Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1601/19.9T8GMR-B.G1
Relator: JOSÉ CARLOS DUARTE
Descritores: DIVISÃO DE COISA COMUM
VENDA
VALOR A ENTREGAR AO AUTOR
COMISSÃO DA LEILOEIRA
RESPONSABILIDADE DO REMIDOR POR ESSA COMISSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: DO A.: IMPROCEDENTE
DO REMIDOR: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. A decisão proferida sobre objecto já coberto pelo caso julgado é ineficaz.
II. A comissão da leiloeira que interveio no leilão electrónico, acordada com o administrador da insolvência, não pode ser imposta ao remidor do bem.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

J. G. intentou processo especial de divisão de coisa comum contra E. M. pedindo:

“a) – ser decretada a divisão de coisa comum, ou seja, deve ser decretada a cessação da compropriedade que existe sobre a fração autónoma identificada pela letra “A”, composta de habitação tipo T-3, lado esquerdo, com garagem no anexo lado esquerdo e logradouro com a área e 164 m2, do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …/200330219-A e inscrito na respetiva matriz predial urbana da freguesia de … sob o artigo …;
b) – a R. ser condenada a reconhecer que, desde outubro de 2014, logo após a efetiva separação e até ao presente, foi e é o A. quem, a expensas suas, tem vindo a pagar as prestações mensais relativas aos mútuos contraídos por A. e R. para construção da fração autónoma referida em a) e, bem assim, dos prémios de seguro de vida a eles acoplados e que, em agosto do corrente ano, a dívida se cifrava no montante global de €16.981,57, conforme referido nos pontos 9 a 12 do presente articulado, quantia esta que deverá ser atualizada em função dos montantes que a tal título, entretanto, se venceram ou vencerão e foram ou sejam pagos pelo A.;
c) – Ser tal quantia de €16.981,57, acrescida dos montantes que, após agosto de 2018, sejam pagos pelo A. a título de capital, juros ou prémios de seguro, levada à conta a acertar entre A. e R., quer o imóvel venha a ser adjudicado à A. ou ao R., quer a terceiros, para efeitos do A. ser ressarcido da parte que à R. competia pagar, ou seja, metade do total pago pelo A., desde agosto de 2014.”
Alegou para tanto que casou com a requerida no regime da separação de bens, o casamento foi dissolvido por divórcio, na constância do casamento os pais da requerida doaram ao requerente, á requerida e a uma irmã da última um terreno para construção, no qual construíram uma habitação bifamiliar, após a conclusão da construção e submetida ao regime da propriedade horizontal, por meio de escritura de divisão de coisa comum, requerente, requerida e a irmã desta, acordaram em pôr termo á compropriedade e em adjudicar a identificada fracção autónoma “A” ao requerente a á requerida e a fracção autónoma designada pela letra “B” à irmã, para fazer face aos custos da edificação, requerente e requerida subscreveram junto do então Banco …, SA, ora Banco A..., SA, dois empréstimos e constituíram hipoteca voluntária sobre aquela fracção autónoma, desde a separação de facto do requerente e da requerida que tem sido o requerente quem, com o produto do seu salário, tem vindo a pagar as prestações mensais de capital e juros decorrentes dos referidos mútuos e dos prémios de seguro acoplados a tais mútuos, o imóvel em causa não é divisível em substância.
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Os autos foram distribuídos ao J 3 do Juízo Local Cível de Guimarães sob o n.º 7096/18.7T8GMR.
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A requerida contestou invocando, além do mais, a excepção dilatória de ilegitimidade dizendo para tanto que se apresentou á insolvência, que deu origem ao processo 1601/19.9T8GMR, no qual, por sentença de 15/03/2019, foi aquela decretada, a presente acção contende directamente com o direito de compropriedade da requerida sobre o imóvel objecto da acção, direito que integrou a massa insolvente, donde decorre a ilegitimidade processual da requerida.
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No desenvolvimento dos autos (doravante consignam-se apenas as vicissitudes com relevo nas questões que cumpre apreciar no presente recurso) e ainda no J 3 do Juízo Local Cível de Guimarães, por despacho de 14/10/2019 foi julgada verificada a cumulação ilegal de pedidos e determinado que os autos prosseguiam, apenas, para o pedido de divisão de coisa comum e determinado, ainda, fosse notificado o Sr. AI nomeado no processo de insolvência da aqui requerida, a fim de o mesmo esclarecer se pretendia a apensação dos presentes ao processo de insolvência.
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O Sr. AI veio dizer que havia requerido, no processo de insolvência, a apensação dos presentes autos.
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Por despacho de 19/11/2019 foi ordenada a remessa dos autos para apensação ao processo de insolvência.
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Após apensação ao processo 1601/19.9T8GMR, sob o apenso “B” (e após algumas vicissitudes que aqui não relevam), o requerente veio requerer a “intervenção de terceiro” do Banco A..., SA, enquanto credor hipotecário, a qual foi deferida, tendo o mesmo, após a sua citação, vindo reclamar o seu crédito.
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Foi designada data para a conferência a que alude o art.º 929º do CPC, a qual teve lugar no dia 16/10/2020, não estando presentes nem o Sr. AI nem o Banco A..., SA.
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A 01/12/2020 o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“Na ausência de acordo entre as partes na conferência e face à posição manifestada pelo credor garantido nestes autos e pelo Administrador Judicial no apenso da Liquidação, estes autos irão prosseguir para a venda do imóvel.
A mesma deverá ser promovida pelo senhor Administrador Judicial para evitar maiores custos, por valor superior ao da avaliação bancária.
Após a realização da venda e na repartição do produto da mesma, deverá ser atendido pelo senhor A.I, aos meses em que a prestação do empréstimo bancário foi efectuada apenas pelo cônjuge marido, quando a obrigação era comum, devendo assim tais montantes serem deduzidos do montante a receber pela massa.
Notifique requerente e requerida, na pessoa do senhor A.I. “
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A 16/02/2021 o Sr. AI veio dizer, no que releva, que “no sentido da obtenção da melhor proposta socorreu-se de uma empresa da especialidade, X – Leiloeira e Imobiliária, Ldª (…), da qual é sócio-gerente o Exm.º Sr. F. R., pessoa de larga experiência profissional e bem conhecida no meio pela sua idoneidade e competência”, “[f]ê-la ciente que a remuneração da prestação de serviços ficaria sempre dependente da obrigação de concretizar a alienação pelo preço deliberado pelos órgãos da insolvência, e a cargo do adquirente”.
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A 17/03/2021 o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“Visto. Nada a opor aos termos e moldes da venda indicada pelo Senhor AI”.
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O referido despacho apenas foi notificado ao Sr. AI.
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Por requerimento de 27/07/2021 veio o requerente dizer, nomeadamente, o seguinte:
“(…)
26. - Não só pelo interesse que tem no imóvel e que já manifestou nos autos, mas também pela inqualificável postura do senhor A.I. e pelos procedimento levado a cabo pelo mesmo senhor A.I. e a encarregada da venda na promoção e venda do prédio em causa nestes autos, o R.te, tal como alguns seus familiares e familiares da insolvente, acompanhou desde o primeiro dia o ato de leilão e todos constataram que desde 09.07.2021 até ao dia 23.07.2021, até ás 15:00 horas, nenhuma proposta ou licitação foi apresentada e, por conseguinte, visualizada no site ou plataforma da leiloeira, aquela X.
27. - Para surpresa do R.te, encerrado que foi o denominado ato de leilão, minutos após as 15:00 horas, a leiloeira passou a fazer constar no seu sitio da internet ou na sua plataforma que o imóvel em causa nestes autos havia sido licitado pelo exato valor base aí publicitado, isto é, €86.268,76.
28. - Face a isso, de imediato o R.te, através do seu mandatário, contactou a leiloeira dando-lhe conta que tinha acompanhado o ato de leilão até a hora do fecho ou enceramento e nenhuma proposta ou licitação havia sido lançada na plataforma ao que o senhor F. R. lhe transmitiu que a proposta foi “apresentada mesmo em cima da hora de encerramento, mesmo em cima da 15:00 horas”.
(…)
35. – Analisado tal relatório, pode verificar-se que do mesmo, para além, do valor da proposta pretensamente apresentada - €86.268,76 –, como já se antevia, o licitante é uma sociedade imobiliária e, como senão bastasse, que tal proposta foi apresentada em 23.07.2021, pelas 14:44 horas, no website da leiloeira.
35. - Ou seja, segundo o relatório agora dado a conhecer, a proposta ou licitação não foi apresentada “mesmo em cima da hora do encerramento”.
36. - Todavia, como se disse, tal não foi, pelo menos, anunciado e visualizado no respetivo website antes do encerramento.
(…)
43. - Conforme se referiu, o R.te tem interesse na aquisição da metade que insolvente detém no prédio objeto da presente divisão.
44. - Tal como já resulta dos autos, desde a separação do extinto casal tem sido o R.te quem tem cumprido com os mútuos contraídos junto do credor hipotecário para a construção da casa de habitação edificada no prédio em causa nos autos.
45. – Ora, tendo em conta que o prédio foi licitado por €86.268,76.
46. - O montante em divida ao credor hipotecário, presentemente, é de cerca de €45.747,45.
47. - Deduzido este montante àquele teremos um saldo de €40.521,31.
48. - Deste montante, 50 % caberá ao R.te e a outra metade à insolvente, ou seja, à massa insolvente caberá a quantia de €20.260,66.
49. - Em dezembro de 2020 era de cerca de €28.356,42 o montante pago pelo R.te ao credor hipotecário a título de amortização dos mútuos contraídos.
50. – Ora, se a este montante deduzirmos a quantia de cerca de €15.000,00, correspondente a metade das prestações mensais pagas exclusivamente pelo R.te, quando a responsabilidade era comum, isto é, de R.te e insolvente, teremos um saldo de cerca de €5.260,66.
51. – Todavia, previamente a este cálculo terá que ser retirado o valor devido a título de custas processuais que poderá não ficar muito aquém do mencionado valor.
52. - Assim, na qualidade de interessado da divisão da coisa comum e comproprietário dessa mesma coisa, isto é, no exercício do direito que lhe assiste, o R.te propõe-se adquirir a metade do prédio pelo preço de €86.300,00.
53. - Contudo, como resulta do supra exposto, deduzido que seja ao mencionado preço a quantia devida ao credor hipotecário, e feita a divisão do remanescente entre R.te e a insolvente, praticamente todo o montante que caberá à insolvente será devido ao R.te, em virtude de ter sido ele quem pagou as prestações mensais relativas a tais mútuos, quando a responsabilidade era comum.
54. - Ora, uma vez que acordou já com o credor hipotecário a liquidação e pagamento dos mútuos e, como se disse, praticamente todo o remanescente do preço a pagar lhe caberá, o R.te propõe-se entregar à massa a respetiva diferença, da qual serão pagas as respetivas custas processuais.
55. - Ou seja, relativo ao aludido preço que se propõe pagar pretende o R.te apenas depositar nos autos o montante correspondente ao saldo que resultar da subtração ao preço do valor da divida ao credor hipotecário, do montante que por direito próprio lhe caberá por força da compropriedade e, bem assim, do que sobre quota parte da insolvente igualmente lhe caberá em virtude de ter sido ele quem pagou as prestações mensais relativas a tais mútuos, quando a responsabilidade era comum, obrigando-se o R.te a previamente a liquidar a predita divida ao credor hipotecário ou, em alternativa, depositar também nos autos este montante.
56. – Nesta conformidade, requer seja notificado o credor hipotecário para vir aos autos indicar qual o montante presentemente em divida e qual o montante que o R.te efetivamente pagou para amortização dos mútuos contratados desde outubro de 2014 inclusive até ao presente e, seja ordenada à secção de processos a elaboração de conta de custas prováveis.

Termos em que requer,
seja anulado o denominado ato de leilão e, em todo o caso, o imóvel em causa nos autos adjudicado ao R.te pelo preço de €86.300,00 (oitenta e seis mil e trezentos euros)
Mais requer lhe seja deferida a forma de pagamento nos termos e procedimentos supra referidos nos pontos 51 e seguintes. “
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Por requerimento de 18/08/2021 veio o Sr. AI pronunciar-se quanto ao requerimento do A., tendo junto os seguintes documentos:

- anúncio publicado na edição de 10 de Julho de 2021 do jornal Público, em que o valor anunciado é de € 86.268,76;
- um Relatório do evento da venda, elaborado pela X em que consta que a melhor proposta apresentada foi de € 86.268,76;
- e-mail do Banco A..., SA a informar que não se opunha á venda do imóvel na totalidade pelo valor da proposta recebida em leilão.
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A 29/11/2021 o tribunal proferiu despacho em que, depois de dar conta do itinerário processual até ao momento e de transcrever na integra o requerimento do requerente de 27/07/2021, consignou e decidiu:
“Cumpre decidir:
(…)
Não vemos assim, ao contrário do Autor e da insolvente que hajam sido preteridas quaisquer formalidades legais da venda realizada, pelo que se indefere a anulação da mesma, que vinha peticionada.
Quanto ao acordo pretendido pelo Autor e que não foi objecto de apreciação pelo senhor A.I, o mesmo é livre de não o ter apreciado, uma vez que não foi formulado no âmbito do leilão electrónico que escolheu como forma de venda e que cumpria os requisitos plasmados na lei para a mesma.
Relativamente ao valor que terá de ser entregue ao Autor assim que finalizada a venda e recebido o preço, após pagamento ao credor hipotecário (que deverá indicar aos autos o valor exacto em divida) e o que reverterá para a massa insolvente, terá o senhor A.I de apresentar contas, devendo o Autor atender a que os pedidos que havia formulado relativamente às quantias no seu entender devidas, foram oportunamente considerados como coligação ilegal, pelo que os autos apenas prosseguiram para apreciação do pedido de divisão de coisa comum.
Notifique, ficando os autos a aguardar pela junção da escritura de compra e venda.”
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A 10/12/2021, J. M., veio dizer que era filho do requerente e da requerida, nessa qualidade a 01/12/2021, por correio eletrónico, transmitiu ao Sr. AI a sua pretensão de exercer o direito de remissão no que concerne ao imóvel dos autos, solicitando-lhe lhe fosse facultado o IBAN da conta bancária onde pudesse depositar o respetivo preço a pagar, face á ausência de qualquer resposta, a 05/12/2021, igualmente via correio eletrónico, remeteu nova comunicação ao Sr. AI solicitando, mais uma vez, lhe fosse facultado o IBAN da conta bancária, a fim de poder exercer tal direito de remissão, o Sr. AI não deu qualquer resposta às solicitações do Requerente.
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A 16/12/2021 veio o mesmo J. M. dizer que a 09/12/2021, o Sr. AI informou o Requerente, além do mais, que “para concretização da alienação a seu favor deverá entregar dois cheques bancários para pagamento dos seguintes montantes: a) € 86.268,76 (preço da venda); b) € 5% + IVA da comissão de venda da leiloeira X, LDA, também destinatária do alienação fixado”., no que concerne ao preço da venda, o Requerente solicitou junto da respetiva instituição bancária o cheque bancário do correspondente montante, que já remeteu para o senhor Administrador de Insolvência, no que concerne à dita comissão de venda da leiloeira, entende o Requerente, não será devida.
Terminou requerendo a notificação do Sr. AI em conformidade.
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Na mesma data o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“Visto o requerimento com a referência 12333880 e sendo seu direito o exercício da remissão, os valores e forma necessária para tal, constam do requerimento com a data de hoje, referência 12360638, os quais deverão ser transferidos no prazo que a lei prevê para tal exercício.
Notifique-se o senhor A.I, para que informe em 7 dias se a remissão já foi efectuada e após juntar aos autos a competente escritura de compra e venda.”
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A 20/12/2021 veio o requerente J. G. interpor recurso do despacho proferido a 29/11/2021, pedindo seja o mesmo revogado e substituído por outro, anulando a venda efetuada e ordenando a realização de novo leilão e, bem assim, reitere aquele outro proferido em 1.12.2021., tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

A – A venda por leilão efetuada nos presentes autos foi tudo menos transparente e não respeitou os interesses dos credores.
B – Para além disso, essa mesma venda foi promovida e efetuada por valor inferior ao ordenado por despacho de 1.12.2020 – ref.ª: 170802872 – sendo tal uma decisão unilateral do senhor A.I.
C – Tal venda violou, assim, o disposto no artigo 164º, do CIRE, pelo que deve ser anulada, com todas as legais consequências.
D – Pelo aludido despacho de 01.12.2020 – ref.ª: 170802872 – o Tribunal a quo ordenou, além do mais, que “Após a realização da venda e na repartição do produto da mesma, deverá ser atendido pelo senhor A.I, aos meses em que a prestação do empréstimo bancário foi efectuada apenas pelo cônjuge marido, quando a obrigação era comum, devendo assim tais montantes serem deduzidos do montante a receber pela massa.” (negrito e sublinhado nosso)
E – Este decisão foi reiterada pelo despacho proferido em 11.02.2021 – ref.ª: 171784482.
F – No despacho ora posto em crise – ref.ª: 175151690 – o Tribunal a quo refere que “Relativamente ao valor que terá de ser entregue ao Autor assim que finalizada a venda e recebido o preço, após pagamento ao credor hipotecário ( que deverá indicar aos autos o valor exacto em divida) e o que reverterá para a massa insolvente, terá o senhor A.I de apresentar contas, devendo o Autor atender a que os pedidos que havia formulado relativamente às quantias no seu entender devidas, foram oportunamente considerados como coligação ilegal, pelo que os autos apenas prosseguiram para apreciação do pedido de divisão de coisa comum.”
G – É pois óbvio que este despacho – ref.ª: 175151690 – contraria aquele outro despacho – ref.ª: 170802872 – transitado em julgado.
H – E fê-lo em violação do disposto no artigo 620º do Código do Processo Civil, pois as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
I – No processo ficaram assim duas decisões contraditórias, pelo que mesmo que a segunda transitasse em julgado, nunca podia prevalecer sobre a primeira, conforme prescrito pelo artigo 625º nºs 1 e 2 do Código do Processo Civil.
J – Mas, a decisão não é aceitável apenas por violar as regras processuais citadas.
K – Com efeito o despacho recorrido parece ignorar os pressupostos que aquele outro, salvo errada interpretação, assentava.
L – Ou seja, parece ignorar que o ora recorrente é credor da insolvente, nos termos alegados na inicial, isto é, aqueles meses em que a prestação do empréstimo bancário foi efectuada apenas pelo cônjuge marido, quando a obrigação era comum.
M – Tal como, igualmente, parece ignorar que o recorrente, comproprietário do imóvel em causa, está, como sempre esteve, na posse do mesmo, o que lhe permite exercer o direito de retenção até que o seu crédito seja satisfeito.
N – Não tem, pois, salvo o devido e merecido respeito, qualquer justificação a decisão do tribunal.
O – O despacho proferido em 29.11.2021 – ref.ª: 175151690 – pelo Tribunal recorrido violou ou fez errada interpretação dos artigos 164º, do CIRE, 835º do CPCivil ex vi 837º CPCivil e 17º do CIRE e 620 e 625º do CPCivil.
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Entretanto a 21/12/2021 veio o Sr. AI dizer que o filho do insolvente exerceu oportunamente o direito de remissão que lhe assiste, procedeu ao pagamento do preço mediante cheque bancário, estando em curso as diligências necessárias á outorga da escritura pública de compra e venda.
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E a 22/02/2022 veio J. M. dizer que havia depositado á ordem dos autos o valor relativo à comissão da leiloeira, condicionado ao desfecho do recurso a instaurar.
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A 05/01/2022 veio J. M. interpor recurso do despacho proferido a 16/12/2021 peticionando a sua revogação e substituição por outro que declare que o Recorrente/Remidor apenas tem de pagar o preço da venda - €86.268,76 –, já realizado e, bem assim, ordene a restituição do valor da comissão depositada à ordem dos autos, com total reserva, condicionado ao desfecho do presente recurso, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
I – O douto despacho de16 de dezembro de 2021, coma ref.ª: 176649896, fez errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 51º, nº 1, alínea c), 55º, nº 3, ambos do CIRE e artigos 827º e 842º, ambos do CPC ex vi artigo 17º do CIRE.
II – Inexiste nos autos qualquer prévia concordância ao recurso auxiliar, designadamente à leiloeira, por banda do Senhor Administrador de Insolvência na venda e muito menos existe qualquer acordo quanto à comissão de 5% a pagar, a título de remuneração, à leiloeira em causa nos autos.
III – A Mma Juiz a quo ao julgar que a comissão da leiloeira referente à promoção e venda deve ser imputada ao Recorrente/Remidor viola expressamente o preceituado na alínea c), do nº 1, do artigo 51º, do CIRE, conjugado com o nº 3, do artigo 55º, do mesmo diploma, que a carateriza como despesa de liquidação, da responsabilidade da Massa Insolvente, não podendo, por isso, ser imputada ao remidor, alheio à contratualização e fixação desse quantitativo, de resto, como se disse, desconhecida dos autos.
IV – O mencionado despacho viola o artigo 842º do CPC, aplicável ex vi do artigo 17º do CIRE na medida em que o mesmo estipula que “ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda. (negrito e sublinhado nosso)
V – Ou seja, o preço aí definido é o preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda – no caso €86.268,76 –, sem qualquer menção ou acréscimo, seja a que titulo for, pelo que não estando legalmente previsto qualquer acréscimo, nem sido contratualizado qualquer acréscimo por banda do Remidor, não poderá aquela comissão ser imputada a este.
VI – Na medida em que impõe ao Recorrente/Remidor a via contratual, em vez do depósito do preço e a obtenção do título de transmissão para efeitos de registo, tal decisão viola também o preceituado no artigo 827º CPC, ex vi artigo 17º CIRE, por força do qual devem ser convocadas na insolvência (ela própria uma execução universal) as regras da venda judicial em processo de execução.
VII – O douto despacho de 16 de dezembro de 2021, com a ref.ª: 176649896 deve, pois, ser revogado e substituído por outro que declare que o ora Recorrente/Remidor apenas tem de pagar o preço da venda - €86.268,76 –, já realizado e, bem assim, ordene a restituição do valor da comissão depositada à ordem dos autos, com total reserva, condicionado ao desfecho do presente recurso.
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A 03/02/2022 foi proferido o seguinte despacho:
“Mostrando-se tempestivos os recursos, motivados e devidamente representados por mandatários, admitem-se os mesmos, que sendo de apelação, com efeito devolutivo e subida imediata, deverão assim ser presentes no Venerando Tribunal da Relação de Guimarães.”
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A 11/02/2022 veio o recorrente J. G. declarar que desiste do recurso por si interposto, mas tão só na parte em que requer a anulação da venda por violação do disposto no artigo 164º, do CIRE, mantendo, por isso, interesse no demais requerido.
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O tribunal a quo, por despacho de 16/02/2022, proferiu o seguinte despacho:
“(…)
Face ao exposto, admite-se a desistência parcial do recurso.
No mais, será oportunamente conhecido pelo Venerando Tribunal Superior.”
*
2. Questões a apreciar
O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

Como já ficou referido estamos perante dois recursos:
- um interposto pelo A. da acção, J. G., do despacho proferido a 29/11/2021;
- outro interposto pelo requerente J. M., do despacho proferido a 16 de Dezembro de 2021.
O recorrente J. G. declarou no seu requerimento de interposição de recurso que interpunha recurso do despacho proferido a 29/11/2021, que indeferiu a por si peticionada anulação da venda.
No entanto e compulsadas a motivação e as conclusões verifica-se que o mesmo também impugna a parte do despacho proferido naquela data “Relativamente ao valor que terá de ser entregue ao Autor assim que finalizada a venda e recebido o preço, após pagamento ao credor hipotecário (que deverá indicar aos autos o valor exacto em divida)….”.

A 29/11/2021 o tribunal a quo pronunciou-se quanto a três questões:
- a anulação da venda;
- o acordo pretendido pelo Autor e que não foi objecto de apreciação pelo senhor A.I.;
- o valor que deverá ser entregue ao A. após a venda.
O requerimento de interposição de recurso apenas se refere à parte do despacho de 29/11/2021 que se pronuncia quanto á anulação da venda.
Mas não estamos perante uma restrição do objecto do recurso.
É que compulsadas a motivação, as conclusões e o pedido formulado a final, verifica-se que o recorrente manifesta a vontade de ver reapreciado aquele outro segmento da decisão proferida a 29/11/2021.
Destarte, a referência, no requerimento de interposição de recurso, à anulação da venda, não constitui uma restrição do recurso, mas apenas e tão a menção à primeira decisão objecto do referido despacho e que, na economia das questões a apreciar, era a que assumia maior relevância.
Tendo o recorrente J. G. desistido do recurso da decisão que indeferiu a anulação da venda, desistência essa já homologada, o seu recurso apenas tem por objecto a decisão relativa ao valor que deverá ser entregue ao A. e concretamente saber se a mesma é contraditória com a decisão proferida a 01/02/2020, se esta transitou em julgado e se formou, assim caso julgado formal quanto à referida questão.
Quanto ao recurso interposto pelo requerente J. M., do despacho proferido a 16 de Dezembro de 2021, a questão é a de saber se o mesmo, tendo sido admitido a exercer o direito de remição, está obrigado a pagar a remuneração da leiloeira que realizou o leilão electrónico.
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3. Fundamentação de facto

A factualidade a considerar são as incidências processuais que constam do Relatório supra.
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4. Direito

4.1. Do recurso interposto pelo recorrente J. G.

Importa aqui recordar as incidências processuais fundamentais nesta questão.
Na petição inicial o A. pediu, além do mais, que a R. fosse condenada a reconhecer que, desde outubro de 2014, logo após a efetiva separação, foi o A. quem, a expensas suas, pagou e é o A. que paga, as prestações mensais relativas aos mútuos contraídos por A. e R. para construção da fração autónoma referida nos autos e, bem assim, dos prémios de seguro de vida a eles acoplados, em Agosto de 2018 o montante total despendido era de €16.981,57, devendo tal montante ser acrescido dos montantes que, após agosto de 2018, sejam pagos pelo A. a título de capital, juros ou prémios de seguro e que tal quantia fosse levada em conta de forma a que o A. fosse ressarcido da parte que à R. competia pagar, ou seja, metade do total pago pelo A., desde agosto de 2014.
Ou seja: em termos práticos, pretendia o A. que no valor a que a Ré tivesse direito, enquanto comproprietária de metade do imóvel (ninguém coloca em crise que os quinhões do A. e da Ré, tal como afirmado pelo A. na petição inicial, são de metade para cada um), fosse descontado metade do que o A. pagou a título de prestações ao Banco e seguros de vida.
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Por despacho de 14/10/2019 foi julgada verificada a cumulação ilegal de pedidos e determinado que os autos prosseguiam, apenas, para o pedido de divisão de coisa comum, extinguindo-se a instância quanto àquele pedido.
A decisão em apreço não refere que absolve a Ré da instância quanto aos pedidos formulados em b) e c) do petitório.
Mas a decisão de não admissibilidade, por cumulação ilegal, de tais pedidos, implica uma extinção parcial da instância relativamente aos mesmos, ou seja, coloca fora do objecto do processo tais pedidos.
Este despacho era recorrível nos termos do disposto no art.º 644º n.º 1 alínea b) do CPC.
Não foi interposto recurso de tal despacho.
Dispõe o art.º 628º do CPC que a decisão se considera transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação.
O referido despacho já não é susceptível de recurso, por há muito ter decorrido o prazo para tal.
Tendo o despacho em referência transitado em julgado, a pretensão do A. ser ressarcido de metade dos montantes por si pagos deixou de poder ser objecto de apreciação jurisdicional, seja sob que forma fosse, nos presentes autos.
Mantendo o A. a pretensão de ser ressarcido pela Ré de metade dos montantes que havia pago, só o podia exercer tal direito em acção própria ou, tendo sido declarada a insolvência da Ré, reclamado o seu crédito na mesma.
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Entretanto a 01/12/2020 o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho (sublinhado nosso):

“Na ausência de acordo entre as partes na conferência e face à posição manifestada pelo credor garantido nestes autos e pelo Administrador Judicial no apenso da Liquidação, estes autos irão prosseguir para a venda do imóvel.
A mesma deverá ser promovida pelo senhor Administrador Judicial para evitar maiores custos, por valor superior ao da avaliação bancária.
Após a realização da venda e na repartição do produto da mesma, deverá ser atendido pelo senhor A.I, aos meses em que a prestação do empréstimo bancário foi efectuada apenas pelo cônjuge marido, quando a obrigação era comum, devendo assim tais montantes serem deduzidos do montante a receber pela massa.
Notifique requerente e requerida, na pessoa do senhor A.I.”
É manifesto que este despacho contraria o despacho de 14/10/2019 que julgou verificada a cumulação ilegal de pedidos.
O despacho de 14/10/2019 tem como consequência a impossibilidade de ser objecto de apreciação jurisdicional a pretensão do A. de ser ressarcido de metade dos montantes por si pagos a titulo de prestações ao Banco e seguros, assuma essa apreciação a forma que assuma.

O despacho de 01/12/2020 vem contrariar isso ao decidir:

Após a realização da venda e na repartição do produto da mesma, deverá ser atendido pelo senhor A.I, aos meses em que a prestação do empréstimo bancário foi efectuada apenas pelo cônjuge marido, quando a obrigação era comum, devendo assim tais montantes serem deduzidos do montante a receber pela massa.
No primeiro despacho afirma-se que a pretensão do A. de ser ressarcido de metade dos montantes por si pagos a título de prestações ao Banco e seguros não pode ser apreciada nestes autos; no segundo despacho actua-se em sentido contrário, afirmando-se que o A. tem direito a ser ressarcido das prestações de empréstimo que pagou, ou seja, aprecia-se o mérito da pretensão.
Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 613º, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, normativo que é aplicável aos despachos nos termos do n.º 3 do mesmo normativo.
Por outro lado, nos termos do n.º 1 do art.º 620º do CPC, as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
Por outro lado, nos termos do n.º 1 do art.º 625º do CPC havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.
E nos termos do n.º 2, é aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.
A decisão proferida sobre objecto já coberto pelo caso julgado é ineficaz – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, 2º Volume, 3ª edição, pág. 731 (anotação ao art.º 613º) e 766 (anotação ao art.º 625º).
Tendo em consideração estes normativos, o despacho em referência, de 01/12/2020, é ineficaz.
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Mas importa avançar.
É que, entretanto, a 29/11/2021 o tribunal proferiu um outro despacho com o seguinte teor:
“Relativamente ao valor que terá de ser entregue ao Autor assim que finalizada a venda e recebido o preço, após pagamento ao credor hipotecário (que deverá indicar aos autos o valor exacto em divida) e o que reverterá para a massa insolvente, terá o senhor A.I de apresentar contas, devendo o Autor atender a que os pedidos que havia formulado relativamente às quantias no seu entender devidas, foram oportunamente considerados como coligação ilegal, pelo que os autos apenas prosseguiram para apreciação do pedido de divisão de coisa comum.
Notifique, ficando os autos a aguardar pela junção da escritura de compra e venda.”
Este despacho ao afirmar que deve “o Autor atender a que os pedidos que havia formulado relativamente às quantias no seu entender devidas, foram oportunamente considerados como coligação ilegal, pelo que os autos apenas prosseguiram para apreciação do pedido de divisão de coisa comum.” não prima pela clareza.
Os despachos, à semelhança das sentenças, são actos jurídicos (são actos a que a lei atribui relevância e efeitos jurídicos), a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos (ex vi art.º 295º do Código Civil), pelo que as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial (artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, do CC), são igualmente válidas para a interpretação daquela.
Assim a interpretação dos despachos e das sentenças deve fazer-se de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, ainda que menos perfeitamente (artºs 236º, nº. 1 e 238º, nº. 1 do Código Civil)
Mas sendo um acto formal, não pode a mesma valer com um sentido que não tenha na respectiva letra um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
Além disso, a sua interpretação não pode assentar, apenas, no teor literal da respetiva parte decisória, impondo-se também considerar os respectivos fundamentos, os quais são constitutivos e determinantes da decisão, ou seja, a decisão só se compreende à luz dos respectivos fundamentos e os seus antecedentes lógicos.
Interpretando este despacho, o sentido que se extrai é que a pretensão do A., de ressarcimento de metade das quantias pagas a título de prestações ao banco e seguro, não pode ser considerada aquando da distribuição do preço obtido com a venda, em virtude do despacho de 14/10/2019, que não admitiu os pedidos em que se traduzia tal pretensão.
Este despacho vai de encontro ao decidido a 14/10/2019 e reconhece a força de caso julgado do despacho de 14/10/2019.
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Em face do percurso até aqui percorrido, estão reunidos os elementos para nos pronunciarmos quanto á pretensão recursória do A..
Esta assenta no facto de o despacho proferido a 29/11/2021 contrariar o despacho proferido a 01/12/2020.
Sucede ter-se concluído que o despacho proferido a 01/12/2020 é, por contrário ao despacho proferido a 14/10/2019, já transitado em julgado e à luz do disposto no art.º 625º do CPC, ineficaz.
Sendo ineficaz não pode produzir quaisquer efeitos e, portanto, não pode ser invocado como estando a ser contrariado pelo despacho de 29/11/2021 e deste modo não pode constituir fundamento do recurso, o qual deve, por tudo o exposto, ser julgado improcedente, com custas a seu cargo, nos termos do art.º 527º n.º 1 do CPC.
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4.2. Do recurso interposto pelo requerente J. M.
Neste recurso está em causa o despacho proferido a 16/12/2021 o qual tem o seguinte teor:
“ Visto o requerimento com a referência 12333880 e sendo seu direito o exercício da remissão, os valores e forma necessária para tal, constam do requerimento com a data de hoje, referência 12360638, os quais deverão ser transferidos no prazo que a lei prevê para tal exercício.
Notifique-se o senhor A.I, para que informe em 7 dias se a remissão já foi efectuada e após juntar aos autos a competente escritura de compra e venda.”
Antes de mais importa referir que o requerimento com a referência 12333880, é o requerimento apresentado por J. M. a 10/12/2021 e o requerimento com a referência 12360638 é o requerimento apresentado pelo mesmo a 16/12/2021, ambos referidos no relatório supra.
Compaginando a afirmação feita no despacho de que “ os valores e forma necessária para [ o exercício do direito de remição] constam do requerimento com a data de hoje, referência 12360638, os quais deverão ser transferidos no prazo que a lei prevê para tal exercício.”, com o requerimento de 16/12/2021, alcança-se que o despacho entende que o requerente tem de pagar não apenas o preço - € 86.268,76 – mas também a comissão da leiloeira, valor esse correspondente a 5% sobre o preço da venda e, sobre este, o valor correspondente ao IVA ( cuja taxa não se indica).
O objecto do recurso é, como já referido, saber se o requerente J. M., tendo sido admitido a exercer o direito de remição, está obrigado a pagar a comissão da leiloeira que realizou o leilão electrónico.

O primeiro elemento a ter em consideração é o disposto no art.º 842º do CPC (sublinhado nosso):
Ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.
O direito de remição é um direito de preferência especial, que se constitui no contexto da liquidação judicial de bens, visando proteger a integridade do património familiar, permitindo impedir que os bens da família passem para as mãos de estranhos. A protecção do património familiar é potenciada pela atribuição de um direito de preferência qualificado às pessoas enunciadas no preceito, a quem é atribuída a faculdade de se substituírem ao adjudicatário ou ao comprador na aquisição dos bens penhorados, mediante o pagamento do preço por eles oferecido. (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC Anotado, II, anotação ao art.º 842º, pág. 262-263).
Como resulta da norma, o direito de remição pode ser exercido mediante o pagamento do preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.
Esta á única exigência.
Não consta desta norma, nem de outra qualquer que o remidor tenha de pagar quaisquer despesas relacionadas com o acto da venda, nomeadamente, quaisquer despesas relacionadas com o facto de o Sr. AI ter decidido, autorizado pelo tribunal, recorrer a uma leiloeira.

É irrelevante que a 16/02/2021 o Sr. AI tenha vindo dizer ter-se socorrido de uma leiloeira, que a remuneração da mesma seria encargo do adquirente e que o tribunal por despacho de 17/03/2021 tenha declarado “nada ter a opor aos termos e moldes da venda indicada pelo Senhor AI”, na medida em que:
- o Sr. AI nunca refere qual a remuneração acordada com a leiloeira; sendo assim, o despacho em causa ao declarar nada ter a opor aos termos e moldes da venda, não abrange uma remuneração de 5% ( ou de qualquer outra) porque a mesma não foi concretamente indicada; a pronúncia do tribunal só podia abranger uma remuneração de 5% se ela tivesse sido indicada pelo Sr. Administrador; de contrário, o despacho em causa constituiria um “cheque em branco”, onde cabia toda e qualquer remuneração; destarte, o despacho em referência não autoriza como condição da venda uma remuneração de 5%, pelo que não existe uma decisão vinculativa quanto a essa questão;
- sem prejuízo, o referido despacho apenas foi notificado ao Sr. AI;
- finalmente não consta dos autos qualquer elemento que permita concluir que a venda foi publicitada tendo como condição o pagamento, pelo adquirente, da remuneração da leiloeira (ao contrário do que sucedeu no Ac. desta RG de 18/06/2020, processo 808/18.0T8VLN-H.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg e que tinha ainda outros contornos fácticos que aqui não se verificam, pelo que é insusceptível de ser convocado).
Apenas foi anunciado o valor base, como consta do documento que acompanha o requerimento do Sr. AI de 18/08/2021.
Impõe-se referir que a questão que aqui se trata já foi objecto de outras decisões.
Assim, no sentido de que a comissão da mediadora ou leiloeira na venda, estabelecida em 5% do preço oferecido, acordada entre aquela e o administrador da insolvência, não pode ser imposta à remidora do bem, a Decisão Sumária do TRC de 02/12/2014, processo 3884/12.6TJCBR-D.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc e o Ac. da RP de 11/03/2021, processo 3448/10.9TBVCD-E.P1.

Afirma-se na citada “Decisão sumária” e acompanha-se:
Aquela comissão, remuneração de uma específica atividade, distingue-se dos legais e obrigatórios encargos da compra, como por exemplo as despesas da escritura e dos registos.
Aquela comissão, acordada no contexto referido, não pode ser repercutida na esfera jurídico-patrimonial de terceiros, alheios a tal intervenção, como seja a recorrente remidora do bem em questão.”
Em face de tudo o exposto a apelação deve proceder revogando-se o despacho de 16/12/2021, na parte em que impõe ao remidor J. M. o pagamento da comissão da leiloeira no valor de 5%, acrescida de IVA, estando o mesmo obrigado apenas e tão só a pagar o preço de € 86.268,76, devendo-lhe ser restituído o valor da comissão que depositou á ordem dos autos a 02/02/2022.
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5. Decisão

Termos em que se julga:
- improcedente o recurso interposto pelo A. J. G.;
- procedente o recurso interposto pelo recorrente J. M. e em consequência revoga-se o despacho de 16/12/2021, na parte em que lhe impõe o pagamento da comissão da leiloeira no valor de 5%, acrescida de IVA, estando o mesmo obrigado apenas e tão só a pagar o preço de € 86.268,76, com a consequente restituição do valor da comissão depositada à ordem dos autos a 02/02/2022.
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Custas:
- recurso interposto pelo A. J. G. – pelo recorrente;
- recurso interposto pelo recorrente J. M. – sem custas.
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Notifique-se
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Guimarães, 30/06/2022
(O presente acórdão é assinado electronicamente)

Juiz Desembargador Relator: José Carlos Pereira Duarte
Juízes Desembargadores Adjuntos: José Fernando Cardoso Amaral
Eduardo José Oliveira Azevedo