Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2195/18.8T9BRG.G1
Relator: PAULO SERAFIM
Descritores: CRIME DE CORRUPÇÃO PASSIVA NO SECTOR PRIVADO
TIPO OBJECTIVO
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – Os elementos objetivos do crime de corrupção passiva no sector privado, p. e p. pelo artigo 8º, nº 1, da Lei n.º 20/2008, de 21/04 (RPCCISP) são os seguintes:
a) ser o agente trabalhador do setor privado, no sentido definido pelo conceito abrangente da al. d) do artigo 2º do mesmo diploma legal;
b) agir por si ou interposta pessoa, neste segundo caso com o seu consentimento ou ratificação;
c) peticionar ou aceitar, em benefício próprio ou de outrem, sem que lhe seja devida, vantagem, patrimonial ou não, ou a sua promessa;
d) solicitação ou aceitação da vantagem indevida como contrapartida para um ato ou omissão contrários aos seus deveres funcionais.
II – Tal tipo de crime integra-se na modalidade de corrupção «própria», porquanto remete para o caráter ilícito dos atos cometidos pelo trabalhador do setor privado.
III – A vantagem é indevida quando não corresponde a uma prestação devida ao trabalhador nos termos da lei e, para o preenchimento do tipo, tem ainda de corresponder a uma contrapartida (contraprestação ou sinalagma), por um qualquer ato concreto do trabalhador.
IV – Assim, no momento em que se solicita, aceita ou promete, a peita deve configurar já o sentido de uma «troca» ou «transação» com a atividade do funcionário (do sector privado) no exercício das suas funções.
V – Não contendo a acusação pública factualidade que permita integrar o necessário elemento do tipo objetivo consubstanciado na prática de omissão ou ato contrário aos deveres do cargo, ou seja, em violação dos deveres funcionais dos arguidos, como contrapartida das quantias monetárias por eles solicitadas indevidamente e, em regra, recebidas, encontra-se justificada a rejeição da acusação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:

No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 2195/18.8T9BRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Barcelos – Juiz 2, no dia 06.10.2021, pela Exmo. Juiz de Direito foi proferido despacho com o seguinte dispositivo (referência 175327588):

«Consequentemente, ao abrigo do artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, decide-se rejeitar, por ser manifestamente infundada, a acusação pública deduzida nos presentes autos contra Centro Social Paroquial X, J. L., I. N., A. S. e A. F..»

▪ Inconformado com a sobredita decisão, dela veio o Ministério Público interpor recurso, que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência 12167231):

“1. O Ministério Público discorda da decisão tomada pelo Meritíssimo Juiz de Direito, que rejeitou a acusação pública, nos do disposto nos artigos 311.º, nº2, al. a) e nº3º, al. d) do Código de Processo Penal, por entender que se trata de acusação manifestamente infundada.
2. Com o devido respeito que a opinião diversa nos merece, afigura-se-nos que o Tribunal a quo não terá feito uma correcta aplicação do Direito.
3. A exigência de pagamento, previamente à admissão, de determinada quantia monetária, por parte dos arguidos, como condição de admissão (em violação dos critérios referidos nos art.ºs 5.º e 6.º da acusação) de um candidato a utente da IPSS em causa, ou de fixação do valor da mensalidade a pagar depois de admitido, que seria de montante superior caso não fizessem aquela entrega de quantia monetária ou equivalente (aqui em violação dos critérios de fixação da mensalidade ínsitos no art.º 9.º da acusação), sendo aquele o único critério de admissão/determinação do valor da mensalidade, faz com que o acto que assim praticam, por causa desta entrega, seja contrário aos seus deveres funcionais que os mesmos estavam adstritos.
4. Em violação dos critérios para admissão de utentes descritos nos pontos 5.º e 6.º da acusação e da fixação da respectiva mensalidade a pagar (ponto 9.º da acusação).
5. Caso não se verificasse este pagamento, o acto da admissão não era permitido, ou sendo-o implicava o pagamento duma mensalidade em montante superior ao que deveria pagar de acordo com os Protocolos celebrados com o Instituto da Segurança Social.
6. A relação de sinalagmaticidade exigida pelo tipo legal aqui em crise é precisamente esta que lhes é imputada aos arguidos – a exigência da entrega da quantia monetária (vantagem solicitada ou aceite) para a contrapartida correspondente à admissão do utente em causa, que nunca seria admitido se o mesmo não entregasse tal quantia, tivesse ou não os critérios para tal, ou teria que pagar uma mensalidade superior.
7. Mesmo que o candidato em causa obedecesse aos critérios previstos nos pontos 5.º e 6.º da acusação, caso aquele pagamento não fosse efectuado, o mesmo não seria admitido ou sendo-o teria que pagar aquela tal mensalidade superior.
8. Ao exigir este pagamento prévio como requisito necessário à admissão de cada um e para todos os utentes, os arguidos criaram uma condição prévia ilegítima a cada uma das admissões/valor de mensalidade, sendo que, conforme consta da acusação (art.º 18.º, als. x) e y)), dois candidatos não acederam à entrega de qualquer quantia e acabaram não admitidos.
9. Esta exigência ilegítima, levou a que cada uma, e todas as admissões realizadas, fossem praticadas em violação dos deveres funcionais dos arguidos, pois que as mesmas nunca teriam tido lugar, ou tendo tido lugar como tiveram nos casos das als. m), v) e w), teriam os utentes em causa que pagar uma mensalidade superior à que resultaria dos critérios descritos no ponto 9.º da acusação, caso não houvesse aquele pagamento.
10. Seguindo o raciocínio expendido no despacho ora em crise, basta então uma qualquer IPSS não elaborar quaisquer listas de espera (ao contrário daquilo a que está obrigada) e, assim, uma vez que não se consegue apurar então se um utente relativamente ao qual seja exigida uma determinada quantia monetária para a sua admissão acaba admitido preferencial e indevidamente em relação a outro, que deveria estar em lista de espera (mas não existe essa lista), em violação daqueles critérios de admissão, e então fica impune (em termos criminais, pelo menos) uma admissão de tal utente naquela condição, pois que a existência daquelas listas de espera seria a única forma de controlar se tais critérios foram ou não violados.
11. Estas as razões pelas quais, a acusação pública deduzida não padece de qualquer vício, nomeadamente não se trata de acusação manifestamente infundada e deveria, pois, ter sido recebida, pois que contém todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal em causa.
12. Assim o Tribunal, ao rejeitar a acusação deduzida nos autos fez, s.m.o., uma errada interpretação do disposto no artigo 8.º da Lei nº20/2008, de 21 de Abril, e do artigo 311.º, n.ºs 2, al. a), e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal.

Deve, por conseguinte, ser revogado o despacho proferido e substituído por outro que receba a acusação deduzida, designando dia para a realização da audiência de julgamento, nos termos do disposto nos artigos 312.º e 313.º, ambos do Código de Processo Penal.”

▪ Na primeira instância, os arguidos Centro Social Paroquial X, J. L., A. S. e A. F., notificados do despacho de admissão do recurso, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentaram resposta, na qual, pugnam pela improcedência do recurso, mantendo-se a decisão recorrida (referência 12373029).

Formularam as seguintes conclusões:
“1ª. O despacho proferido de rejeição da acusação pública não merece a mínima crítica ou reparo de qualquer espécie, pelo que é opinião dos Recorridos que o mencionado despacho fez uma análise correta e acertada quanto à manifesta insuficiência de fundamentos presentes na acusação, bem como quanto ao não preenchimento dos elementos do tipo legal de crime.
2ª. Resulta do artigo 8º, nº1 da Lei 20/2008, de 21 de abril que o ato ou omissão punível tem que constituir uma violação dos seus deveres funcionais.
3ª. Ora, analisando os factos constantes da acusação pública deduzida pelo MP, mais precisamente os factos 18, 20, 21, 22, verifica-se que se limita a fazer uma indicação vaga e genérica, nunca mencionando nenhum, de que as alegadas quantias entregues não poderiam ser condição obrigatória à admissão de utentes porquanto existiam outros pressupostos a cumprir, impostos pela legislação em vigor.
4ª. Neste sentido, o despacho de rejeição da acusação entendeu, e bem, que em nenhum lugar da acusação se verifica a indicação de um ato ou omissão que constitua uma concreta violação dos deveres funcionais dos Requeridos, estando assim omissa quanto a um dos elementos objetivos do tipo de ilícito, não podendo fundamentar, desta forma, a prática de um crime.
5ª Assim, verifica-se que na acusação o MP se limita a referir que aqueles montantes não podiam ser condição necessária para a admissão dos utentes no ERPI, bem como que os mesmos não podiam ser solicitados para a prática de um ato que dependia de uma série de outros requisitos.
6ª No entanto, não se pronuncia, uma única vez ao longo de toda a acusação, quanto ao concreto processo de seleção e de verificação dos requisitos que era feito pelos Recorridos.
7ª Pelo que, não existe único facto na acusação que permita vislumbrar que os Recorridos não cumpriram com as suas funções na verificação, ou não, dos requisitos necessários à admissão de utentes e, só depois de ter sido confrontado com o despacho de rejeição da acusação, é que, em sede de recurso, vem dizer que a admissão dos utentes afinal não estava condicionada a qualquer outro requisito que não fosse a entrega do dinheiro.
8ª No entanto, não existe qualquer origem ou fundamento para tal facto, que não consta da acusação e que só pode ser entendido como uma tentativa de o MP contornar a insuficiência verificada na sua acusação, que não permite o preenchimento de qualquer tipo de ilícito criminal como decidiu, e bem, o tribunal a quo.

Acresce que,
9ª. Face ao normativo legal que prevê e pune o crime de corrupção passiva, rapidamente se percebe que uma eventual violação dos deveres funcionais adstritos aos Recorridos, sempre passaria pela análise sobre as alegadas quantias recebidas e se estas seriam exigidas para colmatar eventuais irregularidades no processo de admissão dos utentes e, assim, permitir a entrada de quem, de outra forma, não preencheria os requisitos.
10ª. Não esquecendo que os Recorridos, no exercício das suas funções, estão vinculados ao cumprimento da legislação em vigor que define e estabelece os protocolos e procedimentos para admissão dos utentes e, por isso mesmo, só existiria a prática de um crime, ao abrigo do art. 8º da Lei 20/2008 se, primeiramente, se verificasse a violação dessas exigências, o que não só não acontece, como não é sequer invocado pelo MP.
11ª Sendo certo que o MP, em nenhum momento da sua acusação, refere que os Recorridos tenham atuado no sentido de contornar as normas legais em vigor, de modo a permitir, de forma ilegítima, o acesso à estrutura residencial de utentes a quem não cumpria os requisitos impostos.
12ª Assim, não se verifica o preenchimento do tipo legal de crime porquanto um dos elementos objetivos está omisso, razão pela qual, o tribunal a quo não podia ter decidido de forma diversa daquela que consta do despacho de rejeição da acusação, que se deve manter na íntegra.
Finalmente,
13ª Caso se aceitasse as motivações do MP, o que apenas se coloca por raciocínio académico, estaria a permitir-se que novos elementos objetivos ou subjetivos dos tipos de crimes fossem criados, mediante a conveniência do seu intérprete e a conceder a hipótese de, em sede de recurso, vir o MP acrescentar factos não constantes da acusação ou dar-lhes agora uma nova vida.
14ª O que prejudica gravemente o direito de defesa dos Recorridos e constitui uma grave violação ao princípio do acusatório – a este propósito vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 05/11/2018.
15ª Desta forma, conclui-se que o tribunal de 1ª instância atuou em conformidade ao rejeitar a acusação deduzida pelo MP, devendo assim o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão já proferida de rejeição da acusação ao abrigo do artigo 311º, nº2, al. a) e nº3, al. d) do Código de Processo Penal.
Termos em que não deverá ser dado provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão proferida de rejeição da acusação assim fazendo V.(as) Ex.(as) JUSTIÇA!”
O arguido I. N. também apresentou resposta ao recurso do Ministério Público, defendendo a sua improcedência e confirmação da decisão recorrida (referência 12435922).
Formulou as seguintes conclusões:
“1ª) O poder-dever de rejeitar a acusação, atribuído pelo art. 311º do CPPen. ao juiz do julgamento, incide exclusivamente sobre a acusação que lhe é presente, necessariamente deduzida por diferente órgão, a qual estabelece os limites a que tem de circunscrever-se, como resultado da estrutura acusatória do processo penal, e assenta na proibição da prática de atos inúteis, enquanto corolário do princípio da economia processual, previsto no art. 137º do CPCiv. e aplicável ao processo penal nos termos do art. 4º do CPPen., sendo ainda transversal ao ordenamento jurídico português.
2ª) O texto da decisão recorrida deixa inequívoco que a acusação foi rejeitada em virtude de o Mmo. Juiz a quo ter decidido, no exercício de competência que lhe está legalmente atribuída, que os factos dela constantes não constituem crime (o imputado ou, de resto, qualquer outro), pelo que seria um ato inútil, além de uma violação dos direitos dos arguidos, submetê-los a um julgamento que necessariamente culminaria na sua absolvição.
3ª) A sujeição do direito penal aos princípios da intervenção mínima e da proporcionalidade, a par da diferente natureza dos bens jurídicos envolvidos, explicam que o legislador nacional apenas tenha querido criminalizar a chamada “corrupção imprópria” no exercício de funções públicas, que não no sector privado, e daí que o crime p. e p. no art. 8º, nº1, da Lei nº 20/2008, de 21 de Abril, exija, para o seu preenchimento, que o agente solicite ou aceite, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem, patrimonial ou não, ou a sua promessa, como contrapartida de ato ou omissão contrários aos seus deveres funcionais.
4ª) Para o preenchimento de todos os elementos do tipo legal de crime imputado, o ato contrário aos deveres funcionais dos arguidos não pode ser o ato de solicitar a vantagem indevida, uma vez que a corrupção “própria” exige que esta seja solicitada para um distinto ato contrário aos deveres funcionais com o qual se conexione, numa relação de sinalagma.
5ª) Não constando da acusação que as quantias nela aludidas foram solicitadas para a admissão do lar que nunca o seriam à luz dos requisitos licitamente exigíveis para o efeito, ou para os arguidos preterirem outros candidatos que devessem tê-lo sido na vez daqueles que pagavam essa quantia, ou ainda para os arguidos fixarem a mensalidade a pagar pelos utentes em valor inferior ao que seria devido à luz das normas aplicáveis – o que não consta por não corresponder ao que se apurou ter acontecido, não por qualquer omissão ou deficiência na descrição dos factos! -, a dita vantagem indevida não tem o exigível fim ilícito.
6ª) Uma vez que os factos descritos na acusação revelam não haver qualquer ato violador dos deveres funcionais dos arguidos capaz de corresponder à contrapartida da vantagem indevida solicitada, bem decidiu o Tribunal a quo ao rejeitar a acusação pública proferida.”

▪ Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral da República deduziu douto parecer em que acompanha a argumentação do Digno Magistrado do MP recorrente, aduzindo novos fundamentos, e conclui peticionando seja concedido provimento ao recurso e, consequentemente, seja revogada a decisão proferida e ordenada a sua substituição por outra que receba a acusação do Ministério Público e designe data para julgamento (referência 7970558).

Cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do CPP, foi apresentada pelo arguido I. N. resposta ao sobredito parecer, em que rebate os argumentos ali aduzidos pelo Exmo. PGA e termina peticionando novamente a manutenção da decisão recorrida.

Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
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II – ÂMBITO OBJETIVO DOS RECURSOS (QUESTÕES A DECIDIR):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, C.P.P.) (1).
Assim sendo, no caso vertente, a questão que importa dilucidar é a de saber se a acusação pública deduzida nos autos contém a factualidade necessária para que, uma vez provada em julgamento, sejam preenchidos os elementos do tipo do crime de corrupção no sector privado, p. e p. pelo art. 8º, nº1, por referência aos arts, 1.º, 2.º, als. d) e e), todos da Lei nº 20/2008, de 21.04.
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III – APRECIAÇÃO:

Por via do recurso que interpôs, o recorrente Ministério Público insurge-se contra o despacho recorrido, por este considerar que a factualidade descrita na acusação pública não integra a prática do crime de corrupção passiva no setor privado, previsto e punível pelo artigo 8.º, n.º 1 do Regime Penal de Corrupção no Comércio Internacional e no Setor Privado, aprovado pela Lei n.º 20/2008, de 21 de abril [doravante apenas denominado abreviadamente de RPCCISP], que nela é imputado aos arguidos, razão pela qual a rejeitou, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal.
O recorrente considera que, contrariamente ao entendido na decisão recorrida, a acusação pública contém a descrição dos factos suscetíveis de preencherem a tipicidade objetiva do aludido ilícito criminal, nomeadamente porque a solicitação de pagamentos efetuada pelos arguidos como contrapartida à admissão de candidatos ao lar de idosos da arguida instituição ou de fixação do valor da prestação mensal a pagar após a admissão, consubstancia uma condição ilegal, violadora dos critérios previstos nas normas regulamentares e protocolares aplicáveis, donde deriva que o acto que assim praticaram, por causa desta entrega, é contrário deveres funcionais que os mesmos estavam adstritos [cf. conclusões 3ª a 5ª].
Assim, alega, a relação de sinalagmaticidade exigida pelo tipo legal aqui em crise é precisamente esta que lhes é imputada aos arguidos – a exigência da entrega da quantia monetária (vantagem solicitada ou aceite) para a contrapartida correspondente à admissão do utente em causa, que nunca seria admitido se o mesmo não entregasse tal quantia, tivesse ou não os critérios para tal, ou teria que pagar uma mensalidade superior [cf. conclusão 6ª].
Mesmo que o candidato em causa obedecesse aos critérios previstos nos pontos 5.º e 6.º da acusação, caso aquele pagamento não fosse efectuado, o mesmo não seria admitido ou sendo-o teria que pagar aquela tal mensalidade superior [cf. conclusão 7ª].
Ao exigir este pagamento prévio como requisito necessário à admissão de cada um e para todos os utentes, os arguidos criaram uma condição prévia ilegítima a cada uma das admissões/valor de mensalidade, sendo que, conforme consta da acusação (art.º 18.º, als. x) e y)), dois candidatos não acederam à entrega de qualquer quantia e acabaram não admitidos [conclusão 8ª]. Esta exigência ilegítima, levou a que cada uma, e todas as admissões realizadas, fossem praticadas em violação dos deveres funcionais dos arguidos, pois que as mesmas nunca teriam tido lugar, ou tendo tido lugar como tiveram nos casos das als. m), v) e w), teriam os utentes em causa que pagar uma mensalidade superior à que resultaria dos critérios descritos no ponto 9.º da acusação, caso não houvesse aquele pagamento [conclusão 9ª].

Vejamos.

O crime de corrupção passiva no setor privado, à data dos factos imputados aos arguidos (referentes aos anos de 2010 a 2012), encontrava-se previsto e era punível pelo artigo 8.º do RPCCISP (2), na sua redação originária, nos seguintes termos:

«1 - O trabalhador do sector privado que, por si ou, mediante o seu consentimento ou ratificação, por interposta pessoa, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer acto ou omissão que constitua uma violação dos seus deveres funcionais é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa.
2 - Se o acto ou omissão previsto no número anterior for idóneo a causar uma distorção da concorrência ou um prejuízo patrimonial para terceiros, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.»
Por força das alterações introduzidas pela Lei nº 30/2015, de 22.04, a punição da conduta-base prevista no nº1 passou a ser com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias, enquanto o comportamento qualificado vertido no nº2 viu igualmente a respetiva moldura penal agravada, passando a ser punido com pena de prisão de um a oito anos.
Nos termos do art. 4º do aludido diploma legal, «As pessoas coletivas e entidades equiparadas são responsáveis, nos termos gerais, pelos crimes previstos na presente lei.»
O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a lealdade e confiança nas relações laborais estabelecidas no sector privado, valores que são afetados pela violação dos deveres funcionais do agente. (3)

No que tange aos elementos objetivos do crime de corrupção passiva no sector privado, são os seguintes:
- Ser o agente trabalhador do setor privado, no sentido definido pelo conceito abrangente da al. d) do artigo 2º do RPCCISP, isto é, «a pessoa que exerce funções, incluindo as de direção ou fiscalização, em regime de contrato individual de trabalho, de prestação de serviços ou a qualquer outro título, mesmo que provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, ao serviço de uma entidade do sector privado». Trata-se de um crime específico;
- Agir por si ou interposta pessoa, neste segundo caso com o seu consentimento ou ratificação;
- Peticionar ou aceitar, em benefício próprio ou de outrem, sem que lhe seja devida, vantagem, patrimonial ou não, ou a sua promessa;
- Solicitação ou aceitação da vantagem indevida como contrapartida para um ato ou omissão contrários aos seus deveres funcionais.

A.M. Almeida Costa, apoiando-se nos ensinamentos de G. FILANGIERI («Scienza della Legislazione», Milano, 1784, T. III, Parte IV, pp. 72-73), distingue as modalidades de corrupção «própria» e «imprópria», recorrendo ao critério do caráter lícito ou ilícito dos atos cometidos pelo funcionário (no caso, do trabalhador do sector privado): se lícito, corrupção «imprópria»; se ilícito, corrupção «própria» (4):
Assim, o crime de corrupção em questão nos autos integra, indubitavelmente, o conceito de corrupção «própria».
A consumação do crime coincide com o momento da «solicitação» ou «aceitação» da vantagem indevida (ou da sua promessa) pelo trabalhador, porquanto a violação do sobredito bem jurídico ocorre logo que aquele emita uma declaração de vontade que chegue ao conhecimento do seu destinatário e de que resulte a inequívoca intenção de mercadejar com as suas funções profissionais, i. é, de «vender» o exercício de uma atividade (ilícita) compreendida nas suas atribuições ou, pelo menos, nos seus «poderes de facto». (5)
Para a consumação do delito não se requer, pois, o recebimento efetivo da peita, constituindo a omissão ou a efetiva realização da atividade prometida pelo funcionário mera circunstância que aumenta a gravidade da infração.
No que concerne aos atos do trabalhador abrangidos no respetivo tipo legal, revertendo para o caso, mutatis mutandis, o entendimento que acolhemos para o crime de corrupção passiva no setor público [cfr. art. 373º, nº1, do CP], diremos que abrangem todos os atos que o sujeito ativo possa desempenhar no exercício do seu cargo ou das suas funções, considerando aquele e estas, em sentido genérico, não restringidas às especificidades do seu posto de trabalho. A doutrina costuma assinalar que se trata de competências funcionais, abarcando não só as suas competências exclusivas, mas também as genéricas associadas ao cargo ou função. Destarte, incluem-se todos os atos que mantêm relação funcional (que não necessariamente ao nível da “competência”) com o cargo ou função que se desempenha, por via da sua integração genérica no órgão competente - é necessário que haja uma conexão com a atividade do trabalhador de modo que possa realizar o ato “com especial facilidade” (6). Assim, também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12-07-2017, Processo nº 731/09.0GBMTS.P1, disponível in www.dgsi.pt., referindo: «Para preencher o conceito de “deveres do cargo” basta a circunstância de a conduta, do funcionário (aqui, do sector privado), em apreciação se encontrar numa relação funcional imediata com o desempenho do respetivo cargo».
A propósito da caracterização do elemento típico objetivo “suborno” no âmbito da corrupção passiva no sector privado, este pode assumir a natureza de vantagem patrimonial ou não patrimonial (solicitada ou aceitada).
Por outro lado, o suborno tem de revestir, em concreto, o significado de «contrapartida» por um qualquer ato do trabalhador do sector privado. Ou seja, na altura em que se solicita, aceita ou promete, a peita deve atualizar já o sentido de uma «troca» ou «transação» com a atividade do empregado no exercício das suas funções. Esta pode aliás, não se encontrar pré-determinada de forma precisa ou, até, ficar subordinada, quanto ao seu «se» e ao seu «como», à discricionariedade do trabalhador, em razão do circunstancialismo que se observe no momento de a levar a cabo – cfr. A. M. Almeida Costa, ibidem, pp. 173-174.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, UCE, 2008, anotações 12 e 13 ao art. 372º, pp. 881 e 882, «a vantagem é indevida quando não corresponde a uma prestação devida ao funcionário nos termos da lei» e «corresponde a um sinalagma, a uma contraprestação por uma conduta concreta do funcionário [no caso, do sector privado], como resulta expressamente do teor literal da lei “para um qualquer ato ou omissão”». E acrescenta: «A relação de sinalagma pode ser expressa ou tácita, isto é, o funcionário e o subornador podem acordar expressamente na prestação do suborno em troca da prática de um concreto ato ou omissão pelo funcionário ou podem ter comportamentos concludentes cujo significado tácito seja o de o subornador dar o suborno para que o funcionário pratique (ou porque o funcionário praticou) um concreto ato ou omissão e o de o funcionário aceitar o suborno em troca da prática de um concreto ato ou omissão.»
O elemento subjetivo do tipo preenche-se com uma conduta dolosa, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do Código Penal.
Volvendo ao caso concreto.

Cumpre verter aqui a fundamentação aduzida pelo Tribunal a quo na decisão recorrida:

«O Ministério Público deduziu acusação para julgamento em processo comum, com intervenção do tribunal singular, contra CENTRO SOCIAL PAROQUIAL X, J. L., I. N., A. S. e A. F..
a) imputando aos arguidos J. L., I. N., A. S. e A. F. a prática, em co-autoria e na forma consumada, de um crime de corrupção passiva no sector privado, p. e p. pelo art.º 8.º, n.º 1, por referência aos art.ºs 1.º, 2.º, als. d) e e), todos da Lei n.º 20/2008, de 21/4; e
b) responsabilizando penalmente a instituição arguida Centro Social Paroquial X, pela prática de um crime de corrupção passiva no sector privado, p. e p. pelo art.º 8.º, n.º 1, por referência aos art.ºs 1.º, 2.º, als. d) e e), e 4.º, todos da Lei n.º 20/2008, de 21/4 e art.º 11.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código Penal.
*
Apreciando e decidindo

Dispõe o artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa logo conhecer, acrescentando-se no seu n.º 2, alínea a), que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.
De acordo com a alínea d) do n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal a acusação considera-se manifestamente infundada se os factos não constituírem crime.
Ora, na nossa perspectiva, é precisamente essa a situação dos autos, porquanto os factos descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público não preenchem, na sua totalidade, os elementos típicos do ilícito criminal imputado aos arguidos.
Senão, vejamos.

O Ministério Público acusa os arguidos com fundamento nos seguintes factos:

1.º O arguido CENTRO SOCIAL PAROQUIAL X é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, cujo registo foi lavrado na Direcção-Geral da Solidariedade e Segurança Social, no Livro das Fundações de Solidariedade Social, sob o n.º 29/90, fls. 78, do Livro n.º 4, em 1/10/2001, com o NISS ………..5 e o NIF ………, e com sede na Rua …, n.º …, …, Barcelos.
2.º A instituição arguida referida dispõe de acordos de cooperação celebrados com o Centro Distrital de Braga do I.S.S., I.P., para as respostas sociais que desenvolve, nomeadamente na resposta social de estrutura residencial para pessoas idosas (ERPI), esta desde Setembro de 2010, sendo o local de prestação de tal resposta social naquela sua sede.
3.º Por sua vez, encontra-se adstrita à observância de normas legais e protocoladas para admissão de utentes ao seu lar de idosos, nomeadamente, o D.L. 119/83, de 25/02, que aprovou o Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social; a Portaria 196-A/2015 de 1/7, que define os critérios, regras e formas em que assenta o modelo específico da cooperação estabelecida entre o ISS e as IPSS ou instituições legalmente equiparadas; a Portaria 67/2012, de 21/3, relativo a condições de organização e funcionamento das instalações a que devem obedecer os ERPI; o Despacho Normativo n.º 75/92, de 20/05, alterado pelo Despacho normativo n.º 31/2000, de 31.07, que veio estabelecer as normas reguladoras da cooperação entre os ex-Centros Regionais de Segurança Social e as IPSS, e, bem assim, os protocolos de cooperação de no período em causa para o Sector Social e Solidário, celebrados entre o Ministério da Saúde e Ministério da Educação em Ciência e a União das Misericórdias Portuguesas, a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade, da qual é também membro aquela arguida, e a União das Mutualidades Portuguesas.
4.º Na verdade, a instituição arguida, celebrou em 13/10/2010 (mas início de vigência desde o dia 1/9/2010), representada pelo arguido J. L., com o Instituto de Segurança Social, IP/Centro Distrital de Braga, Acordo de Cooperação ERPI, sendo a capacidade do equipamento/serviço de 30 utentes, no período que aqui importa.
5.º No âmbito de tais acordos de cooperação, a IPSS arguida obrigou-se a atribuir prioridade de admissão a pessoas em situação de maior vulnerabilidade social e económica (ponto 2 da Cláusula VII daquele Acordo de Cooperação).
6.º A instituição arguida dispunha ainda de Regulamento Interno para aquela resposta social de ERPI, no âmbito dos quais eram estabelecidos, entre outros, os seguintes critérios de admissão de utentes:
- ter idade igual ou superior a 65 anos, salvaguardando no entanto com carácter excepcional a admissão de candidatos de idade inferior sempre que a situação sócio económica/saúde o justifique; - vulnerabilidade económico-social, o grau de degradação das condições habitacionais;
- ausência ou indisponibilidade da família para assegurar os cuidados necessários;
- situações de emergência social;
- risco de isolamento social;
- sempre que exista uma (pré-)inscrição para admissão esta ia para a lista de espera, aguardando por uma vaga para admissão, sendo devida uma jóia de inscrição no valor de € 50,00 no acto de pré-inscrição, com a finalidade do seu processo ingressar a lista de espera a fim de ser analisado pela instituição, tendo que haver uma actualização periódica de tais listas.
7.º Pelo menos entre os anos de 2010 e 2014, apesar da instituição arguida possuir listas de espera para admissão de utentes em ERPI, as mesmas não dispunham de critérios de gestão definidos que permitissem aferir qual o motivo que determinou primeiramente a admissão de uns utentes em detrimento de outros, pois que, por um lado não indicavam a ponderação dos critérios de priorização na admissão (percentagens), e, por outro, as listas de candidatos não eram actualizadas.
8.º A instituição arguida celebrava e celebra contratos de alojamento e prestação de serviços com os respectivos utentes/familiares, tal como determinado no respectivo regulamento interno da ERPI, cabendo, estatutariamente, a respectiva decisão de admissão à Direcção da Instituição e ao Director Técnico da Instituição.
9.º Ainda de acordo com aqueles Regulamentos Internos e os Acordos de Cooperação, para além da comparticipação do CDSS de Braga por cada utente, era devida pelo utente uma mensalidade que variava, ao longo daquele período, entre os 70 a 90% do rendimento per capita do utente e agregado, a que acresciam ainda outras despesas que ficavam a cargo do utente ou seu responsável, tais como medicamentos, cuidados médicos, de enfermagem ou de reabilitação extra-lar, funerais, fraldas ou próteses.
10.º Sendo que, como condição de acesso aos equipamentos [de ERPI] não é lícita a exigência de comparticipações no acto de inscrição ou no acto de ocupação da vaga em lar, como decorre expressamente do ponto 15 da Cláusula 8.ª, do Protocolo de Cooperação de 2010, ponto 13 da Cláusula, 9.º, do Protocolo de Cooperação 2011/2012, e ponto 11 da Cláusula 9.º, do Protocolo de Cooperação 2013/2014, todos celebrados entre o Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social e a Confederação Nacional das Instituições de Solidariedade.
11.º O arguido J. L., desde 12/9/2007 e até 29/7/2017, desempenhou as funções de Presidente da Direcção daquela instituição arguida, cabendo-lhe representar a mesma, superintender na sua administração, bem como zelar pelo cumprimento da lei e dos respectivos estatutos.
12.º O arguido I. N., desde 12/9/2007 e até 4/9/2014, desempenhou as funções de Director Técnico da instituição arguida.
13.º A arguida A. S., desde 13/12/2010 é funcionária da instituição arguida, sendo que até ao dia 30/10/2012 trabalhou aí como assistente social, e desde então e até ao mês de Setembro de 2014 exerceu as funções de Coordenadora da ERPI; e, desde aí e até à presente data assumiu a Direcção Técnica da instituição.
14.º A arguida A. F., no ano de 2008 começou a colaborar voluntariamente com a instituição arguida (quando o seu marido D. A. era 1.º Secretário da Direcção da instituição, cargo que manteve até 20/8/2013, e depois, em 28/9/2017, passou a figurar como 2.º Secretário da Direcção), nos serviços administrativos, sendo que, desde 5/6/2011 e até à presente data, passou a desempenhar tais funções mas como prestadora de serviços, remunerada portanto.
15.º Ora, pelo menos desde o ano de 2010 e até ao ano de 2014, no desempenho daquelas sua funções, foram os arguidos J. L., I. N., A. S. e A. F. os únicos responsáveis pela gestão dos processos de admissão de utentes para o referido lar de idosos, e que, assim, mantinham contactos com estes e seus familiares.
16.º Sucede que, os arguidos, actuando à revelia de todos os imperativos legais, estatutários e contratuais (os acordados com a Segurança Social), que todos conheciam, e em violação dos seus deveres funcionais, e actuando em seu nome e em nome e no interesse da instituição arguida, em comunhão de esforços, e de acordo com um plano previamente traçado por todos, decidiram, aquando da outorga dos sucessivos contratos com os utentes e com os seus familiares, solicitar/exigir o pagamento de um determinado montante como contrapartida necessária de admissão do referido utente, imediata ou quase imediata e com preferência a outros candidatos em lista de espera, sob pena de, não o fazendo, o idoso não ser admitido de todo, ou sê-lo apenas em data mais avançada, ou então ter que pagar uma mensalidade mais elevada, bem sabendo que tal acto de admissão ou fixação de mensalidade não podia estar dependente do pagamento de tal ou qualquer contrapartida.
17.º Essas quantias entregues pelos utentes/familiares – ou pelo menos parte do montante das mesmas pois que relativamente a alguns dos montantes nem tão pouco foi feito qualquer registo contabilístico ou emitido qualquer recibo – foram depois lançadas como “donativos” na respectiva contabilidade da instituição, como forma de camuflar a verdadeira natureza daquela contrapartida, e às mesmas acrescia o montante relativo às mensalidades que resultavam dos respectivos contratos de alojamento e prestação de serviços.
18.º Destarte, os arguidos, em representação da instituição arguida, de acordo com o plano prévio traçado ou dado a conhecer entre todos, e em execução de um único projecto criminoso, agiram do seguinte modo:
a) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 15/9/2010, data de admissão da utente M. S., o arguido I. N. solicitou a M. F., filha da referida utente, além do mais, o pagamento da quantia global de €5.000,00 (cinco mil euros), quantia essa que foi entregue em numerário e por transferência bancária, aquando da sua admissão, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiria vaga na instituição;
b) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 20/9/2010, data de admissão da utente M. G., o arguido I. N. solicitou a J. G., filho da referida utente, além do mais, o pagamento da quantia global de €10.000,00 (dez mil euros), quantia essa que foi entregue em cheque, a 1/10/2010, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiria vaga na instituição;
c) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 21/9/2010, data de admissão da utente M. O., o arguido I. N. solicitou a M. V., responsável da referida utente, além do mais, o pagamento da quantia global de € 10.000,00 (dez mil euros), quantia essa que foi entregue por transferência bancária, a 28/12/2010, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiria vaga na instituição;
d) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 22/9/2010, data de admissão da utente A. M., o arguido I. N. solicitou àquela e a A. R., seu filho, além do mais, o pagamento da quantia de €5.000,00 (cinco mil euros), quantia essa que foi entregue a 5/10/2010, através de transferência bancária, sob o pretexto do lar necessitar de comprar diversos equipamentos;
e) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 4/10/2010, data de admissão do utente J. P., o arguido I. N. solicitou a M. P., irmã do referido utente, além do mais, o pagamento da quantia global de €10.000,00 (dez mil euros), quantia essa que foi entregue em cheque, a 3/10/2010, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiria vaga na instituição;
f) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 4/10/2010, data de admissão da utente Maria, o arguido I. N. solicitou a esta e a M. C., irmã da referida utente, além do mais, o pagamento da quantia global de €10.000,00 (dez mil euros), quantia essa que foi entregue em numerário, aquando da sua admissão sob o pretexto do lar necessitar de comprar diversos equipamentos;
g) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 7/10/2010, data de admissão do utente P. M., os arguidos I. N. e A. F. solicitaram a M. M., C. M. e demais irmãos do utente, além do mais, o pagamento da quantia global de € 15.000,00 (quinze mil euros), quantia essa que foi entregue em diversas prestações entre 4/10 e 28/12/2010, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiria vaga na instituição;
h) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 1/11/2010, data de admissão do utente A. C., o arguido I. N. solicitou a Maria M., filha do referido utente, além do mais, o pagamento da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), quantia essa que foi entregue em 3/11/2010, através de cheque, sob o pretexto do montante da pensão daquele A. C. ser de apenas € 300,00, e o lar necessitar de comprar diversos equipamentos;
i) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 2/11/2010, data de admissão da utente L. M., o arguido J. L. e/ou I. N. solicitou a A. L., filha da referida utente (e mãe de C. L.), além do mais, o pagamento da quantia global de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), quantia essa que foi entregue em 28/12/2010, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiriam vaga na instituição;
j) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 2/11/2010, data de admissão dos utentes A. P. e A. A., o arguido I. N. solicitou a estes e a P. F., filho dos referidos utentes, além do mais, o pagamento da quantia global de €40.000,00 (quarenta mil euros), quantia essa que foi entregue em diversas prestações entre 10/10/2010 e 28/12/2010, em cheques e em numerário, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiriam vaga na instituição;
k) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 30/11/2010, data de admissão da utente O. F., o arguido I. N. solicitou a AM., filho da referida utente, além do mais, o pagamento da quantia global de € 10.000,00 (dez mil euros), quantia essa que foi entregue através de cheques, entre os dias 8 e 20/12/2010, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiria vaga na instituição;
l) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 3/1/2011, data de admissão da utente P. S., o arguido I. N. solicitou a F. D., filho da referida utente, além do mais, o pagamento da quantia global de pelo menos € 5.000,00 (cinco mil euros), quantia essa que foi entregue por cheque, a 8/12/2010, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiria vaga, pelo menos numa data próxima, na instituição;
m) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior ao mês de Janeiro de 2011, data de admissão da utente L. A., e a Junho de 2013, data da admissão da utente A. G. o arguido I. N. solicitou a L. C., respectivamente filho e neto das referidas utentes, além do mais, o pagamento da quantia de € 15.000,00, relativamente à primeira, que aquele pagou em diversas prestações entre Janeiro e Abril de 2011, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiria vaga na instituição; e, relativamente à segunda, o pagamento da quantia de € 6.000,00, que aquele entregou em cheque e em numerário, sob o pretexto de que se não o fizesse teria que pagar uma mensalidade no montante de € 1.000,00, ao invés da mensalidade que ficou depois acordada, correspondente ao montante da reforma daquela, no montante de € 300,00;
n) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 4/3/2011, data de admissão da utente CM., o arguido I. N. solicitou a D. M., sua sobrinha, além do mais, o pagamento da quantia de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), quantia essa que foi entregue a 4/3/2011, em numerário, sob o pretexto do lar necessitar de comprar diversos equipamentos;
o) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 9/9/2011, data de admissão da utente M. L., o arguido I. N. solicitou a AM., filho da referida utente, além do mais, o pagamento da quantia global de € 20.000,00 (vinte mil euros), quantia essa que foi entregue em diversas prestações, sendo a última a 28/9/2011, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiria vaga na instituição;
p) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 20/9/2011, data de admissão da utente CM., o arguido I. N. solicitou a esta e a V. L., filho desta, além do mais, o pagamento da quantia de € 37.500,00 (trinta e sete mil e quinhentos euros), quantia essa que foi entregue através da compra da viatura automóvel com a matrícula LV, em 22/6/2011;
q) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 3/1/2012, data de admissão da utente Maria M., o arguido I. N. solicitou a G. M., prima da referida utente, além do mais, o pagamento da quantia global de € 15.000,00 (quinze mil euros), quantia essa que foi entregue por transferência bancária, a 28/12/2011, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiria vaga na instituição;
r) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 9/1/2012, data de admissão da utente AZ., o arguido I. N. solicitou àquela e a CO., seu cunhado, além do mais, o pagamento da quantia de €13.500,00 (treze mil e quinhentos euros), quantia essa que foi entregue aquando da sua admissão;
s) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 7/5/2012, data de admissão da utente P. V., o arguido I. N. solicitou a A. F., responsável da referida utente, além do mais, o pagamento da quantia global de € 10.000,00 (dez mil euros), quantia essa que foi entregue por transferência bancária, a 4/5/2012, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiria vaga na instituição;
t) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 30/5/2012, data de admissão da utente R. M., o arguido I. N. solicitou a AG., genro da referida utente, além do mais, o pagamento da quantia global de € 2.000,00 (dois mil euros), quantia essa que foi entregue em numerário, a 30/5/2012;
u) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 26/11/2013, data de admissão dos utentes B. E. e JM., o arguido I. N. solicitou a MA., filho dos referidos utentes, além do mais, o pagamento da quantia global de € 9.000,00 (nove mil euros), quantia essa que foi entregue em numerário, em diversas prestações, entre 28/11/2013 e 7/5/2014, a 28/12/2010, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiriam vaga na instituição;
v) em data não concretamente apurada, mas já durante os meses de Janeiro e Fevereiro de 2014 (quando a utente ML. já se encontrava aí alojada desde 3/1/2012), o arguido I. N. solicitou a PA., filho daquela, além do mais, o pagamento da quantia de €1.000,00 (mil euros), quantia essa que foi entregue a 10/2/2014, através de transferência bancária, sob o pretexto de que se o não fizesse teria que pagar uma mensalidade superior à que se encontrava a pagar no montante de € 500,00;
w) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 7/2/2014, data de admissão dos utentes MJ. e DG., a arguida A. S. solicitou a José, filho daqueles, além do mais, o pagamento da quantia de €6.000,00 (seis mil euros), quantia essa que foi entregue a 10/2/2014, através de transferência bancária, sob o pretexto de que se o não fizesse teria que pagar uma mensalidade de € 960,00 por cada progenitor ao invés da mensalidade de € 750,00 que ficou acordada para cada um deles;
x) em data não concretamente apurada, mas necessariamente anterior a 23/11/2010, data de admissão da utente Maria A., o arguido I. N. solicitou a A. Q., filho daquela, além do mais, a quantia de € 10.000,00, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiria vaga na instituição, ao que aquele A. Q. acabou por não aceder;
y) em data não concretamente apurada, mas sempre durante o ano de 2011, os arguidos J. L. e A. S. solicitaram a AC., marido de LF., além do mais, a quantia de € 30.000,00, sob o pretexto de, não o fazendo, não conseguiria vaga na instituição para ali acolher a sua esposa, ao que aquele AC. acabou por não aceder;
19.º Todas as quantias aludidas em 18.º foram entregues à instituição arguida pelos utentes/familiares dos aludidos utentes, após terem sido solicitados/exigidos pelos arguidos como condição de admissão dos mesmos na valência de ERPI, tendo aquelas integrado o património da referida instituição.
20.º Bem sabiam os arguidos que ao solicitarem/exigirem a entrega das aludidas verbas no acto e/ou para admissão dos utentes do lar e ao embolsarem as mesmas em proveito e benefício da instituição arguida, agiam em desrespeito da finalidade última da cooperação e dos princípios de solidariedade social e de interesse público que a sustentam, nomeadamente, o de privilegiar a admissão de grupos mais desfavorecidos social e economicamente, violando as cláusulas daqueles acordos e protocolos e os princípios da cooperação conforme preconizado por aqueles instrumentos de cooperação e sobreditos diplomas legais, conduta com a qual se conformaram.
21.º Sabiam ainda os arguidos que, ao actuarem da forma descrita que se aproveitavam das suas incumbências funcionais, e em violação dos seus deveres funcionais que passavam, além do mais, por respeitar aqueles princípios ínsitos naqueles diplomas e instrumentos, para, em proveito da instituição que geriam e representavam, obterem, como obtiveram, as aludidas vantagens patrimoniais que bem sabiam não lhes ser devidas, nem à instituição, agindo em clara violação dos seus deveres funcionais e fins sociais que a mesma instituição arguida prossegue.
22.º Agiram os arguidos por si e na qualidade de representantes legais e/ou administradores de facto da instituição arguida e mediante um plano prévio traçado por ambos e em conjugação de esforços, bem sabendo que não podiam solicitar “donativos” que na realidade, como eles bem sabiam, eram uma contrapartida da prática de um acto que, estatutária e legalmente e ainda por via daqueles acordos e protocolos, estava dependente da verificação de requisitos objectivos, entre os quais, se não contava a doação ou promessa de doação, estando tal condição expressamente vedada, como referido em 10.º, aliás, como todos sabiam.
23.º Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas por lei e, mesmo assim, não se abstiveram de o fazer.
*
É então nesta factualidade que o Ministério Público se sustenta para imputar aos arguidos pessoas singulares a prática, em co-autoria, a prática de um crime de corrupção passiva no sector privado, previsto e punido pelo artigo 8.º, n.º 1 da Lei n.º 20/2008 de 21 de Abril, responsabilizando a arguida Centro Social Paroquial X, ao abrigo do disposto no artigo 4.º do mesmo diploma legal.
A Lei n.º 20/2008, de 21 de Abril, veio estabelecer o regime de responsabilidade penal por crimes de corrupção cometidos no comércio internacional e na actividade privada.

O artigo 8.º do citado diploma legal, sob a epígrafe “corrupção passiva no sector privado”, dispõe no seu n.º 1 o seguinte:
“O trabalhador do sector privado que, por si ou, mediante o seu consentimento ou ratificação, por interposta pessoa, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial, ou a sua promessa, para um qualquer ato ou omissão que constitua uma violação dos seus deveres funcionais é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias”
Concomitantemente, o artigo 4.º do aludido esclarece que as pessoas colectivas e entidades equiparadas são responsáveis, nos termos gerais, pelos crimes previstos na presente lei.
Da análise do tipo legal incriminador resulta, como condição necessária para o cometimento do crime, que a vantagem solicitada, aceitada ou prometida ao agente, para além de indevida, tenha como escopo a prática, por parte do trabalhador do sector privado, de um qualquer ato ou omissão que constitua uma violação dos deveres funcionais.
De acordo com os factos descritos na acusação pública, no período compreendido entre o ano de 2010 e até ao ano de 2014, os arguidos pessoas singulares, no exercício das funções de gestão dos processos de admissão de utentes para a estrutura residencial para pessoas idosas (ERPI) do Centro Social Paroquial X, actuando em comunhão de esforços, de acordo com um plano previamente traçado por todos, e em nome e no interesse da instituição arguida, decidiram, aquando da outorga dos sucessivos contratos com os utentes e com os seus familiares, solicitar/exigir o pagamento de um determinado montante como contrapartida necessária de admissão do referido utente, sob pena de, não o fazendo, o idoso não ser admitido de todo, ou sê-lo apenas em data mais avançada, ou então ter que pagar uma mensalidade mais elevada, bem sabendo que tal acto de admissão ou fixação de mensalidade não podia estar dependente do pagamento de qualquer contrapartida.
Consta ainda da acusação que as quantias solicitadas foram entregues à instituição arguida pelos familiares de diversos utentes, nos termos descritos no ponto 18 dessa peça processual, tendo sido integradas pelos arguidos no património do Centro Social Paroquial X.
Pois bem, de acordo com essa factualidade, a “ilegalidade” cometida pelos arguidos consistiu em condicionar a admissão de utentes para o seu lar de idosos ao pagamento obrigatório de uma quantia em dinheiro, cientes que, de acordo com o estatuto das IPSS e das restantes normas protocoladas, a admissão de utentes nessa estrutura não podia depender da entrega de qualquer contrapartida financeira.
Dúvidas não restam que, ao assim actuarem, os arguidos solicitaram uma vantagem que lhes não era devida para a prática de um acto compreendido no âmbito das suas funções de administração e de gestão da sociedade arguida (o acto de admissão de utentes à estrutura residencial para pessoas idosas do Centro Social Paroquial X).
Contudo, em nenhum lugar da acusação se diz que que aquela solicitação tenha sido efectuada como contrapartida para a admissão ao lar de idosos da arguida instituição de candidatos que não preenchiam os requisitos previstos para o efeito, isto é, não resulta da acusação pública que esse pagamento tenha sido solicitado pelos arguidos para permitir o acesso a essa estrutura de utentes que, em condições normais, não seria admitidos, por não reunirem os requisitos previstos no estatuto das IPSS, nas normas protocoladas para esse efeito, ou no próprio regulamento interno do Centro Social Paroquial X.
Queremos com isto dizer que, ao contrário daquilo que parece ser a lógica estrutural da acusação pública em análise, o pagamento das quantias reclamadas pelos arguidos previamente à celebração dos contratos de alojamento e prestação de serviços com os respectivos utentes/familiares não pode constituir, para efeitos do preenchimento dos elementos típicos do crime em apreço, simultaneamente, a vantagem patrimonial indevida solicitada e o ato contrário aos deveres funcionais do agente, isto é, o ato contrário aos deveres funcionais do agente teria de ser a concreta contrapartida daquela vantagem, materializada num outro ato ou omissão diverso e autonomizado da referida entrega patrimonial – neste sentido veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 26.04.2021, Processo n.º 1451/17.7T9BRG.G1, relatado pela Sr.ª Desembargadora Fátima Furtado, que apreciou em sede de recurso uma situação em tudo idêntica à retratada no caso concreto, confirmando a decisão deste Juízo Local Criminal de Barcelos (Juiz 2), que rejeitou a acusação do Ministério Público, por a considerar manifestamente infundada.
Por outro lado, muito embora as condutas descritas na acusação pública evidenciem sólidos pontos de contacto com os elementos típicos do crime de recebimento indevido de vantagem, previsto e punido pelo artigo 372.º, n.º 1, do Código Penal, haverá que ter em consideração, neste domínio, o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2020, publicado no Diário da República n.º 96/2020, Série I, de 2020-05-18 no qual se fixou jurisprudência no sentido de que o conceito de “organismo de utilidade pública”, constante da parte final da actual redacção da alínea d) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal, não abarca as instituições particulares de solidariedade social e, por essa via, não deve ser considerado funcionário, para efeito da lei penal, quem desempenhe ou participe no desempenho da sua actividade, não se preenchendo assim quanto aos arguidos esse elemento objectivo previsto no citado tipo legal.
Ou seja, os factos descritos na acusação pública retratam inequivocamente uma situação em que os arguidos solicitaram, indevidamente, uma vantagem para a prática de um acto compreendido no exercício das suas funções de administração e de gestão no Centro Social Paroquial X, mas, inversamente, já nada existe nessa peça processual que permita concluir que o acto concretamente praticado nessas condições, consubstanciado na admissão à estrutura residencial para idosos dos candidatos que contribuíram com esse “donativo”, constituísse uma violação dos deveres do cargo ou das funções desempenhadas por qualquer um deles na instituição arguida.
E sendo a acusação pública absolutamente omissa relativamente a um dos elementos objectivos típicos do crime de corrupção passiva no sector privado, os factos alegados nessa peça processual são insuficientes para se concluir que os arguidos incorreram na prática do ilícito que lhes está imputado.»
Diremos que a sobredita motivação e a consequente decisão proferida pelo Tribunal a quo, a que aderimos, merecem a nossa inteira concordância.
A decisão recorrida encontra estribo no também ali referido acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.04.2021, proferido no processo nº 1451/17.7T9BRG.G1, relatora Desembargadora Fátima Furtado, disponível em www.dgsi.pt, que se debruçou sobre um caso idêntico ao dos autos e onde doutamente se expôs [a pertinência da fundamentação e similitude de casos justifica a extensão da transcrição]:
«A acusação – que se encontra reproduzida no despacho recorrido, já supra transcrito – começa por relatar que os arguidos F. C., J. P. e L. S., exerciam na CASX – Centro de Apoio e Solidariedade X – uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) – as funções de, respetivamente, Diretor da Instituição, Vice Presidente da área cultural e recreativa, e Diretora de Serviços do Centro Social. Eram pois aqueles três arguidos indubitavelmente agentes trabalhadores do setor privado, no sentido já supra definido para efeitos do artigo 8.º do RPCCISP.
Narra igualmente a acusação os ditos arguidos F. C., J. P. e L. S., atuando em comunhão de esforços e intentos e em nome e no interesse da sociedade arguida, no período compreendido entre fevereiro de 2016 e dezembro de 2016 decidiram solicitar, aquando da outorga dos sucessivos contratos de alojamento e prestação de serviços para a estrutura residencial para pessoas idosas, o pagamento do montante de 5.000,00 € como contrapartida necessária e obrigatória à admissão dos utentes, bem sabendo que tal ato não estava dependente dessa contrapartida financeira, atendendo ao estatuto das IPSS e às normas protocoladas para admissão de utentes na estrutura residencial para pessoas idosas. Constando da acusação dezoito episódios concretos em que tal sucedeu, no âmbito dos quais as quantias solicitadas foram entregues à instituição arguida pelos familiares dos aludidos utentes, tendo sido integradas pelos arguidos no património da arguida sociedade.
Neste contexto, dúvidas não há de que os arguidos solicitaram uma vantagem que não lhes era devida para a prática de um ato compreendido no âmbito das suas funções de administração e de gestão da sociedade arguida.
Contudo, tal não basta para o preenchimento do tipo objetivo do crime de corrupção passiva no setor privado, que como já vimos exige ainda que, como contrapartida da vantagem indevida, o agente pratique ato ou omissão contrário aos deveres do cargo.
Ora, em momento algum da acusação se descrevem factos de onde resulte que a celebração dos dezoito contratos de alojamento e prestação de serviços para a estrutura residencial para pessoas idosas integram a prática de atos contrários aos deveres dos cargos dos arguidos, ou seja, e como consta do despacho recorrido, «Em nenhum lugar da acusação se diz que que aquela solicitação tenha sido efectuada como contrapartida à admissão à residencial para idosos de candidatos que não preenchiam os requisitos previstos para o efeito, isto é, não resulta da acusação pública que esse pagamento tenha sido solicitado pelos arguidos para permitir o acesso a essa estrutura de utentes que, em condições normais, não seria admitidos, por não reunirem os requisitos previstos no estatuto das IPSS e nas normas protocoladas para esse efeito.» Assim como – acrescentamos agora – também não resulta da acusação que tenha havido candidatos que devessem ter sido admitidos e que tivessem sido preteridos pelos arguidos, para poderem celebrar os contratos de alojamento e prestação de serviços com aqueles a quem solicitaram a vantagem que não era devida.
Contrapõe o recorrente que «O acto contrário aos deveres funcionais foi praticado quando os arguidos celebraram cada admissão, uma vez que esta só se concretizou por ter sido previamente paga a quantia de 5.000,00». Mas não tem razão. Nos termos da peça acusatória, o pagamento da referida quantia solicitada pelos arguidos previamente à celebração dos contratos (embora só paga depois deles, segundo a mesma peça) constitui a vantagem patrimonial indevida solicitada, mas não também e simultaneamente, o ato contrário aos deveres funcionais do agente.
O ato contrário aos deveres funcionais do agente teria de ser a concreta contrapartida daquela vantagem, materializada num outro ato ou omissão. Estando o recorrente a tomar por ato contrário aos deveres funcionais a própria solicitação da vantagem, numa interpretação absolutamente ilegal do preceito incriminador, que é absolutamente claro quanto à «contrapartida» do ato em face da vantagem solicitada ou aceite, que têm de estar entre si numa relação sinalagmática.
De tudo resultando que os factos descritos na acusação não são idóneos para submeter os arguidos a julgamento, de forma a esperar que da respetiva discussão decorram as suas condenações por aqueles mesmos factos e com o enquadramento jurídico constante da acusação.
Nenhuma censura merecendo assim o despacho recorrido, que nos termos prescritos no artigo 311.º nºs 2 alínea a) e 3 alínea d), do Código de Processo Penal e no âmbito do saneamento do processo como ato preliminar do julgamento, rejeitou a acusação por manifestamente infundada.»

No caso vertente, apesar do visível labor empreendido pelo Ministério Público na acusação pública deduzida nos autos e do subsequente esforço que o recorrente operou no recurso que interpôs da decisão recorrida para colmatar a omissão que efetivamente se deteta naquele libelo acusatório [assim como o Exmo. PGA no douto parecer que emitiu nos autos, nos termos do art. 416º do CPP], entendemos que essa peça processual não contém factualidade que permita integrar o necessário elemento do tipo objetivo consubstanciado na prática de omissão ou ato contrário aos deveres do cargo, ou seja, em violação dos deveres funcionais dos arguidos, como contrapartida das quantias monetárias por eles solicitadas indevidamente e, em regra, recebidas.
Não se olvida que a acusação, após indicar o objeto social da arguida Centro Social Paroquial X e a existência de um protocolo (acordo de cooperação) com o Centro Distrital de Braga do I.S.S., I.P. para a resposta social de estrutura residencial para as pessoas idosas (ERPI), faz referência às normas legais e protocolares vigentes, à data dos factos, para a admissão de utentes do seu lar de idosos, bem como descreve os critérios para tal admissão constantes do Regulamento Interno [cfr. artigos 1º a 6º]. Narra ainda a existência na instituição em causa de listas de espera para admissão de utentes em ERPI, não obstante as mesmas não disporem de critérios de gestão definidos que permitam aferir qual a razão determinante de priorização de alguns utentes relativamente a outros, uma vez que não indicam a ponderação dos respetivos critérios e não eram atualizadas [cfr. artigo 7º]. Ademais, a acusação narra o órgão coletivo e individual da instituição a quem cabia a decisão de admissão dos candidatos [cfr. artigo 8º], as funções atribuídas a cada um dos arguidos (pessoas singulares) [cfr. artigos 11º a 15º] e, bem assim, os critérios regulamentares e protocolares de fixação da mensalidade devida pelos candidatos admitidos, dos quais não consta a exigência de pagamento de quaisquer outras quantias no ato de inscrição ou no ato de ocupação da vaga em lar [cfr. artigos 9º e 10º].
Na mesma peça invoca-se ainda, reiteradamente, quer genericamente quer por referência aos casos concretos ali narrados, que os arguidos solicitaram o pagamento de um determinado montante como contrapartida necessária de admissão do utente, imediata ou quase imediata, e com preferência a outros candidatos em lista de espera, sob pena de não o fazendo, o idoso não ser admitido de todo ou sê-lo apenas em data mais avançada, ou então ter que pagar uma mensalidade mais elevada, sendo que tal ato de admissão ou fixação de mensalidade não podia estar dependente do pagamento daquela ou quaisquer outras quantias mas dos requisitos objetivos que foram enunciados naquela acusação, sempre em desrespeito da finalidade última da cooperação e dos princípios de solidariedade social e de interesse público que a sustentam [cfr. artigos 16º a 18º, 20º e 22º].
Todavia, compulsada integralmente a douta acusação pública, conclui-se que a mesma não contém a narração dos factos suscetíveis de preencher o sobredito elemento objetivo do tipo legal de crime de corrupção no setor privado, isto é, que a solicitação/cobrança dos montantes pecuniários em apreço, apesar de integrar/reportar a uma vantagem indevida, porquanto não permitida (vedada) pelas normas regulamentares e protocolares que regem a admissão de utentes em ERPI, tinha em vista a admissão de candidatos que não preenchiam os requisitos previstos para a admissão na instituição, ou que em função do recebimento daquele “suborno” e da consequente admissão dos “pagantes”, foram preteridos outros candidatos que reuniam condições idênticas ou reforçadas (por exemplo, por carência económica ou ausência de apoio familiar) face àqueles, nomeadamente os que estavam em lista de espera ou aquelas pessoas a quem foi igualmente solicitado o pagamento deste tipo de comparticipação mas não acederam ao pedido. Note-se que é o próprio acusador que em relação às listas de espera existentes na instituição em questão, admite que não permitiam, pelo seu conteúdo genérico e desatualizado, apreender quais os critérios de ordenação subjacentes; logo, não eram idóneas a permitir a conclusão de que os candidatos que foram admitidos na sequência dos eventos descritos na acusação não dispunham de condições pessoais, endógenas e exógenas, que lhes permitiam obter prioridade na admissão à ERPI.
Nada disto é objetivamente alegado na acusação pública.
Por outro lado, também não surge alegado na acusação – pelo contrário – que, nos casos em que foi reclamado o pagamento das quantias aos candidatos ou seus familiares, sob pena de a mensalidade a pagar após a admissão ser superior àquela que viriam posteriormente a acordar e a liquidar [cfr. casos descritos no artigo 18º, alíneas m), segunda parte, v) e w)], a solicitação veio a derivar na efetiva cobrança de valores pecuniários superiores aos que resultariam da aplicação das regras regulamentares e protocolares aplicáveis.
Destarte, mostrando-se a douta acusação pública absolutamente omissa relativamente a um dos elementos objectivos típicos do crime de corrupção passiva no sector privado, ressuma que os factos alegados nessa peça processual são insuficientes para se concluir que os arguidos incorreram na prática do ilícito que lhes está imputado.
Por conseguinte, revela-se acertada a douta decisão recorrida que, ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, rejeitou, por ser manifestamente infundada, a acusação pública deduzida nos autos contra os arguidos.
Soçobra, assim, o douto recurso.
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IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao interposto pelo Ministério Público, e, em conformidade, manter o despacho recorrido.
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Sem tributação, por força da isenção de que beneficia o recorrente (art. 522º, nº1, do CPP e art. 4º, nº1, al. a), do Regulamento das Custas Processuais).
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Guimarães, 20 de junho de 2022,

Paulo Correia Serafim (Relator)
[assinatura eletrónica]

Pedro Freitas Pinto (Adjunto)
[assinatura eletrónica]

Fernando Chaves
(Presidente da Secção Criminal)
[assinatura eletrónica]
(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)



1. Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
2. Diploma legal que surgiu na sequência da «Convenção Penal sobre Corrupção», do Conselho da Europa, assinada em Estrasburgo, a 30.04.1999, ratificada por Portugal através da Resolução da Assembleia da República nº 68/2001, de 26 de outubro, da «Convenção contra a Corrupção» aprovada a 31.10.2003 em Nova Iorque pela Assembleia Geral da ONU e pela Resolução da Assembleia da República 47/2007 para Ratificação pelo Decreto 97/2007 do Presidente da República (ambos de 21/9), e dando cumprimento à Decisão-Quadro nº 2003/568/JAI, do Conselho, de 22 de julho, in JOCE L 192/54, de 31.07.
3. Neste sentido, também o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26.04.2021, Processo nº 1451/17.7T9BRG.G1, relatora Desembargador Fátima Furtado, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.03.2013, Processo nº 269/10.2TAMTS.P1, relator Desembargador Castela Rio, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, e Carlos Almeida, in “Comentário das Leis Penais Extravagantes, Vol. 2, coordenação de Paulo Pinto de Albuquerque, UCE, 2011, p. 204.
4. In “Sobre o Crime de Corrupção”, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, Coimbra, 1984, pp. 103, 129 e 133.
5. O crime de corrupção passiva é um crime instantâneo – que se consuma, em caso de solicitação, no momento em que ela chega ao conhecimento da outra parte e, em caso de aceitação, no momento em que a disponibilidade para aceitar, manifestada pelo funcionário, chega ao conhecimento do “corruptor”, com a aceitação do suborno – e não um crime permanente ou duradouro – cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-07-2010, Processo nº 712/00.9JFLSB.L1-5, in www.dgsi.pt.
6. Entre outros, na Doutrina Espanhola, vide Inma Valeije Alvarez, in “Consideraciones sobre el bien jurídico protegido en el delito de cohecho”, pp. 310 a 312, e “El Tratamiento penal de la corrupción: el delito de cohecho”, pp. 191 e ss.; Comes Raga, in “El acto del cargo en el delito de cohecho passivo proprio antecedente”, Revista General de Derecho Penal, nº22, 2014, pp. 14 e ss.; e Fernando Navarro Cardoso, in ob. cit., pp. 20 e 21.