Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2214/16.2T8CHV-A.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
ADMINISTRADOR DE FACTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário do relator– 663º nº 7 do C.P.C.:

I Na sentença que qualifica a insolvência como culposa o juiz deve, além do mais, identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, afectadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respectivo grau de culpa.

II – O C.I.R.E. acolhe a noção corrente de administrador - a pessoa que tem a seu cargo a condução geral de um determinado património, a pessoa que administra, governa, dirige um organismo ou empresa, que gere bens ou negócios – pelo que, por um lado, é administrador quem está investido legal ou voluntariamente em tais funções – administrador de direito - e, por outro, também o é aquele que desempenha de facto actos próprios de administração – administrador de facto.

III - Numa perspectiva funcional a doutrina tem defendido que são três os requisitos que nos permite detectar a presença de um administrador de facto: i) exercício positivo, real e efectivo da administração, com determinado grau intensidade (qualitativo e quantitativo); ii) autonomia decisória; iii) conhecimento e/ou consentimento dos sócios e dos administradores de direito.

IV - No processo de insolvência vigora o princípio do inquisitório que permite ao juiz fundar a decisão em factos não alegados pelas partes e investigar livremente e recolher as provas e informações que entender convenientes.

V – Se não constar da matéria de facto provada factos que permitam concluir que o apelante exerceu funções de administrador de facto, mas resultar dos autos que, no decurso do julgamento, foram apurados factos relevantes a este título há que anular a decisão proferida quanto ao apelante e apenas com reporte a este determinar a ampliação da matéria de facto no sentido de apurar se este, nos 3 anos anteriores ao processo de insolvência, exerceu de modo autónomo funções próprias de gerente.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

X – Reparadora Agro-Técnica, Lda. instaurou, em 06/12/2016, acção especial requerendo a declaração de insolvência de Y – Terraplanagens, Lda..

Para tanto alegou deter sobre a requerida um crédito de € 9.766,69 acrescido de juros de mora. Disse estar convicta da impossibilidade de recuperação do seu crédito. A requerida tem contra si pendentes várias execuções. Referiu encontrarem-se reunidos os requisitos previstos no art. 3º, 20º nº 1 b) e 25º do Código de Insolvências e Recuperação de Empresas (C.I.R.E.).
A Requerida foi considerada citada nos termos do art. 246º do C.P.C..
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Foi proferida decisão, em 27/02/2017, transitada em julgado, que declarou a insolvência da Requerida Y – Teraplanagens, Lda. e nomeou Administrador de Insolvência (A.I.) o Dr. Manuel.
Aí foi determinado que a insolvente procedesse à entrega imediata ao A.I. nomeado dos documentos referidos nos art. 24º, nº 1 e 36º nº 1 f) do C.I.R.E. e foi decretada a apreensão e a imediata entrega ao A.I. dos elementos contabilísticos e todos os bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos cfr. art. 36º, nº 1 g) do C.I.R.E..
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O Sr. A.I. apresentou, em 05/05/2017, parecer de qualificação de insolvência concluindo que, se encontram preenchidos os pressupostos previstos no art.º 186º nº 2 a) e i), nº 3 a) do C.I.R.E. para qualificar a insolvência como culposa, devendo os administradores Paulo, Artur, P. F., José e Adriano ser afectados pela qualificação.

Para tanto alega, em síntese, que a sociedade foi criada em 2002 tendo quatro sócios, Paulo, Artur, P. F. e Luís, todos exercendo as funções de gerentes. Em Abril de 2016, o capital encontrava-se dividido pelos três primeiros exercendo Paulo as funções de gerente. Em 26/04/2016 Paulo renunciou à gerência e dividiu a sua quota sendo uma de € 500,00 para José e outra de € 41.166,67 para R. – Transportes de Mercadorias Unipessoal, Lda.. Na mesma data Artur e P. F. cederam as suas quotas a esta sociedade. Na data da declaração de insolvência era gerente Adriano, que também era gerente da R., Lda.. Paulo continuou a participar na vida da sociedade não obstante a cedência da sua quota. Na mesma data foi criada a sociedade “W. Terra, Lda. tendo como sócios N. G. e E. C., mas que teve como gerentes P. F. e Paulo até 16/06/2016.

Em Maio de 2016 um trabalhador da insolvente recebeu ordens para trabalhar numa obra da W. Terra, Lda. e no mês seguinte foi abordado para celebrar contrato de trabalho com esta. Entre Março e Maio de 2016 a insolvente vendeu oito viaturas, duas à W. Terra, Lda.. Em 21/03/2016 vendeu uma escavadora rotativa pelo preço de € 9.000,00 quando a mesma tinha o valor de mercado de € 20.000,00, mas em 13/04/2016 a insolvente comprou peças para a escavadora que tinha vendido. A insolvente não pagou a dívida à Requerente.

Não obstante a ordem de imediata apreensão dos bens e entrega ao A.I. dos elementos da contabilidade este não conseguiu entrar em contacto com o gerente da requerida. O A.I. obteve alguns elementos da contabilidade através da prestação de contas depositadas pela sociedade.

Foram reconhecidos € 531.786,86 sendo que o incumprimento generalizado das obrigações foi reportado a Abril de 2016. A Requerida é titular de cinco viaturas automóveis cujo paradeiro desconhece e de uma escavadora rotativa que foi objecto de resolução de negócio em benefício da massa insolvente.
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X, Lda. veio requerer que a presente insolvência seja declarada culposa e que Paulo, Artur, P. F., José e Adriano sejam afectados pela qualificação.
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Foi declarado aberto o presente incidente de qualificação da insolvência.
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O M.P. pronunciou-se em 18/05/2017 nos termos do art. 188º nº 4 do C.I.R.E. subscrevendo o parecer do A.I..
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Foi notificada a insolvente e citados Paulo, Artur, P. F. e Adriano. Foi dispensada a citação de José.
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Paulo, Artur e P. F. deduziram oposição dizendo o seguinte:

Desde 2009, ano em que o mercado da construção sofreu uma paragem abrupta e sem precedentes que levou à insolvência de muitas empresas, a actividade da Requerida se foi degradando até se tornar economicamente inviável em 2014 pelo que decidiram vender as quotas. Nesse momento a Requerida tinha todos os seus compromissos financeiros honrados e ora Requerentes procuraram salvaguardar os interesses dos trabalhadores. A sociedade W. Terra, Lda. nada tem a ver com o assunto. Desde 26/04/2016 que nada mais souberam da Requerida pelo que não percebem o presente procedimento. Terminam pedindo a improcedência do incidente quanto a si uma vez que não houve qualquer actuação culposa ou com culpa grave.
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O Sr. A.I. manteve o seu parecer dizendo que, contrariamente ao defendido pelos opoentes, a simples transmissão das quotas não é suficiente para ilibar de quaisquer responsabilidades na criação ou agravamento da situação de insolvência. Acresce que há indícios que, após deixarem de ser administradores de direito, agiram como administradores de facto da requerida. Por fim, não juntaram os opoentes qualquer documento que contrarie o alegado.
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Foi fixado o objecto do processo e enunciados os temas da prova.
Procedeu-se a audiência de julgamento.
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Em 06/04/2018 foi proferida decisão que, considerando verificado o disposto no art. 186º nº 2 a) e i), nº 3 a) do C.I.R.E., qualificou como culposa a insolvência da requerida e declarou afectados por esta qualificação Paulo, Artur, P. F., José e Adriano fixando em 4 anos para o primeiro e 3 anos para os demais o prazo em que estes ficam inibidos para administrarem o património de terceiros, para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa. Mais determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelos referidos sujeitos e a sua condenação a indemnizarem os credores da requerida no montante dos créditos não satisfeitos.
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Não se conformando com a decisão recorrida veio José dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

1. Não ficou provado que o requerido fosse gerente de facto.
2. Sendo uma das pessoas segundo a lei a poderem ser afectadas pela qualificação;
3. Não se poderá aplicar ao requerido recorrente as sanções estatuídas no artigo 189 do CIRE.
4. Não há nexo de causalidade entre aquele comportamento e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
5. Não houve determinação do critério para determinação de diferentes graus de culpa.
6. A matéria dada como provada não pode afectar o requerido/recorrente;
7. Há uma contradição entre a matéria dada como provada a sua fundamentação que põe em crise a sentença.
8. Foram violados entre outros demais aplicáveis o artigo 615 do C.P.C..”.
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Contra-alegou o Ministério Público pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:

A) Saber se a sentença padece de nulidade nos termos do art. 615º nº 1 c) do C.P.C.;
B) Apurar se ocorreu erro de julgamento e se haverá fundamento de anulação da sentença quanto ao apelante e para determinar à 1ª instância que amplie a matéria de facto quanto ao mesmo.
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II – Fundamentação

Foram considerados provados os seguintes factos:

1. Por sentença proferida em 27/02/2017 e transitada em julgado a sociedade “Y – Terraplanagens, Lda.” foi declarada insolvente.
2. A sociedade “Y – Terraplanagens, Lda.” foi criada em 2002 tendo como objecto social a actividade de terraplanagens e transportes de desaterro, construção civil e obras públicas, transporte rodoviários de mercadorias por conta de outrem – cfr. certidão da Conservatória do Registo Comercial de fls. 9 e ss.
3. O capital social de € 50.000 encontrava-se dividido por 4 quotas, cada uma delas no valor nominal de € 12.500, pertencentes a Paulo, Artur, P. F. e Luís, assumindo inicialmente todos os sócios as funções de gerentes.
4. Em 28/01/2009 o capital social da sociedade foi aumentado para € 125.000 ficando o sócio Paulo com uma quota no valor de € 41.666,67, Artur com uma quota no valor de € 41.666,67, P. F. com uma quota de € 16.666,06 e P. F. com uma quota de € 25.000.
5. Em 28/04/2016 foram cedidas as quotas da sociedade a “R. – Transportes de Mercadorias Unipessoal, Lda.” no valor de € 124.500,00 e a José no valor de € 500,00.
6. Sendo designado como gerente Adriano.
7. Que também era gerente da sociedade “R., Lda.”.
8. Mesmo após a cedência das quotas o anterior sócio Paulo continuou a ter uma participação activa na vida da sociedade.
9. Em 26/04/2016 foi criada a sociedade “W. Terra, Lda.” tendo por objecto social a actividade de terraplanagens e transportes de desaterros, construção civil e obras públicas, sendo o seu capital social dividido em duas quotas:
- uma de € 12.000,00 pertencente a N. G.; e
- uma de € 24.000,00 pertencente a E. C..
10. No acto de constituição da sociedade foram designados gerentes da “W. Terra, Lda.” os ex-sócios da insolvente P. F. e Paulo, os quais em 16/06/2016 renunciaram à gerência.
11. Em Maio de 2016 P. S., trabalhador da insolvente recebeu ordens para trabalhar numa obra em Chaves, propriedade da “W. Terra, Lda.” e em Junho de 2016 foi abordado para celebrar contrato de trabalho com a “W. Terra, Lda.”.
12. Nos dois anos anteriores à declaração da insolvência, entre Março e Maio de 2016, a sociedade vendeu 8 viaturas.
13. Sendo que as viaturas com as matrículas TG e KF foram vendidas à sociedade “W. Terra, Lda.” em que a gerência pertencia a dois ex-sócios da insolvente.
14. Não se logrou apurar nem a entrada do dinheiro nas contas da sociedade, nem o destino que terá sido dado ao mesmo.
15. Em 21/03/2016 a insolvente vendeu à sociedade “S. 2009 SL” uma escavadora rotativa de marca Daewoo 255 LC-V, pelo preço de € 9.000,00 quando o seu valor comercial era superior a € 20.000,00.
16. Em 21/03/2016 a insolvente vendeu à sociedade “S. 2009 SL” uma escavadora rotativa de marca Daewoo 255 LC-V, pelo preço de € 9.000,00 quando o seu valor comercial era superior a € 20.000,00, sendo que, em 13/04/2016 adquiriu peças que tinha vendido para a mencionada máquina de custo superior ao valor pelo qual a mesma foi vendida, ou seja, € 9.766.69.
17. Os cheques que a insolvente emitiu para pagamento das referidas peças, uma vez apresentados a pagamento, vieram devolvidos por falta de provisão.
18. Por carta datada de 06/03/2017 (após a sentença que declarou a insolvência) remetida para a residência do sócio gerente Adriano, o A.I., solicitou o envio, no prazo máximo de 10 dias, dos documentos referidos no art. 24º, nº1, do C.I.R.E..
19. Na mesma data remeteu idêntica carta à insolvente, remetida para a sua sede.
20. Ambas as cartas vieram devolvidas com o motivo “não atendeu/objecto não reclamado”.
21. Tal pedido foi reiterado por cartas de 22/03/2017 que, igualmente, vieram devolvidas com o mesmo motivo.
22. Até ao presente os gerentes da sociedade não diligenciaram por prestar qualquer esclarecimento ou cooperação ao A.I..
23. Nem procederam à entrega dos elementos da contabilidade da insolvente.
24. O que levou a que o A.I. ficasse impedido de analisar devidamente a actividade da insolvente, bem como a sua situação patrimonial.
25. Em Abril de 2016 a sociedade entrou em incumprimento para com o “Banco A, S.A.” no valor de € 45.000,00 e com o “Banco B” pelo valor de € 78.000.
26. Por decisão proferida no âmbito do apenso E destes autos, e já transitada em julgado, o negócio de compra e venda da máquina referido em 22, foi resolvido em benefício da massa insolvente.
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Com relevância para a decisão nada mais se provou, designadamente que:

a) Os anteriores sócios da insolvente tenham cumprido com as suas obrigações até o momento em que as quotas foram cedidas;
b) Que os anteriores sócios da insolvente nada tivessem que ver com a actividade da sociedade “W. Terra, Lda.”.
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A) Da nulidade da sentença nos termos do art. 615º nº 1 c) do C.P.C.

Refere o apelante que a sentença é nula por haver uma contradição entre a matéria dada como provada e a sua fundamentação uma vez que a matéria de facto dada como provada não tem a virtualidade de afectar o recorrente pela qualificação da insolvência. Mas, sem razão. Vejamos.

Dispõe o art. 615º nº 1 do C.P.C.: É nula a sentença quando: (…)

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; (…).

Esta nulidade a que se refere a primeira parte do citado preceito remete para o princípio da coerência lógica da sentença uma vez que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica, i.e., a decisão proferida não pode seguir um caminho diverso daquele que apontava a linha de raciocínio plasmado nos fundamentos. Tem-se entendido que esta nulidade está relacionada, por um lado, com a obrigação de fundamentação da decisão prevista nos art. 154º e 607º nº 3 do C.P.C. e, por outro, pelo facto da sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Neste sentido, entre outros, Ac. da R.L. de 09/07/2014, in www.dgsi.pt.

A obscuridade e a ambiguidade mencionadas na segunda parte do referido preceito verificam-se quando alguma passagem da decisão é ininteligível ou quando se preste a mais do que um sentido respectivamente. Neste sentido Ac. do S.T.J. de 02/06/2016, in www.dgsi.pt.

Situação distinta é erro de julgamento (error in judicando), quer quanto à apreciação da matéria de facto, quer quanto à determinação e interpretação da norma jurídica aplicável.

No caso sub judice, o alegado pelo apelante não consubstancia qualquer contradição entre a fundamentação de facto e/ou de direito com a parte decisória da sentença, nem qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, pelo que não se verifica a suscitada nulidade. A alegada contradição entre a fundamentação de facto e a fundamentação de direito, a verificar-se, pode consubstanciar um erro de julgamento a apreciar noutra sede.
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B) Erro de julgamento

O apelante insurge-se contra a decisão que qualificou como culposa a insolvência da requerida e que o declarou como afectado por esta qualificação começando por alegar que a matéria de facto dada como provada não permite a sua afectação uma vez que na mesma não constam quaisquer actos de gerência por si praticados que permitam qualificá-lo como gerente de facto.

Vejamos.

O incidente de qualificação da insolvência constitui uma responsabilização do devedor ou dos administradores da pessoa colectiva, perante o arrastar de uma situação de degradação da empresa ou da vida financeira e patrimonial pessoal com prejuízo para os credores.

Nos termos do art. 185º do C.I.R.E. a insolvência pode ser qualificada de culposa ou de fortuita.

A noção de insolvência culposa encontra-se prevista no art. 186º nº 1 do C.I.R.E. que dispõe: “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”. A insolvência fortuita é definida por exclusão, i.e., serão todas aquelas que não sejam culposas.
Deste preceito resulta que os requisitos para que se possa concluir que a insolvência é culposa são: a) conduta (por acção ou omissão) do devedor ou dos seus administradores de facto ou de direito; b) que essa conduta tenha criado ou agravado a situação de insolvência; c) que a mesma seja dolosa ou, pelo menos, que haja culpa grave; d) e que tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo.

Para facilitar a determinação de uma insolvência culposa o legislador optou por estabelecer factos-índice da mesma, de diferente natureza, nos nº 2 e 3 do citado preceito. Da verificação de algum dos factos-índices previstos no nº 2 resulta sempre a insolvência culposa do devedor que não seja pessoa singular. Encontramo-nos nesta sede perante presunções absolutas, iuris et de iure ou inilidíveis (não admitem prova em contrário – art. 350º nº 2 in fine do C.C.), quer da culpa grave, quer do nexo de causalidade entre a conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Mas da verificação dos factos-índices previstos no nº 3 resulta apenas uma presunção ilidível da violação, com culpa grave, de obrigações impostas aos administradores do insolvente pelo que se exige a subsequente prova do referido nexo de causalidade (neste sentido, entre outros, vide Ac. do S.T.J. de 06/10/2011, in www.dgsi.pt).

Na concretização dos referidos factos-índice dever-se-á “atender às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor” (Carvalho Fernandes/João Labareda, in C.I.R.E. Anotado, 3ª ed, Quid Iuris, pág. 681).

Nos termos do art. 189º nº 1 a) do C.I.R.E na sentença que qualifique a insolvência como culposa o juiz deve, além do mais, identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afectadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respectivo grau de culpa.

Importa ter presente que o C.I.R.E. acolhe a noção corrente de administrador, i.e., “a pessoa que tem a seu cargo a condução geral de um determinado património; pessoa que administra, governa, dirige um organismo ou empresa, gere bens ou negócios” (Ac. da R.C. de 28/06/2016, in www.dgsi.pt, que cita o Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo 2001, pág. 87). Assim, por um lado, é administrador quem está investido legal ou voluntariamente em tais funções – administrador de direito - e, por outro, aquele que desempenha de facto actos próprios de administração – administrador de facto. Ambos estão vinculados aos deveres fundamentais previstos no art. 64º do Código das Sociedades Comerciais (C.S.C.): o dever de cuidado – que se pode traduzir num dever de acompanhar, controlar e vigiar a organização e condução da sociedade e num dever de se informar – e o dever de lealdade – no interesse da sociedade.
Atento o objecto da apelação importa precisar melhor o conceito de administrador de facto que a lei não define.

Coutinho de Abreu e Maria Elisabete Ramos, in “Responsabilidade Civil de Administradores e de Sócios Controladores” (Notas sobre o artigo 379º do Código do Trabalho, in “Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho” – Miscelâneas, nº 3, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 43) referem que “(...) é administrador de facto (em sentido amplo) quem, sem título bastante, exerce, direta ou indiretamente e de modo autónomo (não subordinadamente) funções próprias de administrador de direito da sociedade”.

Numa perspectiva funcional a doutrina tem defendido que são três os requisitos que nos permite detectar a presença de um administrador de facto: i) exercício positivo, real e efectivo da administração, com determinado grau intensidade (qualitativo e quantitativo); ii) autonomia decisória; iii) conhecimento e/ou consentimento dos sócios e dos administradores de direito - Ricardo Costa, em “Responsabilidade Civil Societária dos Administradores de Facto”, “Temas Societários”, IDET/Almedina, Coimbra, 2006, p 27 e ss e em “Os Administradores de Facto das Sociedades Comerciais”, Almedina, Coimbra, 2014.
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Revertendo ao caso em apreço reconhecemos que, em face da matéria de facto dada como provada, o apelante não pode ser afectado pela qualificação da insolvência, contudo, contrariamente ao pretendido, entendemos que a consequência não é, desde já, que o mesmo fique eximido da referida qualificação.

Vejamos.

Com efeito, os factos dados como provados na sentença são a reprodução de factos alegados pelo A.I. no seu parecer e no requerimento da credora X – Reparadora Agro-técnica, Lda. e nestes, não obstante ambos se pronunciarem pela afectação da qualificação da insolvência culposa ao apelante, não constam factos concretos de onde se possa retirar que este tenha sido um administrador de facto da devedora e que, com o seu comportamento, tenha agravado a situação de insolvência.

Atendendo à motivação da matéria de facto constante da sentença é por demais evidente que o tribunal a quo apurou no decurso da audiência de julgamento, designadamente com a inquirição do apelante, factos relevantes acerca do acima referido. A título de exemplo, segundo a referida motivação, o apelante terá confessado que Adriano funciona apenas como um “testa de ferro” sendo o primeiro quem efectivamente assumia a gestão efectiva da sociedade.

Ora, nos termos do art. 11º do C.I.R.E., no processo de insolvência vigora o princípio do inquisitório que permite ao juiz fundar a decisão em factos não alegados pelas partes e que implicitamente prevê a faculdade daquele investigar livremente e recolher as provas e informações que entender convenientes.

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no art. 662º nº 2 c) do C.P.C., anula-se a decisão proferida quanto ao apelante José e apenas com reporte a este determina-se a ampliação da matéria de facto com recurso à prova já produzida no sentido de apurar se este, nos 3 anos anteriores ao processo de insolvência, exerceu de modo autónomo funções próprias de gerente, as quais aí devem ser concretizadas.
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Face a esta decisão fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo apelante no presente recurso.
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I – Na sentença que qualifica a insolvência como culposa o juiz deve, além do mais, identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, afectadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respectivo grau de culpa.
II – O C.I.R.E. acolhe a noção corrente de administrador - a pessoa que tem a seu cargo a condução geral de um determinado património, a pessoa que administra, governa, dirige um organismo ou empresa, que gere bens ou negócios – pelo que, por um lado, é administrador quem está investido legal ou voluntariamente em tais funções – administrador de direito - e, por outro, também o é aquele que desempenha de facto actos próprios de administração – administrador de facto.
III - Numa perspectiva funcional a doutrina tem defendido que são três os requisitos que nos permite detectar a presença de um administrador de facto: i) exercício positivo, real e efectivo da administração, com determinado grau intensidade (qualitativo e quantitativo); ii) autonomia decisória; iii) conhecimento e/ou consentimento dos sócios e dos administradores de direito.
IV - No processo de insolvência vigora o princípio do inquisitório que permite ao juiz fundar a decisão em factos não alegados pelas partes e investigar livremente e recolher as provas e informações que entender convenientes.
V – Se não constar da matéria de facto provada factos que permitam concluir que o apelante exerceu funções de administrador de facto, mas resultar dos autos que, no decurso do julgamento, foram apurados factos relevantes a este título há que anular a decisão proferida quanto ao apelante e apenas com reporte a este determinar a ampliação da matéria de facto no sentido de apurar se este, nos 3 anos anteriores ao processo de insolvência, exerceu de modo autónomo funções próprias de gerente.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em anular, quanto ao apelante José, a decisão da 1ª instância, ordenando-se que, com recurso à prova já produzida, se proceda à ampliação da matéria de facto apenas quanto a este apelante de molde a apurar se, nos 3 anos anteriores ao processo de insolvência, o mesmo exerceu de modo autónomo funções próprias de gerente.
Custas nesta instância pelo vencido a final.

Guimarães, 13/09/2018

(Margarida Almeida Fernandes)
(Margarida Sousa)
(Afonso Cabral de Andrade)