinal de ter sido aberto e um individuo dirige-se ao veículo, abre a porta, coloca o veículo a funcionar e arranca com o mesmo.
É plausível a conclusão de que terá sido usada uma chave original pelo putativo assaltante para colocar a viatura em funcionamento com a extrema facilidade que o vídeo documenta.
Esta constatação, como concluiu o tribunal a quo, pressupõe um nível de comprometimento do legal representante da autora com o putativo assalto.
Outros factos laterais abalam a credibilidade da versão apresentada, como seja a circunstancia de, apesar de ter uma garagem, o legal representante da autora ter estacionado a viatura no exterior, quando é certo que a viatura havia sido alegadamente furtada três ou quatro dias antes, o que por si só demandaria cuidados acrescidos.  
Também a circunstância de o veículo ter sido supostamente furtado duas vezes seguidas e com uma tão curta dilação é de molde a desconfiar da autenticidade dos alegados furtos. Causando ainda estranheza que em ambas as situações o legal representante da autora estivesse acompanhado das mesmas pessoas, que aqui depuseram como testemunhas.
Por outro lado, os documentos juntos com as alegações de recurso (noticia de jornal publicada em 25 de Julho de 2023 sobre o desfecho de uma operação policial sobre furtos de veículos ocorridos em Guimarães, ..., ... e ...; informação da GNR datada de 5 de setembro de 2023 dizendo que foi recuperada uma viatura furtada com as características do veículo da autora, nomeadamente ano da viatura, e que informações sobre o método de furto devem ser obtidas junto da entidade Judicial), pela sua vaguidade em nada esclarecem a matéria em causa.
Foram assim apuradas circunstâncias (várias) que levam ao afastamento da prova de primeira aparência do furto participado às autoridades e que inculcam uma dúvida séria a respeito da ocorrência do furto que serve de fundamento ao acionamento do seguro.
O depoimento prestado pelas testemunhas indicadas pela recorrente, bem como as declarações de parte do seu legal representante, não são de molde a contrariar o depoimento prestado pela testemunha EE que se mostra corroborado pelos seguintes documentos: doc...., junto com a contestação, que consubstancia o relatório efetuado por um concessionário da ..., das chaves entregues, do qual resulta que das únicas passiveis de leitura, apenas duas estão associadas ao veículo ..-TP-.., não tendo a terceira qualquer registo de leitura ou dados do veículo; doc. ..., junto com a contestação que constitui um auto de noticia, que atesta uma outra ocorrência relativamente ao veículo ..-TP-.., registado ... 421/21...., datado de 04/06/2021 e doc. de fls. 196, que constituí o relatório de inspeção judiciária, realizada no âmbito do NUIPC 421/21...., relativo ao furto ocorrido em 04/06/2021, acompanhado da reportagem fotográfica; doc. ... que constitui um auto de entrega do veículo, com data de 06/06/2021, pelas 14h57m; doc. ..., junto com a resposta da autora, que constituí informação prestada pela EMP04..., onde se informa que, com a entrega do ..., vem sempre acompanhado, para além das chaves normais, vem mais uma simples chave de ferro sem comando, completada com a informação prestada pela ..., a fls. 207, da qual resulta que não têm conhecimento dos métodos utilizados para colocar uma viatura em funcionamento sem recurso a uma chave original.
O que significa que a seguradora logrou produzir prova sobre factos que tornam duvidoso ou questionável o alegado furto.
Tendo sido infirmado o juízo de probabilidade bastante, tal faz renascer o ónus da prova pleno a cargo da autora.
E este ónus não o podemos ter por satisfeito porquanto nem as declarações de parte do legal representante da autora nem a restante prova produzida (em especial os depoimentos das testemunhas AA, BB e CC), lograram conduzir à formação de uma convicção segura sobre a ocorrência do alegado furto do veículo.
Nesta conformidade, impõe-se a improcedência da impugnação da matéria de facto, mantendo-se como provada a matéria fáctica objeto dos pontos 35), 41), 42), 43), 44), 45), 47), 48), 56), 65), 68) e 69) do elenco da factualidade considerada provada da decisão recorrida.
Todavia, factos há que além de não se terem demonstrado nos termos em que foram dados como provados, apresentam-se irrelevantes para a solução da causa, são eles os pontos 36), 37), 40), 51), 60), 61), 63) e 66).
Os pontos 36), 37), 40) e 51) devem considerar-se não provados, na medida em que o próprio tribunal a quo reconheceu na sua motivação que, ao contrário do que sustentou o perito averiguador, o tribunal não se convenceu que, apesar do elevado nível de sofisticação da viatura em causa, não seja de todo possível colocar este veiculo em funcionamento sem uma chave original, resultando da informação da ... que autora recebeu quatro chaves: uma com display de maiores dimensões, duas com comando e outra só com ponta metálica.
Consequentemente, também o ponto 96) não provado deve ser excluído.
O ponto 60) deve ser eliminado, dada a sua irrelevância. Ademais, tendo as testemunhas que acompanhavam o legal representante referido que tinham ido para o restaurante no veículo deste, compreende-se que após o alegado desaparecimento do veículo, tivessem de regressar de táxi.
O ponto 61) também deve ser eliminado, até porque induz em erro, dando a entender que tendo o furto ocorrido pelas 23.20h do dia 08/06/2021, o legal representante só o tenha participado às autoridades pelas 9h00 do dia seguinte, nada fazendo até esse momento, o que não corresponde ao que foi declarado por este, existindo registo de contacto telefónico com as autoridades pelas 01:31 horas e as 02:30 horas, do dia 9 de Junho de 2021.
Os pontos 63) e 66) devem ser eliminados por irrelevantes, sendo que a prova produzida não permite tal conclusão.
Os pontos 68) e 69) relativos ao valor comercial atual do veículo são de manter, atenta a documentação junta a respeito.
Quanto à impugnação dos factos não provados terá a mesma de ser desatendida na medida em que o circunstancialismo descrito quanto ao modus operandi do furto foi, como referido, assertivamente posto em causa.
Nestes termos, apesar da alteração operada que o foi por uma questão de rigor, mas que respeita a factos irrelevantes, haverá de se considerar substantivamente improcedente a impugnação da decisão da matéria de facto quanto à ocorrência do evento (furto).
*
3.2.4. Do mérito da sentença
Importa verificar se deve manter-se a apreciação de mérito proferida pela decisão recorrida, em face da matéria de facto dada como provada.
Nenhuma crítica pode ser apontada à decisão de mérito proferida.
Na verdade, pode-se aqui manter na íntegra a fundamentação de direito que o Tribunal de Primeira Instância desenvolveu na sentença que proferiu, já que aí bem se ponderou o ónus de prova que recaía sobre as partes (art. 342º do CC) ao considerar-se que: «A realização da prestação indemnizatória coloca a seguradora na posição de quem é obrigado a indemnizar, e o segurado-lesado na posição de demonstrar o dano, a sua relação com o sinistro, bem como a sua extensão” – Cfr., José Vasques, op. cit., pág. 257.
Nos presentes autos não se provou a ocorrência do sinistro (furto ou roubo da viatura), conforme resulta da factualidade não provada, pelo que a pretensão da autora, formulada nas alíneas a) a g) sempre teria de naufragar na sua integralidade».
Porque se concorda com a fundamentação de direito aduzida pelo Tribunal de Primeira Instância, há que manter integralmente a decisão proferida nos seus exatos termos.
Improcede, assim, o recurso interposto.
*
IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente (artigo 527º, nº 1 do CPC).
Guimarães, 1 de Fevereiro de 2024

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes
2º Adj. - Des. Sandra Melo


[1] Neste sentido, o Acórdão da relação de Coimbra de 18/11/2014, disponível em www.dgsi.pt.
[2] Como afirmam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, In Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, p. 533.
[3] Assim o Acórdão da Relação de Coimbra de 27/11/2020, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 5.ª edição, pag. 242.
[5] Proferido no processo nº 30/21.9T8PVZ.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[6] In “Direito Processual Civil”, Vol. III, p. 308.
[7] In “Manual de Processo Civil”, p. 686.
[8] In “Código de Processo Civil Anotado”, Volume V, páginas 139 e 140.
[9] Disponível em www.dgsi.pt.
[10] Neste sentido, o acórdão do STJ de 26.1.2017, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Neste sentido, Ac. do STJ de 17.01.2023, proferido no processo n.º 286/09.5TBSTS.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Cfr. Ac. Relação de Guimarães de 12.03.2023, proferido no processo n.º 564/18.2T8FAF.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[13] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, p. 310.
[14] Proferido no processo n.º 564/18.2T8FAF.G1, disponível em www.dgsi.pt.
[15] Acórdão da Relação do Porto de 10.7.2019, disponível em www.dgsi.pt.