Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1082/21.7T8VRL.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: ANIMAL PERIGOSO
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
CLÁUSULA DE EXCLUSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I Apurando-se que um cão mordeu determinada pessoa, deve ser classificado como cão perigoso face ao art.º 3º, b), i), do DL nº. 315/2009 de 29/10.
II Nesse caso, o cão só pode circular na via pública ou lugar público, para além doutras medidas, com açaimo funcional que não permita comer nem morder – art.º 13º, nº. 2, do mesmo diploma citado que se aplica especificamente à DETENÇÃO DE ANIMAIS PERIGOSOS.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
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I RELATÓRIO (seguindo o elaborado em 1ª instância).

AA e BB instauraram ação, na forma de processo comum, contra CC, DD e EMP01... - Companhia de Seguros, S.A.
Invocaram que:
-foram mordidos por um cão, propriedade do R., quando este era passeado na rua, pela R. DD, sem açaimo;
-o R. transferira a sua responsabilidade, por danos causados a terceiros pelo cão, para a R. Seguradora, mediante contrato de seguro;
-em consequência de terem sido mordidos pelo cão, os A.A. sofreram danos patrimoniais e não patrimoniais, que concretizam.
Mais alegam que o cão já anteriormente tinha adotado comportamentos perigosos.

Pediram que se condenasse, solidariamente, os R.R., a:
a) Pagarem aos A.A., a quantia de € 50.154,87 (cinquenta mil cento e cinquenta e quatros euros e oitenta e sete cêntimos).
b) Pagarem aos A.A., os juros vincendos, contados desde a data da citação até ao integral pagamento da quantia de € 50.154,87.
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Contestou o R. CC  
Invocou a sua ilegitimidade, bem como a da R. DD, face ao seguro de responsabilidade civil vigente.
Impugnou parte da factualidade invocada pelos A.A.
Imputou a culpa na produção dos danos sofridos pelos A.A. à atuação do próprio A..
Concluiu pela improcedência da ação, quer por falta de culpa sua e da 2ª R., quer por não provada, e caso lhe seja e à 2ª R. imputada responsabilidade, então a condenação deve recair sobre a 3ª R., seguradora.
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Contestou a 3ª R..
Invocou a sua ilegitimidade, face ao caráter facultativo do seguro.
Impugnou a factualidade invocada pelos A.A.
Invocou ainda que, o cão em causa era um animal perigoso, porquanto, já antes atacara pessoas e, por isso, deveria circular na via pública com açaimo, o que não ocorria.
BB alegou que no contrato de seguro que o R. celebrou com a R. seguradora, não se encontram garantidos os danos causados pela inobservância das disposições legais em vigor que regulamentem a detenção de cães perigosos, potencialmente perigosos ou de guarda, uma vez que, para além de não ter licença em vigor, não fazia uso de açaimo.
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Os A.A. responderam às exceções invocadas pelos R.R.
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O 1º R. respondeu às exceções invocadas pela R. Seguradora.
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Realizou-se a audiência prévia, no âmbito da qual, designadamente, se julgou improcedentes as exceções de ilegitimidade, se identificou o objeto do litigio e se enunciou os temas da prova.
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Realizou-se perícia e, posteriormente, a audiência de julgamento.
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Foi proferida sentença que decidiu julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência:

a) Condenou, solidariamente, os R.R. CC e DD, a pagarem aos A.A., a quantia total de € 10.971,63 (dez mil novecentos e setenta e um euros e sessenta e três cêntimos);
b) Condenou, solidariamente, os R.R. CC e DD, a pagarem aos A.A., juros de mora, à taxa legal, calculados desde a data da decisão até integral pagamento, sobre a quantia de € 8.500,00 (oito mil e quinhentos euros) e desde a citação dos R.R. até integral pagamento, sobre a quantia remanescente;
c) Absolveu os R.R. CC e DD do demais peticionado;
d) Absolveu a R. EMP01... do pedido.
Mais imputou as custas a A.A. e R.R. na proporção dos respetivos decaimentos e sem prejuízo dos benefícios de apoio judiciário.
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Inconformado, o R. CC apresentou recurso com alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“Impugnação da matéria de facto
1. O facto 63 dos factos provados foi incorrectamente julgado;
2. Bem apreciado o depoimento da testemunha EE, prestado na Audiência de Julgamento no dia o dia 5 de Junho de 2023, gravado das 14:52:28 a 14:57:23, conforme acta da Audiência Final do dia 5 de Junho de 2023, nomeadamente do excerto do seu depoimento registado do minuto 00:01:55 ao minuto 00:04:02, impunha-se que este facto fosse considerado provado com a seguinte redação:
“Antes de 12-05-2020, quando EE caminhava com a sua cadela na rua, o cão em causa saltou para a rua e quando EE tocou no portão, o cão em causa saltou para cima do peito, embatendo neste, episódio este que não foi relatado aos RR..” Isto porque,
3. Em momento algum do seu depoimento o referido EE refere ter sido mordido pelo referido Cão, e, bem assim, esta testemunha referiu expressamente não ter contado aos RR. este episódio.
Impugnação da matéria de direito
4. O Tribunal “a quo” fez errada interpretação e aplicação do preceituado no n.º 2 do artigo 7.º do DL 314/2003 de 17 de Dezembro;
5. Bem interpretado este normativo impunha-se a conclusão que existem três excepções ao uso de açaimo por cães e gatos que circulem na via e/ou lugares públicos, a saber:
a) Serem conduzidos pelo detentor à trela;
b) Encontrarem-se em provas e treinos;
c) Os cães de caça, durante os actos venatórios.
6. Ao interpretar que daquele normativo resulta que qualquer cão, seja perigoso ou não perigoso, potencialmente perigoso ou de guarda só pode circular na via pública com açaimo, como consta na página 22 da Sentença, errou o M.º Juiz, porquanto não é esse o sentido do normativo legal em causa.
7. Errando, em consequência desta interpretação, na decisão de que haviam os RR. violado este normativo legal e, como tal, se verifica a exclusão da responsabilidade da R. seguradora, constante na clausula de exclusão 3.ª, d) das condições especiais do contrato de seguro.
8. Não tendo o cão dos autores sido considerado como cão perigoso, porquanto tal não resulta da sentença, não se impunha aos RR. colocar açaimo no canídeo que era conduzido à trela (conforme facto provado em 2 dos factos provados).
9. Como tal, ao contrário do decidido na Sentença, não violaram os RR. o n.º 2 do artigo 7.º do DL 314/2003 de 17 de Dezembro, não se mostrando verificada a causa de exclusão de responsabilidade prevista no ponto 3.º, alínea b) das condições especiais da apólice.
10. Impondo-se, em consequência, a condenação da R. seguradora no pagamento aos AA. dos danos, em virtude da transferência para esta dessa responsabilidade, derivada do contrato de seguro outorgado e junto aos autos. 
Normas Jurídicas Violadas
11. A presente decisão violou o n.º 2 do artigo 7.º do DL 314/2003 de 17 de Dezembro, que foi erradamente interpretado e aplicado para fundamentar a condenação dos RR. e a absolvição da R. seguradora.”
Pede por isso que a decisão proferida ser revogada e substituída por um acórdão onde se decida nos termos preditos.
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A 3ª R. apresentou contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão e improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos art.ºs 608º, n.º 2, 609º, n.º 1, 635º, n.º 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.

Impõe-se por isso, no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:
-se deve ser reapreciada e alterada a matéria de facto;
-na procedência dessa pretensão (ou mesmo que assim não seja), se deve ser proferida decisão que condene a 3ª R. no montante arbitrado, e absolva os A.A..
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III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O Tribunal recorrido assentou na seguinte matéria:
“Factos provados:
1 - No dia 12 de Maio de 2020, pelas 20 horas e 20 minutos, os A.A. circulavam, a pé, na Rua ..., em ..., concelho ....
2 - Nessas circunstâncias de tempo e lugar, a R. DD passeava um cão, à trela, preso por um peitoral, sem açaime, cão esse de raça ..., de grande porte, chamado FF;
3 - Que era “propriedade” do R., seu filho.
4 - Quando os A.A. passavam pelo cão;
5 - Este puxou a trela e, a R. não o conseguiu segurar.
6 - O cão avançou então na direção da A., pondo-se de pé junto ao peito da mesma, dirigindo a sua boca para a zona da cabeça/pescoço da A.;
7 - Esta tentou proteger-se do cão com os braços, e acabou mordida no braço esquerdo.
8 - O A., ao tal presenciar, de forma a imobilizar o cão, agarrou-o e atirou-o para o chão, afastando-o.
9 - De seguida, o cão dirigiu-se ao A. e mordeu-o na face.
10 - Após o A. conseguir livrar-se do cão, este dirigiu-se para a sua esposa, a A.
11 - De forma a impedir que o cão pudesse, eventualmente, morder a sua esposa, o A. fez uso de um canivete, que trazia consigo, tendo-lhe desferido alguns golpes.
12 - A R. a tudo assistiu e, nada fez enquanto tudo decorria.
13 - O R. celebrou com a R. Seguradora um contrato de seguro, garantindo a sua responsabilidade civil, que derivasse dos riscos inerentes à posse ou detenção do cão em causa, titulado pela apólice n º ...59, com um capital seguro de € 50.000,00 e uma franquia de 10% do valor resultante de lesões materiais, com um mínimo de € 75,00.
14 - Da cláusula 3ª, d) das condições especiais, costa que: ficam excluídas da garantia do contrato de seguro, os danos causados pela inobservância das disposições legais em vigor, que regulamentem a detenção de cães perigosos, potencialmente perigosos ou de guarda.
15 - Após o ocorrido, os A.A. foram assistidos no local, pelo INEM dos Bombeiros Voluntários de ....
16 - Seguidamente, foram transportados para o Centro Hospitalar ..., onde foram observados.
17 - Como consequência do ocorrido, o A. sofreu as seguintes lesões:
a) Na face: feridas lineares, uma de cerca de 4cm saturada com pontos na hemiface esquerda acima do lábio superior e outra com cerca de 2 cm de comprimento saturada com pontos na região média do bordo do lábio inferior e ainda laceração na face interna do mesmo lábio inferior. Dor na arcada dentária superior; 
b) No pescoço: escoriações com crosta, lineares em número de quatro, oblíquas, paralelas, a maior das quais de cerca de 2cm de comprimento, dirigidas de cima para baixo e de dentro para fora, na vertente lateral direita na região submentoniana. 
c) No membro inferior direito: escoriação com crosta, linear de cerca de 4x0,3cm dirigida de cima para baixo e de dentro para fora na face lateral do 173 distal da perna;
18 - Ficou limitado quanto à possibilidade de se alimentar, durante cerca de uma semana.
19 - O A. teve um período de repercussão temporária na sua atividade profissional total de 128 dias.
20 - Ficou com um défice permanente da integridade físico-psíquica de 1 ponto, compatível com o exercício da sua atividade profissional habitual.
21 - Sofreu dores, com a lesões e os tratamentos a que foi submetido; 22 - Tendo sofrido um quantum doloris de grau 2.
23 - Em consequência das lesões que sofreu, na zona cicatricial, ficou com falta de sensibilidade, a qual se mantém.
24 - Ficou com cicatrizes visíveis no rosto.
25 - Ficou com um dano estético permanente de grau 2.
26 - Durante algum tempo, por recomendação médica, não pôde apanhar sol diretamente na face, de modo a não prejudicar o processo de cicatrização.
27 - Por apresentar cicatrizes, o A. sentiu-se, e sente-se, triste, algo envergonhado e desgostoso.
28 - Fruto do ataque do canídeo, o A. começou a apresentar dor na arcada dentária superior.
29 - Após ter consultado um médico especialista em medicina dentária, verificou-se que, uma ponte dentária que o A. tinha se soltara, tendo tido que ser removida e recolocada.
30 - O A., após o ocorrido, começou a apresentar irritabilidade, agitação, revolta, e sentimentos de insegurança;
31 - Apresentando uma ansiedade persistente, quanto à possibilidade de ocorrência de um novo confronto com caninos.
32 - Em consequência do ocorrido, o A. teve acompanhamento psicológico desde o dia .../.../2020.
33 - Em virtude das lesões sofridas, o A. teve de se deslocar da sua residência até ao Centro de Saúde ..., nos dias: 13, 15, 18 e 20 de maio de 2020, para a realização do curativo.
34 - E no dia 15 de Maio, teve de se deslocar até ao Instituto de Medicina Legal em ..., onde foi sujeito a exame médico.
35 - Esteve impedido de desempenhar a sua atividade laboral, durante cerca de um mês.
36 - Por tal razão, durante esse período, deixou de auferir, aproximadamente, a quantia de € 1.600 (mil e seiscentos euros).
37 - Devido às cicatrizes com que ficou, o A. consultou um médico especialista em cirurgia maxilo-facial, no Hospital ..., em duas consultas;
38 - Tendo despendido relativamente às duas consultas, uma no dia 16.06.20 e outra no dia 13.10.20, a quantia total de € 130,00 (centro e trinta euros).
39 - Fruto do ocorrido, o A. teve três sessões de acompanhamento psicológico, tendo despendido nas mesmas a quantia de € 160,00 (cento e sessenta euros).
40 - O A. suportou a quantia de € 64,92 (sessenta e quatro euros e noventa e dois cêntimos), em despesas medicamentosas inerentes ao tratamento da lesão sofrida.
41 - O A. efetuou todas as deslocações supra referidas, em viatura própria, tendo percorrido cerca de 630 km.
42 - Como consequência do ocorrido, a A. sofreu as seguintes lesões: membro superior esquerdo: escoriação com crosta de cerca de 1x0,3cm rodeada por equimose de cerca de 7x6cm na face lateral do 1/3 distal do antebraço.
43 - Tais lesões, determinaram-lhe um período de repercussão temporária na atividade profissional total de 128 dias.
44 - A A. sofreu um quantum doloris de grau 2;
45 - E um dano estético de grau 1.
46 - A A. passou a apresentar sintomas de tristeza, inquietação e angústia.
47 - Apresenta maior reatividade a situações geradoras de stress ou que relembrem o acontecimento.
48 - Nos dias que se seguiram, apresentou insónias, pois, sempre que tentava adormecer, as imagens que lhe vinham à mente eram as do ocorrido.
49 - A proximidade a canídeos gera-lhe medo, ansiedade, nervosismo e pânico.
50 - A A., todos os dias, percorria a pé, a rua onde tudo ocorreu, para se deslocar ao cemitério, visitar o seu filho falecido.
51 - Este percurso e rotina, traduziam-se numa forma de libertação emocional no processo de luto, promovendo o seu bem-estar emocional, contribuindo para lidar melhor com os sentimentos e emoções relacionados com aquela perda.
52 - Desde o dia em que ocorreu o acima relatado, a A., não consegue ir visitar o seu filho falecido a pé;
53 - Por ter medo de encontrar o canídeo na via pública e de ser por ele atacada.
54 - A A. sente infelicidade por não se sentir capaz de percorrer o caminho que a levava todos os dias, a visitar o seu filho falecido.
55 - No dia 15 de Maio de 2020, a A. deslocou-se até ao Instituto de Medicina Legal, para ser sujeita a exame médico.
56 - A A. esteve presente a duas sessões de acompanhamento psicológico, tendo despendido nas mesmas a quantia de € 80,00 (oitenta euros).
57 - A A. teve de despender a quantia de € 18,39 (dezoito euros e trinta e nove cêntimos) em despesas medicamentosas.
58 - A A. efetuou todas as deslocações supra referidas, em viatura própria, tendo percorrido cerca de 311 km.
59 - Anteriormente a 12-05-2020, quando os A.A. caminhavam a pé, na rua, o cão em causa já os havia abordado, rosnando-lhes, perante o que, os A.A., com medo, ficaram ali parados, cerca de meia hora, até o cão ir embora.
60 - Após esse episódio, a A. contou, à R., o ocorrido.
61 - Antes de 12-05-2020, quando GG passeava com o seu cão na rua, o cão em causa saltou o portão e correu na direção do cão de GG, circunstância em que foi contra ela e a fez cair.
62 - Antes de 12-05-2020, HH chegou a fechar-se dentro de sua casa, com medo do cão em causa, por este lhe rosnar.
63 - Antes de 12-05-2020, quando EE caminhava com a sua cadela na rua, o cão em causa saltou para a “atacar” e, quando EE tocou no portão, o cão em causa saltou para cima do seu peito e mordeu-o num ombro.

Factos não provados:

1 - Ao estar o A. a retirar o cão da A., esta feriu-se numa unha do cão.
2 - O A. feriu-se numa unha do cão, quando o esfaqueava e este tentava desviar-se dos golpes que lhe desferia.
3 - O A. necessitará de um tratamento dentário para reposição da situação prétraumatismo que sofreu, que ascende à quantia de € 2.200 (dois mil e duzentos euros).
4 - Nos dias seguintes ao ocorrido, a A. esteve impedida de fazer a sua lide doméstica, devido às dores que sentia no braço esquerdo.
5 - A A. não consegue sequer socializar com os seus cães, sem estes estarem presos.
6 - Durante os meses de verão, o A. não pôde apanhar sol na face, o que lhe causou incómodos, uma vez que, não pôde usufruir da atividade balnear em férias, como era habitual até então.
7 - O A. terá que efetuar uma cirurgia plástica ao lábio superior e inferior, para que estes voltem a ter o seu aspeto normal.
8 - Tal intervenção cirúrgica, ascenderá à quantia de € 480,00 (quatrocentos e oitenta euros).”
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IV MÉRITO DO RECURSO.

-IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.
O recorrente manifesta a sua discordância contra o facto provado constante do ponto 63. Pretende que passe a ter a seguinte redação: “Antes de 12-05-2020, quando EE caminhava com a sua cadela na rua, o cão em causa saltou para a rua e quando EE tocou no portão, o cão em causa saltou para cima do peito, embatendo neste, episódio este que não foi relatado aos RR..”.
Pretende impugnar essa matéria de facto.
O recorrente apela ao depoimento da testemunha EE, no sentido de que esta não afirmou o que o Tribunal recorrido deu como provado, localizando e reproduzindo as suas respostas a esse propósito.
Cumpriu por isso os ónus impugnatórios, o que permite/impõe a este Tribunal de recurso a reapreciação daquela factualidade, tudo conforme resulta do disposto no art.º 640º, nºs. 1 e 2, do Código Processo Civil (C.P.C.) e vem melhor mencionado na obra de Abrantes Geraldes “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 4ª Edição, págs. 155 e 156.
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A propósito da reapreciação da matéria de facto, dispõe o art.º 662º, n.º 1, do C.P.C. que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” A Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos que resultam do n.º 5 do art.º 607º do C.P.C.. Assim, após análise conjugada de todos os meios de prova produzidos, a Relação deve proceder à reapreciação da prova, de acordo com a própria convicção que sobre eles forma, sem quaisquer limitações, a não ser as impostas pelas regras de direito material. A propósito refere também Abrantes Geraldes na mesma obra, pág. 273, "(…) a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”. E na pág. 274 (…) “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daquelas que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.  
Porém, não está em causa proceder-se a novo e global julgamento, não sendo exigido nem permitido à Relação que de motu proprio se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo Tribunal de 1ª instância, para deles se extrair uma decisão inteiramente nova (pág. 279). Assim a Relação irá examinar a decisão da primeira instância e seus fundamentos, analisar as provas gravadas e proceder ao confronto do resultado desta análise com aquela decisão e fundamentos, pronunciando-se apenas quanto aos concretos pontos impugnados.
O Tribunal da Relação, nesta sua função de reapreciação da decisão de facto, não opera apenas em casos de erros manifestos de apreciação, mas também pode formar uma convicção diversa da 1ª instância sobre os pontos de facto impugnados, o que deve levar a nova decisão que contenha esse resultado, fundamentadamente, ou seja, com base bastante para alterar aquela que foi a convicção (errada) do juiz de 1ª instância (erro de julgamento - error in iudicando, concretamente error facti).
Partindo do princípio do dispositivo, deve o recorrente indicar os meios de prova que no seu entender deviam ter feito o Tribunal a quo trilhar caminho diverso no seu juízo probatório; contudo, o Tribunal ad quem não está limitado a essa indicação – que será seu ponto de partida e pode até ser o bastante- podendo e devendo se tal se impuser (além dos demais poderes conferidos em termos de retorno à primeira instância ou de oficiosidade) socorrer-se de todos os meios de prova produzidos nos autos para confirmar ou rebater a argumentação do recorrente.
Voltando ao art.º 607º, n.º 5, do C.P.C., este dispõe que, em princípio, o Tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os Juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, com ressalva das situações em que a lei dispuser, diferentemente: quando não dispense a exigência de uma determinada formalidade especial, quando os factos só possam ser provados por documento ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
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Isto posto, impõe-se a apreciação do caso concreto, em que está em causa apenas a apreciação do depoimento de uma testemunha, e a atribuição do respetivo valor probatório, sendo um meio de prova livre (art.º 396º do C.C.).
Começamos pela verificação da motivação apresentada pelo Tribunal recorrido. Na sentença ficou dito: “A matéria de 61 a 63, resultou, respetivamente, dos depoimentos das testemunhas GG, HH e EE.” A interpretação que fazemos dessas palavras é que a testemunhal EE, no que ao recurso importa, referiu o facto descrito e fê-lo de forma a convencer o julgador da veracidade da sua declaração.
De seguida ouvimos a gravação integral do depoimento da testemunha.
Não concordamos de todo com a interpretação apresentada pelo recorrente: as marcas dos dentes não resultaram do facto do cão ter embatido com os dentes no ombro da testemunha, porque isso simplesmente não tem sentido. Marcas de dentes de cão resultam de mordedura. E foi esse claramente o sentido que a testemunha lhe deu, independentemente de não se ter apercebido no momento que ficou marcado. O cão estava em postura de ataque.
Portanto, o que vem descrito no ponto 63 retrata a nosso ver a versão apresentada pela testemunha, relativamente à qual não vem posta em causa a credibilidade.
Se a testemunha relatou ou não o sucedido aos 1º e 2º R.R., mostra-se irrelevante para o caso, e, portanto, inútil a sua menção, uma vez que analisadas as alegações de recurso, bem como a sua súmula vertida nas conclusões, o recorrente não retira qualquer efeito da introdução desse trecho ao nível de uma eventual diferente aplicação do direito (cfr. art.º 130º do C.P.C., quanto à proibição de atos inúteis, também aplicável no âmbito da reapreciação da matéria de facto).
O reflexo dessa inserção seria na aferição da culpa dos 1º e 2º R.R. Todavia, face à aplicação do instituto da responsabilidade objetiva prevista no art.º 502º do C.C., bem como à presunção de culpa força do disposto no art.º 493º, do mesmo diploma, matéria não questionada pelo recorrente, a mera introdução do desconhecimento pelos mesmos R.R. do sucedido anteriormente não afastava a aplicação dessas mesmas normas.
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Assim sendo, nada mais resta que não seja a improcedência da impugnação da matéria de facto.
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Não tendo sido procedente a pretendida alteração, remete-se quanto ao seu elenco para a decisão recorrida –cfr. n.º 6 do art.º 663º do C.P.C..
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-DECISÃO DE DIREITO.

A alteração do decidido dependia inteiramente da procedência da impugnação da matéria de facto, embora no recurso o recorrente não seja claro quanto a esse aspeto.
Por isso a apreciação da integração jurídica dos factos sempre estaria prejudicada.
Melhor concretizando: caso se afastasse a versão de um ataque anterior perpetrado pelo cão, então deixaria de se verificar a aplicação do art.º 3º, b), i), do DL nº. 315/2009 de 29/10 (b) «Animal perigoso» qualquer animal que se encontre numa das seguintes condições: i) Tenha mordido, atacado ou ofendido o corpo ou a saúde de uma pessoa;), e por isso deixaria o mesmo de ter a classificação de perigoso, e consequentemente voltaria a colocar-se a questão da transferência da responsabilidade para a 3ª R. seguradora.
Sucede que, em primeiro lugar, tal alteração foi improcedente. Em segundo lugar, a restante argumentação do recorrente, relativamente ao erro de interpretação do nº. 2 do art.º 7º do DL nº. 314/2003 de 17/12 não tem qualquer pertinência para o caso, pois mantendo-se o cão classificado como perigoso, dúvidas não há, nem o recorrente as coloca, que teria de usar açaimo funcional que não permita comer nem morder, face ao art.º 13º, nº. 2, última parte do primeiro diploma citado, que se aplica especificamente à DETENÇÃO DE ANIMAIS PERIGOSOS.
Encontra-se por isso preenchida a cláusula de exclusão prevista na apólice, cláusula 3ª, d) das condições especiais: ficam excluídas da garantia do contrato de seguro, os danos causados pela inobservância das disposições legais em vigor, que regulamentem a detenção de cães perigosos, potencialmente perigosos ou de guarda.
Assim sendo, e sem necessidade de maior argumentação face ao bem decidido na sentença recorrida quanto à aplicação do direito aos factos, resta improceder a pretensão do recorrente.
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V   DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso do 1º R. totalmente improcedente, e em consequência, negar provimento à apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
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Custas do recurso a cargo do recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário (art.º 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 1 de fevereiro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores

Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais
2º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)