Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6941/23.0T8GMR.G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: RECLAMAÇÃO
ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
TRIBUNAL DE TRABALHO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: RECLAMAÇÃO ATENDIDA
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – O tribunal competente, em razão da divisão territorial, para julgar a acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, intentada pelo Ministério Público, ao abrigo do artº 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, é o juízo do trabalho da área territorial onde é exercida a respectiva actividade da pessoa em causa.

II – A competência assim definida, emanando de lei especial que rege o procedimento relativo à inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho, prevalece sobre a regra geral do artº 13º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, que define como territorialmente competente o juízo do trabalho do domicílio do réu.

Decisão Texto Integral:
I - Relatório

Reclamante: EMP01... Unipessoal, Ldª, com sede na Rua ..., ..., ... (ré);
Reclamado: Ministério Público;
****

A demandada EMP01... Unipessoal, Ldª, com sede na Rua ..., ..., ..., veio reclamar do despacho da Srª. Juíza do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo do Trabalho de Guimarães – Juiz ..., datado de 21.02.2024, que julgou procedente a excepção dilatória de incompetência relativa, em razão da divisão territorial, declarando este Juízo do Trabalho incompetente, em razão do território, para a tramitação e apreciação do objeto da presente ação e competente, para o efeito, o Juízo do Trabalho de Lisboa.

Fundamenta tal reclamação nos argumentos de que:

a) A presente ação especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho decorre de uma prévia ação inspetiva - e com efeitos contraordenacionais - da ACT, com a particularidade de a iniciativa ser da entidade autuante que procura executar a intimação efetuada.
b) Nos termos do n.º 3 do artigo 15.º-A do mesmo Regime Processual aplicável às contraordenações Laborais e da Segurança Social, a participação é enviada para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade.
c) Trata-se de uma regra atributiva de competência, pois os serviços do Ministério Público têm competência territorialmente determinada.
d) Embora sujeitos a valorações jurídicas distintas, quer a ação de impugnação judicial da aplicação de coima, quer a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, emanam da mesma factualidade.
e) De outra forma, não se compreenderia a regra constante do n.º 4 do artigo 15.º-A do Regime Processual Aplicável às contraordenações Laborais e da Segurança Social, segundo a qual a interposição de acção para o reconhecimento da existência de contrato de trabalho suspende o procedimento contraordenacional e a execução com ela relacionada.
f) Assim, ante a coerência e unidade do sistema jurídico entre a regra de competência territorial aplicável à impugnação da ação contraordenacional e o tribunal territorialmente competência no âmbito da ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho, deve entender-se que o tribunal competente não pode ser o do domicílio da Ré.
g) Em segundo lugar, acresce que, nos termos do disposto no n.º 6 do artigo 26.º do CPT, a acção especial de reconhecimento de contrato de trabalho inicia-se com a referida participação da parte da ACT.
h) A competência territorial é determinada no momento do início da instância, pelo que a regra da competência territorial não pode ser apurada num momento posterior.
i) Desta forma, no momento da instância, o tribunal competente é o do lugar da prestação da atividade.
j) Em terceiro lugar, a solução apresentada justifica-se pela necessidade de conferir uma tutela equilibrada do putativo trabalhador na sua relação com o empregador.
k) As alterações ao artigo 15.º-A do Regime Processual Aplicável às Contraordenações Laborais e de Segurança Social apontam no sentido de acção correr os seus termos no mesmo tribunal territorialmente competente para conhecer da prática da contraordenação, ou seja, o da verificação da alegada contraordenação, isto é, o lugar da prestação da atividade.
l) Desta forma, o lugar onde verificou a alegada contraordenação e o lugar onde a putativa atividade foi prestada pelo prestador de atividade, AA, não corresponde à área territorial do Juízo do Trabalho de Lisboa, mas sim do Juízo do Trabalho de Guimarães.

Pede que seja declarada a competência territorial do Juízo do Trabalho de Guimarães para julgar a acção de reconhecimento e existência de contrato de trabalho objeto dos autos, revogando-se, consequentemente, a decisão do Juízo do Trabalho de Guimarães - Juiz ....

A parte contrária não respondeu.

2. Fundamentação

Cumpre apreciar, tendo-se em conta as incidências fáctico-processuais descritas no Relatório supra e ainda o seguinte:

1. Em 12.12.2023, a Autoridade para as Condições do Trabalho apresentou junto dos serviços do MºPº participação por inadequação do vínculo que titula a prestação de uma actividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho
2. Na petição, apresentada em juízo em 15.12.2023, o Digno autor formula o seguinte pedido:
-Ser reconhecido que o contrato celebrado a ../../2023 e ainda vigente entre a Ré e o trabalhador AA, constitui um verdadeiro contrato de trabalho enquadrável no conceito definido no artigo 12º - A., do Código do Trabalho.

Apreciando:

No dizer de Antunes Varela, no Manual de Código de Processo Civil, 2ª edição, pag. 195, “O requisito da competência resulta do facto de o poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais. Cada um dos órgãos judiciários, por virtude da divisão operada a diferentes níveis, fica apenas com o poder de julgar num círculo limitado de acções, e não em todas as acções que os interessados pretendam submeter à sua apreciação jurisdicional.
A competência abstracta de um tribunal designa a fracção do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal.
A competência concreta do tribunal, ou seja, o poder de o tribunal julgar determinada acção, significa que a acção cabe dentro da esfera de jurisdição genérica ou abstracta do tribunal”.
E “Dentro de cada espécie ou categoria de tribunais e no mesmo grau de jurisdição, a repartição do poder de julgar faz-se depois em função do território.
Sabido que determinada pretensão é da competência dos tribunais judiciais e deve ser deduzida num tribunal de comarca, resta saber qual o tribunal de comarca (territorialmente) competente. (…)”.

No caso vertente, estamos perante uma acção declarativa de reconhecimento de existência de contrato de trabalho contra a reclamante, relativamente ao prestador de atividade AA, na sequência do recebimento de participação da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), instaurada pelo Ministério Público junto do Tribunal a quo.
Neste tipo de acções, a instância iniciava-se com o recebimento da participação – artº 26.º, n.º 6 do CPT – a remeter aos serviços do Ministério Público junto do juízo do trabalho da “área de residência do trabalhador”, conforme decorria do artigo 15.º-A, n.º 3, da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro.
Norma especial, que afastava o regime da competência territorial a que alude a seção II, do capítulo II, título II, do CPT.
Por sua vez, a partir de 1 de Agosto de 2017, data de entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 55/2017, de 17 de julho, a participação dos factos passou a ser remetida para os serviços do Ministério Público junto do Juízo do Trabalho do “lugar da prestação da atividade”.
Nestes termos, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artº 15.º-A da Lei n.º 107/2009, que estipula o procedimento a adotar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho e que veio a originar a presente ação para reconhecimento de existência de contrato de trabalho, a ACT deve remeter “(…) participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.”.
Consequentemente, esclarece o n.º 1 do artigo 186.º-K do CPT que “após a receção da participação prevista no n.º 3 do artigo 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, o Ministério Público dispõe de 20 dias para propor ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho”.
Os serviços do MP recebem a participação e dispõem de um prazo que é exigente para logo proporem a ação correspondente.
De facto, sufraga-se o entendimento de que “não faria legalmente sentido que a acção fosse proposta pelo MP noutra comarca que não a que recebeu a participação até pela dificuldade operacional que tal opção implicaria num procedimento que o legislador quis expedito” (neste sentido, vide Decisão Sumária do TRP, Proc. 4116/23.7T8VFR.P1).
Com efeito, a participação da ACT traduz-se na intimação do empregador para o reconhecimento da relação laboral, o que corresponde a um poder com uma coercividade acrescida face à coima inerente à contraordenação propriamente dita.
E a regra aplicável à impugnação judicial de contraordenação, nos termos do disposto no arº 34.º do referido Regime Processual aplicável às contraordenações Laborais e da Segurança Social, é a área territorial onde se tiver verificado a contraordenação.
Esta é uma regra especial, face à regra geral prevista no CPT, sendo aplicada ao processo especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho.
A presente acção especial de reconhecimento de existência de contrato de trabalho decorre de uma prévia acção inspetiva - e com efeitos contraordenacionais - da ACT, com a particularidade de a iniciativa ser da entidade autuante que procura executar a intimação efetuada.
Note-se ainda que o citado n.º 3 do artigo 15.º-A, do RPCLSS, ao prescrever que a participação é enviada para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade, introduz uma verdadeira regra atributiva de competência.
Além de que, quer a acção de impugnação judicial da aplicação de coima, quer a acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, emanam da mesma factualidade, ainda que sujeitos a valorações jurídicas distintas, pois, de outro modo, mal se compreenderia a regra constante do n.º 4 do artº 15.º-A, do RPCLSS, segundo a qual a interposição de acção para o reconhecimento da existência de contrato de trabalho suspende o procedimento contraordenacional e a execução com ela relacionada.
Daí que, como pugna a reclamante, atendendo à necessidade de salvaguardar a coerência e unidade do sistema jurídico entre a regra de competência territorial aplicável à impugnação da ação contraordenacional e o tribunal territorialmente competência no âmbito da ação especial de reconhecimento de contrato de trabalho, deve entender-se que o tribunal competente não pode ser o do domicílio da ré.
Noutra perspectiva, cumpre ainda relevar que, por força do consignado no n.º 6 do artº 26.º do CPT, a acção especial de reconhecimento de contrato de trabalho inicia-se com a referida participação da ACT.
E a competência territorial é determinada no momento do início da instância, pelo que a regra da competência territorial não pode ser apurada num momento posterior.
Logo, no momento da instância, o tribunal competente é o do lugar da prestação da actividade, pois os serviços do Ministério Público têm competência territorialmente determinada.
Importa também salientar que, a nosso ver, a imposição do tribunal do domicílio do réu como tribunal territorialmente competente não realiza, de forma adequada, a necessidade de tutela dos direitos e interesses do putativo trabalhador.
Ao invés, como defende o reclamante, a solução exposta - a de que a competência territorial do tribunal na acção de reconhecimento da existência do contrato cabe ao tribunal do lugar em cuja área territorial exerça a sua actividade - é a que melhor satisfaz “o equilíbrio na relação laboral”, justificando-se também pela necessidade de conferir uma tutela equilibrada do putativo trabalhador na sua relação com o empregador.
Ademais, a evolução legislativa atinente às alterações que o artº 15.º-A do RPCLSS sofreu evidenciam que foi intenção do legislador que a acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, a qual, até 2017, deveria ser instaurada no tribunal do domicílio do putativo trabalhador e não no lugar da prestação da atividade, devesse correr os termos no mesmo tribunal territorialmente competente para conhecer da prática da contraordenação.
Neste sentido aponta o Estudo de Cristina Martins da Cruz, Docente do CEJ, em “A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho 2013- 2021: de iure condito e de iure condendo”, publicado na Revista JULGAR, online, Abril de 2022 (disponível em https://julgar.pt/wp-content/uploads/2022/04/29042022-JULGAR-ARECT- Cristina-Martins-da-Cruz.pdf)), consignando que “A partir de 1 de agosto de 2017, data de entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 55/2017, de 17 de julho, à Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro (artigo 5.º), a participação dos factos será remetida para os serviços do Ministério Público junto do Juízo do Trabalho do lugar da prestação da atividade.
Esta alteração corresponde à que melhor se adequa à possibilidade de se verificar a existência de várias situações potencialmente fraudulentas (em que o teriam de ser remetidas tantas participações quanto o número de trabalhadores), pois (i) confere ao Ministério Público (MP) uma visão mais nítida e global daquela concreta realidade empresarial; (ii) é a que melhor permite aquilatar de uma análise nestes moldes ser potencialmente geradora de desigualdades; e (iii) concentra num único tribunal, o julgamento da ARECT e da apreciação de um eventual recurso da decisão final no processo contraordenacional, cujo juízo do trabalho competente sempre seria, tal como designado pelo artigo 34.º do RPCOLSS, o do lugar em cuja área territorial se haja verificado a contraordenação (e não o da residência do trabalhador).
Entendimento semelhante é defendido por José Joaquim Fernandes de Oliveira Martins, em “A Ação Especial de Reconhecimento da Existência de Contrato de Trabalho – Vinho Velho em Odres Novos”, in JULGAR Online n.º 25, 2015, página 206, a propósito deste artigo 15º, esgrimindo que “retira-se deste normativo que a Secção do Trabalho territorialmente competente para a apreciar esta ação é o da “área de residência do trabalhador” (hoje, por força da Lei n.º 55/2017, de 17 de julho, a área da prestação da atividade).
Por último, e não menos despiciendo, cumpre aquilatar da percepção de ser esta a posição que melhor acautela as necessidades de boa gestão judiciária, de modo a salvaguardar-se o previsível congestionamento/colapso dos recursos adstritos ao Juízo do Trabalho de Lisboa, enquanto juízo do trabalho do domicílio da ré, face à remessa de centenas de acções de reconhecimento de existência de contrato de trabalho a correrem termos por todo o país.
O escopo da boa administração da justiça não pode, pois, deixar de se entrecruzar com a dita repartição do poder de julgar, segundo a divisão territorial.

Em síntese:

I – O tribunal competente, em razão da divisão territorial, para julgar a acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, intentada pelo Ministério Público, ao abrigo do artº 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, é o juízo do trabalho da área territorial onde é exercida a respectiva actividade da pessoa em causa.
II – A competência assim definida, emanando de lei especial que rege o procedimento relativo à inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho, prevalece sobre a regra geral do artº 13º, n.º 1, do Código de Processo de Trabalho, que define como territorialmente competente o juízo do trabalho do domicílio do réu.

Pelas razões sobreditas, vai atendida a reclamação.

III. Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, atende-se a reclamação apresentada, revogando-se o despacho reclamado e, consequentemente, declarando-se como competente o Juízo do Trabalho de Guimarães – Juiz ... para julgar a presente causa.

Sem custas.
Guimarães, 04 de Abril de 2024
O Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães,
António Júlio Costa Sobrinho