Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3090/20.6T8VNF.G1
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: DIREITO ESPECIAL DE GERÊNCIA
PACTO SOCIAL
DESTITUIÇÃO DE GERENTE
DELIBERAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Os direitos especiais dos sócios referidos no artº 24º, nº5, do Código das Sociedades Comerciais, caracterizam-se por: a) traduzirem prerrogativas ou privilégios que não equivalem ao regime geral; b) resultarem, necessariamente, dos estatutos (24º, nº1); c) não poderem ser coartados ou limitados sem o consentimento do próprio, salvo especial permissão legal ou estatutária.
2. Não obsta à caracterização como direito especial a circunstância de todos os quatro sócios de uma sociedade por quotas serem nomeados gerentes.
3. A preterição de consentimento do sócio afetado por supressão ou alteração de disposição estatutária atributiva de direito especial e consequente extração de efeitos como se tal direito especial não existisse, tem como consequência a ineficácia da deliberação ou deliberações respetivas.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

M. O., residente na Rua …, freguesia de …, concelho de Guimarães, intentou a presente Ação de Anulação de Deliberação Social contra X – COMÉRCIO, IMOBILIÁRIA, TRANSPORTES E CONSTRUÇÕES, LDA., pessoa coletiva n.º ………, com sede na Rua dos …, Edifício …, Bloco .., entrada …, sala …, …, freguesia de …, concelho de Vila Nova de Famalicão, pedindo que seja declarada a anulabilidade das deliberações sociais tomadas e devidamente identificadas nos pontos dois e três da ordem de trabalhos da Assembleia Geral realizada a 6 de março de 2020.
Citada, a R. apresentou contestação pugnando pela improcedência do pedido.

Por sentença prolatada em 27 de maio de 2021 foi decidido o seguinte:

Termos em que decidindo pela total procedência da ação, anulo as deliberações tomadas relativas aos pontos dois e três da ordem de trabalhos da Assembleia Geral realizada a 6 de março de 2020. (…).

Inconformada com a decisão, a ré apelou, formulando as seguintes conclusões:

a. O presente recurso é interposto da douta sentença proferida em 26/05/2021 em que o tribunal a quo deu razão à recorrida tendo decidido da seguinte forma; “Termos em que decidindo pela total procedência da ação, anulo as deliberações sociais tomadas relativas aos pontos dois e três da ordem de trabalhos da Assembleia-geral realizada a 6 de março de 2020.”
b. Fundamentando a sua decisão da seguinte forma: “Em suma e interpretando desta forma a disposição estatutária em causa, concluímos estar perante um verdadeiro direito especial à gerência que foi atribuído aos sócios M. O., S. G., M. J. e J. M. e apenas a estes.”, e Não podiam, por isso, os sócios da sociedade R. ter deliberado a alteração do n.º 2 do artigo 4.º do Pacto Social e a destituição da A. do cargo de gerente sem o seu consentimento” e “É certo que neste momento, porque todos os sócios da sociedade R. são exatamente aqueles que constam da disposição estatutária, a mesma tem a aparência de um direito geral atribuído aos sócios e não de um direito especial. Contudo, a vida das sociedades não é estática, mas sujeita a diversas alterações ao longo do tempo. A qualquer momento, as quotas da sociedade R. podem ser transmitidas. E aí sobressairá a natureza especial do direito à gerência concedido, porquanto os novos sócios não terão direito à gerência só por serem sócios, a qual permanecerá atribuída aos que estão nomeados na disposição estatutária e que mantiverem essa posição.”
c. Expressamente renunciando a doutrina interpretativa dominante, nomeadamente quando refere: “Parte da doutrina portuguesa não parece aceitar direitos especiais (ou pelo menos de igual conteúdo) de todos os sócios: assim, entre outros, Brito Correia, Pereira de Cfr. Ferrer Correia, Estudos Jurídicos, II, pág. 96 e Pinto Furtado, Deliberações dos Sócios, pág. 261 In Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume I, 2ª edição, Almedina, pág. 431 Almeida, Carlos Olavo, Pinto Furtado (numa primeira fase), Olavo Cunha (embora este último autor considere que podem ser atribuídos a todos os sócios direitos derrogáveis com o respetivo consentimento).
d. A proposta de alteração que foi decidida constava da ordem de trabalhos da deliberação que foi anulada pelo Tribunal a quo e foi votada por maioria qualificada.
e. Não consta do pacto social expressamente vertido o princípio da inderrogabilidade dos direitos especiais, consagração essa que seria necessária ser vertida, atento que todos os sócios tinham tal direito especial.
f. Devemos atender que a interpretação de cláusulas de pacto social constitui matéria de direito por ter de ser efetuada de harmonia com os critérios legais definidos nos artigos 236.º n.1 e 238.º n.1 do Código Civil, e em matéria de interpretação de estatutos sociais não são atendíveis elementos estranhos aos próprios estatutos e não referidos por estes.
g. Os direitos dos sócios, como tal, podem ser gerais e especiais. Os primeiros competem por igual a todos os sócios; os segundos conferem aos seus titulares uma vantagem especial, um privilégio, uma posição de supremacia frente aos demais associados (cfr. Ferrer Correia, Estudos Jurídicos, II, pag. 96 e Pinto Furtado, Deliberações dos Sócios, pag. 261).
h. Quanto a esta última espécie (direitos especiais), refere aquele primeiro Autor (ob. e loc. citados) que se trata de direitos de uma feição singular, pois não se mostram ao serviço de valores sociais ou de interesse comum a todos os sócios, mas de interesses próprios e exclusivos de um ou alguns deles. São, por certo, direitos estatutários, mas a sua função é tutelar o interesse do sócio a quem competem já em relação ao dos outros sócios, já em face do próprio interesse da sociedade.
i. A disciplina fundamental dos direitos especiais é objeto do art. 24º do CSC, de que se destaca o direito especial à gerência.
j. A Recorrida. não concretiza qual o seu interesse protegido concretamente, já que tal interesse em boa verdade não existe uma vez que todos os sócios tinham esse mesmo direito entre eles, e se todos têm direito, a questão é que interesse pretendiam acautelar em relação à própria sociedade.
k. A verdade é que, a respeito das sociedades por quotas, se tem doutrinado que se a interpretação objetiva é de exigir no tocante às cláusulas que visam a proteção dos terceiros sociais, mas essa exigência se não impõe nas sociedades por quotas de índole personalista como é o caso concreto, quanto às cláusulas sobre relações corporativas internas e às de natureza jurídica individual, vigorando, então, nesta matéria, os princípios gerais de interpretação dos negócios jurídicos formais (art. 238º do C.Civil), com admissibilidade, portanto, do recurso a quaisquer elementos interpretativos contemporâneos do negócio, ou anteriores ou posteriores à sua conclusão (v. Vaz Serra, RLJ, ano 112, pags. 21 e sgs. e, ainda, pag. 173, nota 2).
l. E são essas as relações que estão em causa, visto que, respeitando inteiramente os direitos de terceiros, é o que melhor permite averiguar a intenção que presidiu à formulação de cláusulas pactícias que apenas respeitam aos interesses dos sócios entre si sem qualquer repercussão sobre esferas jurídicas alheias.
m. A estipulação estatutária pela qual são nomeados gerentes inclui-se naquelas cuja interpretação se deve fazer recorrendo a todos os elementos interpretativos (cfr. António Caeiro, Destituição do gerente designado no pacto social, em Temas do Direito das Sociedades, pag. 396).
n. Mais do que aquilo que as partes declararam, importa aqui descobrir a sua intenção comum, desde que essa intenção tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 338º do C.Civil).
o. A interpretação de um contrato consiste em determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com essas declarações (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ed., pag. 444).
p. O sentido das declarações negociais das partes, nos termos do art. 236º, nº s 1 e 2, será aquele que possa ser deduzido por um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele, sem embargo de, conhecendo o declaratário a vontade real do declarante, ser de acordo com ela que vale a declaração emitida, consagrou-se, assim, a denominada teoria da impressão do destinatário, (art. 238º, nº s 1 e 2).
q. No domínio da interpretação, são elementos essenciais a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações - "a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respetivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos" (Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, pág. 344).
r. Ou, como exemplifica Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, II, pág 213), “os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (próprios de outros meios ou profissões), etc.".
s. É nesse sentido que se procedeu a constituição do direito especial de gerência a todos os sócios por acordo por acordo a fim de todos os sócios sem tratados de igual forma pela sociedade e decidiram por maioria das decisões executivas necessárias à gestão do dia a dia da sociedade.
t. Uma vez que, antes de tal acordo, a recorrida. procedeu à transformação da sociedade anónima em sociedade limitada, instituindo-se ela própria com direito especial à gerência, e nomeando-se única gerente não dando nem prestando contas aos restantes sócios e tomando decisões lesivas do escopo e interesse da sociedade para benefício próprio.
u. Tendo procedido à venda de património da empresa de valor avultado, apesar de saber da oposição de todos os restantes sócios;
v. Assim o direito especial de todos os sócios, foi a única forma de repor a normal gerência democraticamente eleita de uma sociedade e não a especial proteção de interesses de qualquer sócio entre si. E tal resultou de acordo extra judicial após a interposição de ação de anulação de deliberações sociais, interposta pelos sócios S. G. e M. J., e que correu com o nº 4352/18.8T8GMR, do Guimarães - Juízo de Comércio - Juiz 1;
w. Tendo sido alterados os Artigos 2º, 4º (os sócios têm direito especial à gerência.) e 8º, pondo fim à ação judicial acima referida por inutilidade superveniente;
x. O princípio geral sobre a destituição de gerentes das sociedades por quotas, sejam eles sócios ou não, decorre do disposto no art.º 257º, nº 1, do CSC, normativo segundo o qual “Os sócios podem deliberar a todo o tempo a destituição dos gerentes”.
y. Este princípio tem como consequência prática mais relevante a de que, não havendo disposição em contrário no contrato, basta aos sócios uma maioria simples do capital para afastar os gerentes que se encontrem funções.
z. Não há, por conseguinte, na lei uma exigência de justa causa nem, tão pouco, de uma mínima fundamentação ou motivação para que essa destituição possa avançar sem restrições.
aa. A destituição dos gerentes é inteiramente livre em homenagem ao interesse social avaliado pelos sócios em cada momento.
bb. Escreve Paulo Olavo Cunha sobre os direitos especiais dos sócios das sociedades por quotas:
“Os direitos especiais são aqueles que são atribuídos pelo contrato de sociedade a um ou mais sócios (cfr. art.º 24, nº 1), conferindo-lhes uma vantagem relativamente aos demais. O nº 1 do art.º 24 do CSC estabelece com total clareza, que só pelo contrato esses direitos podem ser criados. (…) O critério que nos permite distinguir estes direitos dos direitos gerais reside, precisamente, no facto de só poderem ser atribuídos a alguns sócios, estando, por isso, primordialmente afetos a interesses próprios do seu titular. A especialidade destes direitos sociais radica, pois, nessa característica – de satisfação de interesses pessoais – e na qualidade relativa, de só poderem ser concedidos a alguns sócios. Por isso, os direitos especiais não podem ser atribuídos à totalidade dos sócios, sem prejuízo da sua essência; podem é ser atribuídos a todos sócios direitos que sejam apenas derrogáveis com o seu consentimento. (…) Os direitos especiais que revestirem natureza patrimonial são, em regra, “transmissíveis com a quota, sendo intransmissíveis os restantes direitos (art.º 24, nº 3)”
cc. Daqui resulta que, sendo todos os sócios nomeados gerentes, não há nisso uma vantagem de qualquer deles sobre os outros, razão pela qual não se pode falar coerentemente de um direito especial de qualquer deles em relação aos demais.
dd. Aliás a Recorrida da presente ação no seu artigo 15º refere “posição privilegiada de todos os sócios em confronto com os demais”, ou seja, se a todos forem atribuídos os direitos especiais de gerência tal posição privilegiada fica completamente esvaziada pois, não existe privilégio em relação a nenhum deles.
ee. Ainda que se admita que o direito especial à gerência de todos os sócios pode ser o resultado da manifestação de uma vontade coletivamente convergente de que a respetiva cláusula contratual não seja eliminada ou modificada em relação a qualquer deles sem o seu consentimento, salvo se sobrevier justa causa demonstrada em ação para tanto intentada seria então suficiente para caracterizar esse “direito especial” a constatação da presença, não de um interesse destacadamente pessoal em cada um dos designados, mas de um escopo comum de proteger ou garantir a vontade de todos eles de fazer depender a sua participação social do acesso ao controlo gestionário do ente societário.
ff. é apodíctico que uma visão deste jaez dos “direitos especiais” é idónea a gerar graves bloqueios, ou, pelo menos, sérios obstáculos à gestão da sociedade, visto que, por depender do seu consentimento, a necessidade de superação do direito especial de algum dos sócios (à gerência) que por qualquer causa a dada altura se viesse a fazer sentir tornar-se-ia extremamente difícil senão impossível de concretizar.
gg. Devia o douto tribunal, ao contrário do que fez na sua sentença, seguir assim a definição de direitos especiais perfilhada por Paulo Olavo Cunha, de harmonia com as duas dimensões que acima se deixaram aludidas, nomeadamente quanto ao aspeto da sua clara relatividade.
hh. não havendo um direito especial à gerência de que a Autora se pudesse arrogar aquando da deliberação da respetiva destituição da gerência, vale então o princípio geral da livre destituição dos gerentes por deliberação dos sócios proclamado no art.º 257º, nº 1, do CSC.
ii. O tribunal a quo tinha de ter apurado, o que só se conseguia em julgamento, as razões porque foi feito o acordo no processo que correu termos com o nº 4352/18.8T8GMR, do Guimarães - Juízo de Comércio - Juiz 1, para se ver qual foi a intenção das partes na modificação do artº 4º, nº 2 do pacto social em que todos os sócios passam e ter poderes especiais de gerência.
jj. Deveria ter sido proferido despacho que mandasse prosseguir para julgamento a fim de apurar as razões do acordo e se efetivamente as partes quiseram ou não dar um especial direito à gerência.
kk. Além disso o Tribunal a quo não se pronunciou sobre as outras questões que lhe foram colocadas para decidir nomeadamente quanto ao alegado abuso do direito e fraude a lei.
ll. Alegou a Recorrida que não seria possível sindicar a validade da deliberação destitutiva de gerente sem justa causa através do instituto do abuso do direito.
mm. Se houver justa causa para a destituição, estará afastado o abuso deliberativo, essa junta causa está devidamente alegada na deliberação impugnada. conforme consta da ata junta aos autos como doc 3, quando aí se diz: “A representante do sócio J. M., M. F., referiu que a próxima gerência deve ser ativa e respeitar o que a Assembleia Geral decidir tendo em conta que a atual gerência não cumpriu uma das decisões da assembleia geral, propondo que seja nomeada nova gerência.”
nn. Tal resultava da recusa da recorrida. em dar cumprimento a decisão anterior tomada em assembleia geral em que foi decidido a restituição de suprimentos aos sócios, decisão aprovada por maioria de 75% do capital da sociedade, mas que a Recorrida. se recusava a cumprir, não assinando os respetivos cheques;
oo. Conforme aliás já tinha sido objeto de descontentamento por parte da sócia M. J., facto esse que ficou vertido na ata de assembleia nº 52 e realizada em 4 de janeiro de 2020 Junta aos autos; (Doc. 1)
pp. Nessa ata a sócia M. J. se referia à gerência exercida pela A. da seguinte forma:
“Tomou a palavra a sócia M. J. que manifestou o seu descontentamento relativamente à gerência exercida pela gerente M. O., nomeadamente quanto ás dificuldades que cria em todos os assuntos, que não tenham o seu acordo, recusando-se a assinar cheques para pagamentos urgentes e necessários, assim como cheques decididos já em Assembleia Geral, o que vai contra a vontade dos restantes sócios, aproveitando-se do seu direito especial a ser gerente. -----------------
Desta forma propõe desde já que se marque uma assembleia geral no sentido de alterar tal disposição do pacto social. --------------------
Mais considera que a gestão que foi feita pela sócia gerente M. O. foi uma gestão danosa para a sociedade, nomeadamente quanto aos processos da venda da quinta do …, com a necessidade de recurso a tribunal e todos os custos que isso veio e ainda poderá vir a trazer à sociedade e os consequentes processos junto da AT e todos os custos associados com advogados e custas judiciais. -------------------------
Além disso considera que o exercício da gerência é prepotente e déspota.”
qq. Ao contrário do que é alegado pela Recorrida havia mais do que justa causa para a destituição da gerência e nomeação de nova gerência, sem que a mesma fizesse parte dela.
rr. No entanto, não existe o abuso do direito na deliberação em causa por não ter sido alegado pela Recorrida. qualquer prejuízo concreto para a sociedade ou para a sócia que a não votaram, nomeadamente para os sócios-gerentes destituídos.
ss. Atenta a factualidade carreada para a ação, para além de alguns juízos de valor e proclamações conclusivas, não se vislumbra a invocação de matéria que consubstancie um qualquer prejuízo para a sociedade ou para os sócios não votantes.
tt. O prejuízo que a lei tem em vista para este efeito não pode subsumir-se à perda da remuneração ou outras regalias de gerência, dado que aqui o dano a ressarcir será sempre do gerente mas não do sócio.
uu. Nada há que possa ser apontada ás decisões tomadas por maioria qualificada da sociedade na ata posta em causa;
vv. Não tendo havido qualquer violação de normas legais, não há qualquer anulabilidade, devendo as decisões manter-se, devendo o douto tribunal em sentença ter declarada a improcedência da ação.
ww. Não existe qualquer anulabilidade, nem nenhuma das alegações da Recorrida. até porque o registo das alterações da ata foram devidamente registadas, sem qualquer problema junto da conservatória do registo comercial, que, se tivesse detetado qualquer ilegalidade teria certamente recusado o registo.
xx. O Tribunal a quo decidiu aplicar doutrina em contrário da jurisprudência maioritária sobre a questão a decidir, não tratando de apurar a questão de saber as razões porque todos os sócios tinham direito especial à gerência, razões essa que se mostram essenciais para a boa aplicação do Direito e boa decisão da causa.
yy. Fez assim o Tribunal a quo errada apreciação dos artºs 24.º, e 257.º do CSC, assim como dos artºs 236.º, 138.º, 338.º do CC e 615.º, alínea d) do CPC.
zz. A douta decisão recorrida deve ser revogada e substituída por outra que improcedente a ação na sua totalidade,
aaa. Caso assim se não entenda deve ser proferido despacho saneador no sentido de apurar, em julgamento, quais as razões que levaram os sócios a estabelecer o direito especial à gerência de todos os sócios no acordo da ação que correu termos com o nº 4352/18.8T8GMR, do Guimarães - Juízo de Comércio - Juiz 1, devendo assim ser marcado julgamento.
Foram apresentadas contra-alegações pugnando pela manutenção do decidido.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.

As questões a decidir são, assim:

- apurar se a designação dos sócios (todos) como gerentes, incluindo a recorrida, consubstancia a atribuição de um direito especial de gerência;
- apurar se é possível a alteração de cláusula do pacto social (apurando a montante se o mesmo atribuiu direito especial à gerência) sem consentimento da recorrida;
- apurar se é possível a destituição da recorrida como gerente;
- apurar a consequência jurídica de deliberação tomada sem o consentimento referido no artº 24º, nº5, do Código das Sociedades Comerciais;
- apurar se fica prejudicado o conhecimento de demais questões, nos termos do artº 608º, nº2, do CPC, ex vi artº 663º, nº2, do mesmo diploma.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:

São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:
A. A A. é titular de uma quota de valor nominal de 15.000,00 (quinze mil euros), representativa de 25% do capital social da sociedade X – COMÉRCIO, IMOBILIÁRIA, TRANSPORTES E CONSTRUÇÕES, LDA.
B. Por carta registada com aviso de receção, datada de 10 de fevereiro de 2020, e oportunamente rececionada, foi a A. convocada para a “Assembleia Geral Extraordinária” a realizar numa de duas datas indicadas, a fim de apreciar e discutir a seguinte ORDEM DE TRABALHOS:
a) Ponto Um: decidir sobre a remuneração dos gerentes;
b) Ponto Dois: alteração do n.º 2 do artigo 4.º do Pacto Social;
c) Ponto Três: destituição e nomeação de gerentes;
d) Ponto Quatro: outros assuntos de interesse para a sociedade.
C. A Assembleia Geral em causa realizou-se no dia 6 de março de 2020, estando presentes todos os sócios da Sociedade R., com exceção do sócio J. M., que se encontrava representado por procuradora.
D. Na supra mencionada Assembleia, a sócia M. J., propôs (tendo por referência o ponto dois da ordem de trabalhos) a eliminação do número 2 do artigo 4.º do Pacto Social da Sociedade que dispunha da seguinte redação:
“2- É atribuído aos sócios, M. O., S. G., M. J. e J. M., o direito especial à gerência”.
E. A sócia M. O., aqui A., votou contra tal proposta.
F. Os restantes sócios votaram a favor.
G. Tal proposta foi considerada aprovada com os votos a favor dos sócios S. G., M. J. e J. M., e com o voto contra da sócia M. O..
H. Passou-se à discussão do ponto três da ordem de trabalhos e a sócia M. J. propôs a destituição da gerência.
I. Proposta que foi aprovada, mais uma vez, com o voto contra da sócia M. O..
J. Consequentemente, a sócia M. J. e o sócio S. G. propuseram-se a exercer a gerência em conjunto.
K. A sócia M. O., aqui A., não se opôs à nomeação daquela gerência, desde que, no uso do seu direito especial à gerência, fizesse parte – também – daquela nova gerência.
L. Em face do exposto, foi colocada à votação a proposta de nomeação para a gerência dos sócios M. J. e S. G., tendo sido a mesma aprovada com o voto contra da sócia M. O..
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B. Fundamentos de direito.

A recorrente começa por se insurgir contra a circunstância de se ter entendido que a recorrida detinha um direito especial à gerência, sendo certo que mesmo que assim se entendesse, não consta expressamente vertido no pacto social o princípio da inderrogabilidade dos direitos especiais.
Menezes Cordeiro (1) refere que “Entre nós, os direitos especiais ocorreram nas sociedades por quotas: tratava-se de prerrogativas atribuídas, nos estatutos, a algum ou alguns sócios. Pôs-se o problema de saber se podiam ser suprimidos mediante uma alteração maioritária dos estatutos ou se, pelo contrário, se deveria exigir o consentimento do próprio interessado.
A questão foi resolvida por assento de 26 de maio de 1961: Para alteração dos direitos especiais de um sócio, concedidos no pacto de uma sociedade por quotas, não basta a maioria referida no artigo 41º da Lei de 11 de abril de 1901, sendo ainda indispensável o consentimento do respetivo sócio.
O Código das Sociedades Comerciais acolheu a orientação do assento, logo no projeto, generalizando-a e adaptando-a aos diversos tipos de sociedades.

O artigo 24º do Código das Sociedades Comerciais refere-se expressamente aos direitos especiais:

Artigo 24.º
(Direitos especiais)
1 - Só por estipulação no contrato de sociedade podem ser criados direitos especiais de algum sócio.
2 - Nas sociedades em nome colectivo, os direitos especiais atribuídos a sócios são intransmissíveis, salvo estipulação em contrário.
3 - Nas sociedades por quotas, e salvo estipulação em contrário, os direitos especiais de natureza patrimonial são transmissíveis com a quota respectiva, sendo intransmissíveis os restantes direitos.
4 - Nas sociedades anónimas, os direitos especiais só podem ser atribuídos a categorias de acções e transmitem-se com estas.
5 - Os direitos especiais não podem ser suprimidos ou coarctados sem o consentimento do respectivo titular, salvo regra legal ou estipulação contratual expressa em contrário.
6 - Nas sociedades anónimas, o consentimento referido no número anterior é dado por deliberação tomada em assembleia especial dos accionistas titulares de acções da respectiva categoria.

Ensina o mesmo autor que “Os direitos especiais caracterizam-se por:
a) traduzirem prerrogativas ou privilégios que não equivalem ao regime geral;
b) resultarem, necessariamente, dos estatutos (24º, nº1);
c) não poderem ser coartados ou limitados sem o consentimento do próprio, salvo especial permissão legal ou estatutária (24º, nº5)

A especialidade deriva da diferenciação perante o regime geral e não da sua singularidade. Por isso, não há obstáculo, em certos casos, a que todos os sócios sejam beneficiários destes direitos: não se perdem os seus traços característicos, desde que se continue a aplicar o regime especial. Não se esqueça, todavia, que nas sociedades anónimas, por imposição legal, os direitos especiais só podem ser atribuídos a categorias de ações.
Na prática, os direitos especiais não vêm referidos com essa qualidade e de modo explícito nos estatutos. Concluir por esta qualificação será sempre o resultado da interpretação do contrato de sociedade: não basta a atribuição de um direito, é necessário que seja especial, isto é, que lhe sejam aplicáveis as limitações legais à sua supressão ou coartação (24º, nº5). Visam acautelar os interesses dos beneficiários perante outros sócios e a sociedade.
Como concretizações práticas destes direitos especiais podem ser indicados, entre outros, o direito de vincular a sociedade por quotas apenas com a assinatura do titular; o direito de exercer uma atividade concorrente com a da sociedade; o direito de dividir ou alienar a sua quota sem as autorizações exigidas aos demais sócios; o direito de alienar quotas sem sujeição à preferência dos demais; o direito à gerência, altura em que a destituição só é possível com justa causa e por via judicial.
Ainda a propósito da supressão de direitos referida no artº 24º, nº5, do Código das Sociedades Comerciais, o mesmo autor (2) refere que o conceito de supressão ou coartação deve ser interpretado de forma ampla, abrangendo prejuízos diretos e indiretos. É aplicável o artigo 24º, nº5, a qualquer decisão da assembleia geral que inutilize, anule, comprima, altere ou ofenda estes direitos. Não é relevante que formalmente o direito permaneça intocado se materialmente foi afetado: há que considerar a materialidade subjacente.
O artº 4º, nº2, do pacto social da recorrida estabelecia que “É atribuído aos sócios, M. O., S. G., M. J. e J. M., o direito especial à gerência” (sublinhado nosso).
A sentença recorrida fez uma análise cuidada das diversas posições doutrinais sobre a possibilidade de os direitos especiais poderem ou não ser atribuídos a todos os sócios, exposição que se acompanha.
Ora, e como referem Soveral Martins e Ricardo Costa (3), se é certo que “não se pode falar na existência de um direito especial à gerência pelo simples facto de os sócios serem designados gerentes no contrato de sociedade”, face a tal redação expressa do artº 4º, nº2, do pacto social (direito especial à gerência), que de acordo com a versão da própria recorrente terá surgido na sequência de transação judicial, onde as partes estão representadas por advogado, não podendo invocar desconhecimento da lei (artº 6º do Código Civil), não temos dúvida (artº 236º, nº1, do mesmo Código Civil) de que foi intenção das partes estabelecer tal direito especial. Daí que se concorde inteiramente com a interpretação feita pelo tribunal recorrido, não havendo que indagar, como defende a recorrente, qual foi a intenção das partes na modificação do artigo 4º, nº2, do pacto social (alínea ii das conclusões de recurso).
Como bem refere a sentença recorrida, aliás muito bem fundamentada, “a vida das sociedades não é estática, mas sujeita a diversas alterações ao longo do tempo. A qualquer momento, as quotas da sociedade ré podem ser transmitidas. E aí sobressairá a natureza especial do direito à gerência concedido, porquanto os novos sócios não terão direito à gerência só por serem sócios, a qual permanecerá atribuída aos que estão nomeados na disposição estatutária e que mantiverem essa posição.
Dai que a nossa posição coincida com a sufragada pelo tribunal recorrido, entendendo-se, não só, que nas sociedades por quotas os direitos especiais de gerência podem ser atribuídos a todos os sócios, como também que no caso em análise foi intenção expressa das partes atribuir tal direito especial à gerência.
Carece igualmente de sentido a alegação de que não está expressamente vertido no pacto social o princípio da inderrogabilidade dos direitos especiais, consagração que seria necessária. O disposto no artº 24º, nº5, do Código das Sociedades Comerciais estatui precisamente o contrário: tais direitos só podem ser suprimidos ou coartados com autorização expressa do respetivo titular, salvo regra legal ou estipulação contratual em contrário. Ou seja, se esta última existisse é que poderia haver derrogação do direito especial.
Por força de tal direito especial à gerência, “admite-se, no entanto, que por deliberação tomada por maioria, possam os sócios requerer judicialmente a suspensão ou destituição do gerente, se para tanto houver justa causa.” (4)
Aliás, tal regime resulta expressamente do disposto no artº 257º, nº3, do Código das Sociedades Comerciais, nos termos do qual “A cláusula do contrato de sociedade que atribui a um sócio um direito especial à gerência não pode alterada sem consentimento do mesmo sócio. Podem, todavia, os sócios deliberar que a sociedade requeira a suspensão e destituição judicial do gerente por justa causa e designar para tanto um representante especial.
Dos pontos da ordem de trabalhos não consta a destituição da aqui recorrida por justa causa.
Sem embargo do exposto, não se verifica a alegada omissão de pronúncia (alínea kk das conclusões) quanto ao alegado abuso de direito e fraude à lei. Tendo-se reconhecido a existência de um direito especial à gerência e demonstrada a impossibilidade de destituição de gerente sem justa causa, não havia que tecer considerações adicionais, sendo aliás certo que sempre tal destituição teria de ser decidida pelo tribunal (artº 257º, nº4 do CSC) e não em assembleia geral.
Com efeito, por força da linha de raciocínio seguida pelo tribunal, e face ao disposto nos artigos 608º, nº2, do CPC, ex vi artº 663º, nº2 do mesmo diploma, o conhecimento de tais questões ficou prejudicado.
Apenas se discorda do tribunal recorrido quanto à conclusão que extraiu quanto ao tipo de invalidade. Com efeito, entendemos que a consequência jurídica a retirar, face ao supra exposto, é a da ineficácia das deliberações aqui postas em crise, com relação a todos os sócios, e não a simples anulabilidade das mesmas (há também quem defenda a nulidade das deliberações (5)).
Não sendo prestado o consentimento exigido no artº 24º, nº5, a deliberação é ineficaz, nos termos do 55º. A ineficácia é absoluta e pendente, na medida em que afeta todos os sócios, mas pode cessar mediante o acordo posterior dos interessados. Qualquer outra sanção não providenciaria tutela adequada aos sócios afetados. Assim, v.g., defender a anulabilidade por violação do contrato de sociedade (artº 58º, nº1, a), in fine) implicaria que a deliberação produzisse efeitos até ser efetivamente aplicada a sanção, recaindo sobre o sócio titular do direito especial ilegalmente afetado o ónus de defender a sua posição através da impugnação das deliberações sociais, por via de ações judiciais propostas no prazo de 30 dias, sob pena de convalidação da invalidade da deliberação. Para mais, a especialidade da norma do 55º face à do 58º confirma a sanção aplicável a estas situações.
Assim, uma deliberação que suprima, coarte ou, em termos mais amplos, desrespeite, ainda que pontualmente, um direito especial de um sócio será ineficaz enquanto este não manifestar o seu consentimento (6).
Soveral Martins e Ricardo Costa (7) defendem que “uma deliberação dos sócios que suprima ou limite um direito especial de um sócio sem o respetivo consentimento deste será uma deliberação ineficaz em relação a todos os sócios: mesmo em relação aos que deram o consentimento. É isso que resulta do artº 55º do CSC, tendo em conta o artº 24º, nº5.
Concordamos com tal entendimento, que dentro da desejável coerência e uniformidade decisória sufragamos.
Improcedem, assim, as alegações de recurso, improcedendo este, mas altera-se a consequência jurídica quanto às deliberações postas em crise, quanto ao tipo de invalidade, concluindo-se pela respetiva ineficácia.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto; mais se julgam ineficazes as deliberações sociais relativas aos pontos dois e três da ordem de trabalhos da Assembleia Geral realizada a 6 de março de 2020.
Custas pelo recorrente.
Notifique.
Guimarães, 2 de junho de 2022.

Relator - Fernando Barroso Cabanelas;
1.ª Adjunta – Maria Eugénia Pedro;
2.º Adjunto – Pedro Maurício.


1. Código das Sociedades Comerciais Anotado, 4ª edição, Almedina, páginas 200-201.
2. Op. cit., página 203.
3. Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume I, 2ª edição, pág. 429.
4. Menezes Cordeiro, op. cit, pág. 906.
5. Coutinho de Abreu, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. IV, pág. 131.
6. Menezes Cordeiro, op. cit, pág. 204.
7. Op. cit, pág. 439.