Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1816/17.4T9VNF.G1
Relator: PAULO ALMEIDA CUNHA
Descritores: COMPETÊNCIA POR CONEXÃO
APENSAÇÃO DE PROCESSOS
CONEXÃO SUBJECTIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
A conexão subjectiva prevista no artigo 25.º do Código de Processo Penal apenas opera entre vários processos quando existe pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo e único agente, para cujo conhecimento sejam competentes tribunais com sede na mesma comarca.
(sumário do relator).
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

1. Decisão recorrida
No âmbito do processo comum (singular) n.º 1816/17...., que corre os seus termos no Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., foi proferido despacho judicial, datado de 22.09.2023, que determinou oficiosamente a apensação do referido processo n.º 1816/17.... ao processo comum (singular) n.º 605/18.... pendente no Juízo Local Criminal ... – Juiz ....

2. Recurso

Inconformado com esta decisão, o arguido AA recorreu da mesma, tendo concluído a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição):
(…)
2. Não se verifica o fundamento invocado pelo Tribunal a quo de que existe conexão relevante entre ambos os processos, seja, a conexão subjetiva constante do artigo 25º do CPP.
3. A circunstância de ambos os processos se encontrarem na mesma fase — de julgamento — não releva para o caso, pois não se verifica a conexão invocada pelo
Tribunal a quo.
4. O despacho proferido labora em erro relativamente à interpretação e aplicação das normas respeitantes à conexão de processos.
5. O princípio geral do Código de Processo Penal é o de que a cada crime corresponde um processo, determinando-se a competência do Tribunal em função das regras de competência material, funcional e territorial.
6. Enquanto exceção à regra, a conexão de processos admite a apensação dos mesmos mediante a verificação de determinados pressupostos, entre os quais, a existência de uma ligação entre os crimes.
7. Porém tal ligação não se verifica em nenhum dos casos de conexão legalmente previstos, sequer a invocada pelo Tribunal a quo.
8. Não foram os aludidos crimes cometidos através da mesma ação ou omissão.
9. Os crimes não foram cometidos na mesma ocasião, não são um causa ou efeito do outro, nem se destinam um a continuar ou a ocultar o outro.
10. Inexiste a conexão prevista no artigo 25º do CCP, dado que em um dos processos — o 605/18.... — há uma pluralidade de agentes.
11. Não se verifica o pressuposto que decorre do espírito e da letra da Lei: a unidade do agente.
12. Tem sido o entendimento maioritário da jurisprudência dos nossos Tribunais superiores e das decisões dos Senhores Presidentes de Secções Criminais da Relação que só poderá haver apensação de processos com base na conexão prevista no artigo 25º do CCP quando o mesmo agente tiver cometido vários crimes cujo tribunal territorialmente competente para julgamento tenha sede na mesma comarca.
13. É esse o espírito legislativo e a unidade do sistema jurídico.
14. “Mesmo agente importa unidade de acusado, não pluralidade de acusados. E [deste modo] tem de ser entendido, pelas razões que a Sr.ª Juiz do processo comum singular aduz, nas quais nos revemos, e que aqui reproduzimos: “A não ser assim, conduziria o artigo 25.º do CPP a múltiplas situações de conexão e consequentemente apensação de processos em que até poderá não haver um único arguido comum a todos os processos apensados, sendo julgadas conjuntamente pessoas sem qualquer ligação entre si e por factos sem qualquer relação palpável, sendo o tribunal «obrigado» a apreciar complexas realidades simultaneamente multi-pessoais e multi-fatuais sem outra relação que não seja a de se repetir, e apenas «pontualmente» (pois que bastaria para a conexão que houvesse um arguido — entre muitos — comum entre determinado processo e aquele que seria competente para o julgamento, independentemente do número de arguidos neste acusados, podendo esta situação multiplicar-se por número considerável de processos) (…).” — in decisão de conflito dos Srs. Presidentes das Secções Criminais da Relação do Porto de 04-07-2014 (proc. nº 589/12.1GAVNF-B.P1) disponível em www.dgsi.pt
15. O mesmo entendimento é seguido por diversos tribunais superiores, designadamente pelo Tribunal da Relação de Coimbra: “A razão da conexão de processos radica na celeridade e economia processual e na vantagem dela advinda para o agente, que, julgado conjuntamente, pelos diversos crimes, vê a sua situação jurídico.penal unitariamente definida ( a propósito, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol I, 6ª edição, pág. 210).
Dito isto, subscrevemos, sem nenhuma reserva, a interpretação do preceito que conduz à existência da conexão prevista no artigo 25.º apenas quando existe pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente.
A não se entender deste modo, resultaria incompreensivelmente sacrificado o basilar princípio da economia e celeridade na gestão e decisão dos processos. (…)
Em jeito de síntese conclusiva, cabe dizer: a conexão (subjetiva) prevista no artigo
25.º do CPP apenas se verifica quando, em princípio, existe uma pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente, para cujo conhecimento seja competentes tribunais com sede na mesma comarca.” — in Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 10-07-2018, no processo 870/17.3PBVIS-F.C1, disponível em www.dgsi.pt.
16. Entendimento diverso conduz precisamente a contrariar a celeridade e economia processual visada pela criação da norma em causa.
17. Resulta à evidência que, existindo mais do que um agente, fenece o requisito legal da unidade do agente, não podendo verificar-se a invocada conexão subjetiva de processos com base no disposto no artigo 25.º do CPP.
18. O despacho proferido deve ser revogado, por erro na interpretação e aplicação do Direito, prosseguindo ambos os processos de forma autónoma os seus precisos termos até final, o que desde já se requer.
(…)”.

3. Resposta ao recurso
Após a admissão do recurso, o Ministério Público junto do tribunal “a quo” respondeu a este recurso, manifestando a total concordância com a decisão recorrida e pugnando pela improcedência do recurso.

4. Tramitação subsequente
Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista ao Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, o qual emitiu parecer pugnando pela procedência do recurso e pela revogação da decisão recorrida.

Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório e não foi apresentada qualquer resposta. 

Efectuado o exame preliminar, foi determinado que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
                                                                       *
II – FUNDAMENTAÇÃO

A. Objecto do recurso
Em conformidade com o disposto no art.º 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim sendo, importa apenas apreciar no caso concreto se pode haver lugar à apensação de processos com fundamento no disposto no art. 25.º do Código de Processo Penal.

B. Apreciação do recurso
1. A decisão recorrida
Definida a questão a tratar, importa conhecer efectivamente o conteúdo da decisão recorrida ora colocada em crise.
           
A decisão recorrida apresenta o seguinte teor (transcrição):
(…)
Compulsados os autos que correm seus termos com o n.º 605/18.... (Processo Comum Singular) no Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., deste Tribunal, constata-se que ali são arguidos AA e BB, estando os mesmos pronunciados da prática de actos susceptíveis de integrar um crime de homicídio negligente, p. e p. pelos arts. 10º, n.ºs 1 e 2, 15º, al. a) e 137º, n.º 2, do Código Penal.
Mais acresce que o referido processo se encontra já em fase de julgamento.
Sucede que nos presentes autos encontra-se o mesmo arguido AA acusado da prática de factos susceptíveis de integrar o cometimento de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelos arts. 10º, n.ºs 1 e 2, 15º, al. a) e 148º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, estando, igualmente, os presentes autos em fase de julgamento.
Ora, o art. 24º do Código de Processo Penal refere os casos em que se verifica a conexão de processos e determina que tal conexão (a verificar-se) só opera relativamente aos processos que estiverem simultaneamente na mesma fase processual (de inquérito, de instrução e de julgamento).
E, para além dos casos previstos no mencionado art. 24º, preceitua o art. 25º do mesmo Código que “(…) há ainda conexão de processos quando o mesmo agente tiver cometido vários crimes cujo conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca, nos termos dos artigos 19.º e seguintes”.
E é, precisamente, o que ocorre no caso dos crimes que são objecto dos presentes autos e do acima referido Processo.
Assim, uma vez que os aludidos processos se reportam a crimes cujo conhecimento é da competência de tribunais com sede na mesma comarca, encontram-se ambos na mesma fase (de julgamento), entendemos existir conexão relevante entre ambos, pelo que é de operar a mencionada apensação dos processos.
E uma vez que é no referido Processo n.º 605/18...., que corre seus termos pelo Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., deste Tribunal, que cabe a pena mais grave, dos crimes em concurso, intervirá o critério estabelecido no art. 28º, al. a), do Código de Processo Penal, afirmando-se a competência do referido processo pendente naquele Juízo Criminal.
Verificados, pois, que no presente caso se mostram os pressupostos supra enunciados e encontrando-se ambos os processos em fase de julgamento, determina-se a apensação dos presentes autos ao processo n.º 605/18.... pendente no Juízo Local Criminal – Juiz ..., deste Tribunal, o que se faz em conformidade com as disposições conjugadas dos arts. 25º, 28º, al. a), e 29º, n.º 2, todos do Código d Processo Penal.
(…)”.

2. A conexão de processos da competência de tribunais com sede na mesma comarca  
O presente recurso versa o tema da conexão de processos fundada na necessidade de assegurar o julgamento de vários crimes cometidos pelo mesmo agente.
           
A este respeito, dispõe o art. 25.º do Código de Processo Penal que “Para além dos casos previstos no artigo anterior, há ainda conexão quando o mesmo agente tiver cometido vários crimes cujo conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca, nos termos dos artigos 19.º e seguintes”.

Deixando agora de lado a conexão objectiva relativa à exigência da competência territorial comum, foquemos a nossa atenção no conteúdo da conexão autónoma subjectiva que se traduz na exigência de que os crimes a julgar tenham sido cometidos pelo “mesmo agente”.

O tribunal a quo adoptou o entendimento de que este normativo é aplicável não só aos processos em que o arguido é o único agente dos vários crimes cujo julgamento é da competência de tribunais com sede na mesma comarca, bem como ainda que o mesmo também é aplicável quando haja agentes diversos do arguido.

Não obstante a existência de alguma divergência jurisprudencial num passado mais remoto, a questão mostra-se pacificada na doutrina e jurisprudência das Relações nas últimas duas décadas, pois tem vindo a ser uniformemente entendido que a conexão subjectiva prevista no normativo em apreço apenas opera entre vários processos quando existe pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo e único agente (Vide MAIA GONÇALVES, “Código de Processo Penal – Anotado e Comentado”, 2002, p. 148; ANTÓNIO GAMA, “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo I, 2019, p. 365-367”; e ainda Acórdão da Relação do Porto 06-07-2005, p. 44...; Decisão do Senhor Presidente da Relação do Porto de 04-07-2014, p. 589/12; Decisão do Senhor Presidente da Relação de Évora de 21-05-2015, p. 589/12; Ac. TRP 08-03-2017, p. 5544/11; Decisão do Senhor Presidente da Relação de Coimbra de 10-07-2018, p. 589/12, disponíveis em www.dgsi.pt).

A razão de ser desta conexão subjectiva é fácil de alcançar.

O julgamento conjunto dos vários crimes cometidos pelo mesmo agente “possibilita uma melhor avaliação da personalidade do agente, potencia a economia e a celeridades processual e, no caso de condenação, uma pronta definição do seu estatuto jurídico nos casos em que lhe é aplicada uma pena única (Vide ANTÓNIO GAMA, Idem).
           
Este desiderato só é alcançável com a referida restrição hermenêutica

Ao invés, a adopção de entendimento mais amplo comprometeria, na prática, a eficácia, a celeridade e a economia processuais que animam e são tão caras à garantia constitucional da obtenção da tutela jurisdicional efectiva em prazo razoável prevista no art. 20.º, n.º 4, da CRP.
           
Na verdade, a ser admissível a posição assumida pelo tribunal a quo, a ampliação indesejável do universo dos arguidos e demais sujeitos processuais não teria limites, pois atrás dos novos arguidos associados ao outro processo viriam outros ofendidos, outros assistentes, outros demandantes e outras testemunhas, e, consoante os casos, poderiam ainda ser apensados outros processos envolvendo aqueles novos arguidos com fundamento na mera conexão subjectiva ampliada pela mera existência de comparticipação criminosa.

Assim vistas as coisas, tal modelo de conexão processual seria imprevisível e caótico.

Serve tudo isto para afirmar que não vemos qualquer razão para divergir da posição que vem sendo adoptada pelos tribunais superiores.

Vejamos então a situação dos presentes autos à luz da referida interpretação normativa atribuída ao art. 25.º do CPP.

3. O caso concreto
3.1. O despacho recorrido descreve suficientemente os objectos processuais cuja apensação foi reputada violadora da lei adjectiva pelo recorrente.

No âmbito dos presentes autos, pendentes para julgamento no Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., o arguido AA – médico especialista em Ginecologia e Obstetrícia –encontra-se acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência p. e p. pelos artigos 15.º, al. a) e 148.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, traduzido na violação negligente pelo arguido das legis artis médicas por referência ao parto da bebé CC realizado em ../../2017.
  
Por outro lado, no âmbito do processo n.º 605/18...., igualmente pendente para julgamento no Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., importa julgar a pronúncia dos arguidos AA e BB pela prática de um crime de homicídio negligente p. e p. pelos artigos 15.º, al. a) e 137.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, sendo que a ausência da respectiva certidão nos autos inviabiliza o conhecimento do objecto concreto deste processo, mas não obsta a que presuma que respeita a outro ofendido e que não se colocam obstáculos no plano da competência territorial.

3.2. Assim enunciados os termos dos processos em confronto, importa verificar, sem mais delongas e considerações ociosas, que, em princípio, estamos na presença de pluralidade de crimes cometidos pelo arguido AA para cuja apreciação são competentes tribunais com sede na mesma comarca.

Contudo, os diferentes crimes em presença não foram cometidos pelo mesmo e único agente.
  
Ora, a conexão subjectiva prevista no art. 25.º do Código de Processo Penal apenas opera entre vários processos quando existe pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo e único agente.

Assim sendo, assiste inteira razão ao arguido – bem como ao Ministério Público junto desta relação – e, consequentemente, o recurso do arguido é totalmente procedente.

4. Aqui chegados, impõe-se a revogação da decisão recorrida, devendo cada um dos processos em presença ser julgado no Juízo Local Criminal ... em que foi oportunamente distribuído.

III – DECISÃO

Em função do exposto, os Juízes Desembargadores desta Relação acordam em julgar totalmente procedente o recurso e, consequentemente, revogam a decisão recorrida e determinam que cada um dos processos em presença deve ser julgado no Juízo Local Criminal ... em que foi oportunamente distribuído.

Sem tributação.
Antes da baixa dos autos, comunique esta decisão ao Juízo Local Criminal ... – Juiz ....
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Guimarães, 5 de Março de 2024
(Texto elaborado em computador pelo relator e integralmente revisto pelos subscritores)

(Paulo Almeida Cunha - Relator)
(Pedro Cunha Lopes)