Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
399/21.5GCVNF.G2
Relator: ISABEL CRISTINA GAIO FERREIRA DE CASTRO
Descritores: AMNISTIA
PERDÃO DE PENA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- A amnistia e o perdão previstos na Lei n.º 38-A/2023 aplicam-se a todo o universo de pessoas que, à data da prática dos factos ilícitos que cometeram, no período temporal ali definido, tenham idade compreendida entre 16 e 30 anos, com ressalva de alguns tipos de crimes e outras circunstâncias ali discriminadas.
Nessa confluência, a predita lei reveste caráter geral e abstrato, pois é aplicável a todos os arguidos que reúnam as condições nela previstas, em número indeterminado.

II- Por outro lado, a delimitação do âmbito de aplicação da amnistia e do perdão genérico pela idade das pessoas abrangidas – até aos 30 anos de idade – tem alguma correspondência com a idade dos destinatários principais da dita Jornada Mundial da Juventude e é consonante com o espírito de estabelecer medidas de clemência que facilitem a reinserção social relativamente àquela faixa etária [independentemente da religião perfilhada], tal como sucedeu, de resto, em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios
A delimitação do seu âmbito de aplicação mostra-se justificada, em termos objetivos e racionais, não sendo arbitrária nem irrazoável.

III- No quadro descrito, a diferenciação em função da idade estabelecida no artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023 está perfeitamente contida na margem de manobra de que o legislador dispõe para delimitar o campo normativo de aplicação das medidas de clemência e não fere o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. - RELATÓRIO

1. - No âmbito do processo n.º 399/21...., do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., em 06.10.2023, foi proferido despacho judicial com o seguinte teor [transcrição[1]]:

«Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto - Da não aplicação do perdão ao arguido condenados nos presentes autos
Nos presentes autos foi o arguido AA, nascido em ../../1980, condenado pela prática, em ../../2021, de um crime de furto qualificado, furto qualificado na forma tentada e burla informática, na pena única de 3 anos de prisão.
O perdão previsto na Lei 38-A/2023 aplica-se, de acordo com o seu art. 2º, n.º 1, “às sanções penais relativas aos ilícitos praticados (…), por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto”, o que manifestamente não é o caso do arguido, que tinha já mais de 30 anos aquando da prática dos factos.
Em conformidade, não tem lugar o perdão de penas previsto na referida Lei.
Notifique..»

2. - Não se conformando com tal decisão, dela veio AA interpor recurso, nos termos que constam do respetivo requerimento e que aqui se dão por integralmente reproduzidos, tendo, no termo da motivação, formulado as seguintes conclusões e petitório:
«I. Vem o presente Recurso interposto do douto despacho datado de 06/10/2023, com o seguinte teor:

“O perdão previsto na Lei 38-A/2023 aplica-se, de acordo com o seu art. 2º, n.º 1, “às sanções penais relativas aos ilícitos praticados (…), por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto”, (…) Em conformidade, não tem lugar o perdão de penas previsto na referida lei”.
II. Nos termos do despacho extratado, entendeu o tribunal “a quo” não ser de aplicar o perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto ao Arguido, e uma vez que há data dos factos o mesmo tinha mais de 30 anos.
III. O Arguido não pode conformar-se com o despacho proferido porque, e desde logo, é o mesmo violador do Princípio da igualdade.
IV. Salvo o devido respeito, o Arguido não se conforma com o despacho de proferido e, em prima facie, por se tratar da violação do princípio da igualdade.
Principiando,
V. Por douto Acórdão proferido no âmbito dos presentes autos, em 15 de maio de 2023, decidiu este Tribunal da Relação confirmar o acórdão da 1.º instância, condenando o Arguido pela prática, em 03/10/2021, de um crime de furto qualificado, furto qualificado na forma tentada e burla informática, na pena única de 3 anos de prisão.
VI. Não obstante, o Despacho n.º 13/23BrgCoordenação, de 24 de Agosto estipula um conjunto de procedimentos a adotar com vista à aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto.
VII. Pelo douto despacho com referência ...37, decidiu o tribunal de 1.º instância pela não aplicação do perdão ao Arguido, previsto na referida lei.
VIII. Ora, o limiar despacho sempre se revela desigual e desconforme a lei.
IX. É, pois, necessário apurar o circunstancialismo concreto em causa nos presentes autos não se bastando o plano arbitral com a alusão à faixa etária.
X. Significa isto que, o fundamento de inaplicabilidade daquela lei sequer remete para o ilícito praticado. Pelo contrário, consubstancia um impedimento fundamentado apenas no limite etário do Arguido.
XI. Nesta senda, as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
XII. Analisando o caso em concreto, a lei n.º 38-A/2023 não reveste carácter geral e abstrato, pois que, ao definir o âmbito da exclusão do perdão a pessoas que tenham mais de 30 anos de idade à data da prática do facto, limita o âmbito da sua aplicação, não se aplicando a todos os Arguidos que tenham sido condenados pela prática do mesmo crime e se encontrem na mesma situação.
XIII. O Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Tribunal, n.º processo 257/90, estipula que “o princípio de igualdade dos cidadãos perante a lei, consignado no artigo 13 da Constituição da República Portuguesa, não impõe a uniformidade absoluta de regimes jurídicos para todos os cidadãos, consentindo a sua diversidade assente em diferença de situações”5.
XIV. Contudo, o princípio da igualdade, princípio estruturante no nosso Estado de Direito Democrático, possui uma dimensão liberal, que constitui uma ideia de “igual posição de todas as pessoas”, uma dimensão democrática que pressupõe a “proibição de discriminações” e uma dimensão social “que acentua a função social do princípio (…), impondo a eliminação das desigualdades fáticas” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP anotada, 4ª ed. revista, Coimbra Editora, Vol. I, pp. 336 e 337).
XV. Desta forma, estabelece que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma forma e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham um tratamento diverso.
XVI. Com efeito, proíbe “a adoção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional”6.
XVII. Sob pena de, assim não sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes. (…) Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada.”7
XVIII. Admite-se, assim, que a proibição de discriminação nos termos do artigo 13, n.º 2 da CRP exige que as diferenciações de tratamento sejam materialmente fundadas e não se baseiem num qualquer motivo constitucionalmente impróprio.
XIX. Neste sentido, a jurisprudência do Tribunal Constitucional afirma que o princípio da igualdade nas leis de amnistia e de perdão genérico “só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis” (Acórdão n.º 42/95), entendendo que as diferenças de tratamento legal traduzem uma diferenciação arbitrária apenas quando não sejam concretamente compreensíveis ou quando não seja possível encontrar uma justificação razoável para a diferenciação, ligada à natureza das coisas (Acórdão n.º 152/95)"8.
XX. Seguindo essa vertente, considera-se que existe violação do princípio da igualdade quando, como é o caso, não existe adequado suporte material para a diferença. Isto posto, basear um tratamento desigual com base na idade dos Arguidos não refere a mínima concretização nem fundamento para a desigualdade apresentada.
XXI. Assim, o despacho que indefere o perdão de pena, viola o preceito legal previsto no art. 13º, n.º 2 CRP.
XXII. Por conseguinte, em face de tudo o que foi alegado, deve revogar-se o douto despacho recorrido do Tribunal a quo, sendo proferido acórdão no que determine a aplicação da referida lei.
Nestes termos e nos melhores de direito,
julgando-se totalmente procedente o presente recurso
a revogando-se o douto despacho recorrido, com as
inerentes consequências legais, se fará sã, inteira,
serena e objetiva JUSTIÇA!»
 
3. - A Ex.ma Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância apresentou resposta, concluindo:

«1. A delimitação do âmbito de aplicação da lei n,º38-A/2023, de 2 de Agosto está devidamente justificado e não se mostra arbitrária, nem irrazoável, pelo que não padece de inconstitucionalidade a limitação constante do n.º1, do artigo 2º.
2. A lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto aqui em causa reveste carácter geral e abstracto, pois ela aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número indeterminado.
Face ao exposto, entende-se dever ser negado provimento ao recurso e confirmada, pois, na íntegra, o acórdão recorrido.
CONTUDO, V. EX. AS DECIDIRÃO CONFORME FOR DE JUSTIÇA».

4. - Por seu lado, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, neste Tribunal da Relação, emitiu fundamentado parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.

5. - Foi cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta ao sobredito parecer.

6. - Colhidos os vistos e realizada a conferência, em consonância com o estatuído no artigo 419º, n.º 3, al. c), do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
*
II. – FUNDAMENTAÇÃO

1. - Constitui entendimento pacífico que, em matéria de recurso, é pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, nas quais sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), que se delimita o objeto do mesmo e se fixam os limites do horizonte cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente pelo tribunal ad quem[2].

Assim, no presente recurso a questão a decidir reconduz-se a saber se o arguido deve beneficiar da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, por força da inconstitucionalidade do estatuído no n.º 1 do artigo 2º daquele diploma legal na parte em que limita a sua aplicação a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos, por violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.

2. - Apreciação do recurso

O recorrente/condenado insurge-se contra o despacho recorrido, mediante o qual entendeu o tribunal a quo que aquele não podia beneficiar do perdão de pena previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, em virtude de, à data dos factos, ter idade que ultrapassa o limite etário estabelecido no dito diploma [30 anos].
Alega, em síntese, o recorrente que a Lei n.º 38-A/2023 não reveste carácter geral e abstrato, pois, ao definir o âmbito da exclusão do perdão a pessoas que tenham mais de 30 anos de idade à data da prática do facto, limita o âmbito da sua aplicação, não se aplicando a todos os arguidos que tenham sido condenados pela prática do mesmo crime e se encontrem na mesma situação, ocorrendo violação do princípio da igualdade quando, como é o caso, não existe adequado suporte material para a diferença.

Vejamos.

Estatui o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “princípio da igualdade”:

“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”

É inquestionável que o princípio da igualdade constitui um dos mais basilares princípios enformadores de um moderno estado de direito democrático, nomeadamente no que concerne ao ius puniendi promovido pelo Estado.
Não obstante, as medidas de graça ou de clemência podem introduzir um desvio àquela regra, desde que devidamente legitimadas e sem que representem uma incomportável subversão de princípio tão estrutural e estruturante de um estado de direito.
Nos termos do artigo 127º, n.º 1, do Código Penal, “a responsabilidade criminal extingue-se ainda (…) pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto.”

Por seu turno, estabelece o artigo 123º do mesmo código:
“(…)
2 - A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança.
3 - O perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte.
4 - O indulto extingue a pena, no todo ou em parte, ou substitui-a por outra mais favorável prevista na lei.”

Atenta a sua natureza excecional e os seus específicos contornos, as medidas de clemência – amnistia. perdão genérico e perdão individual ou particular, em que se integram o indulto e a comutação e penas – têm sido alvo de frequente e aprofundada apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça e pelo Tribunal Constitucional.

Assim, no Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2001, de 14.11[3], após uma breve resenha histórica sobre a evolução dos conceitos de amnistia, perdão, indulto e comutação, efetuou-se a seguinte reflexão:
“Com a institucionalização do Estado de direito social e democrático, todos os actos de graça são actos que se movem no mundo do direito, desde logo no do direito constitucional, pelo que estão sujeitos ao seu império, portanto ao controlo jurisdicional. O que se reflectiu nos próprios termos da distinção entre amnistia e indulto, evidenciando que na primeira se trata sempre de uma medida formalmente legal (competindo às câmaras legislativas) e, deste modo, dotada das características de objectividade, generalidade e impessoalidade, enquanto no indulto se trata de intervenções executivas através das quais, no caso concreto, são afastadas, reduzidas ou suspensas as consequências jurídicas de uma condenação penal, transitada em julgado.
É assim que a Constituição dispõe hoje que «compete à Assembleia da República [...] conceder amnistias e perdões genéricos» - artigo 161.º, alínea f) -, competindo ao Presidente da República «na prática de actos próprios [...] indultar e comutar penas, ouvido o Governo» - artigo 134.º, alínea f).
Em ambos os casos fica derrogado o sistema legal punitivo; daí o intitular-se, por vezes, o regime das medidas de graça como um jus non puniendi. O direito de graça é, no seu sentido global e abrangente, «a contraface do direito de punir estadual» (Figueiredo Dias, Direito Penal ..., parte geral II, 1993, p. 685).
Sucede ainda que o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.
Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam.”

Decorridos mais de 20 anos, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/2023, de 01.02[4], apesar de se debruçar mais especificamente sobre o perdão de penas de prisão, no âmbito da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril – que veio estabelecer um regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19 –, mantém, na essência, a mesma perspetiva, sobre o direito de graça e afins e a excecionalidade dos mesmos, como ressuma do seguinte excerto:

«6 - Ora, o direito de graça, em que se integra o perdão de penas, consubstancia a "contraface do direito de punir estadual", consubstanciando um caminho "para obviar incorrecções legislativas ou a erros judiciários [...] como para propiciar condições favoráveis a modificações profundas da legislação de carácter penal, ou [...] à socialização do condenado"(…).

Assim, as medidas de graça ou de clemência são uma "reminiscência do direito de graça que o soberano detinha quando concentrava em si todos os poderes estatais, incluindo os de castigar e de perdoar", subvertendo os "princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça"(…).
Os atos de graça abrangem, assim, a amnistia, o perdão genérico e o perdão individual ou particular, em que se integram o indulto e a comutação(…). A distinção entre as várias medidas de graça efetua-se conforme o ato respeite ao facto praticado ou à pena concretamente aplicada, bem como consoante abranja um caso concreto ou um grupo de situações, em função das características do facto praticado ou do agente(…).
Assim, "[...] o Estado-de-Direito metamorfoseou o direito de graça, passando a encará-lo através de outro prisma, e aproveitou-o como instrumento útil na realização de uma autêntica justiça. Criteriosamente administrado, o direito de graça pode servir para a realização da justiça nos casos em que a aplicação da lei, na sua generalidade a abstracção, dá lugar a decisões concretas materialmente injustas ou político-criminalmente inadequadas"(…).
Tais medidas de graça não estão expressamente previstas a se no âmbito da Constituição da República Portuguesa, encontrando-se apenas mencionadas aquando da referência aos poderes do Presidente da República (indulto e comutação da pena, nos termos do artigo 134.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa) e do Parlamento (amnistia e perdão genérico, previstos no artigo 161.º, alínea f) da Constituição da República Portuguesa).
"O que verdadeiramente distingue os institutos é o carácter geral da amnistia (dirigido [...] a grupos de factos ou de agentes, em contraposição ao carácter individual do indulto (dirigido a pessoas concretas)"(…).
"A amnistia é, pois, uma instituição de clemência da competência da Assembleia da República. Os seus efeitos podem ser a extinção do processo penal ou, no caso de já existir uma condenação, a extinção da pena e dos respectivos efeitos. No primeiro caso estamos perante uma amnistia própria (em sentido próprio), e no segundo caso perante uma amnistia imprópria (em sentido impróprio).
O perdão genérico é uma figura próxima da amnistia. Trata-se de uma medida de carácter geral, que tem como efeito a extinção de certas penas (pelo que a doutrina o qualifica como verdadeira amnistia imprópria).
Designa-se por amnistia a medida de graça, de carácter geral, aplicada em função do tipo de crime, e perdão genérico a medida de graça geral aplicada em função da pena.
Visto que o perdão genérico é, como se disse, aplicado em função da pena, ele tem a particularidade de poder ser total ou parcial, conforme seja perdoada a totalidade ou apenas uma parte da pena"(…).
Nesta medida, enquanto a amnistia respeita às infrações abstratamente consideradas, "apagando" a natureza criminal do facto, o perdão implica que a pena ou a medida de segurança não sejam, total ou parcialmente, cumpridas.
"A amnistia serve para libertar o agente de um processo penal ainda em curso ou do cumprimento de uma pena, devida à prática de determinado crime. Significa isto que alguns bens jurídicos, protegidos pela legislação penal, são considerados menos importantes, em determinados contextos (por exemplo, em caso de necessidade de pacificação social), razão pela qual a sua protecção pode ser sacrificada reotractivamente. Contudo, tal não significa que a amnistia implique a ausência de dignidade punitiva do acto ilícito.”.
No caso do perdão genérico, atenta-se apenas na gravidade da pena e no sacrifício que o seu cumprimento implica para o condenado, podendo aquela ser total ou parcialmente perdoada"(10).
Assim, e nos termos do artigo 127.º do Código Penal, "a responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto".
Por sua vez, o artigo 128.º, n.º 2 do Código Penal preceitua que "a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança" e, no n.º 3, que "o perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte".
(…)
7 - O direito de graça assume uma natureza excecional (…)».
Essa marcada caraterística de excecionalidade suscita, como não podia deixar de ser, diversas questões jurídicas, desde logo no plano da constitucionalidade das normas e introduz, inevitavelmente, variadas entropias no sistema de administração da justiça penal.
Como assim, as sucessivas leis que têm decretado amnistias e perdões genéricos têm suscitado a apreciação de inúmeras questões que se prendem, em particular, com a observância das exigências do princípio da igualdade.

O Tribunal Constitucional foi chamado múltiplas vezes a pronunciar-se a esse respeito, podendo ver-se, entre outros, os seguintes acórdãos:

- Acórdão 488/2008 [proferido no processo n.º 35/08][5]:
«O Tribunal Constitucional tem uma vasta jurisprudência sobre o princípio da igualdade.

Reflectindo o estado actual da compreensão do princípio da igualdade, tanto na jurisprudência como na doutrina, nacionais e estrangeiras, afirmou-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2003 (publicado no Diário da República I Série-A, de 17 de Junho de 2003), assumindo em diversos passos da sua fundamentação abundante argumentação de jurisprudência anterior:
“[...] Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cfr. ob. cit., pág. 129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da "atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18º, nº 1, da Constituição)”(cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 186/90, publicado no Diário da República II Série, de 12 de Setembro de 1990).
[…]
1.2.- O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, “razoável, racional e objectivamente fundadas”, sob pena de, assim não sucedendo, “estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes”, no ponderar do citado Acórdão nº 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J.C.VIEIRA DE ANDRADE – Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como “princípio negativo de controlo” ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos nºs. 157/88, publicado no Diário da República, I Série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados nºs. 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial (“tertium comparationis”). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminando o arbítrio (cfr., a este propósito, GOMES CANOTILHO, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; ALVES CORREIA, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão nº 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cfr. GOMES CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; ALVES CORREIA, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da "diferença"” de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.
[…]
“[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos nºs 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2ª ed., 1993, p. 213 e ss., GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, pp. 564-5, e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss.]”.
[…]
Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio (Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade.
Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma “fundamentação razoável” (vernünftiger Grund), tal como sustentou o “inventor” do princípio da proibição do arbítrio, GERHARD LEIBHOLZ (cf. F. ALVES CORREIA, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é reiterada entre nós por MARIA DA GLÓRIA FERREIRA PINTO: “[E]stando em causa (...) um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela 'ratio' do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A 'ratio' do tratamento jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério” (cf. Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de sentido?, sep. do Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais adiante, opina a mesma Autora: “[O] critério valorativo que permite o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à 'ratio' do tratamento jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a 'ratio' do tratamento jurídico exija que seja este critério, o critério concreto a adoptar, e não aquele outro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão entre o critério adoptado e a 'ratio' do tratamento jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável à subsistência familiar numa determinada sociedade” (ob. cit., pp. 31-32).
[…]».

- Acórdão nº 152/95, proferido no Processo nº 519/94, de 15.03.1995[6], onde se considerou:
“É sabido que a igualdade, em sentido material (e é esta a igualdade que o artigo 13º. expressa), pressupõe tratamento igual do que é igual e tratamento diferente do que é diferente, de acordo com a medida da diferença. Daí que, seguindo uma linha jurisprudencial constante que já remonta à Comissão Constitucional, este Tribunal afirme (por exemplo no Acórdão nº. 231/94, publicado no DR-I-A de 28/4/94) que uma diferenciação de tratamento fundada em motivações objectivas, razoáveis e justificadas, não é atentatória do princípio da igualdade. Por outras palavras, utilizando uma formulação do Tribunal Constitucional Federal Alemão (BVerf GE 1,14 (52), citada por Alexy, Theorie der Grundrecht, Suhrkamp-Verlag, 1986, pág. 370) tratamentos legais diferentes, traduzem uma diferenciação arbitrária "quando (...) não é possível encontrar um motivo razoável decorrente da natureza das coisas, ou que, de alguma forma, seja concretamente compreensível", para essa diferenciação.

No caso da exclusão do perdão aqui em causa, sendo colocados como são, em plano de igualdade todos aqueles que, como o aqui recorrente, foram condenados pela prática de crimes contra as pessoas em pena de prisão superior a 10 anos, que já tenha sido reduzida por anterior perdão, não existe tratamento diverso de quem se encontra em situação idêntica (v. Rui Pereira, O Princípio da Igualdade em Direito Penal, o Direito, 1988/I-II, pág. 151). Da mesma forma não comporta a exclusão tratamento arbitrário, sendo como é explicável e racionalmente compreensível por razões de política criminal expressas numa acrescida necessidade de efectividade da pena, nas situações excluídas.
(…)
Sobre este tema, já se escreveu (José de Sousa e Brito, "Sobre a Amnistia", Revista Jurídica, 6/1986, pág. 44): "o princípio da igualdade, tratando-se aqui da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são alargados - como são restringidos pela aplicação das sanções -, impede desigualdades de tratamento (...). A delimitação dos factos amnistiados tem que ser feita segundo critérios susceptíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias, mas razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de direito".
- Acórdão nº 444/97, proferido no Processo nº 784/96, de 25.06.1976[7], que se debruçou sobre a Lei nº 9/96, de 23 de março:
«[…]
Cumpre, contudo, reconhecer que a tese de que a lei de amnistia implica logicamente uma dispensa da lei punitiva, que há que sindicar constitucionalmente quanto à sua racionalidade ou razoabilidade, tendo em vista o princípio da igualdade, é compatível com a "autonomia" do poder de conceder amnistias (afirmada no acórdão nº 362 [p. 25] da Comissão Constitucional) relativamente ao poder de fazer leis, consagrados em separado nas alíneas d) e g) da Constituição como competências distintas da Assembleia da República, que em outras constituições são atribuídas a órgãos distintos […]. Por outro lado, como se mostrará a seguir, embora o princípio da igualdade seja aplicável à lei de amnistia, é-o em termos compatíveis com a desigualdade de tratamento que ela implica relativamente aos casos que continuam a ser abrangidos pela lei punitiva geral amnistiada (ponto acentuado por outras palavras no Parecer nº 13/79, p.104 da Comissão Constitucional. Sobre amnistia na jurisprudência da Comissão Constitucional, cf. ainda o parecer nº 32/79 [Pareceres, 10, 1980), p. 107 ss.]; e os acórdãos nºs 186 de 26.3.1980 [Apêndice ao Diário da República de 3.7.1980], 259 [Apêndice ao Diário da República de 28.7.81], 309, 310, 311, 314 [Apêndice ao Diário da República de 22.12.1981]). Acresce que a norma de amnistia, mesmo geral, no sentido apontado, não deixa de ser uma medida política, que não põe em questão a continuada vigência da norma punitiva amnistiada, que continua a ser a regra geral incriminadora, nem dos princípios gerais do direito penal, medida relativamente à configuração da qual o legislador dispõe de uma liberdade de conformação legislativa, nomeadamente do ponto de vista do princípio da igualdade, superior à que caracteriza outras normas, que exprimam regras ou princípios jurídicos. Com este limitado conteúdo seria adequado falar de um "acto político plural", expressão que pode, contudo, equivocadamente ligar-se à tese da insindicabilidade constitucional das normas de amnistia.
Justifica‑se assim e precisa‑se a próxima tarefa: saber se a norma de amnistia questionada viola os princípios do Estado de direito e especialmente o princípio da igualdade, que fundamenta a generalidade da lei. Ora o princípio da igualdade não significa proibição de normas especiais ou excepcionais relativas a categorias de interessados, mesmo se já individualizáveis em concreto, como nas leis retroactivas, mas sim proibição de normas diversas para situações objectivamente iguais, com o corolário de que normas diversas regulam situações objectivamente diversas do ponto de vista da razão da norma (assim, os acórdãos nºs 44/84, 34/86, 12/88, 39/88, 191/88, 186/90, 330/93, 381/93, 516/93, 335/94, 468/96, 563/96 e 786/96, publicados nos Acórdãos, 3º vol., p. 133, 7º vol., t. I, p. 37, 11º vol., p. 135 e p. 233, 12º vol., p. 239, 16º vol., p. 383, 25º vol., p. 421 e p. 547, Diário da República, II Série, 19/1/1994, 30/8/1994, e 13/5/1996, e I Série A, 16/5/1996 e II Série, de 20/8/1996, respectivamente). Antes porém, convém passar em revista a prática portuguesa em matéria de leis de amnistia desde o 25 de Abril de 1974, de modo a tipificar as várias causas das normas de amnistia, com vista à formulação dos princípios gerais relevantes para a aplicação do princípio da igualdade.
[…]
Quanto à causas da amnistia, há que ter presente as causas do acto amnistiante, que explicam a oportunidade do diploma legal no seu conjunto e as causas de cada norma de amnistia que o diploma contém.
[…]»
Conquanto não se refiram a leis de amnistia, outras decisões do Tribunal Constitucional se têm pronunciado sobre o âmbito do princípio da igualdade e sua eventual violação, destacando-se o Acórdão nº 809/2021, proferido no Processo nº 516/20, de 26 de outubro, que transcreve, além do mais, uma impressiva síntese constante do acórdão n.º 157/2018:
«[…]
7. O princípio da igualdade constitui um verdadeiro princípio estruturante da ordem jurídica constitucional, sendo mesmo uma exigência do princípio do Estado de Direito. Trata-se de um princípio que vincula diretamente todos os poderes públicos – particularmente o legislador –, que estão assim obrigados a tratar de modo igual situações de facto essencialmente iguais e de modo desigual situações intrinsecamente desiguais, na exata medida dessa desigualdade, desde que esse tratamento desigual tenha uma justificação razoável, racional e objetivamente fundada.
O âmbito de proteção do princípio da igualdade abrange, na ordem constitucional portuguesa, diversas dimensões: proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer diferenciações de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjetivas ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição revista, Coimbra Editora, 2007, pág. 339).
Este Tribunal já por diversas vezes se pronunciou sobre o princípio da igualdade, particularmente na dimensão da proibição do arbítrio, firmando uma jurisprudência reiterada no sentido de que o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que for essencialmente diferente, não impedindo a diferenciação de tratamento, mas apenas as discriminações arbitrárias, irrazoáveis, ou seja, as distinções de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, sem fundamento material bastante, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º (veja-se, neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos n.ºs 39/88, 157/88, 86/90, 187/90, 1186/96, 353/98, 409/99, 245/2000, 319/2000, 187/2001 e 232/2003).
Assim, constitui jurisprudência uniforme e reiterada deste Tribunal que a Constituição só proíbe o tratamento diferenciado de situações quando o mesmo se apresente arbitrário, sem fundamento material. A este respeito e em particular sobre o sentido da igualdade jurídica, pode ler-se no Acórdão n.º 565/2018:
«15. Numa perspetiva material ou substantiva, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da diferença. Com efeito, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88:
«A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).
O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.”
Na sua mais recente orientação em matéria de controlo da liberdade de conformação do legislador à luz do princípio da igualdade, tem este Tribunal separado dois níveis de análise e graus diferenciados quanto à intensidade do escrutínio. Segundo a síntese do Acórdão n.º 157/2018:
“No primeiro nível, o princípio da igualdade surge convocado como condição da possibilidade de estabelecer a distinção introduzida pela norma questionada, decorrendo a sua violação da ausência de um «fundamento racional» suficientemente justificativo da própria opção de diferenciar […].
No segundo nível, resultante da integração na estrutura do princípio da igualdade de dimensões típicas do princípio da proibição do excesso, tem-se especialmente em vista o escrutínio da medida ou da extensão em que a diferenciação estatutária entre [as] duas categorias [em causa] surge concretizada [no regime diferenciador: assumindo a respetiva ratio, importará verificar se o legislador não demonstra] que a prossecução de tal desiderato tornasse necessário o afastamento integral [do regime comum]. [A configurar-se] uma medida menos diferenciadora, propiciadora de um tratamento mais igualitário entre as duas categorias […] sob comparação, e suscetível de alcançar o mesmo desiderato, a extensão em que a diferenciação surge concretizada no [regime em análise] será, em vista dos próprios fins que lhe subjazem, desnecessária, tornando-se, nesta aceção, incompatível com o “princípio da proporcionalidade, enquanto decorrência do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição)”.
10. Na base do n.º 1 do artigo 13.º da Constituição, e comum a todos os corolários, mais ou menos exigentes, que dele se podem retirar, encontra-se a ideia de igualdade enquanto proibição do arbítrio.
Fornecendo o patamar mínimo do controlo jurisdicional proporcionado pelo princípio da igualdade e acentuando-lhe a função de limite externo da liberdade de conformação do legislador ordinário, a conceção da igualdade como proibição do arbítrio vem sendo desde há muito perfilhada na jurisprudência deste Tribunal. [Na síntese do Acórdão n.º 750/95, o “princípio da igualdade reconduz-se (…) a uma proibição de arbítrio sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais”. […]
Segundo se extrai ainda da jurisprudência constitucional, a ausência de fundamento material bastante em que se baseia o juízo de censura por violação do princípio da igualdade tanto pode dizer respeito à própria opção de estabelecer um tratamento diferenciado, como à medida em que tal diferenciação surge em concreto concretizada.
[…]
[O]perando essencialmente enquanto proibição do arbítrio, [o princípio da igualdade] enseja um controle externo das opções do legislador ordinário baseado num escrutínio de baixa intensidade. Partindo do reconhecimento de que é ao legislador democraticamente legitimado que cabe ponderar, dentro da ampla margem de valoração e conformação de que dispõe, “os diversos interesses em jogo e diferenciar o seu tratamento no caso de entender que tal se justifica” (Acórdão n.º 231/94) – definindo ou qua­lificando “as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigual­mente” (Acórdão n.º 369/97) –, assinala-se ao princípio da igualdade a função de invalidar as escolhas do poder legislativo quando a desigualdade de tratamento que nelas se contém for, quanto ao seu fundamento ou quanto à medida, extensão ou grau em que surge concretizada, à evidência irrazoável.»
Aqui chegados, e inexistindo, ainda, decisões [conhecidas] do Tribunal Constitucional que se debrucem especificamente sobre a questão da (in)constitucionalidade da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, por eventual violação do princípio da igualdade, atenta a delimitação da faixa etária por ela abrangida, importará refletir sobre a mesma tendo em perspetiva a caraterização das medidas de graça e a delimitação daquele princípio basilar emergentes da doutrina e jurisprudência antes profusamente citadas.
Com efeito, a Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, conforme esclarece o seu artigo 1º, veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, sendo que, nos termos do seu artigo 2º, n.º 1, “estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”
Da interpretação da lei resulta inequivocamente que os maiores de 30 anos de idade à data da prática do facto não beneficiam das medidas de graça ali estabelecidas. Recorde-se que as normas que preveem medidas de clemência, atenta a sua natureza excecional, não comportam aplicação analógica [cfr. artigo 11.º do Código Civil], sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem interpretação extensiva ou restritiva, devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas.
Ora, é certo que desde o início da iniciativa legislativa que a previsão da diferenciação de tratamento entre cidadãos com idade compreendida entre os 16 e os 30 anos de idade e os demais suscitou alguma apreensão sobre se estaria assegurada a conformidade com o princípio da igualdade, constitucionalmente garantido.

Desde logo, a Procuradoria Geral da República apresentou parecer a propósito da proposta de Lei n.º 97/XV/1, da qual resultou a lei que veio a ser aprovada, no qual suscitava as dúvidas sobre a constitucionalidade da norma em causa, aí se referindo:
“(…) a Proposta de Lei cria uma efetiva diferenciação entre as pessoas penalmente imputáveis em função da idade à data da prática de um facto ilícito típico, ainda que o tipo de ilícito cometido tenha sido o mesmo, pelo que deverá merecer uma aturada e aprofundada reflexão sobre a sua eventual conformidade com o artigo 13º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e o artigo 21º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta).”

Também o Conselho Superior da Magistratura emitiu parecer expressando as suas reservas:
“(…) a diferenciação de tratamento entre pessoas que praticaram idênticas infrações com base unicamente na idade que possuíam no momento da sua prática, ainda que amparada na faixa etária dos principais destinatários de um evento, suscita as maiores reservas quanto à sua conformidade constitucional.
Na verdade, trata-se de uma discriminação (positiva) em função da idade4, que não se mostra devidamente justificada.
Segundo o ensinamento de Gomes Canotilho e Vital Moreira5, as diferenciações só podem ser legítimas quando se baseiem numa distinção objetiva de situações, tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional e se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objetivo.
A discriminação para ser legítima terá, pois, que ser proporcional, necessária e adequada, não podendo, de modo algum, ser arbitrária. As medidas das diferenças que estabelecem terão que ser proporcionais.
As JMJ não são um valor constitucional que justifique a discriminação de pessoas, sendo, pois, duvidoso que esta discriminação se considere não arbitrária, considerando que a discriminação que é feita tem que se justificar para fins constitucionalmente legítimos.
Por outras palavras: é necessário que a discriminação seja constitucionalmente legítima e que a diferença de tratamento estabelecida pelo legislador seja adequada e proporcional nessa perspetiva.”
Já a Ordem dos Advogados emitiu também parecer, mas no sentido de a referida norma estar de acordo com os preceitos constitucionais.

Contudo, a justificação para a fixação do limite dos 30 anos está bem patente na exposição de motivos que acompanhou a apresentação da proposta de lei como sobressai do seguinte excerto:
“(…) A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é um evento marcante a nível mundial, instituído pelo Papa João Paulo II, em 20 de dezembro de 1985, que congrega católicos de todo o mundo. Com enfoque na vertente cultural, na presença e na unidade entre inúmeras nações e culturas diferentes, a JMJ tem como principais protagonistas os jovens.
Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.
Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.”

É certo que não se vislumbra qualquer relação da concessão desta amnistia com quaisquer das tarefas de política criminal que devem caber ao direito de graça, designadamente a intervenção como «válvula de segurança» do sistema, evitando a severidade da lei mediante circunstâncias supervenientes nas relações comunitárias ou da situação pessoal do agraciado, mas a verdade é que tem sido ‘tradicional’ entre nós a publicação de leis de amnistia para efeitos de comemoração de eventos festivos ou de visitas ao país de personalidades importantes[8], tendo passado pelo crivo do Tribunal Constitucional, nos termos que supra aludimos quanto a algumas delas.
Também é discutível que tenha subjacente um evento de cariz eminentemente religioso num estado laico como o nosso.
Não obstante, não podemos deixar de reconhecer que a delimitação do âmbito de aplicação da amnistia e do perdão genérico pela idade das pessoas abrangidas – até aos 30 anos de idade – tem alguma correspondência com a idade dos destinatários principais da dita Jornada Mundial da Juventude e é consonante com o espírito de estabelecer medidas de clemência que facilitem a reinserção social relativamente àquela faixa etária [independentemente da religião perfilhada], tal como sucedeu, de resto, em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios [veja-se a Lei n.º 29/99, de 12.05 (artigo 3.º)].
De resto, a diferenciação de tratamento punitivo em função da idade, com vista a facilitar a ressocialização social do jovem delinquente, já está prevista entre nós desde 1982, mediante o DL n.º 400/82, de 23.09, que instituiu o regime aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, estabelecendo, além do mais, a possibilidade de atenuação especial da pena nos termos consignados no artigo 4º do mesmo diploma legal.
Assim, conclui-se que a amnistia e o perdão previstos na Lei n.º 38-A/2023 aplicam-se a todo o universo de pessoas que, à data da prática dos factos ilícitos que cometeram, no período temporal ali definido, tenham idade compreendida entre 16 e 30 anos, com ressalva de alguns tipos de crimes e outras circunstâncias ali discriminadas.
Nessa confluência, a predita lei reveste caráter geral e abstrato, pois é aplicável a todos os arguidos que reúnam as condições nela previstas, em número indeterminado.
Por outro lado, a delimitação do seu âmbito de aplicação mostra-se justificada, em termos objetivos e racionais, não sendo arbitrária nem irrazoável.
No quadro descrito, a diferenciação em função da idade estabelecida no artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023 está perfeitamente contida na margem de manobra de que o legislador dispõe para delimitar o campo normativo de aplicação das medidas de clemência e não fere o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado[9].
Como decorrência, tendo o recorrente à data da prática dos factos ilícitos pelos quais foi condenado mais do que 30 anos, não pode, efetivamente, beneficiar do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, tal como foi decidido no despacho objeto de recurso.
A violação do princípio da igualdade invocada pelo recorrente somente ocorreria se, estando este dentro da faixa etária estabelecida pela norma, fosse recusada a aplicação da amnistia ou perdão em virtude de alguma das situações enunciadas no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, o que não sucedeu, manifestamente, no caso em apreço caso.
Ante o exposto, improcede a pretensão recursiva do recorrente.
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III. – DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo condenado AA e, em consequência, confirmar o despacho recorrido.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta [artigos 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma].
*
*
(Elaborado pela relatora e revisto e assinado [eletronicamente] pelas signatárias – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
*

Guimarães, 20 de fevereiro de 2024

Isabel Gaio Ferreira de Castro[Relatora]
Pedro Freitas Pinto[1.º Adjunto]
Cristina Xavier da Fonseca[2.ª Adjunta]



[1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correção de erros ou lapsos de escrita manifestos e, nalguns casos, a alteração da formatação do texto ou da ortografia, da responsabilidade da relatora.
[2] Cfr., entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11/04/2007 e de 11/07/2019, disponíveis em www.dgsi.pt
[3] Publicado no Diário da República n.º 264/2001, Série I-A de 14.11.2001
[4] Acessível em: https://diariodarepublica.pt/dr
[5] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos
[6] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos
[7] Disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/
[8] Cfr. sobre estes aspetos, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, págs. 685-687.
[9] No mesmo sentido se decidiu, entre outros, nos acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 23.01.2024 [processo 3873/20.7T9FAR.E1] e de 18.12.2023 [processo 401/12.1TAFAR-E.E1], do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.11.2023 [processo 39/07.5TELSB-H.C1] e nas decisões singulares do Tribunal da Relação do Porto de 05.01.2024 [processo 30/21.9SFPRT-B.P1, prolatada por William Guilman] e de 27.11.2023 [processo 24/21.4PEPRT-B.P1, prolatada por Raul Cordeiro] , todos disponíveis para consulta em http://www.dgsi.pt