Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
281/19.6T8PRG.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
PRESUNÇÃO DE POSSE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A posse exige, a par do exercício ou possibilidade de exercer um domínio concreto sobre a coisa (o “corpus” consubstanciado na relacionação da pessoa com a coisa), também o “animus”, que se traduz na intenção de agir como o beneficiário do direito, como decorre dos artigos 1251º e 1253º do Código Civil.

2. O artigo 1252º nº 2 do Código Civil determina que em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º, isto é, sem prejuízo se presumir que a posse continua em nome de quem a começou. O mesmo é dizer:

3. A posse não se presume naquele que a não tenha iniciado, de forma originária.

4. Se a utilização da coisa ocorre sob a alçada de uma mera tolerância de quem é o seu possuidor, só a inversão do título da posse poderá conduzir ao animus possidendi, o que precisa de ser bem invocado e caracterizado em factos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Apelante e Requerente: MUNICÍPIO DE ..., com sede na Rua …, na vila de ...,

Apelados e Requeridos: A. C. e mulher, A. G., residentes no lugar ..., freguesia de ..., dito concelho de ....

Autos de apelação (em incidente de oposição em processo de procedimento cautelar especificado de restituição provisória de posse)

I. Relatório

--- O Requerente deduziu o presente procedimento cautelar peticionando que, sem audiência dos Requeridos, se ordene a restituição ao Requerente da posse do caminho que identifica, mediante a remoção do cadeado por aqueles colocado e a sua intimação para não impedirem ou, por qualquer meio, limitarem o livre trânsito pelo mesmo caminho para acesso ao rio ..., como sempre (há mais de 10 anos) vinha acontecendo, tanto a pé, como com veículos automóveis.

Alegou para tanto, em síntese, que desde há mais de 10/11 anos, continuada e ininterruptamente, após contactos e negociações com os Requeridos, que chegaram a bom termo, tem sido utilizado um caminho, pavimentado pelo Requerente, sem a menor oposição ou contestação, nomeadamente, dos Requeridos. Em finais do mês de junho de 2019, os Requeridos vedaram a utilização do referido caminho em mais de metade da sua extensão, até ao rio.
Após produção de prova, foi proferida decisão pela qual se deferiu a requerida providência cautelar e se ordenou a restituição provisória da posse ao requerente sobre o caminho, mediante a remoção do cadeado colocado pelos Requeridos, ficando-lhes vedado que impeçam ou, por qualquer meio, limitem o livre trânsito pelo mesmo caminho para acesso ao rio ..., tanto a pé, como com veículos automóveis.
Os Requeridos deduziram oposição, impugnando o esbulho e afirmando que foi celebrado contrato de comodato, o qual foi denunciado, tendo exigido a restituição do imóvel.
Produzida prova, foi proferida decisão, julgando procedente a oposição deduzida e revogando a providência de restituição provisória da posse antes decretada.

É desta decisão que a embargante apela, apresentando as seguintes
conclusões

1. A Sra. Juiz recorrida decidiu revogar a providência apenas com base no facto de os Requeridos terem endereçado uma carta ao Presidente do órgão executivo (Câmara Municipal) do requerente, denunciando uma alegada cedência temporária e requerendo a sua entrega. A nosso ver, essa interpelação nunca podia ter o efeito que lhe foi atribuído, principalmente sem o requerente ter oportunidade de se pronunciar quanto à mesma.
2. Tendo assim decidido por ter enquadrado a situação em causa num contrato de comodato, parece-nos que também esse entendimento não foi correto, desde logo porque a factualidade provada não quadra com a noção legal desse contrato. Enquanto o comodato se traduz na entrega de uma coisa a outrém para dela se servir e, depois, restituir, nada disso se passou no caso presente. Os Requeridos não cederam a utilização da parcela de terreno do seu prédio, mas cederam a própria parcela para integrar um caminho público de acesso a um rio.
3. Essa cedência só podia entender-se e considerar-se como definitiva, tanto porque a parcela de terreno seu objecto foi transformada (desmatação do respectivo espaço, remoção de entulhos, nivelamento de terras e pavimentação em calçada) precisamente para integrar o caminho público de acesso ao rio.
4. Tal factualidade só é compatível com uma cedência definitiva, a não ser que se considere normal ou, sequer, possível que o requerente aceitasse uma cedência temporária, maxime sem a estipulação de um prazo mínimo ou até à verificação de determinada ocorrência, assim ficando sujeito a ter de restituir a parcela de terreno a qualquer momento, nomeadamente após escassos meses ou até dias, para mais depois de nela já ter introduzido tão relevantes e dispendiosas transformações.
5. Além disso, tanto numa situação normal como, por maioria de razão, na do caso presente em que tudo aponta para não se estar perante um caso desses, o Tribunal só podia concluir ter-se tratado de uma cedência temporária com base na alegação e prova da correspondente factualidade por parte dos Requeridos.
Ora, apesar de o terem alegado, o certo é que os Requeridos nada demonstraram a tal propósito.

Por isso, não podia concluir-se senão ter sido uma cedência definitiva.

6. Acresce que dos depoimentos das duas testemunhas inquiridas e arroladas pelo requerente resulta claramente ter-se tratado de uma cedência definitiva.
Assim sucedendo com o depoimento da testemunha R. S., quando referiu "tudo aconteceu por se ter pensado em abrir um acesso que fosse lá uma viatura para ficar mais perto do rio (v.min. 2.10), que quando foi para planear o traçado do caminho a requerida-mulher, depois de ter dito ser complicado pelo meio dos patamares acabou por dizer que cedia um patamar dos do fundo e que a Sra. cedeu o patamar e abriu-se o caminho" (v.min. 3.08).
Tendo acrescentado, com inequívoco significado no sentido de ter sido uma cedência definitiva, que durante um ano ou dois o caminho ficou em terra e só depois é que foi calcetado mesmo até ao rio (v.min. 7.37)
O mesmo decorre, ainda mais claramente, do depoimento da outra testemunha, J. L., quando começou por referir que falaram com a requerida-mulher no sentido de "ceder, pagando" uma parcela de terreno para alargar um caminho público de acesso ao rio (v.min. 2.07).
Tendo acrescentado que o traçado inicialmente proposto por eles, testemunha, como Presidente da Junta não mereceu a concordância da requerida-mulher, tendo então concordado, em vez de alargar o caminho antigo, fazer um acesso novo que era mais conveniente para ela (v.min. 4.49), com a cedência da tal parcela de terreno.
Confirmando que só mais tarde foi pavimentado (v.min. 6.03). E, a instâncias da Sra Juiz, foi peremptório e assertivo na afirmação de que não foi por anos; era indefinido, era uma melhoria (v.min. 11.06) e confirmando também ter ficado assente que era para sempre (v.min. 11.52).
7. Além disso, a nosso ver, independentemente do respectivo título, tendo sido provada a posse legítima do requerente, tinha que se manter a providência decretada pois, como tem sido entendimento praticamente unânime, tanto na doutrina como na jurisprudência, basta que a posse seja de duração superior a um ano, para merecer protecção legal, nomeadamente para ser restituída, ainda que provisoriamente, a quem dela tiver sido privado por meios violentos, só depois, na acção definitiva, havendo lugar à discussão sobre se a mesma (posse) é ou não legitima.
8. Ora, no caso presente, manteve-se inalterada toda a factualidade alegada pelo requerente integradora da sua posse, há mais de 10/11 anos, continuada e ininterruptamente, sem qualquer oposição ou, sequer, contestação de alguém, nomeadamente dos Requeridos, não podia deixar de se manter a restituição decretada. 9. Aliás, entendemos mesmo que, face ao teor da oposição dos Requeridos e por nela não se conter factualidade susceptível de por em causa a posse do requerente, essa oposição devia ter sido liminarmente indeferida.
10. Assim não se tendo entendido e decidido e ao decretar-se o levantamento da providência, estamos certos não ter sido feita a melhor e mais correcta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, nomeadamente dos arts. 342º, 1129º, 1278º e 1279º do C. Civil, pelo que
No provimento do presente recurso, deve revogar-se o despacho recorrido e, em sua substituição, ser proferido outro que julgue improcedente a oposição deduzida pelos Requeridos e mantenha a decretada restituição provisória de posse

Os Requeridos apresentaram resposta, com as seguintes
conclusões

1. A ora Recorrente não sofreu quaisquer prejuízos sérios, considerando que o caminho não era utilizado pela generalidade das pessoas para acesso ao Rio, para no tempo de calor, tomarem banho, nem tão pouco para a realização de atividades, convívios, passeios de barco, nem como local de pesca.
2. Pelo contrário, com a reabertura do caminho, os Recorridos sofrerão avultados prejuízos, tendo em conta o projeto de turismo Rural, o qual se encontra em fase de aprovação.
C. Caso assim não se entenda, a aplicação de uma caução, nunca poderá ser inferior a €4.000,00.
D. A decisão sob a qual a ora Requerente pretende agora recorrer, já foi objeto de sentença anterior, tendo transitado em julgado,
E. Sendo por isso, neste momento, irrecorrível.
F. De facto, a decisão quanto à qualificação jurídica do negócio que uniu as partes foi tomada pela sentença proferida em 26/09/2019, tendo o tribunal a quo entendido que se deram como “(...) provados os alegados actos de detenção legítima ao abrigo de um contrato de comodato celebrado entre os Requeridos e o requerente, nos termos do disposto no artigo 1129.º do Código Civil, não tendo sido estipulado prazo certo para a duração da cedência, não tendo findado o uso para que a cedência se destinava (...)” - sendo que tanto os Requeridos como a Requerente se conformaram com esta decisão, não tendo a mesma sido objeto de qualquer discussão ulterior nos autos!
G. Não obstante a decisão em causa ter atendido à pretensão da Recorrente com o decretamento do procedimento cautelar requerido, a fundamentação utilizada baseou-se na existência de um contrato de comodato entre as partes - ora, se a Requerente entendia que tal qualificação jurídica lhe era desfavorável, poderia ter reagido no momento oportuno, tendo legitimidade e interesse em agir para o efeito!

Sem prescindir e por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que,

H. Em qualquer caso, em momento algum alegou a aqui Requerente que a cedência do terreno havia sido a título definitivo, pelo que só poderia o tribunal a quo entender que a cedência havia sido a título temporário, o que de resto resulta da prova produzida nos autos.
I. A Recorrente contesta que a cedência tenha sido temporária e defende que tal cedência foi a título definitivo, não se compreendendo, contudo, qual o negócio jurídico que tal cedência a título definitivo consubstanciaria!
J. Na verdade, a ora Recorrente não alega nenhum facto que coloque em crise a qualificação do negócio jurídico como contrato de comodato.
K. Em suma, não existiu cedência a título definitivo, tratando-se de um conceito juridicamente inexistente e sem enquadramento legal.
L. Ainda que se admitisse que ocorrera uma cedência definitiva (o que não se concede!), juridicamente tal cedência consubstanciaria uma doação, sendo que tal negócio seria nulo, na medida em que não foi celebrada escritura pública!
M. Em suma, não houve uma cedência definitiva - foi sim celebrado um comodato, o qual cessou com a comunicação dos Requeridos aos Requerentes, conforme ficou provado nos presentes autos.
N. Não tem razão a recorrente quando alega que “independentemente do respetivo título, tendo sido provada a posse legítima do requerente, tinha que se manter a providência decretada”, uma vez que a posse da ora recorrente à data da decisão ora recorrida era ilegítima!
O. Por fim, resulta suficientemente provado dos autos que em momento algum o referido rio serviu para o abastecimento de água das associações humanitárias de Bombeiros Voluntários de ..., em particular tal resulta claro da declaração junta por requerimento aos presentes autos de 26 de novembro de 2019, na qual o Major V. C., refere o seguinte: “(...) nunca foi utilizado para qualquer serviço efetuado pelo nosso Corpo de Bombeiros”, pelo que deverá ser dado como não provado o facto constante do ponto 19 da matéria provada.

II. Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou sejam de conhecimento oficioso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.
Cumpre ainda esclarecer que, apesar de nas suas conclusões o Recorrente remeter para o depoimento de testemunhas, não faz em concreto qualquer impugnação da matéria de facto provada e não provada, mas da sua análise, não pedindo que o elenco dos factos seja alterado, nem indicando em concreto a alteração que pretenderia, recorrendo tão só a tais elementos de prova no sentido de auxiliar na classificação da situação em sede de direito, o que infra se analisará.

Face ao teor das conclusões importa verificar:

1 – se se verificam os pressupostos para a restituição provisória de posse (enquadrando-se a situação no âmbito de uma “cedência definitiva” da parcela)

III. Fundamentação de Facto

A decisão vem com a seguinte matéria de facto provada e não provada:

a). Consideraram-se provados os seguintes factos:
1. O rio ..., afluente do Douro, passa entre as freguesias de ... e ....
2. Em determinado ponto do seu percurso, entre essas duas freguesias, no lugar ..., o referido curso de água tem condições propícias à realização de lavagens (nomeadamente roupas e outros produtos), assim como para banhos na época estival.
3. Precisamente para acesso ao rio, essencialmente para essas utilizações, sempre (desde tempos imemoriais) houve do lado da freguesia de ... um caminho pedonal a partir do caminho público que liga essas duas freguesias.
4. Mas esse caminho era de acentuado declive e reduzidas dimensões.
5. Por isso, há mais de 12 anos começou a sentir-se um desejo da generalidade da população de se criar no mesmo lugar um caminho que permitisse aceder ao rio de forma mais fácil e cómoda e, se possível, com veículos automóveis.
6. Sentindo esse anseio da população, os responsáveis de então da Junta de Freguesia de ... dele deram conhecimento ao requerente.
7. Que o acolheu e se propôs concretizá-lo.
8. Constando que o terreno por onde mais de metade do caminho teria que ser aberto até ao rio pertencia aos Requeridos, com eles foram imediatamente encetados contactos e negociações para abertura do dito caminho.
9. Como esses contactos e negociações chegaram a bom termo, o caminho acabou mesmo por ser construído e custeado pelo requerente.
10. Após o rompimento (desmatação, remoção de entulho e nivelamento de terras) o respetivo chão foi pavimentado em pedras, género calçada.
11. Assim aberto, o pavimento ficou com uma largura de, aproximadamente, três metros.
12. Foi o requerente quem, desde a sua abertura e construção, sempre tratou ou sempre assegurou a sua limpeza, conservação e manutenção.
13. E assegurando a possibilidade de o caminho em questão ser usado pela generalidade das pessoas para acesso ao rio.
14. Como sempre vinha acontecendo.
15. Principalmente no tempo de calor, para nele tomarem banho.
16. Para passeios com barcos e caiaques.
17. Como local de pesca.
18. Ainda como local de realização de convívios.
19. Assim como para abastecimento de água das associações humanitárias de Bombeiros Voluntários do concelho de ....
20. Tudo isso acontecendo desde há mais de 10/11 anos, continuada e ininterruptamente, sem a menor oposição ou, sequer, contestação de quem quer, nomeadamente, dos Requeridos.
21. Em finais do mês de junho do corrente ano, os Requeridos vedaram a utilização do referido caminho em mais de metade da sua extensão, até ao rio, colocando um cadeado suportado em pilares de pedra (granito) com uma placa a meio e com a inscrição nessa placa "propriedade privada".
22. Não sem antes, na parte do caminho vedado, terem retirado a respetiva pavimentação.
23. Em dezembro de 2017, a requerida interpelou verbalmente o Presidente da Câmara de Municipal de ... para pedir a restituição da parcela de terreno cedida.
24. Por carta datada de 28 de outubro de 2019 dirigida ao Presidente da Câmara de ..., os Requeridos requereram a entrega da parcela de terreno cedida, com efeitos a partir daquela mesma data.
b). Consideraram-se por provar os seguintes factos:
A. A vedação do caminho pelos Requeridos aconteceu sem que nada o justificasse ou fizesse prever, nem tendo dado conta de qualquer propósito nesse sentido.

IV. Fundamentação de Direito

O artigo 377º do Código de Processo Civil estabelece que "no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência".
Em consonância, o artigo 1279º do Código Civil dispõe que "o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador".
De onde resulta que o requerente da providência cautelar tem que alegar que era possuidor ou detentor com tutela possessória de um determinado bem e que foi dele privado através de um esbulho praticado com violência, o que é seu ónus demonstrar, mas tendo em conta que, atenta a natureza provisória que esta providência concede (artigo 368º nº 1 do Código de Processo Civil) o seu deferimento está subordinado à prova sumária do direito (posse ou detenção com tutela possessória).
Deste modo, os requisitos de que depende a procedência do pedido de restituição provisória da posse são: a posse, o esbulho e a violência.

Da posse ou direito real de gozo como pressuposto desta providência

O artigo 1251º do Código Civil define a posse como o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao direito de propriedade ou de outro direito real. Adquirida a posse, mesmo que não sejam exercidos atos materiais sobre a coisa, a mesma mantém-se enquanto o possuidor tiver a possibilidade de a exercer, como decorre do artigo 1257º n.º 1 do Código Civil.
Por este motivo, pode-se afirmar que o corpus, mais do que traduzir-se no exercício de poderes de facto sobre a coisa é um conceito normativo que exprime o poder de controlar, que pode ser exercido pelo próprio ou por outrem.

No entanto, apesar de ser discutido, como é sabido, tem sido jurisprudência maioritária, com que se concorda, aceitar que a posse exige, a par do exercício ou possibilidade de exercer tal domínio concreto sobre a coisa, também a intenção de o fazer com referência a determinado direito real, de forma a ser possível diferenciá-la da mera detenção. Destarte, aquele que exerce o poder de facto sobre uma coisa com a convicção de agir como beneficiário do direito tem a posse dessa coisa – artigos 1251º e 1253º do Código Civil, encontrando-se nesta categoria jurídica duas vertentes: o “corpus” consubstanciado na relacionação da pessoa com a coisa, traduzida normalmente em atos materiais e o “animus”, que se traduz na intenção de agir como o beneficiário do direito (por recente e em demonstração do afirmado, quanto à já pacificidade deste entendimento na jurisprudência, cf o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 12/10/2019 no processo 1808/03.0TBLLE.E1.S1, sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano).

Embora se presuma, em caso de dúvida, a posse naquele que exerce o poder de facto (artigo 1252º nº 2 do Código Civil), há que ter em atenção que também se presume que a posse continua em nome de quem a começou (artigo 1257º nº 2 do Código Civil).
No entanto, também a detenção exercida por alguns possuidores em nome alheio beneficia deste meio de defesa da posse, realçando-se o locatário, o comodatário, o depositário e o parceiro pensador, como decorre dos artigos (artigos 1037º, nº 2, 1133º nº 2, 1188º nº 2 e 1125º nº 2, todos do Código Civil).
Como se viu, a diferença entre uma e outra depende do “animus” que acompanha a tradição ou surge depois dele, sendo certo que só por si a tradição não confere posse verdadeira.
Se a utilização da coisa ocorre sob a alçada de uma mera tolerância de quem é o seu possuidor, só a inversão do título da posse poderá conduzir ao “animus possidendi”, o que, claro, precisa de ser bem invocado e caracterizado em factos.
Tudo isto tem que ser devidamente alegado para se apurar o “animus” que é elemento decisivo.
É certo que no exposto não é possível esquecer o disposto no artigo 1255º nº 2 do Código Civil, nem o Acórdão com força uniformizadora que sobre ele incidiu (de 05/14/1996, no processo com com o nº 085204 publicado no D.R. nº. 144/96 – II Série, de 24/06/1996).
Esta norma determina que em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 1257.º, isto é, sem prejuízo se presumir que a posse continua em nome de quem a começou. O mesmo é dizer, que a posse se não presume naquele que a não tenha iniciado, por ter sido outrem que a começou, porque então é neste que a mesma se presume.
Desde que se prescindiu, para a manutenção da posse, de actos efectivos de actuação sobre a coisa, correspondentes ao corpus da posse, por se entender que a prática pode não os exigir do possuidor, tal como nem sempre os exige do verdadeiro titular do direito sobre a coisa, não podia o legislador deixar de admitir, em qualquer caso, a presunção da continuidade da posse por parte de quem a começou".( Pires de Lima e Antunes Varela, “ Código Civil Anotado", vol. III, 2ª edição revista, 1987, pág 16).
Tem-se por posse originária aquela que foi obtida unilateralmente, sem transmissão operada por outrem, sem recurso a vínculos com o anterior possuidor, como a ocupação e a apropriação.
Em consequência, “enquanto na aquisição originária da posse o corpus faz presumir o animus, o mesmo já não acontece na aquisição derivada da posse, tanto quanto é certo que o artigo 1255º prescinde da existência do corpus nos casos em que ocorre a sucessão em posse anterior (basta a mera possibilidade de continuar a praticar os actos correspondentes - art. 1257º, nº 1”). Cf acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/28/2002, no processo 01B1466.
Diversamente carecem de legitimidade para requerer o decretamento desta providência em nome alheio, os que exercem poderes de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito e os que aproveitam da mera tolerância do titular do direito…” Afirma Marco Carvalho Gonçalves, in providências Cautelares, 3ª edição, o qual continua:“Por via disso, o Requerente deve “caracterizar, de forma tão completa quanto possível os poderes de facto efetivamente exercidos, a par da sua qualificação por referencia ao direito real correspondente, dado que uma mesma situação pode ser conotada com diversos direitos.”

Do esbulho como pressuposto desta providência

Por este, entende-se a privação do exercício da retenção ou da fruição do objeto possuído ou da possibilidade de o continuar a exercer (cf. Manuel Rodrigues, A Posse, pág. 400)

Da violência como pressuposto desta providência

“É violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída em consequência dos meios usados pelo esbulhador” (acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no processo 1536/17.0T8BJA.E1, em12/07/2017)
Nos termos do disposto no artigo 1261º, n.º 2, do Código Civil, a posse considera-se violenta “quando para obtê-la o possuidor usou de coação física, ou de coação moral nos termos do artigo 255º”. Assim, consolidou-se o entendimento, que também seguimos, que o esbulho ocorre quando a violência é exercida, quer sobre as pessoas, quer sobre as coisas (quando “respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante ou de terceiro”, como decorre do nº2 do artigo 255º do Código Civil), bastando que o ato do esbulhador coaja o possuidor, por criar um impedimento a que este a exerça nos termos em que o fazia anteriormente (cf acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 10/19/2016, no processo 487/14.4T2STC.E2.S1). Com efeito, a criação de um obstáculo de tal forma vigoroso que impeça o possuidor de aceder à coisa como o fazia (nomeadamente sem lhe causar dano ou a sua destruição total ou parcial, o que significaria que o mesmo tivesse de usar da força) contém já em si violência e coerção bastantes que justificam a sua caracterização nos termos que vimos discutindo, devendo, por isso, a posse que foi violada por essa forma ser sujeita à mais fácil defesa que o procedimento cautelar da restituição provisória da posse concede, face a um procedimento cautelar comum, por dispensar a audição prévia do esbulhador. Tem isto como fundamento a ideia no nosso direito que a ação violenta constitui, pelo menos na maioria dos casos, uma conduta reprovável e sempre a evitar (artigo 1º do Código de Processo Civil).
Ficam, por isso, de fora desta proteção todos os casos em que a ação do esbulhador não é passível de ser considerada violenta, por, não obstante os seus efeitos no esbulhado, não ter em si, objetivamente considerada, a capacidade de privar um “bonus pater familiae” do exercício da retenção ou da fruição do objeto possuído ou da possibilidade de o continuar a exercer (sem prejuízo de recurso, verificados os demais requisitos, ao procedimento cautelar comum).
Com tudo o que acabámos de afirmar, há que analisar a situação em apreço, apreciando as questões apresentadas.
Digladiam-se as partes sobre a verificação da posse do Requerente.

- Da existência de uma cedência definitiva; da sua possibilidade de conhecimento

Afirma o Recorrente que não era possível enquadrar a situação num contrato de comodato, visto que tal não resulta da matéria de facto provada, afirmando agora que ocorreu uma cedência definitiva, atentos os atos de transformação que exerceu na parcela.
Como é bem sabido, não tendo invocado este facto no requerimento inicial (mas mera negociação que conduziu ao uso da parcela), não o pode fazer em sede de alegações de recurso: o nosso Código de Processo Civil, que deu maior primazia à estabilidade do objeto da instância, apenas permite, na falta de acordo, que a causa de pedir seja alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor (cf. artigo 265º nº 1), não admitindo que venham a ser conhecidos novas causas de pedir em sede de recurso (exceto se forem de conhecimento oficioso), que não haviam sido apresentadas em sede de articulados. Os recursos são meios de impugnar decisões judiciais, pelo que o tribunal que os vai apreciar não pode conhecer questões que o não foram anteriormente, que não possam ter sido valoradas na decisão recorrida, por não lhe terem sido apresentadas pelas partes no momento devido. Por isso, permite apenas o artigo 665º nº 2 do Código de Processo Civil que o tribunal conheça questões não examinadas na decisão recorrida se estas o não foram, quando ficaram prejudicadas pela solução dada ao litígio.
Esta é uma das consequências do disposto no artigo 608º nº 2 do Código de Processo Civil, conjugado com o princípio da preclusão.
Se se não restringir o objeto dos recursos às questões que se apresentaram e apresentavam ao tribunal a quo, pôr-se-ia em causa a existência de diferentes graus de jurisdição, impedindo que as questões de determinada natureza ou valor a que a lei sujeita a mais que um escrutínio fossem objeto desse crivo.
Os recorridos invocam o caso julgado, mas carecem, no nosso entender, de razão, que mais não fosse, porque a decisão cautelar proferida sem prévia audição do requerido não é definitiva enquanto puder ser alterada, como foi, pela decisão da oposição (artigo 371º nº 1 alínea b) e 3 do Código de Processo Civil, podendo, quando traz novos factos, também trazer diferente direito); o que ocorre é que, por via da preclusão, já não pode o Requerente alegar aquilo que não havia inicialmente feito.

Termos em que não é possível agora dar sustentação à invocada cedência definitiva.

Importa ainda dizer, face ao teor das conclusões do recurso, que o Requerente também pretende que a cedência definitiva seja considerada, na parte referente ao Direito, não com base no dado como provado na sentença, mas no depoimento das testemunhas, que influenciariam diretamente a aplicação das normas jurídicas, sem se alterar a matéria de facto provada e não provada. Ora, não é isso que determina o artigo 607º, nºs 3 e 5, do Código de Processo Civil: estes números separam a fixação dos factos, com base nas provas produzidas, da aplicação do direito aos factos fixados, com base nas normas jurídicas, pelo que não é possível fazê-lo.

- Da alegação e prova dos requisitos da posse, em geral

Vejamos, antes de mais, o que foi invocado no requerimento inicial, momento destinado à alegação dos factos essenciais em que o Autor funda o seu pedido (artigo 552º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil) e que foi, no que aqui nos interessa, integralmente dado como provado.
No requerimento inicial, quanto ás razões e em que termos passou exercer atos materiais de posse sobre a parcela, o Requerente alegou apenas que “Constando que o terreno por onde mais de metade do caminho teria que ser aberto até ao rio pertencia aos requeridos, com eles foram imediatamente encetados contactos e negociações para abertura do dito caminho. Como esses contactos e negociações chegaram a bom termo, o caminho acabou mesmo por ser construído e custeado pelo requerente.”

Tal ficou a constar da matéria de facto provada, nos pontos 8 e 9.

Por seu turno, na oposição os Requeridos afirmam que ocorreu uma cedência temporária: “por contrato verbal gratuito os Requeridos cederam à Requerida uma parcela do prédio em causa para construção do caminho sub judice e para que dela se servisse com a obrigação de a restituir”.

Também são aplicáveis à interpretação da sentença os princípios mencionados no artigo 236º do Código Civil (ex vi artigo 295.º do mesmo diploma), assim como, por afloramento de normas gerais de interpretação o constante no artigo 9º do mesmo diploma.
Enfim, importa, como é bom de ver, o sentido que dessa resulta para um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, mas ainda tendo em conta o contexto em que foi proferida, bem como a intenção do seu autor, caso esta esteja consentida pela letra da declaração e seja percetível para o seu destinatário.
Da matéria de facto, muito curta sobre a questão, além dos referidos contactos e negociações entre as partes que com sucesso levaram à abertura do caminho, apenas se provou que os requeridos interpelaram a Requerente para “a restituição” ou a “entrega” requerida da parcela de terreno cedida.
Compulsado o documento para que remete o ponto 24 da matéria de facto provada, justificada na Motivação com referência ao “documento 4 junto com a oposição”, lê-se “Serve a presente para, na qualidade de mandatário dos Srs. A. C. e A. G., proprietários da parcela de terreno cedida temporariamente para criação de caminho para acesso ao rio ..., no local acima identificado, comunicar a denúncia da mesma, requerendo a entrega da parcela de terreno cedida, com efeitos a partir da presente data”.
Daqui é claro que neste ponto da matéria de facto provada não se pode retirar que se provou ter existido qualquer declaração de cedência definitiva da parcela ao Requerente (visto que nenhuma parte a invocou).
Aliás, tão pouco se deu como provada a existência de qualquer acordo pelo qual os Requerentes tivessem declarado ceder temporariamente a parcela à Requerente, mas tão só a utilização ao discurso indireto para descrever o declarado por escrito pelos Requeridos.
Por outro lado, da fundamentação do direito também resulta que não se pretendeu com a referência à “parcela cedida” dar como demonstrado qualquer contrato ou declaração dos requeridos para com o Requerente ou seu representante no sentido de lhes conceder, de algum modo, de forma definitiva, a possibilidade de utilização.
Logo, no ponto 23 da matéria de facto provada não se pode ver qualquer alusão a uma declaração de cedência definitiva, mas tão só à declaração verbal dos Requeridos, também com recurso ao discurso indireto, no sentido de ter declarado à Requerente que lhe exigia a “restituição da parcela cedida”. O mesmo ocorre ainda mais claramente no ponto 24 da matéria de facto provada, como vimos.
Isto posto, estamos perante uma situação em que o Requerente não invocou o animus que poderia acompanhar os atos materiais que exerceu sobre a parcela, nem tão pouco qualquer direito real de gozo que os fundamentariam, cabendo verificar se face a tais atos materiais se pode presumir a posse.

- Da verificação da presunção da posse

Enfim, a questão se põe é se o Requerente beneficia da presunção de posse que lhe advém da prática de atos materiais sobre a coisa, nos termos do artigo 1252º nº 2 do Código Civil. Dissecámos supra em que termos é que esta poderia operar.
Ora, o Requerente não alegou a posse originária, findada na ocupação ou acessão (nem sequer, na verdade, explana qual o animus que caraterizou toda a sua atuação, tendo até a sentença posto a hipótese de se referir a um comodato, ao abrigo do qual também apreciou o direito).
Da matéria de facto provada referida nos pontos 8 e 9, supra enunciada e que foi por esta alegada, resulta que passou a exercer atos materiais na parcela, porque obteve para tanto o acordo dos Requeridos, visto constar que a parcela lhes pertencia e ter com eles negociações que chegaram a bom termo.
Alegou, pois, uma posse derivada, adquirida através das negociações que teve com os Requeridos.
E nestes casos, como vimos, prevalece a segunda parte do nº 2 do artigo 1252º do Código Civil, que remete para o artigo 1257º nº 2 do mesmo diploma, mantendo-se a presunção da manutenção da posse em quem já a detinha: neste caso, os requeridos.
A sentença dá-se, aliás, conta da inexistência de qualquer fundamentação na petição inicial para a prática dos atos materiais e como a mesma teria, para justificar a restituição da posse que ter sido, pelo menos, alegada. “A este propósito, argumentou o requerente nas suas alegações que a situação fáctica não pode ser enquadrada juridicamente no contrato de comodato porquanto a cedência não foi temporária, mas sim definitiva. Todavia, para além de tal não ter sido alegado, caso a cedência fosse definitiva, sempre estaríamos em face da alegação da constituição de um direito real de gozo, sendo que nenhum foi invocado, dentro ou fora do “catálogo”, nem mesmo posse nos termos de algum direito real, diga-se, motivo pelo qual neste aspeto tendemos a discordar de tal argumentação.”
Desta forma, não se tendo provado a posse justificadora da pretendida restituição, nem qualquer outro direito real de gozo que goze da proteção possessória concedida pelo artigo 377º do Código de Processo Civil, tem, efetivamente, que proceder a oposição e improceder o procedimento.

Ficam, desta forma, prejudicadas todas as demais questões levantadas no recurso.

1. Decisão

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a presente apelação, e, em consequência confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente (artigo 527º nº 1 do Código de Processo Civil).
19 de março de 2020

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Fernanda Proença Fernandes