Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3209/21.0T8BRG.G1
Relator: JORGE SANTOS
Descritores: DECLARAÇÕES DE PARTE
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
QUESTÃO NOVA
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DOS AUTORES IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- De harmonia com o previsto nos art. 473º e 474º do CC, o enriquecimento sem causa depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- existência do enriquecimento;
- que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique;
- que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição;
- que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído.

- Donde se conclui que inexistindo algum desses requisitos, não é de aplicar esse regime jurídico.

- A falta de causa da atribuição ou vantagem patrimonial que integra o enriquecimento terá de ser alegada e demonstrada por quem invoca o direito à restituição dela decorrente, em conformidade com as exigências das regras gerais sobre os ónus de alegação e prova previstas no art.º 342º do Cód. Civil.
- Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus probandi, que não se prove a existência de uma causa da atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

AA, titular do NIF ...41, e mulher, BB, titular do NIF ...24, intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC, titular do NIF ...03, e mulher, DD, titular do NIF ...08, e “EMP01..., Lda.”, titular do NIPC ...60, pedindo:
a) a condenação dos primeiros réus, solidariamente, na restituição do montante mutuado da quantia de € 658.351,26 (seiscentos e cinquenta e oito mil trezentos e cinquenta e um euros e vinte e seis cêntimos), acrescida de juros de mora devidos desde a data da citação;
b) subsidiariamente, que se declare incumprido o contrato promessa de compra e venda de participações sociais da segunda ré celebrado entre autores e primeiros réus, ordenando-se a restituição pelos primeiros réus do que tenha sido convencionado a imputar ao preço a pagar por conta do mesmo, no montante de € 658.351,26 (seiscentos e cinquenta e oito mil trezentos e cinquenta e um euros e vinte e seis cêntimos), acrescida de juros de mora devidos desde a data da citação;
c) subsidiariamente, a condenação dos primeiros réus, solidariamente, a restituir o montante de € 658.351,26 (seiscentos e cinquenta e oito mil trezentos e cinquenta e um euros e vinte e seis cêntimos) com que se locupletaram sem causa à custa dos autores, acrescida de juros de mora devidos desde a data da citação;
d) a condenação da segunda ré a compensar o autor marido das despesas realizadas por sua conta no montante de € 15.821,21 (quinze mil oitocentos e vinte e um euros e vinte e um cêntimos), entregando-lhe o mesmo, acrescida de juros de mora devidos desde a data da citação; e
e) subsidiariamente, em caso de improcedência do pedido formulado em d), a condenação da segunda ré a restituir ao autor marido o montante de € 15.821,21  (quinze mil oitocentos e vinte e um euros e vinte e um cêntimos) com que se locupletou à sua custa, acrescida de juros de mora devidos desde a data da citação.

Posteriormente, os AA. vieram ampliar o pedido, impetrando também a condenação da 2.ª R., “EMP01..., Lda.”, solidariamente com os 1.ºs RR., em qualquer montante que estes venham a ser condenados.

Tal ampliação foi deferida.

Os AA. alegaram, em súmula, ser casados entre si. Também os 1.ºs RR. são casados entre si. Durante o ano de 2001, os AA. emprestaram aos RR. diversas quantias, que totalizaram o valor de Esc. 97.800.000$00 (noventa e sete milhões e oitocentos mil escudos), para aplicação do R. marido no negócio prosseguido pela 2.ª R.
Em paralelo, os AA. acordaram com os 1.ºs RR. a promessa de compra de quotas detidas por estes na 2.ª R. Assim, as aludidas quantias mutuadas serviriam para aplicação no financiamento da actividade da 2.ª R. e, simultaneamente, o consequente crédito dos AA. sobre os 1.ºs RR. serviria para pagamento parcial do preço devido pela transferência da propriedade das quotas da 2.ª R. aquando da celebração do negócio prometido.
Nessa perspectiva, o A. marido passou a comportar-se como sócio da 2.ª R., tendo desempenhado trabalho, com esse ânimo, nas instalações desta. Por esse motivo, o 1.º A. pagou, por conta da 2.ª R., diversas despesas emergentes da prossecução do seu objecto social, as quais ascenderam a Esc. 2.350.285$00 (dois milhões, trezentos e cinquenta mil, duzentos e oitenta e cinco euros).
Como os RR. não se dispusessem a celebrar o contrato prometido, o A. marido cessou as relações que tinha com a 2.ª R. e dedicou-se ao seu próprio negócio.
Alegaram que a dívida emergente do aludido mútuo foi contraída em proveito comum do casal - ora 1.ºs RR.
Pese embora os AA. terem vindo a interpelar os RR. para lhes pagarem as aludidas quantias, até ao momento estes não o fizeram.
Invocaram, juridicamente, a título principal, a existência um contrato mútuo, o qual será nulo por falta da forma legalmente prevista. Por essa via, deverão os RR. ser condenados a restituir o que foi prestado; subsidiariamente, caso se entenda que o contrato de mútuo é válido, deverão os RR. ser condenados a restituir o montante mutuado; subsidiariamente, invocam os AA. que os RR. incumpriram o contrato promessa de compra das quotas da 2.ª R., tornando-se, por esse motivo, responsáveis pelo prejuízo causado àqueles; ainda subsidiariamente, invocam os AA. que os RR. estão obrigados a restituir as quantias por aqueles entregues, com fundamento em enriquecimento sem causa.

Os RR. contestaram por excepção – invocando a prescrição do direito dos AA. e a ilegitimidade processual passiva da 1.ª R. mulher – e por impugnação – alegando que todos os pagamentos que lhes foram feitos pelos AA. respeitavam à compra de sucata e peças de automóveis feita por estes e a sua sociedade à 2.ª R.
Mais peticionaram a condenação dos AA. como litigantes de má fé.

Os AA. responderam à matéria das excepções, pugnando pela sua improcedência.

Foi proferido despacho saneador, onde se remeteu para final o conhecimento das excepções.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância de todo o legal formalismo.

Foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
- “Por todo o previamente exposto, o Tribunal julga totalmente improcedente a presente acção e, em consequência, decide:
A) Absolver os RR. 1) CC e mulher, DD, e 2) “EMP01..., Lda.”, da totalidade dos pedidos formulados pelos AA. AA e mulher, BB;
B) Condenar os AA. no pagamento das custas do processo.”

Inconformados com a sentença, dela vieram recorrer os AA. formulando as seguintes conclusões:

1) Os recorrentes interpõem recurso da sentença a quo com reapreciação de matéria de facto.

2) Os recorridos não logram apresentar aos autos uma versão minimamente coerente para as deslocações patrimoniais que nos presentes autos se visam reverter, não existindo um vislumbre de verdade e corroboração entre os vários depoimentos prestados e os documentos produzidos nos autos.

3) Os recorrentes impugnam a decisão sobre a matéria de facto que indica como facto não provado a al. b) – que os autores emprestaram ao réu marido as quantias aludidas no art. 5º da p. i.

4) Os recorrentes indicam os seguintes concretos meios probatórios que impõem decisão diversa sobre o ponto da matéria de facto recorrida: declarações da parte AA, prestadas em audiência de julgamento do dia 05/12/2022, depoimento gravado na aplicação Habilus média studio - início: 10:12:59 - fim:11:30:52, gravado com nome de ficheiro 20221205101255_5926789_2870507; as declarações da testemunha EE, prestadas em audiência de julgamento do dia 05/12/2022, depoimento gravado na aplicação Habilus média studio, – início: 11:55:42 - fim: 12:46:16, gravado com nome de ficheiro 20221205115540_5926789_2870507; as declarações da testemunha FF, prestadas em audiência de julgamento do dia 05/12/2022, depoimento gravado na aplicação Habilus média studio, – início: 14:43:54 - fim: 15:53:55, gravado com nome de ficheiro 20221205144352_5926789_2870507; o balanço analítico da sociedade segunda ré, junto aos autos com o requerimento datado de 19/12/2022, ref. n.º ...12, o qual constitui prova com especial valor fixado por lei; as prestações de contas da sociedade cujo capital social é detido pelos autores, juntas aos autos com o requerimento datado de 19/12/2022, ref. n.º ...12, o qual constitui prova com especial valor fixado por lei; as declarações da testemunha GG, prestadas em audiência de julgamento do dia 13/12/2022, depoimento gravado na aplicação Habilus média studio, início: das 10:58:00:00 horas e termo: às 12:45:00 horas, gravadas com nome de ficheiro 20221213105810_5926789_2870507; as declarações da testemunha HH, prestadas em audiência de julgamento do dia 13/12/2022, depoimento gravado na aplicação Habilus média studio, início: das 14:51:00:00 horas, termo: às 15:16:00 horas, gravadas com nome de ficheiro 20221213145113_5926789_2870507; o depoimento do réu CC, prestado em audiência de julgamento do dia 20/12/2022, depoimento gravado na aplicação Habilus média studio - início: 10:30:31 - fim:11:33:14, gravado com nome de 20221220103029_5926789_2870507.

5) Os excertos mais relevantes de cada um destes depoimentos foram transcritos em corpo de texto das presentes alegações.

6) A concatenação destes elementos probatórios entre si está desenvolvida entre arts. 4º e 16º da presente alegação e, em consequência, o facto dado como não provado na al. a) deve ser dado como provado.

7) Seguidamente, e em relação com o que vem de ser exposto, os recorrentes impugnam o facto dado como não provado c).

8) Os recorrentes indicam os seguintes concretos meios probatórios que impõem decisão diversa sobre o ponto da matéria de facto recorrida: as declarações da parte AA, prestadas em audiência de julgamento do dia 05/12/2022, depoimento gravado na aplicação Habilus média studio - início: 10:12:59 - fim:11:30:52, gravado com nome de ficheiro 20221205101255_5926789_2870507; as declarações da testemunha EE, prestadas em audiência de julgamento do dia 05/12/2022, depoimento gravado na aplicação Habilus média studio, – início: 11:55:42 - fim: 12:46:16, gravado com nome de ficheiro 20221205115540_5926789_2870507; as declarações da testemunha FF, prestadas em audiência de julgamento do dia 05/12/2022, depoimento gravado na aplicação Habilus média studio, – início: 14:43:54 - fim: 15:53:55, gravado com nome de ficheiro 20221205144352_5926789_2870507.

9) Na sequência, deverá dar-se como provado o facto não provado constante da al. c).

10) Os recorrentes impugnam os factos dados como não provados da al. d), f), g) e i), porquanto respeitante ao mesmo negócio jurídico e ao mesmo acordo fáctico de base.

11) Os recorrentes indicam os seguintes concretos meios probatórios que impõem decisão diversa sobre o ponto da matéria de facto recorrida: as declarações da parte AA, prestadas em audiência de julgamento do dia 05/12/2022, depoimento gravado na aplicação Habilus média studio - início: 10:12:59 - fim:11:30:52, gravado com nome de ficheiro 20221205101255_5926789_2870507; as declarações da testemunha EE, prestadas em audiência de julgamento do dia 05/12/2022, depoimento gravado na aplicação Habilus média studio, – início: 11:55:42 - fim: 12:46:16, gravado com nome de
ficheiro 20221205115540_5926789_2870507; as declarações da testemunha FF, prestadas em audiência de julgamento do dia 05/12/2022, depoimento gravado na aplicação Habilus média studio, – início: 14:43:54 - fim: 15:53:55, gravado com nome de ficheiro 20221205144352_5926789_2870507; o balanço analítico da sociedade segunda ré, junto aos autos com o requerimento datado de 19/12/2022, ref. n.º ...12, o qual constitui prova com especial valor fixado por lei.

12) E, nos termos da concatenação de prova constante de corpo de texto, os factos d), f), g) e i), porquanto respeitantes ao mesmo negócio jurídico e ao mesmo acordo fáctico, deverão ser dados como provados, considerando-se que autor marido e primeiros réus acordaram a compra e venda de quotas detidas pelos primeiros réus na segunda ré a pagar por compensação com o montante entregue pelo autor para aplicação na sociedade, negócio esse que não se veio a concretizar.

13) Os requerentes impugnam de forma individualizada, ainda que com a mesma fundamentação que se dá como reproduzida, os referidos factos d), f) g) e i), devendo considerar-se provado que em paralelo, os autores haviam acordado com os primeiros réus a promessa de compra de quotas detidas por estes na segunda ré; o crédito dos autores sobre os primeiros réus por força destes mútuos seria dado para pagamento parcial do preço devido pela transferência da propriedade das quotas aquando da celebração do negócio prometido; neste contexto, o autor marido passou a comportar-se já como verdadeiro sócio da segunda ré e passou a desempenhar trabalho, com esse ânimo, nas suas instalações, no ano subsequente à realização dos primeiros empréstimos ao réu marido; como as questões pendentes que permitiriam celebrar o negócio prometido não se resolveram, ao fim de um ano a trabalhar na segunda ré, e como após várias interpelações aos segundos réus, estes não se dispunham a celebrar o contrato de cessão de quotas prometido, o autor marido cessou as relações que tinha com a segunda ré e voltou a trabalhar no seu negócio de família, a já identificada sucata EMP02....

14) Os recorrentes requerem a V. Exa. a reapreciação da prova produzida e formação de convicção própria sobre os factos com base nos depoimentos demonstrados, porquanto se crê que o sentimento de Justiça despertado após ouvir os depoimentos (sobretudo das partes!) não pode deixar de impressionar quanto à genuinidade e veracidade da versão dos autores.

15) Com a procedência da impugnação tocante à matéria de facto, as entregas de capital foram-no feitas na expectativa de um negócio de cessão de quotas que jamais ocorreu e. nesses termos, deve ser determinada a resolução do referido contrato promessa verbal e a restituição de montantes entregues por conta do mesmo – cfr. art. 29º PI.

16) Alternativamente, é também inequívoco que o dinheiro entregue não foi uma doação, mas sim dinheiro emprestado que seria retribuído mediante imputação ao preço de compra e venda das quotas representativas do capital social da segunda ré.

17) Não tendo ocorrido este último negócio, o dinheiro entregue tem de ser restituído atenta a falta de forma e a cominação daí resultante por aplicação do art. 1143º CCiv, numa quantia equivalente à peticionada no art. 17º por aplicação de atualização monetária - € 658.351,26 (seiscentos e cinquenta e oito mil trezentos e cinquenta e um euros e vinte e seis cêntimos).

18) No tocante ao Direito, a sentença a quo erra na aplicação das normas constantes dos arts. 342º, 344º e 346º CCiv. à matéria dos autos.

19) A prova produzida quanto à defesa dos réus não tem sequer a veleidade de tornar duvidosos os factos alegados pelos autores – cfr. art. 346º CCiv.

20) Isto decorre da total falta de coerência, razoabilidade fática e verosimilhança da versão alegada pelos réus quando confrontada com o próprio depoimento do réu marido, da testemunha GG e da testemunha HH.

21) A prova produzida pelos autores foi coerente entre si, robusta, e as declarações do autor AA espontâneas – devendo considerar-se suficientes para preenchimento de ónus de prova.

22) Acresce que é a segunda ré, pela representação do primeiro réu II, que torna impossível a demonstração da sua versão e da versão apresentada pelos autores.

23) Com efeito, a segunda ré não apresentou contas de 2001 – não obstante tê-lo feito retroativamente por referência aos anos de 2002, 2003 e 2004, como já alegado supra e constante das anotações à sua matrícula juntas com o doc. n.º ... com a contestação.

24) O primeiro réu, enquanto gerente da segunda ré, viola deveres de administração específicos e gerais (constantes do art. 64º CSC), preceitos como o art. 65º, n.º 5 CSC, 3º, al. n) do CRC – e a segunda ré viola o dever de apresentação da sua prestação de contas.

25) Esta realidade não pode deixar de ser relevada para efeitos de aplicação do art. 344º, n.º 2 CCiv. A parte contrária, os réus, culposamente tornam difícil a prova da entrega de dinheiro e aplicação na sociedade comercial por falta de depósito de contas da mesma.

26) Aquilo que resta aos autores para fazer prova de sua versão são réstias das contas de 2001 por reflexo nas contas apresentadas em 2005 e referentes a 2002 – cfr. inscr. 2 do doc. n.º ... junto com a contestação.

27) Ou seja, em 2005 os réus apresentam a depósito as contas da segunda ré, mas fazem-no sem incluir as contas de 2001, chave para se compreender a versão dos autores.

28) Desta forma, os autores: vêem dificultada a prova da aplicação do dinheiro entregue; vêem dificultada a prova do facto dado como não provado h); não logram analisar a substância do facto impeditivo alegado pelos réus – que o dinheiro entregue não se destinava a ser restituído, mas sim que se destinava a pagar sucata vendida pela segunda ré (e facturada…!) à sociedade detida pelos autores.

29) Assim sendo, deveria ser invertido o ónus da prova, no respeito pelo disposto no art. 344º, n.º 2 CCiv.

30) Ou seja, considerando que os réus aduzem como facto impeditivo do direito dos autores uma convenção negocial, deveria esta convenção negocial ser dada como provada para que o pedido dos réus fosse julgado improcedente.

31) Não sendo dado como provado que os montantes entregues foram para compra e venda de sucata e não sendo possível analisar as contas de 2001 da segunda ré com detalhe (porquanto o seu depósito, obrigação legal de todos os réus, foi omitido), fica dificultado para lá do razoável a demonstração da aplicação do montante em questão na segunda ré e a veracidade da versão dos réus.

32) Invertendo-se o ónus da prova, e não tendo sido provada a versão dos réus, deveria a sentença a quo ter resolvido a questão em litígio contra os réus – determinando a procedência dos pedidos dos autores.

33) Por fim, a sentença a quo considera não poder dirimir o litígio dos presentes autos por apelo às regras do enriquecimento sem causa.

34) Na medida em que se afirma a existência de um mútuo que não foi reduzido a escrito, a deslocação patrimonial com base no mesmo não tem título – o negócio não foi correctamente executado.

35) Mesmo que não se prove a existência de mútuo, resta a existência de uma deslocação patrimonial ao abrigo de uma causa que não se verifica porquanto alicerçada num pretenso negócio incorretamente realizado, o que acontece por um de dois motivos: ou porque o contrato de mútuo não tinha forma, ou porque o esquema negocial gizado pelas partes (mediante o qual o dinheiro mutuado seria investido na sociedade e tido como um avanço de pagamento pela cessão de quotas da sociedade segunda ré a celebrar entre autores e primeiros réus) não se concretizou.

36) Ao não se provar a celebração do contrato de mútuo, não se prova causa de negócio jurídico.

37) Contudo, resta por demonstrar causa para a transferência do dinheiro – para o enriquecimento.

38) E, nessa medida, há enriquecimento sem causa.

39) A visão da sentença a quo equivale a afirmar que os recorrentes tinham de demonstrar a inexistência de causa para a transferência de dinheiro – o que equivale a esgotar todas as possibilidades possíveis que fundamentassem a ausência de motivo para a deslocação.

40) Mais, o caso dos autos resulta com clareza do previsto para aplicação do art. 473º, n.º 2 CCiv.: a restituição do dinheiro prestado em vista de um efeito que não se verificou.

41) O acordo de restituição de dinheiro mediante a entrada do autor marido na sociedade segunda ré não ocorreu.

42) Não ocorrendo o mesmo, cessa o motivo para a manutenção do dinheiro na esfera dos réus – tem de ser restituído.

43) Com efeito, reforce-se que os réus não apresentaram razão convincente para afirmarem propriedade sobre o dinheiro transferido.

44) Por fim, afirma a sentença a quo que, apesar das asserções que foi deixando, na verdade não aprecia a questão do enriquecimento sem causa por afirmar a mesma prescrita desde 2012.

45) Primeiramente, note-se que o autor marido afirma no seu depoimento desconhecer a existência de tal missiva, vd. o já identificado depoimento a minuto 33:00.

46) Segundamente, note-se que a prescrição diz respeito ao direito de exercer o pedido de restituição do indevido e esse prazo só começa a contar a partir do momento em que se considera não haver outra forma de obter a restituição do prestado.

47) Ora, a prescrição do direito de invocar o enriquecimento sem causa só ocorre com a presente acção, quando os autores peticionam a impossibilidade do cumprimento do contrato de compra e venda de participações sociais da segunda ré – pois só aí nasce o fim da causa que preside às deslocações patrimoniais e, só então, se configura a existência de ausência de causa para a deslocação patrimonial.

48) Por fim, a decisão do Tribunal que conhece da prescrição do direito de peticionar o enriquecimento sem causa é nula por excesso de pronúncia – cfr. art. 615º, n.º 1, al. d) CPC.

49) Com efeito, o Juiz a quo conheceu de uma questão que não podia conhecer.

50) A prescrição em direito civil não é de conhecimento oficioso.

51) E os autores apenas alegaram a prescrição do direito de exigir a restituição do mútuo com base no prazo ordinário do art. 309º CCiv. – assim, cfr. os arts. 3º a 8º da, aliás douta, contestação.
52) Por este motivo, não podia a sentença a quo ter julgado prescrito o direito a peticionar a restituição por enriquecimento sem causa – e essa é a sua decisão sobre o tema e com que encerra o dispositivo sobre a aplicabilidade do instituto aos autos.

53) V. Exas., desta forma, deveriam considerar que o Tribunal a quo não podia conhecer da prescrição do direito de peticionar a restituição do enriquecido sem causa, mais afirmando o dever de restituição nos termos que antecedem, fazendo assim a correta interpretação e aplicação do art. 473º, n.º 1 CCiv. aos autos.
TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, revogando-se a sentença a quo e decidindo-se no sentido peticionado pelos recorrentes, assim se fazendo JUSTIÇA!
*
Houve contra-alegações, nelas se pugnando pela rejeição da impugnação da matéria de facto, por inobservância das exigências do art. 640º do CPC e, em qualquer caso, pela total improcedência da apelação.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II – OBJECTO DO RECURSO

A – Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente, bem como das que forem do conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando notar que, em todo o caso, o tribunal não está vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, atenta a liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.

B – Deste modo, considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos Recorrentes/AA., cumpre apreciar:
- Da pretendida alteração da matéria de facto;
- Da inversão do ónus da prova;
- Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia;
- Se, em consequência, deve ser revogada a sentença, julgando-se procedente a mesma.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

A - Matéria de facto julgada provada na sentença:

1. Os autores são casados entre si [art.º 1.º da p.i.].

2. Os primeiros réus são casados entre si sob o regime da comunhão geral de bens [art.º 2.º da p.i .].

3. O 1.º R. marido é sócio da 2.ª Ré e a 1.ª R. mulher foi sócia da 2.ª R. até 18.07.2012 [art.º 2.º da p.i.].

4. As partes pessoas singulares são empresários do sector da sucata, o que fazem por intermédio da qualidade de sócios da sociedade comercial “EMP02..., Lda.”, com sede na Rua ..., ... – ..., ... ... (no caso dos autores) e por intermédio da qualidade de sócios da segunda ré (no caso dos primeiros réus) [art.º 3.º da p.i.].

5. Nos finais da última década do séc. XX e no início do presente século, as partes pessoas singulares eram agentes do comércio de sucata do norte de Portugal e tinham relações negociais, quer por interposição das sociedades comerciais referidas, quer pessoalmente [art.º 4.º da p.i.].

6. Os AA. entregaram ao R. marido as seguintes quantias, nas seguintes datas e pelas seguintes formas:
Data Forma Valor
10/4/2001 Cheque n.º ...33 10.000.000,00 escudos
18/4/2001 Cheque n.º ...28 3.500.000,00 escudos
18/4/2001 Cheque n.º ...80 1.100.000,00 escudos
18/4/2001 Cheque n.º ...46 1.870.000,00 escudos
18/4/2001 Numerário 30.000,00 escudos
18/4/2001 Cheque n.º ...35 20.000.000,00 escudos
27/4/2001 Cheque n.º ...37 5.000.000,00 escudos
3/5/2001 Cheque n.º ...30 3.000.000,00 escudos
11/5/2001 Cheque n.º ...42 7.000.000,00 escudos
14/5/2001 Cheque n.º ...44 14.000.000,00 escudos
23/5/2001 Cheque n.º ...49 1.300.000,00 escudos
22/5/2001 Transferência Bancária 3.000.000,00 escudos
30/5/2001 Transferência Bancária 12.0000.000,00 escudos.

7. O A. marido interpelou o R. marido para proceder ao pagamento de quantias em dívida por carta enviada pelo Ilustre Mandatário subscritor da petição inicial, em 2009, junta por cópia com a p.i. como doc. n.º ..., que aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais [art.º 14.º da p.i.].

8. Os RR. não restituíram aos AA. nenhum dos montantes por estes reclamados [art.º 15.º da p.i.].
*
B – Factos não provados:

a) A 1.ª R. mulher é sócia da 2.ª R.

b) Os AA. emprestaram ao R. marido as quantias aludidas no art.º 5.º da p.i.

c) As quantias entregues serviam para aplicação do réu marido no negócio prosseguido pela segunda ré.

d) Isto porquanto, em paralelo, os autores haviam acordado com os primeiros réus a promessa de compra de quotas detidas por estes na segunda ré.

e) As quantias emprestadas pelos autores seriam aplicadas no financiamento da atividade da segunda ré.

f) E o crédito dos autores sobre os primeiros réus por força destes mútuos seria dado para pagamento parcial do preço devido pela transferência da propriedade das quotas aquando da celebração do negócio prometido.

g) Neste contexto, e entretanto, porquanto a celebração do contrato prometido dependia apenas da resolução de situação pendente com hipoteca e distrate da mesma melhor identificado em doc. n.º ...2, cláusula 9ª, o autor marido passou a comportar-se já como verdadeiro sócio da segunda ré e passou a desempenhar trabalho, com esse ânimo, nas suas instalações, no ano subsequente à realização dos primeiros empréstimos ao réu marido.

h) Tendo pago por conta da segunda ré várias das suas dívidas surgidas na prossecução do seu objeto social, nomeadamente as que de seguida se discriminam: 112.640,00 escudos por conta de material à Auto Sueco; 23.400,00 escudos por conta de tacógrafo e limitador no Ramoa;7.020,00 escudos por conta da vistoria F1; 3.500,00 escudos por conta de gasóleo; 10.000,00 escudos por conta de pagamento a JJ pelo trabalho em F12; 700.000,00 escudos por trabalho F12; pagamento a EMP03..., na quantia de 10.000,00 escudos; 40.000,00 escudos de pagamento de 5 dias d serviço a Roger; 19.225,00 escudos de pagamento a mecânico de ...; 2.500,00 escudos de pagamento a ...; 20.000,00 de pagamento a EMP04...; 1.250.000,00 escudos de pagamento a EMP05... por cheque (cfr. também doc. n.º ...4); e 152.000,00 escudos de pagamento a EMP05....

i) Como as questões pendentes que permitiriam celebrar o negócio prometido não se resolveram, ao fim de um ano a trabalhar na segunda ré, e como após várias interpelações aos segundos réus, estes não se dispunham a celebrar o contrato de cessão de quotas prometido, o autor marido cessou as relações que tinha com a segunda ré e voltou a trabalhar no seu negócio de família, a já identificada sucata EMP02....

j) Ao longo de todos os tempos, os AA. sempre interpelaram os réus para pagamento das quantias que lhes eram devidas.

k) O empréstimo das quantias supra aludidas foi contraído em proveito comum do casal constituído pelos 1.ºs RR.

l) Os autores e a sociedade representada pelos mesmos, identificada no artigo terceiro da petição inicial, comprava á segunda ré peças AUTO (motores, caixas de velocidades, diferenciais, outros componentes auto e todo o tipo de peças auto).

m) Os pagamentos titulados por cheques, transferências bancárias e depósitos em numerário, dizem respeito ao pagamento de sucata e peças auto que os autores e a sua sociedade compraram á sociedade segunda ré.

n) Os factos alegados pelos autores são falsos, meramente inventados para intentar a presente acção.

o) Tudo com o objectivo de pressionar o réu marido, a vender aos autores a quota-parte que uma sociedade que é gerente detém num prédio rustico, em compropriedade com os autores.
*
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Da pretendida alteração da matéria de facto, nos termos do art. 662º, do CPC

Cabe aqui apreciar se o tribunal cometeu algum erro da apreciação da prova e assim na decisão sobre a matéria de facto.
A este propósito os recorrentes impugnaram a decisão da matéria de facto, relativamente a determinados pontos da matéria de facto não provada.
Cumpre começar por analisar se os recorrentes cumpriram os requisitos de ordem formal que permitam a este Tribunal apreciar a impugnação que fazem da matéria de facto, nomeadamente se indicam os concretos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; se especificam na motivação dos meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, impõem uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; fundando-se a impugnação em parte na prova gravada, se indicam na motivação as passagens da gravação relevantes; apreciando criticamente os meios de prova, se expressam na motivação a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; tudo conforme resulta do disposto no artº. 640º, nºs. 1 e 2, do Código Processo Civil (C.P.C.) e vem melhor mencionado na obra de Abrantes Geraldes “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 4ª Edição, pags. 155 e 156.
A apreciação de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Com efeito, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova que está deferido ao tribunal da 1ª instância, previsto no art. 607º, nº5, do CPC, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição (veja-se nestes sentido, Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol., pg. 201).
Diversamente do que acontece no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prévia e legalmente fixada, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo. O juiz, no seu livre exercício de convicção, tem de indicar os fundamentos que, segundo as regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa sindicar da razoabilidade da decisão sobre o julgamento do facto como provado ou não provado (neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pg. 348).
Na verdade, o art. 607º, nº 4, do C.P.Civil, prevê expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.
Tal como se sustenta no Ac. da Relação do Porto, de 22.05.2019, (…)”na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]

Importa, porém, não esquecer que, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[5]
Revertendo para o caso vertente, verifica-se que os Recorrentes, nas suas alegações e conclusões do recurso, consideram que foram incorrectamente julgados como não provados os factos elencados na sentença sob as al. b), c), d), f), g) e j), pugnando que tais factos devem ser julgados como provados, indicando para o efeito os concretos elementos probatórios e a decisão que no seu entender deve ser tomada sobre esses pontos.
Insurgem-se os Recorridos quanto à não indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que os Recorrentes invocam para sustentar a impugnação que fazem da matéria de facto, nomeadamente, argumentando que estes não indicam com precisão o início e o fim dos segmentos gravados que pretendem aproveitar, limitando-se a indicar o início e o fim de todos esses depoimentos. E concluem os Recorridos que não foi observada a exigência legal prevista para o efeito no art. 640º, nº 2, al. a) do CPC.
Ora, analisado o teor da motivação do recurso, afigura-se-nos que os Recorrentes não indicaram com exactidão essas passagens da gravação. Porém, os mesmos procederam às transcrições dessas passagens, o que, a nosso ver, supre aquela omissão. Neste sentido, veja-se o Ac. do STJ, de 02-06-2016, proc. 725/12.8TBCHV.G1.S, no qual se sumariou que:
“I. O ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados (art. 640º, nº2, al. a) do CPC) deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, ao nível dos minutos ou segundos em que foram proferidas pela testemunha as expressões tidas por decisivas pelo recorrente, - não se possa perspectivar a existência de dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o pretenso erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, complemente tal indicação com uma transcrição, na própria alegação, dos excertos que tem por relevantes para o julgamento do objecto do recurso.”
Afigurando-se-nos no essencial cumpridas pelos Recorrentes as exigências formais relativas à impugnação da matéria de facto, previstas no no art. 640º, nº 1, do CPC, cumpre apreciar da mesma.
Assim, os Recorrentes consideram que foram incorrectamente julgados como não provados os factos elencados na sentença sob as al. b), c), d), f), g) e i), pugnando que tais factos devem ser julgados como provados.
Fundam os Recorrentes a impugnação destes pontos nas declarações da parte AA, nas declarações das testemunhas EE e FF, GG e HH, no depoimento do CC, no balanço analítico da sociedade segunda ré, junto aos autos com o requerimento datado de 19/12/2022 e nas prestações de contas da sociedade cujo capital social é detido pelos autores, juntas aos autos com o requerimento datado de 19/12/2022.

Vejamos.
 Os pontos em questão têm a seguinte redacção:
- “b) Os AA. emprestaram ao R. marido as quantias aludidas no art.º 5.º da p.i.

c) As quantias entregues serviam para aplicação do réu marido no negócio prosseguido pela segunda ré.

d) Isto porquanto, em paralelo, os autores haviam acordado com os primeiros réus a promessa de compra de quotas detidas por estes na segunda ré.

e) As quantias emprestadas pelos autores seriam aplicadas no financiamento da atividade da segunda ré.

f) E o crédito dos autores sobre os primeiros réus por força destes mútuos seria dado para pagamento parcial do preço devido pela transferência da propriedade das quotas aquando da celebração do negócio prometido.

g) Neste contexto, e entretanto, porquanto a celebração do contrato prometido dependia apenas da resolução de situação pendente com hipoteca e distrate da mesma melhor identificado em doc. n.º ...2, cláusula 9ª, o autor marido passou a comportar-se já como verdadeiro sócio da segunda ré e passou a desempenhar trabalho, com esse ânimo, nas suas instalações, no ano subsequente à realização dos primeiros empréstimos ao réu marido.

i) Como as questões pendentes que permitiriam celebrar o negócio prometido não se resolveram, ao fim de um ano a trabalhar na segunda ré, e como após várias interpelações aos segundos réus, estes não se dispunham a celebrar o contrato de cessão de quotas prometido, o autor marido cessou as relações que tinha com a segunda ré e voltou a trabalhar no seu negócio de família, a já identificada sucata EMP02....”

O Tribunal a quo motivou a decisão relativamente à matéria de facto nos seguintes termos:
- “A convicção do tribunal fundou-se na ponderação crítica e conjugada de todos os elementos probatórios produzidos nos autos, analisados à luz das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, nomeadamente os seguintes:
 No teor das certidões de assento de nascimento dos AA., de fls. 53 a 54 vº, e de casamento dos RR., de fls. 57 e 57 vº, quanto aos factos 1) e 2).
 No teor da certidão permanente da 2.ª R., junta com a contestação a fls. 39 a 45, relativamente ao facto 3).
 No tocante ao facto 6), no teor dos documentos juntos com a p.i., de fls. 12 a 21, demonstrativos das transferências monetárias aludidas, conjugadas com as declarações de parte dos AA. e o testemunho dos filhos destes, EE, engenheiro agrónomo, residente em ..., e FF, mecânico, residente em ..., que atestaram terem entregue ao R. ou à sua secretária, alguns dos cheques aludidos tendo a última das testemunhas identificado a letra da sua mãe nos aludidos títulos de crédito.
De resto, o próprio R., CC, admitiu ter recebido pessoalmente um cheque dos AA., que admite poder ter sido o de 10.000.000$00, mas que o mesmo correspondia ao sinal de um negócio de aquisição de peças automóveis de sucata por parte dos AA. A partir daí, essas vendas passaram pelo escritório, salvo as vendas particulares sem factura.
Nessa medida, pese embora a distância temporal que mediou entre a emissão dos títulos de crédito e a realização das transferências, o Tribunal entendeu que, pelo menos os movimentos elencados no facto 6) se encontravam suficientemente provados. Não assim quanto aos demais alegados no art.º 5.º da p.i., já que os mesmos não foram admitidos pelos RR. e não se encontram suportados por qualquer prova documental.
Em relação aos factos 4 e 5 e aos factos não provados b) a m), importa, antes de mais, dizer que o Tribunal se viu confrontado com duas versões incompatíveis e antagónicas do relacionamento entre AA. e RR. Nessa medida, o ponto fulcral do presente processo prende-se, assim, com a determinação dos montantes entregues/transferidos pelos AA. para os RR. e com o apuramento da causa de tais transferências.
Na ponderação das teses trazidas por cada uma das partes, à luz dos elementos probatórios disponíveis, torna-se indispensável efectuar uma valoração que, a final, venha a reflectir a verdade mais provável, permitindo validar uma das teses, uma tese mitigada ou até nenhuma delas. Esta valoração é feita em função do standard de prova.
Michele Taruffo [La prueba: artículos y conferencias, Editorial Metropolitana, 2009, 103 (versão em língua espanhola)] explica que em muitos ordenamentos jurídicos, a regra de “mais provável do que não” não se encontra prevista em nenhuma norma escrita, mas afirma-se como um critério racional para presidir à tomada de decisões sobre os factos de uma causa. Apresenta-se, pois, como uma forma privilegiada de conferir um conteúdo positivo ao princípio da livre apreciação da prova pelo juiz, guiando e racionalizando a discricionariedade do juiz na valoração das provas e eliminando toda a possível implicação irracional desta valoração, vinculando o juiz a um conjunto de critérios intersubjectivamente controláveis.
O standard de prova equivale a uma regra de decisão que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira [Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, Almedina, 2.ª ed., 149]. “O que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis. (...) o standard que opera no processo civil é, assim, o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não”. Este standard consubstancia-se em duas regras fundamentais:
(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
(ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa” [Luís Filipe Pires de Sousa, ob. cit., 152-153].
Michele Taruffo [Ob. cit., 106-107] afirma que este standard indica que é racional assumir como fundamento da decisão sobre um facto aquela hipótese que logra obter das provas um grau de confirmação positiva prevalecente não só sobre a hipótese simétrica contrária, mas também sobre todas as outras hipóteses que tenham recebido um grau de confirmação positiva superior a 50%. Naturalmente, a hipótese com probabilidade positiva prevalecente é preferível a todas as hipóteses em que prevalece a probabilidade negativa. Dizendo de outra forma, o juiz pode assumir como “verdadeira”, por estar confirmada pela prova, uma versão de um facto quando o grau de confirmação positiva seja superior ao grau de probabilidade da versão negativa correlativa. Se, com o tempo, surgirem outras hipóteses com um grau de confirmação positiva, então será racional optar pela versão que obtenha um grau de confirmação relativa maior.
No caso vertente, a decisão do Tribunal foi claramente influenciada pela circunstância de as transferências monetárias entre AA. e R. marido terem ocorrido em 2001, ou seja, há mais de duas décadas. Este facto não pôde deixar de ser ponderado, designadamente justificando alguma natural falta de memória das pessoas arroladas como testemunhas e uma também natural ausência de documentos, sobretudo facturas emitidas pela 2.ª R., que poderiam lançar alguma luz sobre a situação. De igual forma, foi pesada a circunstância de nenhum documento escrito existir dos alegados acordos de empréstimo de dinheiro e de promessa de cessão/aquisição de quotas da 2.ª R.
Isto dito, a versão dos AA. assenta, em primeiro lugar, na existência de um contrato de mútuo entre estes e o 1.º R. marido, para financiamento da 2.ª R., mas cujos valores mutuados serviriam também de “princípio de pagamento” no âmbito de um contrato-promessa verbal de cessão de quotas. Em suporte desta sua tese, os AA. arregimentaram as suas próprias declarações de parte e os depoimentos dos seus filhos, EE, e FF. As demais testemunhas por si arroladas, KK, LL e MM não revelaram qualquer conhecimento directo dos factos, tendo aportado aos autos apenas depoimentos indirectos e suposições – de pouca valia probatória.
A versão dos RR., por seu lado, assenta na admissão da realização de algumas transferências/pagamentos por parte dos AA., mas com uma causa: a venda de material de sucata – peças automóveis – àqueles. Em apoio desta sua tese, que foi propugnada pelo 1.º R. marido, em sede de depoimento de parte, arregimentaram as testemunhas GG, secretária, residente em ..., funcionária da 2.ª R. desde 1996, e HH, advogado, ..., era sócio-gerente da sociedade “EMP06..., S.A.”, empresa de sucata fornecedora da 2.ª R.
Ora, sobre o valor probatório das declarações de parte dispõe o n.º 3 do art.º 466.º do C.P.C., que o “tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”. Naturalmente, apesar de sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, a valoração deste meio deverá sempre revestir-se de algumas cautelas. Com efeito, não poderá esquecer-se que, até à reforma de 2013, o Código de Processo Civil acolhia a máxima nemo debet esse testis in propria causa, reflectindo uma desconfiança ancestral – e natural - no valor das declarações da parte. Daí que, mesmo depois da alteração legislativa, e não obstante algumas opiniões avalizadas em contrário [Luís Filipe Pires de Sousa, As Declarações de Parte.
Uma Síntese, www.trl.mj.pt/PDF/As%20declaracoes%20de%20parte.%20Uma%20sintese.%202017. pdf, 37], grande parte da doutrina e da jurisprudência continuem a entender que a sua valoração tenha em conta a especificidade deste meio de prova. Assim, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro [Primeiras Notas ao Código de Processo Civil – Os Artigos da Reforma, 2.ª edição, 2014, 395] afirmam que a “experiência sugere que a fiabilidade das declarações em benefício próprio é reduzida. Por esta razão, compreende-se que se recuse ao depoimento não confessório força para, desacompanhado de qualquer outra prova, permitir a demonstração do facto favorável ao depoente”. Neste mesmo sentido, Estrela Chaby [O Depoimento de Parte em Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, 50, nota 124] e Carolina Henrique Martins [Declarações de Parte, Dissertação de Mestrado, Coimbra (2015), 48, https://eg.uc.pt/bitstream/10316/28630/1/Declaracoes %20de%20parte.pdf].
Também na jurisprudência, em defesa deste entendimento, sem preocupações de exaustão, vejam-se os seguintes arestos, todos disponíveis em www.dgsi.pt: Ac. RP de 15/9/2014 [Proc.º n.º 216/11.4TUBRG.P1, relator António José Ramos]; Ac. RP de 20.11.2014 [Proc.º n.º 1878/11.8TBPFR.P2, relator Pedro Martins]; Ac. RP de 27.09.2017 [Proc.º n.º 53714/16.2YIPRT.P1, relator Fernando Samões]; Ac. RG de 07.05.2020 [Proc.º n.º 3030/18.2T8GMR.G1, relatora Sandra Melo]; e Ac. RG de 18.01.2018, [Proc.º n.º 294/16.0Y3BRG.G1, relatora Vera Sottomayor]. É esta a posição que perfilhamos, embora temperada pela doutrina do Ac. STJ de 19.06.2019 [Proc.º n.º 3577/17.8T8ALM.L1.S1, relator Nuno Pinto de Oliveira, em www.dgsi.pt] que, embora não tomando posição inequívoca sobre a polémica, defendeu que, “ainda que se considere que, como regra, as declarações de parte não são, só por si, suficientes para suportar uma decisão sobre um facto, sempre deverá ressalvar-se uma excepção para os casos em que a natureza dos factos a provar torne inviável outra prova”.
Assim, reduzindo as declarações de parte ao seu real valor (ou ausência dele), não se pode afirmar que, do conjunto da prova produzida, o Tribunal tenha conseguido extrair uma imagem clara e nítida do que terá ocorrido. Com efeito, se, por um lado, os AA. e os seus filhos deram nota de os primeiros terem emprestado ao 1.º R. dinheiro para este fazer face a dificuldades financeiras na prossecução do negócio da 2.ª R., de que era gerente e, no mesmo arco temporal, terem acordado com este a aquisição de uma quota da sociedade 2.ª R., tendo o dinheiro entregue servido para o sinalizar, o 1.º R. marido e as testemunhas por si arroladas contrariaram aquela versão, dando nota de que a 2.ª R., ao tempo, era uma das maiores sucatas do norte do país, movimentando muito dinheiro, sobretudo por força do seu negócio de exportação de metais para a siderurgia espanhola. Por esse motivo, não passava dificuldades, não necessitando de qualquer empréstimo, muito menos dos AA. De igual forma negaram ter acordado, ou sequer tido a intenção, de ceder quotas da 2.ª R. aos AA.
Também é certo que as partes e as testemunhas acabaram por coincidir no pormenor de o A. marido ter estado durante algum tempo – semanas, meses – nas instalações da 2.ª R. Divergiram, porém, no motivo de tal permanência: os AA. e as testemunhas por si arroladas afirmaram que estava a trabalhar para conhecer o negócio da 2.ª R. e ajudar no seu giro, com vista à futura aquisição de uma participação social; e o 1.º R. e a testemunha GG afirmaram que o A. marido estava a trabalhar no desmantelamento de uma grande partida de veículos automóveis para lhes retirar, em bom estado, as peças que iria adquirir para comercializar na sua própria sucata.
Não foi possível, em face do detalhe e coerência dos referidos elementos de prova atribuir maior relevo a uns ou a outros. Com efeito, mesmo focando a atenção no eventual interesse que as testemunhas arroladas por uma ou outra das partes pudessem ter no litígio, verifica-se uma situação de frustrante igualdade: do lado dos AA., as principais testemunhas – que alegaram conhecimento directo dos factos - são os seus filhos; do lado dos RR., a principal testemunha é a secretária administrativa da 2.ª R., que os AA. admitem ter sido a pessoa com quem mais directamente lidavam na questão dos pagamentos em causa. Uns e outra prestaram depoimentos incompatíveis.
Do ponto de vista dos AA., acresce a este impasse probatório a fragilidade da arquitectura da(s) causa(s) das entregas de dinheiro.
Com efeito, há que referir que o sincretismo da versão dos AA. não ajuda à credibilidade da mesma, pois não é sem dificuldade que se logra conceber um acordo para empréstimo de dinheiro – que, por definição, implica a sua restituição pelo mutuário, sem que, note-se, no caso concreto, quer os AA. quer as testemunhas por estes arroladas tenham falado de qualquer convenção (por ex., de prazo) relativa à restituição do dinheiro -, mas que, paradoxalmente, preenche também o papel de sinal num contrato-promessa verbal de compra e venda de quotas (sem que se tenham referido quais as condições do acordo ou sequer qual a percentagem do capital social da 2.ª R. que seria objecto de um tal negócio).
Salvaguardando algum erro de raciocínio, parece-nos que, logicamente, aquela dupla função é mutuamente exclusiva.
Outra perplexidade que nos assalta – e aqui repetimo-nos - é a total ausência de estipulação escrita das obrigações de AA. e RR., quer no que respeita a um eventual mútuo quer no que respeita a um eventual contrato-promessa de compra e venda de quotas, sobretudo quando atentamos na grandeza dos valores envolvidos: Esc.81.800.000$00 (oitenta e um milhões e oitocentos mil escudos), correspondendo, grosso modo, a mais de 408.000,00 € (quatrocentos e oito mil euros).
Poder-se-á argumentar que os envolvidos são pessoas de uma certa idade, com um certo acervo de valores, para quem a palavra dada vale. É certo que o Tribunal não poderá rejeitar, sem mais, essa alegação, devendo, pelo contrário, confirmá-la. Ora, o Tribunal procurou compreender as pessoas envolvidas, sobretudo o A. e o R. maridos, e o particular contexto em que se moviam. Nesse desiderato, apurou-se que o A. marido e o R. marido eram amigos e que se moviam no mundo do comércio de sucata, onde os negócios eram, à data dos factos, prósperos e volumosos, abundando os pagamentos em dinheiro. Todavia, também se demonstrou que eram empresários já com muitos anos de actividade e experiência de vida. Como tal, mesmo admitindo que a necessidade de registos escritos dos negócios não fosse muito significativa, não se coaduna, porém, com esta imagem a realização do tipo de negócios alegado pelos AA. sem um qualquer documento a suportar a transferência de tão elevados montantes de uns para outros (ainda a este propósito, note-se que, estranhamente, nenhum dos envolvidos conseguiu explicar ou reconhecer a minuta de contrato-promessa junta com a p.i. como doc. n.º ...2, que por esse motivo foi descartada em termos probatórios).
Esclarece-se ainda que, apesar de analisados os documentos contabilísticos juntos pelos AA. a fls. 88 a 123 vº, não foi possível extrair dos mesmos nenhum elemento decisivo ou inequívoco no sentido de, ao tempo dos factos, a 2.ª R. se encontrar numa situação de aperto financeiro que tivesse de obrigar os 1.ºs RR. a recorrer a empréstimos privados ou de a sociedade dos AA. não ter adquirido o montante de sucata alegado pelos RR. – até porque, como foi referido em audiência, havia sempre negócios não facturados e, por esse motivo, seguramente não declarados aos serviços de finanças.
Por outro lado, também não foi possível credibilizar a versão dos RR. na parte em que imputam as entregas de dinheiro dos AA. a negócios de compra de sucata.
Trata-se, com efeito, da explicação mais lógica e imediata, mas cuja aceitação esbarrou na negação do A., AA, e das testemunhas EE, FF, LL e MM, que afirmaram que a sucata dos AA. não adquiria material à 2ª R., antes pelo contrário. Por este motivo, a demonstração desta causa careceria de outro tipo de suporte probatório – designadamente a exibição de facturas comprovativas das vendas ou de guias de transporte da sucata vendida. Naturalmente, haverá que aceitar-se a explicação de que, ao fim de 20 anos, essas facturas ou guias já não existem, por não haver qualquer obrigação legal de as conservar tanto tempo. Atendendo a que a demora na interposição da presente acção é exclusivamente imputável aos AA., não se afigurou razoável exigir-se aos RR. um esforço probatório que tal inércia tornou impossível. Como tal, esta situação foi valorada no sentido de não prejudicar a defesa dos RR., muito embora não ao ponto de considerar demonstrado o facto – a causa – que se destinaria a provar.
Aqui chegados, o Tribunal vê-se forçado a reconhecer a incapacidade de alcançar uma certeza probatória quanto à causa das entregas de dinheiro demonstradas.
Nessa medida, e por força do que dispõem os art.ºs 342.º, n.º 2, do Código Civil, e 414.º do C.P.C., deverão considerar-se como não provadas as causas alegadas pelos AA., e por força do disposto no art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil, e do já citado art.º 414.º do C.P.C., igualmente como não provada a causa alegada pelos RR.
 No que tange ao facto 7) e ao facto não provado j), foi ponderado o teor do documento junto com a p.i. com o n.º 9, conjugado com o depoimento de FF, filho dos AA., que admitiu ter sido quem pediu ao Ilustre Mandatário daqueles para escrever a carta de interpelação aos RR., tendo sido esta a única evidência de que tal interpelação foi efectuada desde 2001.
 O facto 8) resultou novamente das regras vertidas nos art.ºs 342.º, n.º 2, do Código Civil, e 414.º do C.P.C., tendo em conta que o pagamento é um facto extintivo do direito invocado pelos AA., pelo caberia aos RR. alega-lo e prová-lo – o que não fizeram.
 Quanto aos demais factos não provados, a convicção do Tribunal resultou da ausência de prova ou de a prova produzida ter apontado em sentido contrário, nos termos expostos supra. Uma nota apenas para o facto h): os pagamentos ali referidos encontram-se estribados num documento (junto com a p.i. com o n.º 14) manuscrito pela A. mulher, BB (como a própria admitiu).
Tal documento foi impugnado pelos RR.
Ora, com o devido respeito, não se retira, desde logo, do próprio conteúdo do documento que os movimentos aí vertidos se refiram à 2.ª R. Acresce que o A., AA, e as testemunhas EE, FF e MM, que a este propósito foram arroladas, deram explicações sobre os pagamentos invocados, mas de uma forma muito vaga e até algo imprecisa, mas sem lograr convencer cabalmente quer quanto ao fundamento e necessidade das despesas, quer mesmo quanto ao interesse da 2.ª R. no pagamento das mesmas. Nessa medida, os AA. não conseguiram atingir o standard de prova exigível quanto a tal factualidade.”

Ora, ouvidas na íntegra as declarações e depoimentos dos Autores e do Réu, bem como todos os depoimentos das testemunhas inquiridas nos autos e conjugando os mesmos com os documentos constantes dos autos, nomeadamente os supra-referidos, e as regras da experiência comum, chegamos à mesma conclusão do tribunal a quo.
Com efeito, conforme é realçado pelo Tribunal a quo, perante a matéria de facto aqui em discussão, as partes, nos respectivos articulados, assumiram posições diametralmente opostas, as quais acabaram espelhadas nos depoimentos prestados em audiência.
Relativamente às declarações de parte, cumpre tecer algumas considerações prévias.
As declarações de parte são um meio probatório relativamente recente que foi introduzido no nosso ordenamento jurídico com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26/06.
Segundo a exposição de motivos da Proposta de Lei 113/XII, tal meio probatório confere “a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão.”

A introdução deste novo meio probatório na lei adjetiva pretendeu responder a uma cada vez significativa corrente de opinião que se vinha densificando no sentido de considerar e valorizar o depoimento de parte, ainda que sem caráter confessório, e de livre apreciação pelo tribunal, desde que o mesmo viesse a revelar um efeito útil para a descoberta da verdade material, pois que em muitos casos pode ser difícil ou mesmo impossível demonstrar certos factos por via diversa da do próprio relato das partes e muitas das vezes as partes terão conhecimento privilegiado dos factos que alegam ou presenciaram (Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in Código de Processo Civil, Anotado, Vol. 2º, Almedina, 3ª ed., pág. 307).

Assim, estabelece o art. 466º, do CPC, que:

1 - As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.
2 - Às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417.º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.
3 - O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.

Como referido no Acórdão da Relação de Lisboa, de 26.4.2017 (in www.dgsi.pt) a doutrina e a jurisprudência vêm assumindo várias posições no que respeita à função e valoração das declarações de partes que se reconduzem a três teses essenciais:
a) tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos;
b) tese do princípio de prova;
c) tese da autossuficiência das declarações de parte.

Para a primeira tese, que é defendida por Lebre de Freitas (in A Ação Declarativa Comum, À Luz do Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 2013, p. 278) “a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas.” Ou seja, as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa, supletiva e subsidiária, permitindo suprir falhas ao nível da produção da prova designadamente testemunhal, tendo particular relevo em situações em que apenas as partes protagonizaram e tiveram conhecimento dos factos em discussão.
Segundo a tese do princípio de prova as declarações de parte não são suficientes por si só para estabelecer qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.
Finalmente, a tese da autossuficiência das declarações de parte considera que as mesmas podem permitir a prova de um facto de forma autónoma, ou seja, desacompanhadas de qualquer outro meio probatório.
Propendemos para aceitar a tese do princípio de prova.
Como escreve Carolina Henriques Martins, (in Declarações de Parte, Universidade de Coimbra, 2015, p. 58) “não é material e probatoriamente irrelevante o facto de estarmos a analisar as afirmações de um sujeito processual claramente interessado no objeto em litígio e que terá um discurso, muito provavelmente, pouco objetivo sobre a sua versão dos factos que, inclusivamente, já teve oportunidade para expor no articulado.
Além disso, (...) também não se pode esquecer o caráter necessário e essencialmente supletivo destas declarações que, na maior parte dos casos, servirá para combater uma fraca ou inexistente prestação probatória.
Caso se considere útil a audição da parte nesta sede quando coexistem outros meios de prova, propomos a sua apreciação como um princípio de prova, equivalente ao mencionado argomenti di prova italiano, que não deixará de auxiliar na persuasão do juiz, mas que apenas o fará em correlação com a restante prova já produzida contribuindo para a sua (des)credibilização, e apenas nesta medida.
Estas são as coordenadas fundamentais para a consideração das declarações de parte no nosso esquema probatório”.
Com efeito, como se escreveu no Acórdão da Relação de Guimarães, de 18.1.2018 (in www.dgsi.pt) “as declarações de parte devem ser atendidas e valoradas com especial cautela e cuidado, já que, como meio probatório, não deixam de ser declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação, sendo por isso de considerar, em regra, irrazoável e insensato, que sem o auxílio de quaisquer outros meios probatórios, o Tribunal dê como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.” “A prova dos factos favoráveis ao depoente e cuja prova lhe incumbe não se pode basear apenas na simples declaração dos mesmos, é necessária a corroboração de algum outro elemento de prova, com os demais dados e circunstâncias, sob pena de se desvirtuarem as regras elementares sobre o ónus probatório e das ações serem decididas apenas com as declarações das próprias partes.”
E tanto mais assim será quando estiverem em causa factos fundamentais para a procedência da ação. Na verdade, em princípio, não se pode considerar admissível que um facto seja dado como provado com base unicamente na mera narração dele feita pela própria parte a quem tal facto aproveita e que, decorrente dessa prova, obterá a procedência da ação.

Conforme consta do sumário do Acórdão da Relação do Porto de 23.3.2015 (in www.dgsi.pt)
“I – A prova por declarações de parte é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão.
II – Mas a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias.
III – Neste enquadramento será normalmente insuficiente à prova de um facto essencial à causa de pedir a declaração favorável que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie.”
No mesmo sentido, veja-se o sumário do Acórdão da Relação de Lisboa, de 7.6.2016 (in www.dgsi.pt) que entendeu que:
I - As declarações de parte previstas no artº 466º do Código de Processo Civil devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado, pois são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação.
II- Mas a apreciação desta prova por declarações de parte faz-se segundo as regras normais da formação da convicção do Juiz.
III- Em relação a factos que são favoráveis à procedência da ação, o Juiz não pode ficar convencido apenas com um depoimento desse mesmo depoente, interessado na procedência da ação, se não houver um mínimo de corroboração de outras provas.”

Em síntese, consideramos que as declarações de parte que não importem confissão, na medida em que são produzidas por um sujeito processual que tem um interesse manifesto e direto no litígio, são declarações que, por princípio, se têm de reputar como interessadas, parciais e não isentas, não podendo considerar-se suficientes para, desacompanhadas de qualquer outro elemento probatório, sustentarem a prova de factos que são essenciais à procedência da ação.
Feito este enquadramento das declarações de parte, reconduzidas ao seu real valor, nos termos supra enunciados, alegam os Apelantes, em síntese, que do teor das declarações de parte do Autor e das testemunhas que indicam no recurso, em conjugação com os indicados documentos, se deve concluir pela prova positiva dos factos aqui em discussão.
Ora, analisadas no seu todo as declarações de parte do Autor, constatamos que as mesmas se revelam claramente tendenciosas ou interessadas, acabando o mesmo por, no essencial, reproduzir a matéria que lhe é favorável, já alegada petição inicial, no que foi acompanhado pelo depoimento das testemunhas EE e FF, filhos do Autor e pessoas naturalmente interessadas no desfecho favorável da causa. Nesses depoimentos é referido que os AA. emprestaram ao 1.º R. dinheiro para este fazer face a dificuldades financeiras no exercício da actividade da 2.ª R., de que era gerente, referindo ainda que, na mesma altura, acordaram com este a aquisição de uma quota da sociedade 2.ª R., e que o dinheiro entregue terá servido para o sinalizar.
No entanto, o Autor Marido nega que tenha solicitado a entrega dos montantes mutuados aos Réus, do mesmo passo que a Autora Esposa, afirma que A. marido solicitou a devolução dos alegados empréstimos, ao mesmo tempo que revela não ter noção das datas, dos montantes e de outras formas de pagamento – numerário ou transferências bancárias desses alegados empréstimos. Sendo esta pessoa quem, ao que afirma, geria a parte financeira da empresa EMP07... Lda. e procedia aos pagamentos, o confronto destas contradições torna mais frágil a versão dos AA.
Sucede que, o 1.º R. marido e as testemunhas por si arroladas contrariam tal versão dos AA., revelando que a 2.ª R. era uma das maiores sucatas do norte do país, movimentando muito dinheiro, sobretudo por força do seu negócio de exportação de metais para a siderurgia espanhola e que, por isso, não passava dificuldades económicas, não necessitando de qualquer empréstimo, nomeadamente dos AA. Mais negaram ter havido qualquer acordo ou intenção, de ceder quotas da 2.ª R. aos AA. É certo que as partes e as testemunhas foram coincidentes quanto ao facto de o A. marido ter estado durante algum tempo – semanas, meses – nas instalações da 2.ª R., mas divergiram quanto ao motivo dessa permanência. Assim, da parte dos AA. e das testemunhas por si arroladas foi referido que o A. estava a trabalhar para conhecer o negócio da 2.ª R. e ajudar no seu giro, com vista à futura aquisição de uma participação social. Do lado do 1.º R. e da testemunha GG foi afirmado que o A. marido estava a trabalhar no desmantelamento de uma grande partida de veículos automóveis para lhes retirar, em bom estado, as peças que iria adquirir para comercializar na sua própria sucata.
Decorre do exposto que, dos elementos de prova acima mencionados (declarações de parte e testemunhas), não podemos concluir de forma suficientemente segura pela demonstração dos factos aqui sob impugnação.
De resto, analisados os documentos contabilísticos invocados pelos Recorrentes, juntos aos autos em 19.12.2022, deles não é possível extrair dados decisivos no sentido de se concluir que, ao tempo dos alegados negócios, a 2.ª R. se encontrar numa situação de aperto financeiro ao ponto de obrigar os 1.ºs RR. a recorrer a empréstimos privados ou de a sociedade dos AA. não ter adquirido o montante de sucata alegado pelos RR. Acresce que, além de haver alegadas entregas em dinheiro, também é referido, designadamente, no depoimento da testemunha GG, que havia sempre negócios não facturados (efectuados “particularmente”) entre as partes,  daí que certamente não declarados aos serviços de finanças.
A conjugação de todos os apontados elementos probatórios com as regras da experiência comum e do normal acontecer, levam-nos a concluir por não demonstrada a factualidade aqui em causa.
Neste conspecto, subscrevemos na íntegra a seguinte passagem da motivação da Sentença:
- (…) “Com efeito, há que referir que o sincretismo da versão dos AA. não ajuda à credibilidade da mesma, pois não é sem dificuldade que se logra conceber um acordo para empréstimo de dinheiro – que, por definição, implica a sua restituição pelo mutuário, sem que, note-se, no caso concreto, quer os AA. quer as testemunhas por estes arroladas tenham falado de qualquer convenção (por ex., de prazo) relativa à restituição do dinheiro -, mas que, paradoxalmente, preenche também o papel de sinal num contrato-promessa verbal de compra e venda de quotas (sem que se tenham referido quais as condições do acordo ou sequer qual a percentagem do capital social da 2.ª R. que seria objecto de um tal negócio).
Salvaguardando algum erro de raciocínio, parece-nos que, logicamente, aquela dupla função é mutuamente exclusiva.
Outra perplexidade que nos assalta – e aqui repetimo-nos - é a total ausência de estipulação escrita das obrigações de AA. e RR., quer no que respeita a um eventual mútuo quer no que respeita a um eventual contrato-promessa de compra e venda de quotas, sobretudo quando atentamos na grandeza dos valores envolvidos: Esc.81.800.000$00 (oitenta e um milhões e oitocentos mil escudos), correspondendo, grosso modo, a mais de 408.000,00 € (quatrocentos e oito mil euros).
Poder-se-á argumentar que os envolvidos são pessoas de uma certa idade, com um certo acervo de valores, para quem a palavra dada vale. É certo que o Tribunal não poderá rejeitar, sem mais, essa alegação, devendo, pelo contrário, confirmá-la. Ora, o Tribunal procurou compreender as pessoas envolvidas, sobretudo o A. e o R. maridos, e o particular contexto em que se moviam. Nesse desiderato, apurou-se que o A. marido e o R. marido eram amigos e que se moviam no mundo do comércio de sucata, onde os negócios eram, à data dos factos, prósperos e volumosos, abundando os pagamentos em dinheiro. Todavia, também se demonstrou que eram empresários já com muitos anos de actividade e experiência de vida. Como tal, mesmo admitindo que a necessidade de registos escritos dos negócios não fosse muito significativa, não se coaduna, porém, com esta imagem a realização do tipo de negócios alegado pelos AA. sem um qualquer documento a suportar a transferência de tão elevados montantes de uns para outros (ainda a este propósito, note-se que, estranhamente, nenhum dos envolvidos conseguiu explicar ou reconhecer a minuta de contrato-promessa junta com a p.i. como doc. n.º ...2, que por esse motivo foi descartada em termos probatórios).”
De todo o exposto, somos a concluir que os factos não provados aqui sob impugnação devem manter-se como não provados, improcedendo totalmente a impugnação da matéria de facto.
*
Da inversão do ónus da prova

Alegam os Apelantes que é a segunda ré, pela representação do primeiro réu II, que torna impossível a demonstração da sua versão e da versão apresentada pelos autores; que a segunda ré não apresentou contas de 2001 – não obstante tê-lo feito retroativamente por referência aos anos de 2002, 2003 e 2004; que esta realidade não pode deixar de ser relevada para efeitos de aplicação do art. 344º, n.º 2 CCiv. A parte contrária, os réus, culposamente tornam difícil a prova da entrega de dinheiro e aplicação na sociedade comercial por falta de depósito de contas da mesma; que aquilo que resta aos autores para fazer prova de sua versão são réstias das contas de 2001 por reflexo nas contas apresentadas em 2005 e referentes a 2002 – cfr. inscr. 2 do doc. n.º ... junto com a contestação, ou seja, em 2005 os réus apresentam a depósito as contas da segunda ré, mas fazem-no sem incluir as contas de 2001, chave para se compreender a versão dos autores.
Mais alegam que, desta forma, os autores: vêem dificultada a prova da aplicação do dinheiro entregue; vêem dificultada a prova do facto dado como não provado h); não logram analisar a substância do facto impeditivo alegado pelos réus – que o dinheiro entregue não se destinava a ser restituído, mas sim que se destinava a pagar sucata vendida pela segunda ré (e facturada…!) à sociedade detida pelos autores; que assim sendo, deveria ser invertido o ónus da prova, no respeito pelo disposto no art. 344º, n.º 2 CCivil; que .não sendo dado como provado que os montantes entregues foram para compra e venda de sucata e não sendo possível analisar as contas de 2001 da segunda ré com detalhe (porquanto o seu depósito, obrigação legal de todos os réus, foi omitido), fica dificultado para lá do razoável a demonstração da aplicação do montante em questão na segunda ré e a veracidade da versão dos réus.
Concluem que, invertendo-se o ónus da prova, e não tendo sido provada a versão dos réus, deveria a sentença a quo ter resolvido a questão em litígio contra os réus – determinando a procedência dos pedidos dos autores.
Vejamos.
O citado Artigo 344.º, nº 2, do Código Civil dispõe “Há também inversão do ónus da prova, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, sem prejuízo das sanções que a lei de processo mande especialmente aplicar à desobediência ou às falsas declarações.”
Daqui resulta que a inversão do ónus da prova prevista nesta norma está dependente da verificação dos seguintes pressupostos:
- a prova de determinada factualidade, por acção da parte contrária, se tenha tornado impossível ou, pelo menos, se tenha tornado particularmente difícil de fazer;
- que tal comportamento lhe seja imputável a título de culpa.
Segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [In Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, 2017, Almedina, pág. 222], verifica-se o condicionalismo do art.º 344.º, n.º 2, do Código Civil, quando a conduta do recusante “impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (exs: art. 313-1 CC; art. 364 do CC), já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos…”.
A inversão do ónus da prova surge, assim, como uma sanção civil à violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade, consagrado no art.º 417.º, n.º 1, do CPC, que constitui, enquanto radicado nas próprias partes, uma emanação do princípio geral da cooperação consagrado no art.º 7.º, n.º 1 do mesmo Código, quando essa falta de cooperação vai ao ponto de tornar impossível ou particularmente difícil a produção de prova ao sujeito processual onerado com o ónus da prova nos termos gerais e seja culposa, no sentido de que a parte podia e devia agir de outro modo (art.ºs 344.º, n.º 2 do C. Civil e 417.º, n.º 2 do CPC) –  Cfr. Acórdão do STJ de 12/4/2018, processo n.º 744/12.4TVPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Decorre do exposto que a inversão do ónus da prova aqui suscitada é uma sanção prevista para o efeito no art. 417º, nº 2, do CPC, directamente relacionada com a violação do dever de cooperação para a descoberta da verdade.
Ora, a questão aqui suscitada no recurso – a inversão do ónus da prova - não foi alegada pelas partes nos respectivos articulados, nem em requerimentos autónomos, nem o Tribunal a quo proferiu qualquer decisão sobre ela, nomeadamente na sentença.
 Estamos, assim, perante uma questão nova, que não foi colocada pelos recorrentes nos respectivos articulados, nem foi objecto de apreciação pelo tribunal a quo, ou seja, trata-se de uma questão que não foi previamente submetida ao Julgador da primeira instância, pelo que a mesma se encontra subtraída ao conhecimento do Tribunal de recurso.
Sobre esta matéria, escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, pag. 119): “a natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objecto, decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o Tribunal ad quem com questões novas”.
A única excepção a esta regra são as questões de conhecimento oficioso, das quais, por definição, o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes.
Assim, não sendo uma situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal superior apreciar uma questão nova, por pura ausência de objecto: em bom rigor, não existe decisão de que recorrer. É um caso de extinção do recurso por inexistência de objecto (veja-se Ac. da Relação de Guimarães, de 8.11.2018, no proc. nº212/16.5T8PTL.G1, no qual se sumariou «1. Quando um recorrente vem colocar perante o Tribunal superior uma questão que não foi abordada nos articulados, não foi incluída nas questões a resolver, e não foi tratada na sentença recorrida, então estamos perante o que se costuma designar de questão nova. 2. Por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido, pois só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido. 3. A única excepção a esta regra são as questões de conhecimento oficioso, das quais o Tribunal tem a obrigação de conhecer, mesmo perante o silêncio das partes. 4. Não sendo uma situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal superior apreciar uma questão nova, por pura ausência de objecto: em bom rigor, não existe decisão de que recorrer. É um caso de extinção do recurso por inexistência de objecto».
Assim, não iremos conhecer da questão ora colocada, por impossibilidade legal, improcedendo nesta parte as conclusões do recurso
*
Do enriquecimento sem causa
           
Alegam os Apelantes que no caso vertente há enriquecimento sem causa, nos termos do art. 473º, n.º 2 Código Civil.
A sentença recorrida considerou que não estavam verificados os pressupostos legais de tal instituto jurídico.
Vejamos.

Dispõe o artigo 473.º que:
1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.
O enriquecimento sem causa depende, assim, da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- existência de um enriquecimento, que esse enriquecimento não tenha causa que justifique, que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição e que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído - Acórdão do STJ de 23.04.1998, BMJ 496, pág 370.
Assim, como refere Galvão Teles, dá-se o enriquecimento sem causa “quando o património de certa pessoa se valoriza ou deixa-se de valorizar à custa de outra pessoa, sem que exista uma causa justificativa. No que concerne ao 1º requisito, podemos dizer que “se dá o enriquecimento a favor de uma pessoa quanto o seu património se valoriza ou deixa de se desvalorizar. O enriquecimento traduz-se na diferença, para mais, entre o valor que o património apresenta e o que apresentaria se não ocorresse determinado facto (…). A valorização por sua vez pode consistir no aumento do activo ou na diminuição do passivo. A não desvalorização dá-se quando se faz uma economia ou poupança, evitando-se uma despesa que doutro modo se realizaria.[1]
Relativamente ao segundo requisito que consiste no enriquecimento ser obtido à custa de outem, é necessário compreender que a obrigação de restituir, pressupõe que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
A restituição supõe a deslocação de um valor entre patrimónios havendo um património beneficiado e outro desfalcado. Não é possível pedir a restituição de um valor que não se perdeu. Tem de se sofrer uma privação para se pretender a restituição que a lei fala.
É o empobrecido que a lei aponta como titular do direito creditório emergente do enriquecimento sem causa.[2]
Por fim, temos o último requisito que consiste no facto de o enriquecimento não ter causa justificativa.
Como escreveu Almeida e Costa, reputa-se que o enriquecimento carece de causa, quando o direito não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial”.[3]
Por último, será também necessário ter presente que o artigo 474º do CC estabelece a natureza subsidiária da obrigação, dizendo expressamente que “Não há lugar a restituição por enriquecimento quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição, ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.
Assim, atenda a relação de subsidiariedade, só será admissível lançar mão do enriquecimento sem causa, se se mostrarem esgotadas as hipóteses de aplicação de vários outros institutos.
A este propósito salienta Cunha Gonçalves[4], o seguinte: “Se o individuo que se julga lesado no seu património tiver ao seu dispor uma acção baseada em contrato ou num preceito especial da lei, em estreita e imediata correlação com o facto jurídico em questão, é esta acção que deve usar e não do locupletamento”, sendo que também Pires de Lima e Antunes Varela[5] fazem notar que “quando o enriquecimento assenta sobre um negócio jurídico e o negocio é nulo, a própria declaração do nulidade do acto devolve ao património de cada uma das partes os bens com que outra se podia enriquecer à sua custa.”
Desde modo e em conclusão, o enriquecimento sem causa depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
 - existência do enriquecimento;
 - que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique;
 - que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição;
 - que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído”.[6]
No caso vertente, não se vislumbra que o invocado enriquecimento não tenha causa.
Como bem nota a sentença recorrida, (…) “os AA. não lograram demonstrar a existência das causas das atribuições patrimoniais por si efectuadas ao 1.º R. – de igual modo, não se logrou a prova da causa invocada pelos RR. Poder-se-á, por isso, considerar consequentemente verificado o quarto pressuposto do instituto do enriquecimento sem causa supra enunciado: falta de causa justificativa?
A este propósito, a Doutrina é clara. Os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, I, Coimbra Editora, 1987, 456] ensinam que a “falta de causa terá de ser não só alegada como provada, de harmonia com o princípio geral estabelecido no artigo 342.º, por quem pede a restituição. Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus probandi, que não se prove a existência de uma causa da atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa”. Essa é também a posição do Prof. Almeida Costa [Direito das Obrigações, Almedina, 5.ª ed., 401, nota (1)].
De igual modo, a jurisprudência não diverge: “sendo o enriquecimento fonte autónoma da obrigação de restituir, embora subsidiária (art.º 474º do Cód. Civil), a falta de causa da atribuição ou vantagem patrimonial que integra o enriquecimento terá de ser alegada e demonstrada por quem invoca o direito à restituição dela decorrente, em conformidade com as exigências das regras gerais sobre os ónus de alegação e prova (art.º 342º do Cód. Civil). A mera falta de prova da existência de causa da atribuição não é suficiente para fundamentar a restituição do indevidamente pago, sendo necessário provar também que efectivamente a causa falta” [Ac. STJ de 24.03.2017, proc.º n.º 1769/12.5TBCTX.E1.S1, relator António Joaquim Piçarra, em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, vejam-se também o Ac. STJ de 04.07.2019, proc.º n.º 2048/15.1T8STS.P1.S1, relator Oliveira Abreu; Ac. RC de 13.07.2020, proc.º n.º 4570/17.6T8VIS.C1, relator Vítor Amaral; e Ac. RL de 04.06.2009, proc.º n.º 3572/03.4TBALM-6, relatora Márcia Portela, todos disponíveis em www.dgsi.pt].
A resposta à questão colocada supra terá, pois, que ser negativa.”
Na verdade, no caso em apreço, os AA. não lograram demonstrar a falta de causa das atribuições patrimoniais que beneficiaram o 1.º R., o que é gerador da improcedência do pedido subsidiário formulado em c), por falta de um dos pressupostos do instituto invocado.
Assim sendo, prejudicado fica o conhecimento da invocada nulidade da sentença por excesso de pronúncia relativa à prescrição do direito de peticionar o enriquecimento sem causa, de harmonia com o disposto no art. 608º, nº 2, do CPC.
Em síntese, improcede totalmente a presente apelação, devendo confirmar-se a sentença recorrida.
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Sumário:

- De harmonia com o previsto nos art. 473º e 474º do CC, o enriquecimento sem causa depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
 - existência do enriquecimento;
 - que esse enriquecimento não tenha causa que o justifique;
 - que ele seja obtido à custa do empobrecimento de quem pede a restituição;
 - que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído.

- Donde se conclui que inexistindo algum desses requisitos, não é de aplicar esse regime jurídico.

- A falta de causa da atribuição ou vantagem patrimonial que integra o enriquecimento terá de ser alegada e demonstrada por quem invoca o direito à restituição dela decorrente, em conformidade com as exigências das regras gerais sobre os ónus de alegação e prova previstas no art.º 342º do Cód. Civil.
- Não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus probandi, que não se prove a existência de uma causa da atribuição; é preciso convencer o tribunal da falta de causa.

DECISÃO

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Guimarães, 1.02.2024

Relator: Jorge Santos
Adjuntos: Paula Ribas
Conceição Sampaio



[1] Cfr. Galvão Teles, Direito das Obrigações, pág. 157.
[2] Cfr. Galvão Teles, ob. Cit., pág. 160.
[3] Cfr. Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 4ª edição, pág. 327.
[4] Citado por Leite Campos, in Enriquecimento sem causa, pág. 175
[5] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, 2ª Edição, Volume I, anotação ao artigo 474º
[6] Confrontar acórdão do STJ de 23.04.1998, in BMJ 476, pág. 370 e de 14.05.1996, in CJST, 1996, II Volume, pág. 171