Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
608/20.8T8VNF.G1
Relator: ALEXANDRA ROLIM MENDES
Descritores: INVENTÁRIO
REMESSA DO PROCESSO A TRIBUNAL
PENDÊNCIA DO PROCESSO SEM ANDAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/01/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Tendo a alteração de regime de inventário, com a publicação da Lei nº 117/19, de 13 de setembro, como objetivo principal evitar a morosidade dos processos, querendo que os interessados nos inventários obtenham o desfecho do processo em tempo útil, para que esses interessados possam pedir a remessa do processo a tribunal nas condições previstas na al. b) do nº 2 do art. 12º, não é necessário que o prazo de pendência do processo sem andamento útil e efetivo tenha de decorrer inteiramente a parir da entrada em vigor dessa Lei.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Relatório:

G. P., cabeça-de-casal e interessado no inventário acima identificado, veio recorrer do seguinte despacho:

“O disposto no artº 12º, nº 2, al. b), da Lei nº 117/2019, 13 de Setembro, - remessa do processo ao tribunal competente sempre que o processo esteja parado, sem realização de diligências úteis, há mais de seis meses – ainda não se mostra preenchido, porquanto tendo a lei entrado em vigor no dia 1 de Janeiro de 2020 (artº 15º da citada lei), ainda não decorreram os referidos seis meses.
Destarte, devolva os autos ao Cartório Notarial competente.
Notifique.”.

Formulou o Recorrente as seguintes Conclusões:

1-Vem o presente recurso do douto despacho que ordenou a remessa dos presentes autos de inventário ao Cartório Notarial competente, por entender que o disposto no artº. 12º, nº. 2, al. b) da Lei nº. 117/2019 de 13 de setembro ainda não se encontrar preenchido, porquanto tendo a tal lei entrado em vigor no dia 1 de janeiro de 2010, ainda não decorreram os referidos seis meses.
2-O apelante discorda, em absoluto, de tal despacho que remeteu o inventário para o cartório notarial de onde proveio, no entendimento de que Mº Juiz do Tribunal a quo não fez in casu a melhor interpretação do citado artº. 12º, nº. 2, al. b) da Lei nº. 117/2019, porquanto
3- Prescreve o nº. 1 do artº. 11º da aludida Lei nº. 117/2019, prescreve, na 2ª parte, que … O disposto na presente lei aplica -se (também) … aos processos que, nessa data, estejam pendentes nos cartórios notariais mas sejam remetidos ao tribunal nos termos do disposto nos artigos 11.º a 13.º.
4- E, por seu turno, estipula o nº 2, alínea b) do artº 12º da mesma Lei que: Nos restantes inventários, qualquer dos interessados diretos na partilha pode requerer a remessa ao tribunal competente, sempre que: … b) Estejam parados, sem realização de diligências úteis, há mais de seis meses.
5- Resulta, pois, à evidência, da letra da lei e, designadamente da conjugação do disposto no nº. 1 do citado artº. 11º com o disposto no artº. 12º, alínea b), que, a partir de 1 de janeiro de 2020 (início da sua vigência), a Lei n.º 117/ 2019, passa a ser aplicada tanto a processos iniciados a partir dessa data, com a processos que nessa data estejam pendentes nos cartórios notariais, mas sejam remetidos aos tribunais nos termos do disposto nos artigos 11.º a 13.º das respetivas disposições transitórias.
6- Esta interpretação não contraria o principio geral vigente, quanto à aplicação das leis no tempo, consagrado no artº. 12º do Código Civil, já que só é de convocar o comando do artº.12º do Código Civil, no caso de a nova lei não estatuir expressamente sobre o assunto em causa, o que se processa mediante as disposições transitórias, como é o caso das disposições consignadas no capítulo III (Diposições finais e transitórias), onde se enquadra o caso vertente.
7- O Tribunal de Família e Menores é, pois, materialmente competente para tramitar o processo de inventário, onde se deve manter e correr os seus normais termos até final.
8- O douto despacho fez errada interpretação da Lei e, violou, entre outros, o disposto na citada Lei nº. 117/2019, e em particular o disposto nos seus artºs. 11, 12, nº. 2, alínea b), nº. 1 do artº. 11º , e 12º n.º 1, al.. b), bem como o disposto no artº 12 do C.Civil. ,

TERMOS em que deve ser julgada procedente a presente apelação e, por via disso, na revogação do douto despacho recorrido, ser julgado materialmente competente o Tribunal recorrido para tramitar o inventário e fazer seguir os seus trâmites normais até final, assim se fazendo,
uma vez mais e como sempre,
JUSTIÇA
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Questão a decidir:

- Analisar a partir de quando se conta o prazo de seis meses previsto no art. 12º, nº 2 – b) da Lei nº 117/2019 de 13 de setembro..
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Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Os factos com interesse para a decisão da causa são os que constam do relatório da presente decisão.
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O Direito:

O inventário em causa nos presentes autos foi instaurado na vigência da Lei nº 23/2013 de 5/3, que atribuía aos Notários competência exclusiva para o processamento dos atos e termos do processo de inventário relativamente aos inventários instaurados a partir da entrada em vigor daquela Lei, tendo o Juiz apenas competência para intervir em situações específicas aí expressamente previstas (art. 3º,nºs 1 e nº 4 e art. 66º do referido diploma)
Em 1 de janeiro de 2020 entrou em vigor o novo regime do processo de inventário, alterado pela Lei nº 117/2019 de 13 de setembro. que consagrou um regime de competência concorrente entre os Tribunais e os Cartórios Notariais, com as exceções aí previstas, regime este apenas aplicável aos processos cuja instauração ocorresse após o início da sua vigência (v. art. 11º, nº 1).
No entanto, no art. 12º da Lei 117/19 – norma transitória - prevêem-se situações em que inventários pendentes nos cartórios notariais são remetidos aos tribunais judiciais.
Nos termos do nº 1 dessa norma, são oficiosamente remetidos pelo Notário ao Tribunal, os inventários em que sejam interessados diretos menores, maiores acompanhados ou ausentes.
No nº 2 deste preceito prevê-se a remessa facultativa ao Tribunal, a pedido de qualquer interessado direto, de inventários que se encontrem suspensos, há mais de um ano, ao abrigo do disposto no art. 16º do regime jurídico do processo de inventário (al. a) ou que estejam parados, sem realização de diligências, há mais de seis meses (al. b).
Foi ao abrigo desta última disposição que o ora Recorrente pediu a remessa do inventário ao Tribunal, tendo a mesma sido deferida pelo Sr. Notário competente.
Para estabelecer ou não a competência do Tribunal para os termos do presente inventário é necessário pois, saber como se conta o prazo de seis meses previsto na referido disposição legal.
A Srª Juiz a quo entende que tal prazo se conta da entrada em vigor da mencionada Lei mas não podemos concordar com tal entendimento.

Vejamos:
Na exposição de motivos da proposta de Lei que deu origem ao diploma resulta que a nova Lei se destinou a superar os constrangimentos verificados durante a vigência do regime anterior, designadamente “os tempos desrazoáveis de resolução, com prejuízos, tanto para a situação jurídica dos cidadãos, como para o interesse coletivo de ordenamento do território (…)”.
A norma transitória em análise tem como fim permitir aos interessados reagir contra situações em que “ocorreu uma demora anormal que pode traduzir-se na violação do direito de acesso à justiça em tempo útil” (v. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres in O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, pág. 168).
Ora, em face dos objetivos enformadores da Lei em análise, não faria sentido que, estando o processo parado há mais de seis meses aquando da entrada em vigor dessa Lei, os interessados ainda tivessem que esperar mais seis meses para requerer a remessa do mesmo a Tribunal (implicando na prática que o processo pudesse estar parado mais de um ano sem justificação) pois, tendo a alteração de regime como objetivo principal evitar a morosidade dos processos, querendo que os interessados nos inventários obtenham o desfecho do processo em tempo útil, o entendimento de que o prazo previsto na al. b) do nº 2 do art. 12º da Lei nº 117/2019 se conta da sua entrada em vigor, é contrário ao espírito da lei.
Neste sentido, dizem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres (in ob. cit, pág. 168) que “Atenta a teleologia do estabelecido no nº 2 – b) – que visa proteger os interessados de uma demora no processamento do inventário que pode ser lesiva do direito a uma decisão em tempo razoável -, não se deve exigir que o prazo de pendência do processo sem andamento útil e efectivo careça de decorrer inteiramente a partir de 1/1/20. Para que se possa requerer o desaforamento previsto no nº 2, al. b), basta que nessa data, já tenha decorrido todo o prazo de seis meses ou que, nessa mesma data, já se tenha iniciado o decurso desse prazo. Não se trata, pois, de uma situação de retroactividade, mas antes de uma hipótese de retroconexão: produção de efeitos no domínio da lei nova (faculdade de requerer a remessa do processo) com base em factos ocorridos no domínio da lei antiga (decurso total ou parcial, do prazo).”.
Em face do que acima se disse, há que revogar a decisão recorrida, devendo o Tribunal recorrido aceitar a competência para os termos do inventário em análise.
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Decisão:

Pelo exposto, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida.
Sem custas.
Guimarães, 1 de outubro de 2020

Alexandra Rolim Mendes
Maria de Purificação Carvalho
Maria dos Anjos Melo Nogueira