Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
272/17.1T8BGC.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VENDA AD CORPUS
ÁREA REAL INFERIOR Á PUBLICITADA
REDUÇÃO DO PREÇO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/29/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (da relatora):

I. O uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser concretizado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, imporem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova).

II. O standard (suficiência) de prova é uma pauta móvel, que terá que ser adaptada (embora de forma objectiva) ao concreto litígio em causa (nomeadamente, à natureza dos factos que nele se discutem e terão de demonstrar).

III. A maior, ou menor, idoneidade a conferir às declarações de parte (necessariamente em função do caso concreto), dependerá nomeadamente: da possibilidade, ou impossibilidade, de recurso a outros meios de prova, para além das declarações de parte; e da forma como as mesmas foram prestadas, isto é, com ou sem serenidade e relativo desapego face à realidade retratada (circunstâncias a ponderar cum grano salis, face à natureza de parte do depoente), com ou sem convicção e assertividade, nomeadamente na fundamentação (incluindo corroborações periféricas), com ou sem contradições (incluindo correcções espontâneas), com ou sem hesitações ou tibiezas (incluindo reacção da parte a perguntas inesperadas), com ou sem espontaneidade e fluidez (incluindo contextualização espontânea do relato, e riqueza de detalhes).

IV. Os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (v.g. a determinação da vontade real do declarante, de uma certa intenção, o conhecimento de dadas circunstâncias) não são, em regra, passíveis de prova directa, mas sim de prova indirecta, a realizar nomeadamente com recurso a presunções judiciais.

V. Sendo as presunções judicias ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, de acordo com as regras da experiência comum, só serão validamente contraditadas se o impugnante demonstrar a não prova do facto base da presunção, ou o carácter ilógico do facto presumido (isto é, o não se mostrar o mesmo sufragado pelas ditas regras da experiência).

VI. Por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil (arts. 2º, n.º 1 e 130º, ambos do C.P.C.).

VII. Vendido um prédio com uma área inferior, em mais de um vigésimo, à publicitada e paga, o que só se apura posteriormente, tem o comprador direito à redução proporcional do preço, nos termos do art. 888º do C.C.; e, apurando-se que aquela diferença de área impede a realização do fim a que o imóvel era destinado, tem o comprador direito à redução do preço, por meio de avaliação do seu prejuízo, nos termos dos arts. 913º, 911º e 884º, todos do C.C..

VIII. Se não houver um recurso da parte contrária, seja independente ou subordinado, a parte da decisão não recorrida está protegida por um valor de caso julgado formal; e, assim, a decisão do tribunal ad quem não pode ser mais desfavorável ao recorrente do que a decisão proferida pelo tribunal a quo (art. 635º, nº 5 do C.P.C.).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.
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I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. A. G. e mulher, M. F. (aqui Recorridos), residentes na Rua …, em Bragança, propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra Banco A, S.A. (aqui Recorrente), com sede na Avenida …, em Lisboa, pedindo que

· se reconhecesse que um imóvel que lhes foi vendido pela Ré tem a área real, correcta e efectiva de 4.506 m2 (e não de 9.500 m2, como foi declarado vender), condenando-se aquela a reconhecê-lo;

· se declarasse a redução do preço de € 190.500,00, que eles próprios pagaram à Ré pela aquisição do imóvel, em valor não inferior a € 50.500,00, inerente à venda de coisa defeituosa, sendo a Ré condenada a devolver-lhes a aludida quantia, acrescida de juros de mora, calculados à taxa supletiva legal, contados desde a citação até integral pagamento;

· fosse a Ré condenada a suportar todas as despesas necessárias à rectificação da área do dito imóvel nos respectivos registo predial e inscrição matricial;

· ou (subsidiariamente) fosse a Ré condenada, com base no instituto do enriquecimento sem causa, a pagar-lhes a referida quantia de € 50.500,00, por se ter com ela ilegitimamente enriquecido à custa do património deles próprios, nessa mesma medida empobrecido, acrescida de juros de mora, calculados à taxa supletiva legal, contados desde a citação até integral pagamento.

Alegaram para o efeito, em síntese, terem adquirido à Ré um prédio urbano (que melhor identificaram), publicitado como possuindo 9.500 m2 de área total (edifício e logradouro), e por isso aceitando pagar pelo mesmo o preço de € 190.500,00.

Mais alegaram terem verificado posteriormente que o referido prédio apenas possui 4.506 m2; e, se tivessem conhecido antes essa sua área, nunca teriam aceite adquiri-lo por preço superior a € 140.000,00, já que computam em € 50.500,00 a desvalorização real e de mercado que a referida redução de área consubstancia.

1.1.2. Regularmente citada, a (Banco A, S.A.) contestou, pedindo que a acção fosse julgada improcedente

Alegou para o efeito, em síntese, terem os Autores conhecido o imóvel antes de o terem adquirido, tendo sido também eles quem fez a proposta de preço, que acabaria por ser aceite por si.
Mais alegou desconhecer a divergência de área invocada pelos Autores, e a essencialidade para os mesmos (nomeadamente, para o preço proposto e pago) da correcção da área publicitada, por isso impugnando tais factos.

1.1.3. Em sede de audiência prévia, foi proferido despacho saneador (certificando tabelarmente a validade e a regularidade da instância e fixando o valor da acção em € 50.500,00); definindo o objecto do litigio («em via principal, o direito à redução do preço e o direito ao valor das despesas com a rectificação do registo e a matriz, e, em via subsidiária, o direito à indemnização com base no instituto do enriquecimento sem causa») e enunciando os temas da prova («em via principal, os “pressupostos do direito à redução do preço e pressupostos do direito à indemnização das despesas”, e, subsidiariamente, “os pressupostos do enriquecimento sem causa”»); apreciando os requerimentos probatórios das partes e designando dia para a audiência final.

1.1.4. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção procedente, lendo-se nomeadamente na mesma:

«(…)
Pelo exposto, julgo a acção, pela forma indicada, procedente e, em consequência:

a) Declaro que o imóvel vendido pelo Réu aos Autores tem a área de 4 506 m2 (quatro mil, quinhentos e seis metros quadrados);
b) Condeno a Ré Banco A, S. A. a reconhecer que o imóvel tem a área de 4 506 m2 (quatro mil, quinhentos e seis metros quadrados);
c) Declaro que os Autores têm direito à redução do preço correspondente ao valor da desvalorização do prédio, no montante que vier a ser liquidado;
d) Condeno a Ré a devolver aos Autores a quantia referida em c), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até efectivo e integral pagamento;
e) Condeno a Ré a suportar todas as despesas necessárias à rectificação no registo predial e na matriz da área do imóvel; e
f) Absolvo a Ré do demais peticionado; e
g) Condeno a Ré nas custas (artigo 527.º, números 1 e 2, do C. P. Civil), sem prejuízo do acerto devido em razão do valor que se apure no incidente de liquidação.
Registe e notifique.
(…)»
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1.2. Recurso

1.2.1. Fundamentos

Inconformada com esta decisão, a (Banco A, S.A.) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que o mesmo fosse julgado provido, revogando-se a sentença recorrida.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (reproduzindo-se ipsis verbis as respectivas conclusões):

1.ª - Salvo o muito respeito que é devido, vem o douto aresto recorrido inquinado por um flagrante erro de julgamento quanto ao seminal facto controvertido e, bem assim, por um outro erro na selecção do legal enquadramento ao qual é subsumível o enquadramento factual sub judice;

2.ª - Os AA. intentaram a presente acção alegando que apuraram que a real dimensão do imóvel que compraram ao R. é inferior à dimensão que consta do registo predial e da matriz e que o R. havia reproduzido no anúncio colocado no seu sítio na internet;

3.ª - Tendo o R. impugnado a alegada dissidência na dimensão do imóvel, sobre os AA. passou a impender o ónus de provar tal facto controvertido;

4.ª - O Insigne Tribunal Recorrido deu como provado, mal, com base estritamente num documento particular junto pelos AA. com a petição inicial - e cujo teor foi impugnado pelo R. - e nas declarações de parte do A. que a área do imóvel era a por si alegada;

5.ª - Nos termos e para os efeitos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, são os pontos reduzidos aos números 9.º, 10.º, 11.º e 15.º a 18.º da douta sentença recorrida os pontos da matéria de facto cujo sentido decisório vem inquinado por erro de julgamento e que mereciam resposta em sentido diametralmente oposto;

6.ª - E, da mesma sorte - cautelarmente e sem prejuízo da repartição do ónus da prova - deveriam os factos reconduzidos aos artigos 27.º e 38.º da contestação aduzida pela ré ter sido jugados provados, ao contrário do que sucedeu no douto decisório recorrido;

7.ª - Os meios de prova que implicariam a prolação de decisão em inverso sentido, e que aqui se deixam consignados nos termos e para os efeitos do preceituado pela alínea b) do n.º 1 e pelo n.º 2 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, são: (i) quanto aos factos julgados provados, pela sua inépcia para sustentar o sentido decisório perfilhado pelo Insigne Tribunal Recorrido, o depoimento do próprio Recorrido e o impugnado documento que instruiu a douta petição inicial como “Documento D”; e, (ii) quanto aos factos julgados não provados, o depoimento testemunhal de C. T. e José;

8.ª - Controvertida a dimensão do imóvel – e pretendendo os AA. colocar em causa a área que se encontra relevada na Conservatória do Registo Predial e na matriz predial, ademais com a presunção registral que daí resulta – de modo algum se pode o Tribunal bastar com um documento particular, elaborado a mando do A. e meras declarações deste, sem a produção de prova pericial, sem um levantamento topográfico realizado no âmbito do processo ou, sequer, uma inspecção ao local;

9.ª - Por outro lado, o Recorrente alegou desconhecer da existência de um qualquer desfasamento entre as dimensões que constam do registo predial e matriz como sendo as do imóvel e a área medida;

10.ª - Mesmo não sendo seu o ónus de provar o alegado desconhecimento, este facto resultou evidente dos depoimentos das duas testemunhas que arrolou. E terá de se ter por certo que uma instituição como um banco, que recebe em dação ou adjudicação centenas, senão milhares, de imóveis por ano, aquilo que faz, quanto a estes imóveis, é levar a efeito as diligências curiais à sua venda;

11.ª - Ou seja, tratar dos registos a seu favor, da obtenção de certificado energético quanto aplicável ou, assegurar o licenciamento quando necessário. Outrossim, não se afigura - neste enquadramento - uma diligência necessária ir confirmar que estão correctas as confrontações dos prédios no registo predial e na matriz, ou a área que aí consta;

12.ª - Daí que a testemunha José tenha manifestado uma espontânea surpresa, aos 8 minutos da sua inquirição, quando lhe foi perguntado se o Banco mede os imóveis que recebe no seguimento de incumprimento de créditos;

13.ª - Da prova produzida, aquilo que se poderá considerar certo é que existe um documento particular que refere que a área do imóvel é de 4.506 m2, existe uma certidão predial que consigna que a área do imóvel é de 9.500m2 e uma certidão matricial que diz, também, que a área do prédio é de 9.500m2.

14.ª - Não podia, de modo algum, ter o Insigne Tribunal Recorrido julgado provado, como o fez, o teor dos artigos 9.º, 10.º, 11.º e 15.º a 18.º do acervo material relevado no decisório, por claríssima falta de prova sobre a matéria que versam, antes devendo tais factos serem, todos, julgados não provados;

15.ª - E, outrossim, deveria ter sido julgado provado o asseverado nos artigos 27.º e 38.º da contestação oportunamente apresentada nos autos;

Por outro lado, e no que a Direito concerne,

16.ª - Ainda que houvesse ficado provado (e não ficou) que o valor da área do terreno que consta da Conservatória e Finanças é superior ao que se mede no local, a ulterior constatação de um putativo erro na área inscrita nestas entidades não confere quaisquer direitos aos AA.;

17.ª - Conforme bem o asseverou o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, «O erro que versa sobre a área dos prédios é um erro sobre as suas qualidades, ou seja, um erro sobre o objecto do negócio»;

18.ª - Donde, erro é a subsunção, perfilhada no douto aresto recorrido, dos factos que compõem o dissídio em crise a venda de coisa defeituosa;

19.ª - Resulta dos factos provados que os AA. observaram o imóvel, no local, mais do que uma vez, e decidiram-se pela sua compra, sem nunca ter colocado qualquer questão quanto às suas dimensões;

20.ª - Na escritura que titula a compra e venda ficou expressamente consignado que os AA. declararam «(…) sob sua inteira e exclusiva responsabilidade, que previamente à outorga do presente contrato, visitaram o prédio objecto do mesmo e que este está conforme a descrição que delas lhe foi feita pelo Vendedor, que conhecem os defeitos e vícios que o mesmo apresenta e que ainda assim o pretendem adquirir, sendo o mesmo adequado ao uso específico para o qual o adquirem, apresentando as qualidades e os desempenhos que razoavelmente se podem esperar de prédio usado com cerca de treze anos; declaram ainda que reconhecem e aceitam que o preço fixado para a compra e venda foi estabelecido em função do referido no precedente número»;

21.ª - O erro (putativo, porque não demonstrado) na descrição do imóvel, no que se reporta à sua área, na matriz e na conservatória não configura defeito da coisa, mas, quando muito, erro sobre o objecto do negócio;

22.ª - Se os Recorridos alegam que compraram um prédio com a área de x, pensando estar a comprar um prédio com a área y, quando muito - houvesse fundamento de facto, e não há - o que poderia o Insigne Tribunal Recorrido ter ponderado (fundamento de facto houvesse) teria sido o instituto do erro sobre o objecto do negócio;

23.ª - Nesse enquadramento – delimitado pelas normas constantes dos artigos 251.º e 247.º do Código Civil – necessário seria que existisse, de facto, erro sobre o objecto do negócio e que a parte contra quem o erro é invocado conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro;

24.ª - E não foi alegado, ou provado, que o Banco Recorrente conhecesse qualquer discrepância e muito menos que a existência de uma área total de 9.500 m2 fosse uma condição essencial para que os autores comprassem o imóvel e que o Recorrente conhecia esta essencialidade;

25.ª - Donde, sempre salvo o muito respeito que é devido, não só erra o douto aresto recorrido na apreciação da matéria de facto – julgando provado sem suporte nenhum o seminal facto controvertido – como erra na legal subsunção da relação jurídica objecto do processo;

26.ª - Ao ter decidido como decidiu, o douto decisório recorrido violou as normas previstas nos artigos 911.º, 913.º e 884.º do Código Civil (pela sua indevida aplicação) e nos artigos 251.º e 247.º do mesmo diploma legal (no postergar da apreciação dos factos à luz destas normas, por serem as aplicáveis).
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1.2.2. Contra-alegações

Os Autores (A. G. e mulher, M. F.) contra-alegaram, pedindo que fosse negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2, ambos do C.P.C.), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2, in fine, ambos do C.P.C.).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, 02 questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal:

- Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e valoração da prova produzida, uma vez que a mesma

. não permitia que se dessem como demonstrados os factos provados enunciados na sentença recorrida sob o número 9 («Medição na sequência da qual se constatou que a área efectiva do prédio adquirido é de 4 506 m2 (quatro mil, quinhentos e seis metros quadrados)»), sob o número 10 («E não a área de 9.500 m2 que pelo Réu foi publicitada e também descrita, quer no registo predial, quer nos serviços de finanças»), sob o número 11 («Não tendo a Ré, quer nos actos preliminares, quer aquando da outorga da escritura, quer posteriormente, informado ou alertado os Autores para a falta de correspondência entre a área publicitada e descrita, quer no registo predial, quer na matriz predial (9 500 m2), com a área real do prédio objecto do contrato»), sob o número 15 («A área de 9 500 m2 determinou que os Autores se decidissem pela compra do imóvel e pagassem à Ré o preço de € 190 500, 00 (cento e noventa mil e quinhentos euros)»), sob o número 16 («Os Autores estariam dispostos a pagar o valor de € 140 000, 00 (cento e quarenta mil euros) pelo imóvel à Ré, se tivessem tido conhecimento da sua área real»), sob o número 17 («Os Autores não teriam adquirido o imóvel pelo valor de € 190 500, 00 (cento e noventa mil e quinhentos euros), se soubessem que a parcela de 4 394 m2 (quatro mil, trezentos e noventa e quatro metros quadrados) não fazia parte do imóvel»), e sob o número 18 («A parcela de 4 394 m2 referida em 17.º desvaloriza o imóvel em quantia não concretamente apurada»);

. impunha que se dessem como provados dois novos factos, retirados da contestação, do seu artigo 27º («O Banco R. desconhece da existência de qualquer divergência entre a área do imóvel e a área consignada no registo predial e na matriz») e do seu artigo 38º («Conforme já se adiantou, o Banco R. desconhece da existência de qualquer divergência entre a área do prédio em apreço e a área que consta da certidão predial e da matriz») ?

- Deverá ser alterada a decisão de mérito proferida (nomeadamente, face ao prévio sucesso da impugnação de facto feita, mas também de forma independente dela), por forma a que se julgue a acção improcedente (absolvendo-se a Ré de todos os pedidos formulados) ?
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III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1. Decisão de Facto do Tribunal de 1ª Instância

Realizada a audiência de julgamento no Tribunal de 1ª Instância, resultaram provados os seguintes factos (aqui apenas reordenados, lógica e cronologicamente, e remunerados):

1 - O prédio urbano, sito no (...), Lugar de (...), freguesia de (...), concelho de Bragança, composto por casa de rés-do-chão, anexo e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ... e inscrito na matriz respectiva sob o artigo ..., com o valor patrimonial de € 101.800,10 (cento e um mil, oitocentos euros, e dez cêntimos) foi adquirido pelo Banco B, S.A., por venda judicial, no âmbito de execução movida contra o anterior proprietário, em 8 de Setembro de 2009, pelo valor de € 330.900,00 (trezentos e trinta mil, novecentos euros, e zero cêntimos).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 20)

2 - O imóvel referido no facto anterior adveio à titularidade de Banco A, S.A. (aqui Ré) por transferência do património do Banco B, S. A., no seguimento das deliberações do Banco de Portugal de 3 de Agosto de 2014 e de 28 de Outubro de 2014, nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 5 do artigo 145.º-H do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 19)

3 - Quando a Ré (Banco A, S.A.) adquiriu o imóvel, e quando o Banco B, S. A. (antes da Ré) o adquiriu, era a mesma a área inscrita no registo predial e na matriz, 9.500 m2.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 31)

4 - O prédio encontra-se delimitado, à vista, pelas suas confrontações, seja com os vizinhos, seja com caminho público.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 32)

5 - Após a transmissão do imóvel do Banco B, S.A. para a Ré (Banco A, S.A.), entendeu esta destiná-lo à venda, tendo procedido à sua divulgação e anunciando o preço de venda de € 226.500,00 (duzentos e vinte e seis mil, quinhentos euros, e zero cêntimos).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 21)

6 - A venda foi publicitada pela Ré (Banco A, S.A.) através do “site” “Banco A Imóveis”.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 3)

7 - A. G. e mulher, M. F. (aqui Autores) viviam num apartamento.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 12)

8 - Com o nascimento do segundo filho, os Autores (A. G. e mulher, M. F.) iniciaram a procura de moradia que tivesse logradouro com dimensões razoáveis (aproximadamente um hectare) que possibilitasse a prática de actividades ao ar livre.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 13)

9 - Os Autores (A. G. e mulher, M. F.) encontraram na Internet a moradia supra referida publicitada para venda, que reunia as características por eles pretendidas, designadamente em termos de área.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 14)

10 - Em data não concretamente apurada, os Autores (A. G. e mulher, M. F.) apresentaram à Ré (Banco A, S.A.) proposta de compra do imóvel através de mediador imobiliário, X - Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., pelo valor de € 190.500,00 (cento e noventa mil, quinhentos euros, e zero cêntimos).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 22)

11 - Os Autores (A. G. e mulher, M. F.) e a Mediadora justificaram tal valor com o mau estado do imóvel e a necessidade de obras de reparação, que estimavam vir a orçar em cerca de € 60.000,00 (sessenta mil euros, e zero cêntimos).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 23)

12 - A apresentação da proposta pelos Autores (A. G. e mulher, M. F.) foi precedida de duas visitas, por estes, ao imóvel.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 24)

13 - Uma primeira visita em que esteve presente o representante comercial da Ré (Banco A, S.A.), ambos os Autores (A. G. e mulher, M. F.) e o pai da Autora.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 25)

14 - Uma segunda visita em que esteve presente o representante da Ré (Banco A, S.A.), o Autor marido (A. G.) e um terceiro que o acompanhava.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 26)

15 - Em ambas as visitas os Autores (A. G. e mulher, M. F.) (só o Autor marido na segunda) percorreram toda a área coberta do imóvel.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 27)

16 - As únicas questões que os Autores (A. G. e mulher, M. F.) colocaram, durante toda a negociação durante as visitas, foram quanto às patologias do imóvel, nomeadamente, a podridão do chão, a ausência de portas de entrada, telhado destruído, casas de banho sem as louças colocadas, vandalizadas, e sistema de aquecimento defeituoso.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 28)

17 - Nunca foi colocada pelos Autores (A. G. e mulher, M. F.), ou por terceiros que os acompanhassem, qualquer questão quanto à área do imóvel, seja por escrito, seja verbalmente.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 29)

18 - A Ré (Banco A, S.A.) aquiesceu na proposta apresentada e dispôs-se a vender o imóvel aos Autores (A. G. e mulher, M. F.) pelo valor de € 190.500,00 (cento e noventa mil, quinhentos euros, e zero cêntimos).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 30)

19 - Por escritura pública de «COMPRA, VENDA, MÚTUO E HIPOTECA», outorgada, em 21 de Julho de 2016, no Cartório Notarial do Dr. J. G., sito à Avenida … da cidade de Bragança, Banco A, S.A. (aqui Ré) declarou vender a A. G. e mulher, M. F. (aqui Autores), pelo preço de € 190.500,00 (cento e noventa mil, e quinhentos euros), já recebido, o prédio urbano, sito no (...), Lugar de (...), freguesia de (...), concelho de Bragança, composto por casa de rés-do-chão, anexo e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ... e inscrito na matriz respectiva sob o artigo ..., com o valor patrimonial de € 101.800, 10 (cento e um mil, oitocentos euros, e dez cêntimos).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 1)

20 - Na escritura referida em 1.º, os Autores (A. G. e mulher, M. F.) declararam «(…) sob sua inteira e exclusiva responsabilidade, que previamente à outorga do presente contrato, visitaram o prédio objecto do mesmo e que este está conforme a descrição que delas lhe foi feita pelo Vendedor, que conhecem os defeitos e vícios que o mesmo apresenta e que ainda assim o pretendem adquirir, sendo o mesmo adequado ao uso específico para o qual o adquirem, apresentando as qualidades e os desempenhos que razoavelmente se podem esperar de prédio usado com cerca de treze anos; declaram ainda que reconhecem e aceitam que o preço fixado para a compra e venda foi estabelecido em função do referido no precedente número».
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 2)

21 - Após a outorga da escritura referida em 1.º, os Autores (A. G. e mulher, M. F.) entraram na posse do prédio adquirido,
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 4)

22 - Os Autores (A. G. e mulher, M. F.) iniciaram no prédio adquirido obras diversas de reparação e conservação da sua parte habitacional e de limpeza do seu logradouro.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 6)

23 - Os Autores (A. G. e mulher, M. F.) inteiraram-se, para tanto, das suas estremas ou delimitação relativamente aos prédios confinantes.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 7)

24 - Suscitaram-se aos Autores (A. G. e mulher, M. F.) dúvidas sobre a real área do prédio adquirido à Ré (Banco A, S.A.).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 7)

25 - Por tal razão, os Autores (A. G. e mulher, M. F.) solicitaram a terceiro a medição do prédio adquirido.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 8)

26 - Medição na sequência da qual se constatou que a área efectiva do prédio adquirido é de 4 506 m2 (quatro mil, quinhentos e seis metros quadrados).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 9)

27 - E não a área de 9.500 m2 que pela Ré (Banco A, S.A.) foi publicitada e também descrita, quer no registo predial, quer nos serviços de finanças.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 10)

28 - Não tendo a Ré (Banco A, S.A.), quer nos actos preliminares, quer aquando da outorga da escritura, quer posteriormente, informado ou alertado os Autores (A. G. e mulher, M. F.) para a falta de correspondência entre a área publicitada e descrita, quer no registo predial, quer na matriz predial (9 500 m2), com a área real do prédio objecto do contrato.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 11)

29 - A área de 9 500 m2 determinou que os Autores (A. G. e mulher, M. F.) se decidissem pela compra do imóvel e pagassem à Ré (Banco A, S.A.) o preço de € 190.500,00 (cento e noventa mil, e quinhentos euros).
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 15)

30 - Os Autores (A. G. e mulher, M. F.) estariam dispostos a pagar o valor de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros) pelo imóvel à Ré (Banco A, S.A.), se tivessem tido conhecimento da sua área real.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 16)

31 - Os Autores (A. G. e mulher, M. F.) não teriam adquirido o imóvel pelo valor de € 190.500,00 (cento e noventa mil e quinhentos euros), se soubessem que a parcela de 4 394 m2 (quatro mil, trezentos e noventa e quatro metros quadrados) não fazia parte do imóvel.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 17)

32 - A parcela de 4 394 m2 referida em 17.º desvaloriza o imóvel em quantia não concretamente apurada.
(facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 18)
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3.2. Modificabilidade da decisão de facto - Erro de julgamento

3.2.1. Incorrecta apreciação da prova legal - Poder (oficioso) do Tribunal da Relação

Lê-se no art. 607º, nº 5 do C.P.C. que o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», de forma consentânea com o disposto no C.C., nos seus art. 389º do C.C. (para a prova pericial), art. 391º do C.C. (para a prova por inspecção) e art. 396º (para a prova testemunhal).

Contudo, a «livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes» (II parte, do nº 5, do art. 607º do C.P.C. citado, com bold apócrifo).

Mais se lê, no art. 662º, nº 1 do C.P.C., que a «Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

Logo, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto - que a ela conduza - constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do art. 607º, nº 4 do C.P.C., aqui aplicável ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo diploma).

Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspectos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.

Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena - cuja falsidade não tenha sido suscitada (arts. 371º, nº 1e 376º, nº 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (art. 574º, nº 2 do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (art. 358º do C.C., e arts. 484º, nº 1 e 463º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (vg. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos arts. 351º e 393º, ambos do C.P.C.).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).
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3.2.2. Erro de julgamento - Incorrecta livre apreciação da prova

3.2.2.1. Âmbito da sindicância (provocada) do Tribunal da Relação

Lê-se no nº 2, als. a) e b), do art. 662º citado, que a «Relação deve ainda, mesmo oficiosamente»: «Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de depoente ou sobre o sentido do seu depoimento» (al. a); «Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova» (al. b)».

«O actual art. 662º representa uma clara evolução [face ao art. 712º do anterior C.P.C.] no sentido que já antes se anunciava. Através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e fundar a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis.

(…) Afinal, nestes casos, as circunstâncias em que se inscreve a sua actuação são praticamente idênticas às que existiam quando o tribunal de 1ª instância proferiu a decisão impugnada, apenas cedendo nos factores de imediação e da oralidade. Fazendo incidir sobre tais meios probatórios os deveres e os poderes legalmente consagrados e que designadamente emanam dos princípios da livre apreciação (art. 607º, nº 5) ou da aquisição processual (art. 413º), deve reponderar a questão de facto em discussão e expressar de modo autónomo o seu resultado: confirmar a decisão, decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão num sentido restritivo ou explicativo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 225-227).

É precisamente esta forma de proceder da Relação (apreciando as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, e indo à procura da sua própria convicção), que assegura a efectiva sindicância da matéria de facto julgada, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise (conforme Ac. do STJ, de 24.09.2013, Azevedo Ramos, comentado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, nº 44, p. 29 e ss.).
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3.2.2.2. Modo de operar o duplo grau de jurisdição - Ónus de impugnação

Contudo, reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto «nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência», mas, tão-somente, «detectar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento» (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.

Com efeito, e desta feita, «à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como de se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respectivas alegações que servem para delimitar o objecto do recuso», conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 228, com bold apócrifo).

Lê-se, assim, no art. 640º, n 1 do C.P.C. que, quando «seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Precisa-se ainda que, quando «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados», acresce àquele ónus do recorrente, «sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes» (art. 640º, nº 2, al. a) citado).

Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c) do nº 1 do art. 640º citado), «vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente», devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto «decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes», «impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 129, com bold apócrifo).

Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efectividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).

Por outras palavras, se o dever - constitucional e processual civil - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar «um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido» por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, in www.dgsi.pt, como todos os demais sem indicação de origem).

Com efeito, «livre apreciação da prova» não corresponde a «arbitrária apreciação da prova». Deste modo, o Juiz deverá objectivar e exteriorizar o modo como a sua convicção se formou, impondo-se a «identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do Julgador», e ainda «a menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1985, p. 655).

«É assim que o juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)» (Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).

«Destarte, o Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (provado, não provado, provado apenas…, provado com o esclarecimento de que…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 591, com bold apócrifo).

Dir-se-á mesmo que, este esforço exigido ao Juiz de fundamentação e de análise crítica da prova produzida «exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo Tribunal Superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao acto jurisdicional» (José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, p. 281).

É, pois, irrecusável e imperativo que, «tal como se impõe que o tribunal faça a análise critica das provas (de todas as que se tenham revelado decisivas)… também o Recorrente ao enunciar os concreto meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa deve seguir semelhante metodologia», não bastando nomeadamente para o efeito «reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, p. 595, com bold apócrifo).

De todo o exposto resulta que o âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se de acordo com os seguintes parâmetros: só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente; sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento; e nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).

Importa, porém, não esquecer - porque (como se referiu supra) se mantêm em vigor os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta -, que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.

Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância. «Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte» (Ana Luísa Geraldes, «Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto», Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, pág. 609).
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3.2.2.3. Carácter instrumental da impugnação da decisão de facto

Veio, porém, a jurisprudência precisar ainda que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.

Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo nº 219/10.6T2VGS.C1, com bold apócrifo).

Logo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto «quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente», convertendo-a numa «pura actividade gratuita ou diletante» (conforme Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12.0T2AVR.C1).

Por outras palavras, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.

Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo nº 219/10.6T2VGS.C1, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10.3TBLRA.C1, onde se lê que, de «harmonia com o princípio da utilidade a que estão submetidos todos os actos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa (artº 137 do CPC de 1961, e 130 do NCPC)», pelo que se «o facto ou factos cujo julgamento é impugnado não forem relevantes para nenhuma das soluções plausíveis de direito da causa é de todo inútil a reponderação da decisão correspondente da 1ª instância»; e isso «sucederá sempre que, mesmo com a substituição, a solução o enquadramento jurídico do objecto da causa permanecer inalterado, porque, por exemplo, mesmo com a modificação, a factualidade assente continua a ser insuficiente ou é inidónea para produzir o efeito jurídico visado pelo autor, com a acção, ou pelo réu, com a contestação»).
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3.2.2.4. Caso concreto

Concretizando, considera-se que a Recorrente (Ré) cumpriu o ónus de impugnação que lhe estava cometido pelo art. 640º, nº 1 do C.P.C. (conclusão distinta de saber se, tendo-o feito, existe fundamento para a pretendida alteração dos factos julgados como provados, e para o pretendido aditamento de dois novos).

Com efeito, indicou nas suas conclusões de recurso: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (os factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 9, 10 11, 15, 16, 17 e 18, e o aditamento ao rol dos factos provados dos artigos 27º e 38 da contestação); os concretos meios probatórios que imporiam decisão diferente (a insuficiência probatória das declarações de parte prestadas pelo Autor, do levantamento topográfico que é fls. 27 dos autos, e do depoimento da testemunha José); e a decisão que, no seu entender, se impunha (o darem-se como não demonstrados os factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 9, 10 11, 15, 16, 17 e 18, e o darem-se como provados os artigos 27º e 38 da contestação).

Prosseguindo - na verificação do cumprimento do ónus de impugnação a cargo da Recorrente (Ré), e relativamente ao juízo crítico próprio, assentou o mesmo numa diferente valoração feita das declarações de parte prestadas pelo Autor, do documento de fls. 27 e do depoimento da testemunha José.

Por outras palavras, admitindo-se necessariamente que o Tribunal a quo ouviu integralmente essa prova pessoal que a Recorrente seleccionou na sua impugnação, bem como consultou o documento por ela referido para este efeito, certo é que fez dos mesmos uma outra valoração, ajuizando todo o seu conjunto face às regras da experiência.

Assim, pretendendo a Recorrente sindicar este juízo, importaria que indicasse as razões objectivas pelas quais entende que à prova pessoal e documental que seleccionou deveria ter sido dada outra relevância (nomeadamente, refutando de forma fundada as razões objectivas apresentadas pelo Tribunal a quo em sentido contrário); e fê-lo de facto.
Está, assim, este Tribunal da Relação em condições de poder proceder, nos termos autorizados pelo art. 640º do C.P.C., à reapreciação da matéria de facto pretendida pela Ré (Banco A, S.A.), aqui recorrente.
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3.3. Modificabilidade da decisão de facto - Caso concreto

3.3.1. Desconformidade entre a área declarada como vendida e a área real do prédio (factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 9 e 10)

Veio a Recorrente defender a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma não permitia que se desse como demonstrada a divergência entre a área declarada como sendo a do prédio vendido por si aos Autores, de 9.500 m2, e a alegada área real do mesmo, de 4.506 m2.

Esta factualidade encontra-se vertida nos factos provados enunciados na sentença recorrida sob o número 9 («Medição na sequência da qual se constatou que a área efectiva do prédio adquirido é de 4 506 m2 (quatro mil, quinhentos e seis metros quadrados)»), e sob o número 10 («E não a área de 9.500 m2 que pelo Réu foi publicitada e também descrita, quer no registo predial, quer nos serviços de finanças»).
Invocou para o efeito a insuficiência probatória, para este efeito, das declarações de parte prestadas pelo Autor e do levantamento topográfico que é fls. 27 dos autos.

Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pela Recorrente.

Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução às partes relevantes e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais significativos, atento o objecto da sindicância):

«(…)
Sob os artigos 5.º, 6.º, 7.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 28.º e 29.º, em consequência das declarações de parte do Autor – que, por se revelarem simples, claras, concisas, sóbrias e coerentes, e não sobrevir razão para delas duvidar, foram tidas como normal expressão da realidade que visavam transmitir –, resultou provada a matéria alegada, respectivamente, nos artigos 7.º, 8.º, 9.º, 14.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º, 28.º e 30.º da petição e 17.º e 18.º da contestação. E, sob os artigos 8.º, 9.º e 10.º, ainda por efeito das declarações do Autor e do teor do documento B, C e D, junto a fls. 20 a 27, com a petição, resultou provada a matéria alegada nos artigos 10.º, 11.º e 12.º da petição (a deste último artigo, inclusive, aceite pela Ré, no artigo 24.º da contestação).
(…)
No contexto da presente peça processual, a referência positiva às declarações de parte ou aos depoimentos das testemunhas é sempre fundada em análoga percepção de que os respectivos depoentes tiveram efectivo conhecimento dos factos questionados e sobre eles se pronunciaram por forma credível.
(…)
Por falta de prova, não foi considerada provada a matéria alegada nos artigos 27.º e 38.º da contestação – aliás, a testemunha C. T., gerente na agência no Banco A, S. A., em Bragança, bem esclareceu que, antes da venda, tivera conhecimento de certo levantamento topográfico que gizara uma área do prédio inferior à inscrita nos documentos fiscais e registrais.
(…)»

Logo, duas conclusões se podem desde já enunciar: o Tribunal a quo, no juízo de demonstração dos factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 9 e 10, ponderou toda a prova pessoal e documental produzida sobre eles, incluindo aquela que a Recorrente seleccionou para sindicar aquele seu juízo; e a mesma revelou-se plúrima e conforme entre si.
Ora, ouvida integralmente toda a prova pessoal produzida em sede de audiência de julgamento, sufraga-se inteiramente o juízo de prova do Tribunal a quo.
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Com efeito, e começando pelas declarações de parte do Autor, precisa-se antes de mais que este meio de prova (consagrado pela primeira vez pelo actual C.P.C., aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho) visa a prova de factos em que as partes «tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo» (art. 466º, nº 1 do C.P.C.).

As mesmas, quando não consubstanciem confissão, são livremente apreciadas pelo Tribunal, nomeadamente por beneficiarem então o próprio declarante (art. 466º, nº 3 do C.P.C.).

Enfatizando-se este último aspecto, veio inicialmente a firmar-se o entendimento maioritário de que as declarações de parte deveriam, em regra, ser consideradas apenas como um princípio ou complemento de prova, exigindo a demonstração do facto que afirmassem uma prova adicional; ou como um de meio de prova eminentemente integrativo (clarificando o resultado dos demais) ou subsidiário (quando inexistam outros).

(Neste sentido, Carolina Henriques Martins, Declarações de Parte, Universidade de Coimbra, 2015, p. 58, José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, p. 278, Paulo Pimenta, Processo Declarativo, Almedina, Julho de 2014, p. 357, Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, p. 383-384, ou Remédio Marques, «A aquisição e a valoração probatória de factos (des)favoráveis ao depoente ou à parte chamada a prestar informações ou esclarecimentos», Julgar, 2012, p. 137-172. Na jurisprudência, Ac. da RP, de 15.09.2014, António José Ramos, Processo nº 216/11.4TUBRG.P1, Ac. da RP, de 20.11.2014, Pedro Martins, Processo nº 1878/11, Ac. da RP, de 17.12.2014, Pedro Martins, Processo nº 2952/12, Ac. da RP, de 17.12.2014, Pinto dos Santos, Processo nº 8181/11, Ac. da RP, de 23.03.2015, Eusébio Almeida, Processo nº 1002/10.4TVPRT.PI, Ac. da RL, de 07.06.2016, Pedro Brighton, Processo nº 427/13.8TVLSB.L1-1, Ac. da RP, de 20.06.2016, Manuel Fernandes, Processo nº 2050/14, Ac. da RE, de 06.10.2016, Tomé Ramião, Processo nº 1457/15, ou Ac. da RL, de 13.10.2016, Ondina Carmo Alves, Processo nº 640/13.8TCLRS.L1.-2).

Contudo, e mais recentemente, assiste-se a uma correcção deste inicial entendimento, repudiando-se a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte, o seu estigma precoce, por falta de fundamento legal: relembra-se o facto de se estar perante uma prova autónoma, consagrada em termos amplos (e não apenas como mero princípio de prova); e por isso se defende que deverá valer plenamente para a formação da convicção do juiz (e ainda que não se apresente acompanhada de mais elementos de prova), já que só desse modo se garante uma tutela plena e efectiva, mormente naquelas situações em que inexistam outros meios de prova idóneos à comprovação da factualidade alegada.

Questiona-se, a propósito, se «a aferição da credibilidade da prova é tarefa que possa ser detetada previamente, em geral e abstrato?» E enfatiza pertinentemente que «se as partes podem passar a declarar a seu pedido o que viram, ouviram, sentiram, cheiraram, tocaram, conversaram, disseram, em suma, o que testemunharam, e porque o testemunharam não faz qualquer sentido conferir a estas declarações proferidas por pessoas que materialmente são testemunhas só porque são partes, um valor diverso do daqueles factos que foram testemunhados por quem é material e formalmente testemunha» (Elizabeth Fernandez, «Nemo Debet Essse Testis in Propria Causa ? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito», Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, p. 23 e 36).
Logo, para que as declarações de parte possam valer como prova positiva e idónea, não precisam de ser necessariamente corroboradas por outras provas; terão que ser, sim, idóneas por si só.

Não deixam, porém, os adeptos deste mais recente entendimento (e de forma conforme com o reconhecimento da inegável fragilidade decorrente do interesse próprio de quem depõe) de enfatizarem que esta maior ou menor idoneidade, aferida necessariamente em função do caso concreto, dependerá nomeadamente: da possibilidade, ou impossibilidade, de recurso a outros meios de prova, para além das declarações de parte; e da forma como as mesmas foram prestadas, isto é, com ou sem serenidade e relativo desapego face à realidade retratada (circunstâncias a ponderar cum grano salis, face à natureza de parte do depoente), com ou sem convicção e assertividade, nomeadamente na fundamentação (incluindo corroborações periféricas), com ou sem contradições (incluindo correcções espontâneas), com ou sem hesitações ou tibiezas (incluindo reacção da parte a perguntas inesperadas), com ou sem espontaneidade e fluidez (incluindo contextualização espontânea do relato, e riqueza de detalhes).

Logo, a admissibilidade deste meio de prova não significa que tudo quanto a parte declare deva ser considerado provado, ou - pelo contrário - que tudo o que a parte declare, e justamente porque é parte, deva ser considerado não provado; o concreto juízo final ficará dependente da criteriosa apreciação da factualidade sub judice, dos meios de prova tidos como naturais (previsivelmente existentes) e idóneos (suficientes) para a demonstrar, e a forma como em concreto foram prestadas as declarações de parte.

(Neste sentido, Elizabeth Fernandez, «Nemo Debet Esse Testis in Propria Causa? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito», Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, p. 23, Catarina Gomes Pedra, A Prova por Declarações das Partes no Novo Código de Processo Civil. Em Busca da Verdade Material no Processo, Escola de Direito, Universidade do Minho, 2014, p. 145, Mariana Fidalgo, A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, p. 80, ou Luís Filipe Pires de Sousa, «As malquistas declarações de parte», in http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/coloquios_STJ/CPC2015/painel_1_articulados_audiencia_LuisSousa.pdf, consultado em Junho de 2018. Na jurisprudência, Ac. da RE, de 12.03.2015, Mata Ribeiro, Processo nº 1/12.6TBPTM.E1, Ac. do STJ, de 05.05.2015, Gabriel Catarino, Processo nº 607/06.2TBPMS.C1.S1, Ac. da RG, de 17.09.2015, António Figueiredo de Almeida, Processo nº 912/14.4TBVCT-A.G1, Ac. da RG, de 02.05.2016, António Figueiredo Almeida, Processo nº 2745/15.1T8VNF-A.G1, Ac. da RE, de 12.01.2017, Paulo Amaral, Processo nº 812/13.5TBVNO.E1, Ac. da RL, de 26.04.2017, Luís Filipe Pires de Sousa, Processo nº 18591/15.0T8SNT.L1-7, ou Ac. do TCAS, de 19.10.2017, Sofia David, Processo nº 985/16.5BEALM.)

Ora, e face ao exposto, verifica-se que, não obstante o Autor (A. G.) seja, de facto, a pessoa com maior e mais directo conhecimento da compra e venda em causa, face às demais inquiridas em audiência de julgamento, certo é igualmente que as declarações que prestou não seriam previsivelmente o único meio de prova admissível para a demonstração da divergência de áreas em causa (a declarada vender e a efectivamente possuída pelo prédio alienado).

Com efeito, e estando em causa as dimensões de um prédio, nomeadamente a sua área, mensurável em m2, seria expectável que a mesma fosse objecto de um levantamento topográfico (que, desde já se adianta, viria de facto a ser junto aos autos, e a confirmar o teor das declarações de parte prestadas pelo Autor).

Foram, porém, as declarações de parte do Autor prestadas, e tal como o Tribunal a quo também o enfatizou, de forma serena e aparentemente isenta, pormenorizada, sem contradições ou anormais hesitações, revelando-se espontâneas e fluídas.

Assim, considera-se que o concreto teor das declarações de parte prestadas pelo Autor neste particular (divergência de áreas) constituiu um relevante princípio de prova da factualidade por ele alegada, não atingindo porém, por si só, o grau de suficiência para a afirmar (uma vez que, face ao concreto objecto da prova, se exigiria para o efeito prova complementar).
*
Podendo (e devendo), a mesma encontrar-se num levantamento topográfico, verifica-se que o junto com a petição inicial (a fls. 27 dos autos) consubstancia um documento particular, prontamente impugnado na contestação (ao contrário do sustentado pelos Autores, nas suas contra-alegações de recurso): lê-se expressamente seu artigo 29º que o «R. desconhece, sem que se trate de facto pessoal seu, da veracidade do alegado no artigo 13º do douto articulado inicial, bem como do documento que instrui tal alegação, pelo que terá tal factualidade de ser ter por impugnada, nos termos do nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Civil».

Logo, ficou desde então o teor do dito documento sujeito à livre apreciação do Tribunal, cabendo nomeadamente aos Autores, seus apresentantes, a prova quer da sua efectiva autoria, quer da veracidade do nele atestado (arts. 366º, 374º, nº 2, in fine, e 376º, a contrario, todos do C.C.).
Para qualquer destes efeitos, poderiam (e deveriam) contar com o depoimento pessoal, em sede de audiência de julgamento, do respectivo autor, L. M..
*
Ora, e precisando agora a prova testemunhal produzida sobre os factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 9 e 10, veio de facto L. M. a depor nessa qualidade, em sede de audiência de julgamento, confirmando não só ter realizado o levantamento topográfico que é fls. 27 dos autos, como a exactidão da conclusão nele vertida (isto é, o ser a área real do prédio vendido de 4.506 m2), detalhando a forma como foi apurada.

Acresceu ainda a este depoimento, e para o que ora nos interessa, o prestado pela testemunha C. T. (gerente da agência de Bragança da Ré), o qual, expressa e inequivocamente, afirmou que: «É verdade que a determinada altura tive acesso a um documento topográfico, deduzo que seja topográfico, não sou especialista na área, mas é verdade que tive acesso a um documento onde indicava que a área era menor do que aquela que constava nos documentos aos quais eu tive acesso».

Dir-se-á agora que, mesmo considerando antes as declarações de parte prestadas pelo Autor sobre a divergência de áreas como um mero princípio de prova, dispuseram as mesmas depois do necessário conforto de prova adicional (documental e pessoal), que as confirmou, de forma plúrima e sempre coerente.

Face a todo este conforme acervo probatório (não reduzido apenas às declarações de parte do Autor e ao levantamento topográfico impugnado, conforme sustentado pela Ré nas suas alegações de recurso), e tal como o Tribunal a quo igualmente o ajuizou, considera este Tribunal da Relação ter aquele atingido o standard (suficiência) de prova exigível para a demonstração dos factos sobre que recaiu, permitindo por isso que os enunciados na sentença recorrida sob os números 9 e 10 ficassem estabelecidos.
*
Caberia, então, à Ré produzir outra prova que os tornasse duvidosos, já que a dúvida que assim criasse seria suficiente para que se decidisse contra os Autores, como parte onerada com a sua demonstração (art. 346º do C.C.).

Recorda-se que «o significado essencial do ónus da prova não está tanto em saber a quem incumbe a prova do facto, como de determinar o sentido em que deve o tribunal decidir no caso de não se fazer prova do facto» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, I, 4ª edição, Coimbra Editora, 1987, p. 306).

Compreende-se, por isso, que se afirme que o ónus da prova comporta necessariamente uma prévia dimensão fáctica (pertinente ao processo interior do julgador, quanto ao convencimento sobre a ocorrência do facto), que impõe que a dúvida sobre a realidade de um facto» se resolva «contra a parte a quem o facto aproveita» (art. 414º do C.P.C.).
Contudo, a Ré não apresentou, ou produziu, qualquer prova que infirmasse ser a área real do prédio por si vendido aos Autores de 4.506 m2, para além do teor do registo predial e da inscrição matricial (documentos desde logo apresentados com a petição inicial).

Recorda-se, a propósito, que se lê no art. 82º, nº 1, al. d) do C.R.P. que o «extracto da descrição deve conter a composição e a área do prédio»: «a descrição predial» é «a imagem verbal do prédio» (Rui Januário e António Gameiro, Direito Registral Predial, Quid Juris, Lisboa, 2016, p. 190, com bold apócrifo), de forma idêntica ao que sucede com a sua inscrição matricial.

Contudo, reconhece-se que, não obstante o objecto do registo incluir a realidade material do prédio sobre que recai a inscrição, configurada através da descrição predial, a presunção do art. 7º do C.R.P. não abrange a verdade material das confrontações e das áreas constantes daquela.

Com efeito, o «registo predial não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio», já que embora «o prédio tenha que ser identificado com elementos que o distingam e caracterizem, a verdade é que essa identificação mínima não abrange a descrição física rigorosa e pormenorizada do imóvel» (Ac. do STJ, de 03.07.2003, Pinto Monteiro, Processo nº 04A570, com bold apócrifo). «As descrições prediais apenas asseguram ao comprador que o vendedor não transmitiu o prédio já a outrem ou não constituiu direitos sobre ele a favor de outrem, mas não garantem os respectivos elementos de identificação, as suas confrontações, os seus limites, a sua área» (Ac. do STJ, de 06.05.2004, Araújo de Barros, Processo nº 04B1409, com bold apócrifo).

Compreende-se que assim seja, já que as referências atinentes à área, limites e confrontações feitas constar das descrições registrais resultam do declarado pelos próprios interessados ou pelos seus representantes, sendo lavradas ou consignadas nos assentos ou nos livros de notas a que dizem respeito, sem que o oficial público averigúe, investigue, percepcione, ou ateste a sua autenticidade intrínseca (neste sentido, Ac. da RC, de 11.02.2014, José Avelino Gonçalves, Processo nº 539/08.0TBSEI.C1).

Logo, não consubstanciando a descrição predial e a inscrição matricial documentos autênticos, no que se refere à área de prédios nelas atestadas - porque resultantes de mera declaração de particulares, ou de verificações a que presidem outros propósitos -, também não servirão tais documentos para as estabelecerem em autos, com a dita força probatória plena.

(Neste sentido, Ac. do STJ, de 29.10.1992, José Magalhães, Processo nº 082672, Ac. da RG, de 22.01.2003, Arnaldo Silva, Processo nº 1092/02-2 - com extensa indicação de jurisprudência anterior -, Ac. da RC, de 10.01.2006, Hélder Almeida, Processo nº 3207/05, Ac. do STJ, de 28.06.2007, Pereira da Silva, Processo nº 07B1097, Ac. do STJ, de 15.05.2008, Pereira da Silva, Processo nº 08B856, Ac. do STJ, de 19.02.2013, Moreira Alves, Processo nº 367/2002.P1.S, Ac. do STJ, de 14.11.2013, Serra Baptista, Processo nº 74/07.3TCGMR.G1.S1, Ac. da RP, de 14.01.2014, Vieira e Cunha, Processo nº 4514/12.1TBVFR.P1, Ac. do STJ, de 27.03.2014, Álvaro Rodrigues, Processo nº 555/2002.E2.S1, ou Ac. do STJ, de 19.09.2017, Alexandre Reis, Processo nº 120/14.4T8EPS.G1.S1.)

Compreende-se, por isso, que se afirme que não «satisfaz o ónus probatório a mera junção de certidão registral do prédio alienado, porquanto, fazendo a presunção “juris tantum” consagrada no art.º 7.º do Código do Registo Predial pressupor que o direito existe, emerge do facto inscrito e pertence ao titular inscrito, já não abrange, nem a área, nem as confrontações» (Ac. da RC, de 10.09.2013, Maria Domingas Simões, Processo nº 12/07.3TBPNC.C1).

O mesmo sucederá, aliás, com os inscrições matriciais, que «não têm por função garantir os elementos de identificação dos prédios descritos», sendo a sua «finalidade (…) essencialmente de ordem fiscal» (Ac. da RC, de 10.01.2006, Hélder Almeida, Processo nº 3207/05). As «certidões matriciais, que resultam de meras declarações dos particulares junto da repartição de finanças competente, apenas relevam (…) para determinação dos devedores e do rendimento colectável da contribuição autárquica» (Ac. do STJ, de 06.05.2004, Araújo de Barros, Processo nº 04B1409).

Contudo, não deixarão tais documentos (descrição predial e inscrição matricial), e para este efeito (de apuramento da área e das confrontações reais dos prédios delas objecto), de consubstanciar um válido meio de prova, embora sujeito à livre apreciação do julgador (neste sentido, Ac. do STJ, de 04.03.2004, Pires da Rosa, Processo nº 03B3015). Serão, nomeadamente, idóneos a reforçarem, ou a infirmarem, outros meios de prova, já que todos eles deverão ser apreciados globalmente.

Ora, reitera-se, cabendo à Ré o ónus da prova da veracidade do teor (impugnado pelos Autores) do registo predial e da inscrição matricial (pertinentes ao prédio por si vendido àqueles), no que à área do imóvel descrito e inscrito diz respeito (ao contrário do por si sustentado nas suas alegações de recurso, rejeitando esse mesmo ónus), nada fez nesse sentido (nomeadamente, requerendo ela própria a realização da prova pericial, ou do levantamento topográfico, ou da inspecção judicial ao local, que aí defendeu serem necessários para a certificação da correcta área do prédio).

Por fim, dir-se-á que a reiteração do juízo pessoal de prova que a Recorrente perfilha (cujo conteúdo e sentido o próprio Tribunal a quo já reconhecera na respectiva motivação de facto), e a posterior conclusão pela sua suficiência, não refutou as ponderações objectivas realizadas antes na sentença recorrida, e que aqui se reiteraram e completaram.

Por outras palavras, impondo-se à Recorrente a indicação dos «concretos meios probatórios que impunham [e não apenas que permitiam] decisão sobre pontos da matéria de facto impugnados diversos da recorrida», teria que ter contrariado a apreciação crítica da prova realizada pelo Tribunal a quo, demonstrando e justificando por que razão as regras da lógica e da experiência por ele seguidas não se mostrariam razoáveis no caso concreto, conduzindo a um resultado inadmissível, por não sufragado por elas. Ora, a simples reiteração do conteúdo, e indicação do sentido, da prova pessoal e documental já antes ouvida, vista e apreciada, pelo dito Tribunal a quo, é claramente inidónea para este efeito.
*
Concluindo, tendo-se como correctamente realizada a apreciação crítica da prova pessoal e documental produzida pelo Tribunal a quo, e não sendo eficazmente contrariada pela Recorrente nas suas alegações de recurso, reitera-se a conclusão daquele: cabendo aos Autores o ónus da prova de corresponder a área real e efectiva do prédio que lhes foi vendido pela Ré a 4.506 m2, em vez dos 9.500 m2 declarados vender e adquirir, lograram cumpri-lo, face à suficiência da plúrima e conforme prova por eles produzida para o efeito; e à ausência de qualquer contraprova que lhe tivesse sido oposta pela Ré (destinada a tornar os factos afirmados pela previamente produzida meramente duvidosos).

Improcede, assim, o recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pela Recorrente (Banco A, S.A.), relativo aos factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 9 e 10 - que por isso permanecem inalterados.
*
3.3.2. Desconhecimento, pelos Autores, da menor área do prédio que estariam a adquirir, como factor relevante para a vontade de o adquirirem pelo preço pago (factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 11, 15, 16, 17 e 18)

Veio ainda a Recorrente defender a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma não permitia que se desse como demonstrado o desconhecimento, pelos Autores, da menor área do prédio que estariam a adquirir, como factor relevante para a vontade de o adquirirem pelo preço pago.

Esta factualidade encontra-se vertida nos factos provados enunciados na sentença recorrida sob o número 11 («Não tendo a Ré, quer nos actos preliminares, quer aquando da outorga da escritura, quer posteriormente, informado ou alertado os Autores para a falta de correspondência entre a área publicitada e descrita, quer no registo predial, quer na matriz predial (9 500 m2), com a área real do prédio objecto do contrato»), sob o número 15 («A área de 9 500 m2 determinou que os Autores se decidissem pela compra do imóvel e pagassem à Ré o preço de € 190.500,00 (cento e noventa mil, quinhentos euros e zero cêntimos)»), sob o número 16 («Os Autores estariam dispostos a pagar o valor de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros, e zero cêntimos) pelo imóvel à Ré, se tivessem tido conhecimento da sua área real»), e sob o número 17 («Os Autores não teriam adquirido o imóvel pelo valor de € 190.500,00 (cento e noventa mil, quinhentos euros, e zero cêntimos), se soubessem que a parcela de 4 394 m2 (quatro mil, trezentos e noventa e quatro metros quadrados) não fazia parte do imóvel»).
Invocou para o efeito a insuficiência probatória, para este efeito, das declarações de parte prestadas pelo Autor.

Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pela Recorrente.

Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução às partes relevantes e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais significativos, atento o objecto da sindicância):

«(…)
Sob os artigos (…)11.º, (…)15.º, 16.º, 17.º (…) em consequência das declarações de parte do Autor – que, por se revelarem simples, claras, concisas, sóbrias e coerentes, e não sobrevir razão para delas duvidar, foram tidas como normal expressão da realidade que visavam transmitir –, resultou provada a matéria alegada, respectivamente, nos artigos 7.º, 8.º, 9.º, 14.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º, 28.º e 30.º da petição e 17.º e 18.º da contestação.
(…)
No contexto da presente peça processual, a referência positiva às declarações de parte ou aos depoimentos das testemunhas é sempre fundada em análoga percepção de que os respectivos depoentes tiveram efectivo conhecimento dos factos questionados e sobre eles se pronunciaram por forma credível.
(…)»

Logo, uma conclusão se pode desde já enunciar: o Tribunal a quo, no juízo de demonstração dos factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 11, 15, 16 e 17, ponderou as declarações de parte prestadas pelo Autor; e considerou-as suficientes para este efeito.
Ora, ouvida integralmente toda a prova pessoal produzida em sede de audiência de julgamento, sufraga-se inteiramente o juízo de prova do Tribunal a quo, nomeadamente por se mostrar conforme com as regras da experiência.
*
Com efeito, e começando pelo facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 11 («Não tendo a Ré, quer nos actos preliminares, quer aquando da outorga da escritura, quer posteriormente, informado ou alertado os Autores para a falta de correspondência entre a área publicitada e descrita, quer no registo predial, quer na matriz predial (9 500 m2), com a área real do prédio objecto do contrato»), resultou o mesmo de confissão da Ré, uma vez que logo com a sua contestação afirmou desconhecer aquela divergência de área; e pugnando mesmo no presente recurso para que esse desconhecimento próprio seja aditado aos factos provados.

Logo, mostra-se o juízo probatório do Tribunal a quo correctamente realizado, quando o deu como assente.
*
Já relativamente aos factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 15, 16 e 17, relativos à vontade dos Autores de adquirirem o imóvel, mas condicionante o seu preço à efectiva área do mesmo, para cuja demonstração valeram as declarações de parte do Autor, reiteram-se aqui todas as considerações tecidas a propósito das mesmas no ponto anterior.
Precisa-se, porém, que neste particular, de factos do foro interno, não seria exigível que se mostrassem demonstrados por outro meio de prova, importando porém que as declarações de parte que os confirmaram se mostrassem conformes com as regras da experiência.
*
Com efeito, estando em causa um facto do foro interno, a respectiva prova não é, em regra, susceptível de ser feita de forma directa.

Por outras palavras, os «eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (v.g. a determinação da vontade real do declarante, uma certa intenção, o conhecimento de dadas circunstâncias) constituem factos cujo conhecimento pode ser atingido directamente pelos sentidos ou através das regras de experiência».

Ora, a «prova directa dessas intenções é rara (v.g. confissão) pelo que quase sempre terá que ser feita por meio de indícios/presunções. Verifica-se o mesmo tipo de dificuldade na prova de outros factos do foro interno», designadamente os que contendam com o conhecimento de certa realidade (Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2017, 3ª edição, Almedina, p. 264, com bold apócrifo, concretizando de p. 295 a 299 os principais indícios relevantes nesta matéria).

Assim, constituindo «tarefa árdua e de difícil concretização para o autor» a «prova de factos do foro interno», compreende-se que «as presunções judiciais» assumam «particular importância na formação da convicção quanto à fixação da matéria de facto, embora condicionadas sempre a uma utilização prudente e sensata» (Ac. da RL, de 29.03.2005, Fernanda Isabel Pereira, Processo nº 9549/2004).

Precisando, entendem-se por presunções judiciais as ilações que o julgador tira de um facto conhecido (facto base da presunção) para firmar um facto desconhecido (facto presumido), conforme arts. 349º e 351º, ambos do C.C..

Deverão, por isso, as ditas presunções mostrarem-se conformes com as regras da experiência a que necessariamente apelam; e só serão validamente contraditadas se o impugnante demonstrar a não prova do facto base da presunção, ou o carácter ilógico do facto presumido (isto é, o não se mostrar o mesmo sufragado pelas ditas regras da experiência).

Ora, aceita-se que, para a generalidade das pessoas, o preço que estão dispostas a pagar por um prédio urbano depende muito relevantemente da sua localização, da sua área total (coberta e descoberta) e do seu estado de conservação; e que dificilmente estariam dispostas a pagar o mesmo preço por dois prédios urbanos exactamente iguais, mas em que um deles tivesse uma área de logradouro dupla da do outro, e este (necessariamente) uma área de logradouro metade daquele primeiro.

Assim, tendo os Autores pago € 190.500,00 por um prédio urbano com logradouro, pensando que estavam a adquirir uma propriedade com a área total de € 9.500 m2, exactamente porque pretendiam uma moradia com cerca de um hectare para actividades de ar livre (conforme facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 13, não objecto de impugnação pela Ré), não é crível que continuassem a pretender adquiri-la, pelo mesmo exacto preço, se soubessem que afinal o imóvel tinha apenas 4.506 m2, não se tendo provado qualquer outra justificação para desprezarem desse modo os 4.394 m2 pagos e não adquiridos.

Não se ignora que, antes de adquirem o imóvel, os Autores visitaram-no e inteiraram-se do seu estado; e que declararam na escritura de compra e venda «que previamente à outorga do presente contrato, visitaram o prédio objecto do mesmo e que este está conforme a descrição que delas lhe foi feita pelo Vendedor, que conhecem os defeitos e vícios que o mesmo apresenta e que ainda assim o pretendem adquirir, sendo o mesmo adequado ao uso específico para o qual o adquirem, apresentando as qualidades e os desempenhos que razoavelmente se podem esperar de prédio usado com cerca de treze anos; declaram ainda que reconhecem e aceitam que o preço fixado para a compra e venda foi estabelecido em função do referido no precedente número».

Contudo, e tal como igualmente o ajuizou o Tribunal a quo, não possuindo os mesmos qualquer habilitação especial na área do imobiliário, estando em causa um prédio urbano, destinado à sua futura habitação permanente, e em mau estado de conservação, seria natural que a sua atenção se detivesse precisamente nesta realidade, face à natureza e ao custo das obras de reabilitação que exigiria, e não na medição da área do seu logradouro, por se ter habitualmente como correcta a que, de forma conforme, surge nas respectivas descrição predial e inscrição matricial.

Compreende-se, por isso, que se leia na sentença recorrida:

«(…)
Mas, se bem nos parece, trata-se de declarações que tiveram apenas por objecto a parte habitacional do prédio, até porque “As únicas questões que os Autores colocaram, durante toda a negociação e durante as visitas, foram quanto às patologias do imóvel, nomeadamente, a podridão do chão, a ausência de portas de entrada, telhado destruído, casas de banho sem as louças colocadas, vandalizadas, e sistema de aquecimento defeituoso” (cfr. artigo 25.º dos factos provados), o que bem se compreende, porque, nessa ocasião, era esta categoria – a degradação do imóvel – que parecia preocupar as atenções dos Autores, e não tanto á área do imóvel. Aliás, “Nunca foi colocada pelos Autores, ou por terceiros que os acompanhassem, qualquer questão quanto à área do imóvel, seja por escrito, seja verbalmente” (cfr. artigo 26.º dos factos provados), o que, mais uma vez, se compreende, pois os Autores, certamente, confiavam na exactidão da área que a Ré publicitara na Internet.
(…)»
*
A esta prova produzida pelos Autores, absolutamente conforme com as regras da experiência, não viria, de novo, a ser oposta qualquer outra produzida pela Ré, que tornasse os factos afirmados por aquela primeira minimamente duvidosos.

Improcede, assim e igualmente, o recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pela Recorrente (Banco A, S.A.), relativo aos factos provados enunciados na sentença recorrida sob os números 11, 15, 16 e 17 - que por isso permanecem inalterados.
*
3.3.3. Desvalorização do imóvel face à menor área possuída (facto provado enunciado na sentença recorrida sob o números 18)

Veio igualmente a Recorrente defender a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, já que a mesma não permitia que se desse como demonstrado que a ausência de uma parcela correspondente a 4.394 m2 desvaloriza o imóvel.

Esta factualidade encontra-se vertida no factos provado enunciado na sentença recorrida sob o número 18 («A parcela de 4 394 m2 referida em 17.º desvaloriza o imóvel em quantia não concretamente apurada»).

Invocou para o efeito, e novamente, a insuficiência probatória, para este efeito, das declarações de parte prestadas pelo Autor.

Começa-se por considerar o juízo de prova vertido na sentença recorrida, para depois se aferir da bondade da sindicância que lhe foi feita pela Recorrente.

Assim, ponderou a mesma para este efeito (limitando-se a reprodução às partes relevantes e com bold apócrifo, aposto nos segmentos que se consideraram mais significativos, atento o objecto da sindicância):

«(…)
Sob o artigo 18.º, resultou restritivamente provada a matéria alegada no artigo 32.º da petição – porquanto não foi possível apurar concretamente o valor da desvalorização do imóvel em razão da sua menor área, pois, por um lado, não foi junto qualquer estudo rigoroso sobre a matéria e, por outro, os depoimentos das testemunhas que se pronunciaram de forma mais específica sobre a desvalorização do prédio, o Senhor L. M., arquitecto, e a Senhora Maria, empresária de imobiliário, não ultrapassaram o limiar das meras opiniões.
(…)»

Logo, duas conclusões se podem desde já enunciar: o Tribunal a quo, no juízo de demonstração do facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 18, ponderou, não as declarações de parte prestadas pelo Autor, mas sim os conformes depoimentos de duas qualificadas testemunhas (o arquitecto L. M., e a empresária do ramo imobiliário Maria); e considerou-os suficientes para este efeito, nomeadamente por se mostrarem conformes com as regras da experiência (sendo apodíctico que uma redução de área correspondente a quase metade da original, e na grandeza em causa, desvaloriza qualquer imóvel, excepto se se verificaram quanto a ele circunstâncias extraordinárias, que nem foram alegadas, nem foram provadas).

Ora, ouvida integralmente toda a prova pessoal produzida em sede de audiência de julgamento, sufraga-se inteiramente o juízo de prova do Tribunal a quo, pelas razões referidas antes.
*
A esta prova produzida pelos Autores, absolutamente conforme com as regras da experiência, não viria, de novo, a ser oposta qualquer outra produzida pela Ré, que tornasse os factos afirmados por aquela primeira minimamente duvidosos.

Improcede, assim e igualmente, o recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pela Recorrente (Banco A, S.A.), relativo ao facto provado enunciado na sentença recorrida sob o números 18 - que por isso permanece inalterado.
*

3.3.4. Remanescente matéria de facto impugnada

Veio, por fim, a Recorrente defender a alteração da decisão sobre a matéria de facto, por entender que o Tribunal a quo teria feito uma errada interpretação e valoração da prova produzida, nomeadamente quanto ao desconhecimento, por ela própria da divergência entre a área real e efectiva do imóvel e a área consignada para ele no registo predial e na inscrição matricial (artigos 27º e 38º da sua contestação).

Contudo, considera-se que os demais factos provados (nomeadamente, os agra definitivamente assentes), impõem desde logo uma definitiva apreciação jurídica da lide; e, desse modo, tornaram-se aqueles outros irrelevantes, porque insusceptíveis de fundarem uma outra correcta solução de direito da causa.
É, assim, de todo inútil a sua reponderação.

Não se toma, por isso, conhecimento do remanescente objecto do recurso de impugnação da matéria de facto, interposto pela Ré (Banco A, S.A.), relativo aos factos vertidos nos artigos 27º e 38º da contestação - que por isso permanecem omissos na fundamentação de facto da sentença recorrida.
*
Mantém-se, assim, integralmente inalterada a decisão sobre a matéria de facto julgada pelo Tribunal a quo.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Divergência entre área (m2) declarada vender e vendida efectivamente
4.1.1. Venda de coisa determinada cujo preço não é fixado por unidade

Lê-se no art. 888º, nº 1 do C.C. que, se «na venda de coisas determinadas o preço não for estabelecido à razão de tanto por unidade, o comprador deve o preço declarado mesmo que no contrato se indique o número, peso ou medida das coisas vendidas e a indicação não corresponda à realidade».

«O caso previsto, correspondente na venda de imóveis (especialmente de prédios rústicos) à venda ad corpus, difere do regulado no artigo anterior» (art. 887º do C.C., onde se prevê a venda de coisas determinadas, com preço fixado à razão de tanto por unidade). Com efeito, não «se fixa agora o preço por unidade, mas sim um preço global, embora se indique o número, peso ou medida da coisa vendida. Aliena-se, por ex., uma vasilha de vinho por 200$00, com a indicação de que essa vasilha contém 500 litros, vende-se uma adega de vinho por 100 000$00, com a declaração de que nela existem 50 pipas. Em qualquer dos casos, o preço devido é o global, embora a medida indicada não corresponda à realidade. Do facto de as partes não terem indicado o preço unitário extraia-se a conclusão de que elas formaram a sua vontade sobre o preço e a coisa globalmente considerados, sendo apenas incidental a referência à quantidade, peso ou medida das coisas vendidas» (Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 3ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1986, p. 185, com bold apócrifo); e, por isso, «o comprador deve o preço declarado, mesmo que no contrato se indique o número, peso ou medida das coisas vendidas e a indicação não corresponda à realidade» (art. 888º, nº 1).

Mais se lê, no art. 888º, nº 2 citado, que se, «porém, a quantidade efectiva diferir da declarada em mais de um vigésimo desta, o preço sofrerá redução ou aumento proporcional».

Logo, atenuam-se aqui «as consequências da aplicação do critério adoptado» no nº 1 anterior, «atribuindo, quer ao vendedor, quer ao comprador, se a quantidade efectiva diferir da declarada em mais de um vigésimo desta, o direito a um aumento ou redução proporcional do preço. No primeiro caso, será o de a vasilha conter mais de 525 litros ou menos de 475; no segundo, o de na adega existirem mais de 52 pipas e meia ou menos de 47 pipas e meia. (…) Como exemplo de venda de coisa imóvel, pode referir-se este: o vendedor aliena um prédio, que diz ter 100 m2, por 1000. Verifica-se posteriormente que o prédio vendido tem apenas 90 m2. A redução do preço pode ser pedida nos termos do nº 2 desse artigo».

Claro está que, para «que haja direito ao aumento ou redução do preço é necessário, porém, que se tenha indicado ou declarado o número, peso ou medida das coisas vendidas» (Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, ibidem, com bold apócrifo).

No caso de existir, realmente, diferença entre a quantidade efectiva e a declarada em mais de um vigésimo (seja para mais ou para menos), cabe naturalmente perguntar se o aumento ou redução do preço previstos na lei se destinam nesse caso a cobrir toda a diferença entre a quantidade declarada e a quantidade real ou apenas a diferença que exceda o vigésimo tolerado na disposição. Parece que a solução mais razoável e harmónica com a ratio legis é a segunda, considerando a diferença até ao vigésimo da quantidade declarada como uma espécie de carência imposta supletivamente às partes pela lei» (Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, ibidem, de novo com bold apócrifo. No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 07.04.2011, Salazar Casanova, Processo nº 453/07.6TBAMR.G1.S1).
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4.1.2. Venda de coisa defeituosa
4.1.2.1. Pressupostos

Lê-se no art. 874º do C.C. que compra e venda «é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço»; e lê-se no 879º, als. b) e c), do C.C., que o mesmo tem «como efeitos essenciais a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço».

Logo, no contrato de compra e venda, o vendedor cumpre o contrato quando entrega a coisa; e o vendedor fá-lo quando paga o preço devido (previamente acordado) pelos bens que recebeu daquele.

Contudo, se a entrega da coisa é a principal prestação do vendedor, importa que o mesmo entregue a coisa acordada. «Na execução da obrigação, o devedor deve respeitar escrupulosamente o contrato (arts. 408º e 763º), pela entrega da coisa convencionada, não podendo o comprador ser constrangido a receber coisa diversa da devida (art. 837º)» (João Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas (Conformidade e Segurança), 4ª edição, Almedina, p. 20); e isto desde logo mercê do direito comum português, isto é, do princípio da conformidade ou pontualidade do cumprimento dos contratos.

Ora, «se as qualidades da coisa fazem parte integrante do conteúdo negocial, do conteúdo vinculante ou vinculativo do contrato celebrado, e o vendedor entrega esta coisa à qual, porém, faltam qualidades acordadas, a inexactidão qualitativa da prestação respeita à fase executiva do negócio e será um caso de incumprimento parcial ou cumprimento imperfeito: o vendedor não cumpre exactamente a prestação devida ao comprador segundo a interpretação objectiva do contrato - na variante da teoria da impressão do destinatário, consagrada no art. 236º, nº 1 -, verificando-se uma desconformidade entre a coisa na sua constituição real (…) e a coisa na sua configuração representada e acordada pelas partes» (João Calvão da Silva, op. cit., p. 53).

Logo, não basta falar, apenas, em entrega da coisa; torna-se necessário que a coisa entregue coincida com o bem objecto do acordo de vontades prévio. Por isso, há incumprimento do contrato de compra e venda não só em caso do vendedor não entregar coisa alguma, como ainda se o mesmo entregar ao comprador coisa diversa da combinada.

Nesta última hipótese caem os casos em que «a coisa entregue pelo vendedor pode estar afectada de vícios materiais ou vícios físicos, vale dizer, defeitos intrínsecos, inerentes ao seu estado material, e não ser, portanto, conforme ao contrato, dada a sua não correspondência às características acordadas ou legitimamente esperadas pelo comprador» (João Calvão da Silva, op. cit., p. 40, com bold apócrifo).

Lê-se, a propósito e compreensivelmente, no art. 913º do C.C., que quando «a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim» (nº 1), serão atribuídos determinados direitos ao comprador esclarecendo-se interpretativamente que, «quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria» (nº 2).

Logo, sob a referência genérica de «coisa defeituosa» estão aqui em causa defeitos, mas apenas defeitos essenciais: vícios que desvalorizam a coisa (i); vícios que impedem a realização do fim a que é destinada (ii); falta das qualidades asseguradas pelo vendedor (iii); e falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina (iv).

Defende-se, em conformidade, que o nosso C.C. consagrou uma noção híbrida de «defeito», isto é, simultaneamente objectiva (em que aquele corresponderá a um desvio à qualidade normal das coisas daquele tipo), e subjectiva (em que corresponderá a uma desadequação ao fim, implícita ou explicitamente estabelecido no contrato, a uma falta de qualidade que o credor, por força daquele contrato, poderia legitimamente esperar).

«Assim sendo, os vícios correspondem a imperfeições relativamente à qualidade normal, enquanto que as desconformidades são discordâncias com respeito ao fim acordado. O conjunto dos vícios e das desconformidades constituem os defeitos da coisa. Os dois elementos fazem parte do conteúdo do defeito, determinam-se através do contrato e dependem da interpretação deste» (Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso Em Especial Na Compra e Venda e Na Empreitada, Colecção Teses, Almedina, Coimbra 1994, p. 185, com bold apócrifo).

«Note-se, porém, que o facto de o nº 2 do artigo 913º remeter, na dúvida, para o critério objectivo da normalidade da função das coisas da mesma categoria não obsta a que na determinação das qualidades e das faltas da coisa se deva atender às circunstâncias concretas do contrato (peça de pura lã; camisa de puro algodão, sem fibra; máquina do último modelo; mercadoria nacional ou importada; presunto de certa região; etc.), mesmo que as qualidades referidas na contratação não tenham sido especialmente asseguradas pelo vendedor» (Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, op. cit., p. 211, com bold apócrifo).

Está-se aqui perante uma noção funcional de vício, centrada na idoneidade do bem para o fim a que se destina, podendo definir-se coisa defeituosa como «a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente - função negocial concreta programada pelas partes - ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina» (João Calvão da Silva, op. cit., p. 42, com bold apócrifo).

Por outras palavras, «a ideia é a da integração, no conceito de qualidade, das propriedades naturais ou intrínsecas da substância constitutiva da coisa (solidez, dureza, duração ou durabilidade, flexibilidade, secura, permeabilidade, resistência ao frio ou ao calor, leveza), do estado ou situação da coisa (em primeira ou segunda mão, usada ou não usada, muito ou pouco uso, desgastada ou não desgastada, nova ou antiga, etc.), da aptidão da coisa e do seu relacionamento com o meio exterior ou ambiente (casa de campo, casa de praia, etc.), mas não já, em princípio, os factores externos traduzidos no número, peso ou medição da coisa, hipóteses dos arts. 887º e segs.» (João Calvão da Silva, op. cit., p. 43, com bold apócrifo).

Precisa-se, porém, que «entre as qualidades da coisa asseguradas pelo vendedor, sujeitas ao regime especial do artigo 913º, cabem não só os atributos relativos à substância da coisa, mas também os atributos que interessem à aptidão da coisa para certo fim, mediante a sua localização por exemplo, ou que influam no seu valor económico (movimento médio de um estabelecimento; chiffre d’affaires duma empresa)» (Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, p. 211, com bold apócrifo).

Contudo, «para que possa falar-se, com propriedade correspondente ao pensamento da lei, em qualidades da coisa asseguradas pelo vendedor, não basta que o vendedor tenha dado como existentes na coisa, espontaneamente ou em resposta a pergunta do comprador, determinadas propriedades ou atributos do objecto do contrato.

Nem sequer bastará para o efeito que a declaração tenha sido séria, feita sem o ânimo próprio (dolus bónus) daquelas declarações frequentes no comércio jurídico, a que se refere o nº 2 do artigo 253º [onde se lê que “não constituem dolo ilícito sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, nem a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou daquelas concepções”].
Necessário é que o vendedor tenha garantido a existência das qualidades por ele atribuídas à coisa, responsabilizando-se pela sua existência perante o comprador.
Na falta desse empenhamento especial, o vendedor responde apenas nos termos resultantes da parte restante da disposição legal» (Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, op. cit., p. 214, com bold apócrifo).

Ficam, assim, de fora do âmbito do art. 913º, nº 1 (na vertente da «falta de qualidades asseguradas pelo vendedor») aquelas situações em «que não há verdadeiro dolo, ou dolo ilícito», nomeadamente porque «o declarante se limita a fazer considerações gerais sobre os proveitos ou prejuízos que possam advir da celebração ou não celebração do negócio, considerações usuais, reputadas legítimas segundo as concepções dominantes no comércio jurídico e como tais, pela sua normalidade, toleradas». Com efeito, «frequentemente, ao contratar, uma das partes procura valorizar o seu produto ou depreciar o da outra parte, fazendo afirmações como a de que se trata de um artigo muito bom e com muita procura, que o cliente vai muito bem servido e dificilmente encontrará igual ou melhor noutros estabelecimentos, etc.. Compreende-se que o legislador aceite este estilo de argumentação, não o reprovando, até porque, por via de regra, as pessoas estão prevenidas contra o possível exagero dessa argumentação» (Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 4ª edição, Coimbra Editora, Limitada, p. 112 e 113).
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4.1.2.2. Efeitos - Redução do preço

Ocorrendo uma efectiva venda de coisa defeituosa (nomeadamente, por a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize, ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor, ou necessárias para a realização daquele fim), lê-se no art. 913º, nº 1 do C.C. que «observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes».

Começa-se por referir que as consequências que advêm para o vendedor por ter incumprido a sua obrigação de vender coisa sem defeito, não coincidem inteiramente com as soluções tradicionais.

Com efeito, pode dizer-se que «os pressupostos fundamentais do regime especial consagrado nesta secção (...) assentam mais nas notas objectivas das situações por ela abrangidas do que na situação subjectiva do erro em que, nalguns casos, se encontre o comprador, ao contrário do regime da anulação do contrato, também aplicável ao caso com algumas adaptações, que repousa essencialmente na situação subjectiva do comprador.

(...) São estas conotações de carácter objectivo - mais do que o erro do comprador ou o acordo negocial das partes - que servem de real fundamento aos direitos especiais concedidos pela lei ao comprador e que justificam, pela especial perturbação causada na economia do contrato, os desvios contidos nesta secção ao regime comum do erro sobre as qualidades da coisa.

Não se trata, por conseguinte, de garantir o estrito cumprimento dos deveres de prestação contraídos pelas partes. As soluções da lei mergulham as suas raízes mais fundas no princípio da justiça comutativa subjacente a todos os contratos onerosos, em geral, e à compra e venda, em especial» (Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, op. cit., p. 211 e 212, com bold apócrifo).

Ora, e de acordo com tais disposições, e uma vez verificados os respectivos pressupostos, o comprador terá direito: à anulação do contrato (art. 905º do C.C.); à redução do preço (art. 911º do C.C.); à indemnização do interesse contratual negativo (arts. 908º, 909º, 914º e 915º, todos do C.C.); à reparação ou substituição da coisa (art. 914º do C.C.); e, segundo alguns, ainda à indemnização do interesse contratual positivo (neste sentido, Ac. do STJ, Rev. nº 1137/01-7ª, de 24.05.2001, Sumários, 51º, ou Ac. do STJ, de 19.02.2004, Quirino Soares, Processo nº 04B029).

Contudo, «os diversos meios jurídicos facultados ao comprador em caso de defeito da coisa vendida não podem ser exercidos em alternativa. Há uma espécie de sequência lógica: em primeiro lugar, o vendedor está adstrito a eliminar o defeito da coisa e, não sendo possível ou apresentando-se como demasiado onerosa a eliminação do defeito, a substituir a coisa vendida; frustrando-se estas pretensões, pode ser exigida a redução do preço, mas não sendo este meio satisfatório, cabe ao comprador pedir a resolução do contrato.

A indemnização cumula-se com qualquer das pretensões com vista a cobrir os danos não ressarcíveis por estes meios. Assim, por exemplo, além da eliminação do defeito, e na medida em que por este meio não fiquem totalmente ressarcidos os danos do comprador, cabe-lhe exigir uma indemnização compensatória. Mas a indemnização por sucedâneo pecuniário não funciona como alternativa aos diversos meios jurídicos facultados ao comprador em caso de defeito da coisa vendida» (Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações. Parte Especial. Contratos, Almedina, 2000, p. 130. No mesmos sentido, João Calvão da Silva, op. cit., p. 84 e ss).
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Particularizando o direito à redução do preço (face ao objecto da acção e do recurso), lê-se no art. 911º, nº 1 do C.C. que, «se as circunstâncias mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior, apenas lhe caberá o direito à redução do preço, em harmonia com a desvalorização resultante» dos vícios ou falta de qualidade, «além da indemnização que no caso competir».

Relativamente aos seus pressupostos, exige-se que: o comprador tenha agido em erro sobre a coisa vendida (isto é, ignorando o seu defeito), ou por dolo provocado pelo vendedor; e que, mesmo conhecendo o defeito da coisa adquirida, a tivesse adquirido, embora a preço inferior.

Precisa-se que o «erro» é, em tese geral, o desconhecimento ou a falsa representação da realidade (neste caso fáctica) envolvente de uma determinada situação. Logo, a relevância do erro em Direito abrange a própria ignorância da realidade.

Na hipótese referida, o declarante quis o que efectivamente declarou (existe aqui conformidade entre a vontade real e a vontade declarada); mas o que declarou (mais precisamente, os termos em que o fez, nomeadamente quanto ao preço) só foi querido em virtude de uma representação errónea da realidade (no caso, sobre as características da coisa adquirida).

Enfatiza-se porém, e tal como já referido antes, que o regime da redução do preço, na compra e venda de coisa defeituosa, tem especialidades que o distinguem do regime geral que é próprio do erro.

Com efeito, e relevantemente, neste último conta-se entre os requisitos de relevância ou eficácia do erro (nomeadamente, para a anulabilidade do negócio por ele afectado), quer a essencialidade para o comprador do elemento sobre que recaiu, quer o conhecimento ou cognoscibilidade para o vendedor dessa essencialidade (art. 247º, ex vi do art. 251º); ou o dolus malus, essencial ou determinante, intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o adquirente (art. 254º, nº 1 do C.C).

Precisando estes conceitos, dir-se-á que «quando o erro não seja conhecido nem cognoscível, cai-se sob a alçada do artº 247º do Cód. Civ.. O erro é, então, potencialmente relevante como causa de anulabilidade do negócio. Mas essa potencial relevância apenas se concretizará quando se verificarem os condicionalismos estabelecidos naquele preceito», isto é:

. a essencialidade para o declarante, do elemento sobre que recaiu o erro - «o primeiro requisito traduz-se na necessidade de o elemento sobre que recaiu o erro (v.g. preço, objecto material ou jurídico do negócio, etc.) ser decisivo para a celebração do negócio por parte do declarante»;
. o conhecimento ou obrigação de não ignorar essa essencialidade por parte do declaratário - «mas o erro essencial pode ainda não ser relevante. Só o será se o declaratário conhecer ou não dever ignorar que, para o declarante, o elemento» sobre que incidiu o erro «era essencial. Saliente-se que este conhecimento respeita à essencialidade do elemento em que recai o erro e não ao erro em si mesmo» (Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, A.A.F.D.L., 1983, p. 401 e 402).

Existe, assim, um equilíbrio entre o princípio da autonomia da vontade (a que o requisito da essencialidade do elemento sobre que incidiu o erro dá relevância), e a protecção dos interesses do declaratário, e em geral da figura do negócio jurídico (a que o conhecimento, ou o dever de conhecer, aquela essencialidade - por parte daquele que funda a sua confiança na realidade objectiva da declaração - dá relevância).

Mas importa ainda atender ao disposto no art. 254º, nº 1 do C.C., segundo o qual «o declarante cuja vontade tenha sido determinada por dolo pode anular a declaração»; e entende-se por «dolo», segundo o art. 253º, nº 1 e nº 2 do C.C., «qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante» (dolo positivo ou comissivo, no primeiro caso, e dolo negativo, omissivo ou de consciência, no segundo caso), sendo que «não constituem dolo ilícito as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, nem a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou daquelas concepções» (dolus bonus).

Ora, no caso particular da redução do preço autorizada pela venda de coisa defeituosa, exigindo-se embora a actuação em erro do comprador (no sentido do prévio desconhecimento do defeito da coisa adquirida), prescinde-se, porém, quer da essencialidade desse erro, quer da sua cognoscibilidade por parte do vendedor, quer do dolo deste, mercê precisamente da ratio subjacente à especificidade do regime da venda de coisa defeituosa.

Com efeito, as suas «raízes mergulham directamente mais na lei do que no acordo negocial (mais nas considerações objectivas de justiça, equidade e razoabilidade de que é feito o tecido normativo do que nas injunções resultantes da autonomia privada para cada contrato singular)» (Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, op. cit., p. 213).

Compreende-se, por isso, que se afirme que a «consequência prática, no caso previsto no art. 911º, reside em a acção de anulação e a acção estimatória ou actio quanti minoris não estarem em concorrência electiva: o comprador não pode optar entre as duas, pois a lei expressamente o confina à segunda (“apenas lhe caberá o direito à redução do preço”, cumulável com a indemnização). Isto é, o normal conteúdo alternativo da garantia no caso de vícios graves (erro ou dolo essencial), em que o comprador pode escolher qual o direito que quer fazer valer, é excluído na hipótese do art. 911º, que impõe a conservação do negócio jurídico, corrigido, rectificado ou refeito através do restabelecimento da relação genética de correspectividade económica entre prestação e contraprestação para garantir o sinalagma funcional rompido ab initio» (João Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 4ª edição, Almedina, p. 34).

Ora, se independentemente de culpa do vendedor, o comprador tem sempre o direito à redução do preço, e «apesar de a garantia edilícia “depender” da existência de erro seu quanto às qualidades da coisa comprada», «não tem», porém, o mesmo «que fazer prova da existência do erro»: o comprador «só tem que fazer prova da existência do vício ou da falta de qualidade da coisa»; é «ao vendedor que cabe provar que o comprador não foi vítima de um erro sobre as qualidades da coisa» (João Baptista Machado, «Acordo Negocial e Erro na Venda de Coisas Defeituosas», Obra Dispersa, Volume I, 1991, p. 116-117, com bold apócrifo. No mesmo sentido, quanto ao ónus da prova, num caso em que se questionava o direito de reparação, Ac. da RE, de 23.01.1997, CJ, Ano XXII, Tomo I, p. 291; e numa caso de direito de anulação, Ac. do STJ, de 29.06.1995, CJASTJ, Ano III, Tomo II, p. 143).

Verificando-se a venda de coisa defeituosa, e os demais pressupostos que justificam a redução do preço, a mesma far-se-á de acordo com o art. 884º do C.C., isto é: se «a venda ficar limitada a parte do seu objecto», o preço respeitante a esse remanescente é o que figurar no contrato para ele, «se houver sido discriminado como parcela do preço global»; e, na «falta de discriminação, a redução é feita por meio de avaliação».

Compreende-se que assim seja: o «facto de, não havendo discriminação, se não mandar atender à proporção quantitativa entre o todo e a parte a que fica limitado o objecto da venda resulta de, muitas vezes, essa parte não ter para o comprador um valor proporcional ao objecto total da venda» (Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, op. cit., p. 181).
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4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

4.2.1. Pressupostos do direito à redução do preço

Concretizando, e tendo presente o regime legal da venda de coisa determinada cujo preço não é fixado por unidade, verifica-se que, tendo a Ré publicitado para venda um imóvel com a área declarada (no registo predial, e na inscrição matricial, e por ela publicitada) de 9.500 m2 (sendo 600 m2 de área coberta e 8.900 m2 de área descoberta), veio a vendê-lo aos Autores por € 190.500,00.

Mais se verifica que se veio a apurar posteriormente que a área real e efectiva do dito prédio, no que à área descoberta diz respeito, era apenas de 4.506 m2, sendo que a divergência referida excede em muito o vigésimo mínimo que a lei considera tolerável e juridicamente irrelevante.

Assim, e à luz deste regime legal, teriam efectivamente os Autores direito à redução proporcional do preço pago, bastando-lhes para o efeito alegar e provar a diferença de áreas (entre, por um lado, a anunciada, declarada vender e comprar, e paga, e, por outro, a efectivamente vendida e adquirida).

(No mesmo sentido, defendendo que a diferença de áreas deve ser sujeita ao regime do art. 888º do C.C., Ac. do STJ, de 16.09.2008, Fonseca Ramos, Processo nº 08A2265, ou Ac. do STJ, de 07.04.2011, Salazar Casanova, Processo nº 453/07.6TBAMR.G1.S1.)
*
Concretizando novamente, e tendo agora presente o regime legal aplicável à venda de coisa defeituosa, verifica-se ter sido este o regime considerado pelo Tribunal a quo, como dando cobertura à pretensão dos Autores (recorde-se, de uma redução de preço de € 50.500,00).

Com efeito, lê-se na sentença recorrida que (com bold apócrifo):

«(…)
Por escritura pública, a Ré vendeu aos Autores, pelo preço de € 190 500, 00 (cento e noventa mil e quinhentos euros), o prédio urbano, sito no (...), Lugar de (...), freguesia de (...), concelho de Bragança, composto por casa de rés-do-chão, anexo e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o número ... e inscrito na matriz respectiva sob o artigo ..., com o valor patrimonial de € 101 800, 10 (cento e um mil, oitocentos euros e dez cêntimos).

Antes da compra do prédio, os Autores viviam num apartamento e, com o nascimento do segundo filho, iniciaram a procura de moradia que tivesse logradouro com dimensões razoáveis (aproximadamente um hectare) que possibilitasse a prática de actividades ao ar livre. Tendo encontrado na Internet a moradia supra referida publicitada para venda (e que reunia as características pelos mesmos pretendidas, designadamente em termos de área) (9 500 m2), o que determinou que os Autores se decidissem pela compra do imóvel e pagassem à Ré o preço de € 190 500, 00 (cento e noventa mil e quinhentos euros).

Após os Autores entrarem na posse do prédio e nele iniciarem obras diversas de reparação e conservação da sua parte habitacional e de limpeza do logradouro, inteirando-se das suas estremas, suscitaram-se-lhes dúvidas sobre a real área do prédio, pelo que solicitaram a terceiro a sua medição e, então, constataram que a área efectiva do prédio adquirido é de 4 506 m2 (quatro mil, quinhentos e seis metros quadrados) – e não a área de 9 500 m2 que pela Ré fora publicitada e se encontrava descrita no registo predial e nos serviços de finanças.

Os Autores verificaram, assim, que existia um erro relativo à área do prédio, cuja efectiva dimensão era inferior, em mais de metade, à constante da área anunciada pela Ré vendedora, pelo que se nos afigura constituir vício que, não apenas desvaloriza o prédio, pois o seu valor de mercado manifestamente resulta reduzido em razão da acentuada menor área que efectivamente tem, mas também impede a realização do fim a que o prédio era destinado, na medida em que resulta prejudicado o aproveitamento das diversas utilidades que a área em falta do prédio urbano poderia proporcionar (plantação, cultivo, arrumação, lazer, recreio, etc.).3
3 Cfr., em sentido análogo, o acórdão do STJ de 07-04-2011, in sítio da Net do IGFEJ.

Por sua vez, a Ré vendedora não logrou provar que os Autores, compradores, não foram vítimas de um erro sobre as qualidades do prédio.
(…)»

Logo, e tal como o exige a lei para a compra e venda de coisa defeituosa, os Autores alegaram e provaram: que agiram em erro, isto é, que compraram o imóvel desconhecendo que o mesmo tinha uma área descoberta substancialmente inferior à publicitada e paga; que essa redução de área desvaloriza o prédio e impede a realização do fim a que o destinavam; e que, ainda que tivessem conhecido aquela área descoberta inferior, tê-lo-iam querido comprar, embora apenas pelo preço de € 140.000,00.

Ao fazê-lo, e no pressuposto de que seria este o regime legal aplicável à sua pretensão, os Autores asseguraram o direito à redução proporcional do preço pago, uma vez que, ao contrário do defendido no respectivo recurso pela Ré, não se lhes exigia a simultânea demonstração do carácter essencial do erro (no caso, da área do prédio como determinante da sua vontade de aquisição respectiva), bem como do conhecimento ou cognoscibilidade dessa essencialidade por aquela (enquanto vendedora).

(No mesmo sentido, defendendo que quando a diferença de áreas afecte o fim a que a coisa era destinada - e numa hipótese muito idêntica à dos autos - se aplicará o regime do art. 913º do C.C., Ac. do STJ, de 16.09.2008, Fernanda Isabel Pereira, Processo nº 1047/12.0TVPRT.P1.S1.)
*
4.2.2. Forma de operar a redução do preço - Proibição de reformatio in peiús

Concretizando novamente, e uma vez reconhecido aos Autores o direito à redução do preço, esclareceu e decidiu o Tribunal a quo quanto à forma como se procederia à mesma, de modo conforme com o regime que considerou aplicável, isto é, redução por meio de avaliação (que determinasse a desvalorização do prédio pela sua menor área).

Com efeito, lê-se na sentença recorrida que (com bold apócrifo):

«(…)
Os autores peticionaram a redução do preço, alegando que estariam dispostos a pagar o valor de € 140 000, 00 (cento e quarenta mil euros) pelo imóvel, se tivessem tido conhecimento da sua área real.
Sendo assim, ora, percorrendo, mutatis mutandis, o caminho indicado pelo acórdão do STJ de 21 de Setembro de 2006, deverá atender-se ao disposto no mencionado artigo 911.º, onde se prescreve que “se as circunstâncias mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por preço inferior, apenas lhe caberá o direito à redução do preço, em harmonia com a desvalorização resultante dos ónus ou limitações, além da indemnização que no caso competir” (n.º 1) e, bem assim, que “são aplicáveis à redução do preço os preceitos anteriores com as necessárias adaptações” (n.º 2).

Portanto, a peticionada redução do preço deve operar de harmonia com a desvalorização do imóvel em razão do vício que o afecta. “E, porque ocorre similaridade entre a situação em análise e aquela em que a venda fica limitada a uma parte do objecto, a que se reporta o artigo 884.º do Código Civil, impõe-se a aplicação deste normativo, por analogia, à situação em análise (artigo 10.º, números 1 e 2, do Código Civil).

Assim, à redução do preço em causa é aplicável o disposto no artigo 884.º do Código Civil, naturalmente adaptado aos termos do contrato de compra e venda” do imóvel dos presentes autos, em que não houve determinação do preço do imóvel diminuído pela área em falta.

“Em consequência, a redução do preço do contrato de compra e venda em causa deve operar por via de avaliação, designadamente por avaliação judicial (artigo 884.º, n.º 2, do Código Civil)” – situação esta que não ocorreu e já não pode ocorrer na presente fase processual –, a fim de ser apurado o valor correspondente, pelo que deverá este ser fixado no que vier a ser liquidado, nos termos do disposto nos artigos 378.º, n.º 2, e 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
(…)»

Ora, e ainda que se pudesse entender dever ser outra a forma de determinação da redução de preço a operar, por aplicação do distinto regime jurídico do art. 888º do C.C. (v.g. redução de preço proporcional à redução de área), certo é que, nesta parte, a sentença recorrida não foi objecto de recurso; e, assim sendo, não pode ser reformada em prejuízo da Ré.

Com efeito, lê-se no art. 635º, nº 5 do C.P.C. que os «efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo».

Precisando, e no «que concerne a aspectos estritamente jurídicos, o tribunal é livre de identificar as normas que melhor se ajustem ao caso concreto, para qualificar as relações jurídicas ou para delas extrair os efeitos adequados». Contudo, «estes são poderes que apenas interferem a jusante, ou seja, na fase em que o tribunal tem de preparar a decisão a proferir, não podendo então olvidar-se o efeito do caso julgado que porventura já se tenha formado a montante sobre qualquer decisão ou segmente decisório, o qual prevalece sobre o eventual interesse na melhor aplicação do direito, nos termos claramente enunciados no nº 5 do art. 635º. Trata-se da manifestação do princípio da proibição da reformatio in peius» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Julho de 2013, p. 86).

«A justificação da proibição do piorio é a seguinte: poucos recorreriam se soubessem que poderiam perder ainda mais, i.e., perder o pouco que já ganharam. Garante-se, pois, o direito ao recurso, sendo um princípio que “decorre de um firme critério de segurança”» (Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, Coimbra Editora, Novembro de 2015, p. 133, citando Cardona Ferreira).

Compreende-se, por isso, que se afirme que, se não houver um recurso da parte contrária, seja independente ou subordinado, «a parte da decisão não recorrida está protegida por um valor de caso julgado formal» (José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3º, Tomo I, Coimbra Editora, 2008, p. 44, com bold apócrifo); e, assim, a decisão do tribunal ad quem não pode ser mais desfavorável ao recorrente do que a decisão proferida pelo tribunal a quo (Ac. do STJ, de 18.12.2013, Abrantes Geraldes, Processo nº 1801/10.7TBOER.L1.S1).

Retornando ao caso dos autos, apenas a Ré recorreu; e fê-lo pondo exclusivamente em causa a decisão que julgara verificados os pressupostos do direito dos Autores a verem reduzido o preço da compra e venda de prédio urbano que invocaram contra si, e não também a forma com o Tribunal a quo decidiu operar essa redução.

Logo, e ainda que se pudesse admitir resultar de outro regime legal aplicável uma distinta forma de calcular a redução de preço reconhecida àqueles (proporcional à redução de área em causa, embora necessariamente limitada à descoberta, não só por ser ela que exclusivamente está em causa, como ainda por não ser habitual que no caso de prédios urbanos a metragem da área coberta e da área descoberta contribuam na mesma exacta proporção para a determinação do seu valor global, tendendo a área coberta a ser valorizada face ao logradouro respectivo), certo é que não pode a Ré vir a encontrar-se em situação mais desfavorável do que antes de ter interposto o seu recurso.

Mantém-se, por isso, não só o juízo de reconhecimento do direito dos Autores à redução de preço impetrada, como ainda o juízo sobre a forma como essa redução será determinada.
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela total improcedência do recurso de apelação interposto pela Recorrente (Banco A, S.A.).
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V – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Ré (Banco A, S.A.) e, em consequência, em

· Confirmar integralmente a sentença recorrida.
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Custas da apelação pela Recorrente (art. 527º, nº 1 do C.P.C.).
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Guimarães, 29 de Novembro de 2018.
O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.