Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
376/07.9TJVNF.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: EXECUÇÃO
INSOLVÊNCIA
PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS
ENCERRAMENTO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Apesar de o n.º 3 do art. 88º do CIRE prever a extinção das execuções no caso de encerramento do processo de insolvência por insuficiência de bens, se neste não tiver sido decretada a exoneração do passivo restante e a instância de reclamação de créditos tiver sido julgada extinta por inutilidade superveniente, tal encerramento não implica necessariamente a inutilidade do prosseguimento da execução instaurada contra o devedor insolvente não exonerado.
II - Nessa situação particular, o título executivo pré-existente ao processo de insolvência e que serviu de base à execução não perdeu a sua validade e eficácia.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

EMP01... – SUCURSAL EM PORTUGAL, exequente nos presentes autos, reclamou da decisão do Sr. AE de 17-10-2023, que determinou a extinção da presente execução por inutilidade superveniente da lide. 
Para tanto alegou, em síntese, que pese embora o executado AA tenha sido declarado insolvente no processo n.º 1808/22...., que correu termos no Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão – Juiz ..., foi indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e, bem assim, foi determinado o encerramento do processo de insolvência por insuficiência de massa, não tendo inclusive havido lugar a sentença de verificação e graduação de créditos.
Em virtude de tais circunstâncias, entende a exequente que a decisão do sr. AE deve ser revogada e determinado o prosseguimento dos autos, uma vez que estamos perante uma exceção ao plasmado no art. 88.º, n.º 3, e art. 230.º, n.º 1, al. d), ambos do CIRE.
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Por despacho de 29/11/2023, foi julgada improcedente a reclamação efetuada pela Exequente, tendo sido confirmada a decisão do sr. AE.
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Inconformada com essa decisão, dela interpôs recurso a exequente e, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«I. É frequente a interpretação que o Art.º 233.º/1 c) do CIRE quando estabelece que: “1 - Encerrado o processo, (...) c) Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor (...), constituindo para o efeito título executivo (...) a sentença de verificação de créditos (...);”
II. Pretende “aniquilar” os títulos executivos existentes, passando o credor reclamante a dispor apenas como novo título executivo, da sentença de verificação e de graduação de créditos.
III. Por sua vez, estabelece o Art.º 88.º/3 do CIRE que “3 - As ações executivas suspensas nos termos do n.º 1 extinguem-se, quanto ao executado insolvente, logo que o processo de insolvência seja encerrado nos termos previstos nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 230.º, salvo para efeitos do exercício do direito de reversão legalmente previsto.”
IV. Sendo frequente, mas não unanime, a interpretação que mesmo em caso de devedor singular e não exonerado, não se pode nem obstar a esta extinção quando a execução ainda está suspensa e nem promover a renovação da instância executiva, nos termos do Art.º 850.º do CPC, após a sua extinção por encerramento do processo de insolvência.
V. E são estas normas, com estas interpretações, que são o cerne do presente recurso, já que,
VI. Foram estes os fundamentos da decisão do Senhor Agente de Execução de não prosseguir a acção executiva quando isso foi solicitado pela aí Exequente e ora Apelante.
VII. Reclamada a decisão do Exm.º Senhor Agente de Execução, veio o Tribunal a confirmar a decisão do mesmo, no Despacho datado de 29/11/2023 e de que ora se recorre.
VIII. Este despacho é nulo, nos termos do Art.º 615.º/1 b), e d) do CPC, porquanto, no mesmo não é elencada a matéria de facto que subjaz à decisão, e nem o mesmo se pronuncia sobre a invocada inconstitucionalidade da interpretação que o Exm.º Senhor Agente de Execução preconiza para o Art.º 233.º/1 c) do CIRE.
IX. Começando por aí, temos que a interpretação que considera que apenas a sentença de verificação de graduação de crédito passa a ser título executivo para o credor reclamante que pretenda exercer os seus direitos após o encerramento do processo, é inconstitucional, no que concerne aos títulos executivos cartulares, cuja força executiva é conferida por convenções internacionais como é o caso da LULL, já que o título que subjaz aos presentes autos é uma livrança.
X. Tal interpretação viola o disposto o primado do direito internacional, consagrado no Art.º 8.º da CRP.
XI. Logo, nenhuma norma de direito interno poderia retira força executiva a tais documentos.
XII. E sendo que a razão de ser desta norma de assegurar que a S... é titulo executivo para os credores que pretendem exercer os seus direito, visa acautelar os direitos dos credores não munidos de qualquer título executivo para a sua reclamação de créditos, como se passa por exemplo como credores como a EMP02... ou a EMP03... ou um simples trabalhador, como melhor descrito nas alegações.
XIII. Não pretende o Legislador, por via desta norma, retirar força executiva a outros títulos já existentes, não resultando tal possibilidade do seu teor, ou sequer de outras normas do CIRE, já que a reclamação de créditos na acção de insolvência, não confere novação a nenhuma divida reclamada.
XIV. Pelo que, considerar-se que outros títulos perdem a sua eficácia, para além de, salvo o devido respeito, completamente descabido, no caso dos títulos cartulares é mesmo inconstitucional,
XV. E cuja declaração de tal inconstitucionalidade ora se peticiona.
XVI. No específico caso dos autos, atento a que não foi proferida sentença de verificação e de graduação de créditos, situação possível e perfeitamente legal, prevista no Art.º 233.º/2 b) do CIRE, tal interpretação implicaria que a Apelante se viria forçada a ter de lançar mão de uma acção declarativa para ver reconhecido um direito, quando tem um titulo, em execução, na presente acção, que, como o presente recuso o demonstra, ainda está “viva”.
XVII. Da mesma forma, em face de tal interpretação, credores que não tivessem reclamados os seus créditos, e que portanto, não tenham visto os seus créditos verificados e graduados nessa sentença, embora munidos de um título executivo, nesta situação, estariam igualmente impedidos de utilizar tal eventual título numa acção contra o devedor insolvente não exonerado, e nem poderiam usar a S... pois que a mesma não abrangeria o seu crédito não reclamado, e quando o legislador pretende diminuir a pendencia, lá teria este credor de, primeiro, lançar mão de acção declarativa.
XVIII. Pelo que, salvo o devido respeito, tal interpretação não terá sido maduramente sopesada, quanto a todas as suas reais implicações e consequências, pugnando assim a Apelada pela correcção e abrangência da interpretação que adopta, no sentido que, com tal norma, pretendeu apenas o Legislador dar um título executivo aos credores reclamantes que não tinham outro título, e não retirar a eficácia a qualquer titulo pré-existente à reclamação de créditos.
XIX. No que se refere à extinção ope legis da acção executiva nos termos do Art.º 88.º/3 do CIRE, entende a Apelante que esta norma é eminentemente processual e visa, não impor a extinção indiscriminada e
 inopinada de todas as execuções de devedores declarados insolventes, mas, apenas dar uma possibilidade de fundamento para a extinção das execuções de devedores pessoas colectivas que elas próprias são extintas com a declaração de insolvência, e das execuções referentes a pessoas singulares às quais foi concedida a exoneração do passivo restante.
XX. E não, nos casos em que o credor recuperou a possibilidade efectiva de exigir dos seus devedores a cobrança coerciva das dividas reclamadas.
XXI. Daí o facto do legislador ter consagrado as excepções que consagrou, e de ter abe initio permitido que as execuções pudessem prosseguir em processos em que essa prossecução ainda era possível, como no caso dos plano incumpridos.
XXII.    O que se passa com esta interpretação do Art.º 88.º/3 que a Recorrente aqui pretende por em causa, é que de acordo com ela, irá extinguir-se uma acção executiva contra um devedor insolvente não exonerado, para apresentar uma nova acção judicial, igual, contra este.
XXIII. E, nessa nova acção, irão repetir-se actos que na primeira já foram praticados, como a citação do Executado, ou a citação do cônjuge do executado, a citação de credores, penhoras (muitas vezes há bens que são penhorados como é o caso dos veículos automóveis não recentes ou direitos em heranças, que o Senhor Administrador de Insolvência e os credores não consideram interessantes para a insolvência e que por isso não são apreendidos para aquela), mas que podem prosseguir na execução após o levantamento da suspensão.
XXIV. Ora, uma nova acção implicaria a nova realização de tais actos. Mas mais,
XXV. Sendo certo que, a maior parte das execuções têm devedores solidários, casos há em que a acção executiva, suspensa quanto ao devedor insolvente por virtude da declaração de insolvência, continua a prosseguir quanto aos devedores solidários demandados.
XXVI. A perfilhar-se a interpretação que a Apelante aqui põe em causa, muitos casos existiriam em que a acção que teria de ser extinta nos termos do Art.º 88.º/3 do CITRE quanto ao executado insolvente não exonerado, irá prosseguir contra os executados não insolventes.
XXVII. E na mesma, quanto ao Executado insolvente não exonerado, o Exequente iria ter de apresentar uma nova acção, embora aquela prossiga quanto aos demais.
XXVIII. Esta interpretação cumpre as regras do Art.º 9.º/3 do CC? Está esta interpretação, que a Apelante põe em causa, a presumir que o Legislador consagrou a melhor solução?
XXIX. Entende a Apelante que não, e por isso aqui a põe em causa, pugnando pela análise escorreita e cabal desta questão sob todos os prismas e sob todas as possibilidades processuais, pois que a Lei, embora diferente para situações diferentes, terá de ser igual para situações iguais.
XXX. Pugna a Apelante que a interpretação, alicerçada na letra da lei, mas também no seu espírito, mais adequada e que corresponde ao objectivo visado pelo Legislador é a interpretação que o Art.º 88.º/3 do CIRE visa conferir ao julgador a possibilidade de extinguir a acção com tal fundamento, ao invés da transversal inutilidade superveniente, no caso de pessoas colectivas que são extintas, e de pessoas singulares que hajam sido exoneradas, situações estas, as únicas em que a prossecução da execução é inviável porque não permitida por Lei, já que no primeiro caso  o devedor cessa a existência jurídica e no segundo caso a divida foi perdoada;
XXXI. Mas não nos demais casos, em que a execução pode prosseguir, porque o devedor executado continua responsável pelo seu pagamento, como seja, nos planos incumpridos, e quanto a devedores singulares não exonerados.
XXXII. Sendo certo que se deixou clara a tese da Recorrente, requer-se a este Douto Tribunal, no seu prudente arbítrio, a apreciação definitiva da interpretação destas normas.
Termos em que deve o presente recurso ser admitido e ser-lhe dado provimento e em consequência declarar a nulidade do Despacho sob recurso, determinando a sua descida para que sejam supridas tais nulidades;
E após o suprimento das nulidades, nova notificação ao Apelante para manter ou não o seu recurso, ou completá-lo em face do teor do suprimento, e em consequência poder este subir e ser apreciado quanto à questão de fundo nele suscitada.
Caso não se entenda haver nulidade, nesse caso deverá o mesmo ser admitido e julgado procedente, revogando- se a decisão proferida e substituída por outra que admita a reclamação da Exequente ao acto do Exm.º Senhor Agente de Execução e determine a prossecução da acção executiva, assim fazendo este Douto Tribunal a costumada
JUSTIÇA».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Por despacho de 27/02/2024, a que alude o art. 641º do CPC, o Tribunal “a quo” apreciou as invocadas nulidades da decisão e admitiu o recurso interposto, como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (ref.ª ...47).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Delimitação do objeto dos recursos.             

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(s) recorrente(s), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho].

No caso, por ordem lógica da sua apreciação, apresentam-se as seguintes questões a decidir:

i) Da(s) nulidade(s) da decisão recorrida;
ii) Da extinção da execução na sequência do encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa; e,
iii) Da inconstitucionalidade da “interpretação que considera que apenas a sentença de verificação de graduação de crédito passa a ser título executivo para o credor reclamante que pretenda exercer os seus direitos após o encerramento do processo, no que concerne aos títulos executivos cartulares”, por violação do disposto no art. 8.º da CRP.
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III. Fundamentos

IV. Fundamentação de facto. 

A. - As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão do presente recurso são os que decorrem do relatório supra (que, por brevidade, aqui se dão por integralmente reproduzidos), a que acrescem os seguintes factos:
1.º - A presente acção executiva, para pagamento de quantia certa, foi apresentada em 26/01/2007.
2.º - O título executivo dado à execução é uma livrança.
3.º - Em 18/03/2022, o executado BB apresentou-se à insolvência, que correu os seus termos sob o n.º 1808/22...., no Juízo de Comércio - Juiz ... - do Tribunal de Vila Nova de Famalicão, a qual foi declarada em 22/03/2022.
4.º - Em face da declaração de insolvência, a presente acção executiva foi suspensa em 01/04/2022, pelo Exm.º Senhor Agente de execução, nos termos do art. 88.º/1 do CIRE.
5.º - Naquele processo de insolvência o insolvente pediu a exoneração do passivo restante, pedido esse liminarmente indeferido por despacho datado de 09/01/2023.
6.º - Pelo mesmo despacho foi também declarado encerrado o processo, por insuficiência da massa insolvente, ao abrigo do disposto nos arts. 232.º, n.ºs 1 e 7 e 230º, n.º 1, al. d) do CIRE.
7.º - Em 31/01/2023, a exequente peticionou o prosseguimento dos autos de execução, tendo para o efeito indicado um bem concreto para ser penhorado (vencimento susceptível de penhora nos meses em que são pagos os subsídios de férias e Natal ao serviço da empresa EMP04..., Lda).
8.º - A exequente foi notificada pelo Exm.º Senhor Agente de Execução, por notificação expedida a 21/06/2023, da extinção da execução «por inutilidade superveniente da lide, atento o disposto no n.º 3 do Art.º88º, alíneas a) e d) do n.º1 do Artigo 230.º, Artigo 233, todos do CIRE, e alínea e) do Artigo 277 do CPC, em virtude do encerramento do processo de insolvência dos executados por insuficiência da massa insolvente».
9.º - A extinção da execução foi dada sem efeito e o pedido de prosseguimento dos autos supra aludido no item 7º foi recusado pelo Exm.º Senhor Agente de Execução, por decisão de 17-10-2023, com o fundamento da sua inadmissibilidade legal, alicerçando tal decisão nos arts. 233.º/1, al. d) e do art.º 88.º/3, ambos do CIRE.
10.º - No referido processo de insolvência não foi proferida sentença de verificação e de graduação de créditos, tendo sido julgado extinta a instância do apenso de reclamação de créditos por inutilidade superveniente, atenta a insuficiência do activo da massa insolvente (ref.ª ...46 do processo n.º 1808/22....).
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V. Fundamentação de direito.        
               
1. Nulidade(s) da decisão recorrida com fundamento nas als. b) e d) do n.º 1 do art. 615º do CPC.
1.1. As causas de nulidade da sentença ou de qualquer despacho (art. 613º, n.º 3 do CPC) são as que vêm taxativamente enumeradas no n.º 1 do art. 615º do CPC. 
Nos termos do n.º 1 do art. 615º do CPC, a sentença é nula (entre o mais) quando:
«(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
(…)».
A primeira das enumeradas nulidades está relacionada com o dever de fundamentação que decorre do princípio enunciado no art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República, nos termos do qual as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei, reiterando-se o referido princípio no art. 154.º, n.º 1, do CPC, onde se diz que as «decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas», não podendo essa justificação/fundamentação «consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade» (n.º 2 do mesmo preceito).
No tocante à elaboração da sentença, prescreve o art. 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC que na respetiva fundamentação o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados.
Como tem sido reiteradamente apontado pela doutrina[1] e jurisprudência[2], só integra o apontado vício a falta absoluta de fundamentação da sentença, que não uma fundamentação simplesmente escassa, deficiente, incompleta, medíocre, não convincente ou mesmo errada. A insuficiência ou mediocridade da motivação pode afetar «o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade»[3].
Por sua vez, a segunda invocada causa de nulidade – prevista na al. d) do n.º 1 do art. 615º do CPC – corresponde a um vício de limites, que se divide em dois segmentos, sendo o primeiro atinente à omissão de pronúncia (a única que ao caso releva) e o segundo relativo ao excesso de pronúncia ou de pronúncia indevida. O juiz conhece de menos na primeira hipótese e conhece de mais do que lhe era permitido na segunda.
Esta nulidade decorre da exigência prescrita no n.º 2 do art. 608.º do CPC, nos termos do qual o “juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Verifica-se a omissão de pronúncia quando o juiz deixe de conhecer, sem prejudicialidade, de todas as questões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada[4]
Em termos esquemáticos, e como desde logo foi reconhecido pelo Mm.º Juiz “a quo” no despacho de 27/02/2024, a decisão recorrida não contém a enunciação dos factos assentes que serviram de fundamento à solução jurídica alcançada determinante da improcedência da reclamação apresentada pela Exequente.
Não obstante a referida decisão impugnada consubstanciar uma decisão (proferida no âmbito do disposto no art. 723º, n.º 1, al. c), do CPC) de reapreciação de uma decisão de extinção do agente de execução de 17/10/2023, e sendo esta “omissa quanto à escalpelização da matéria de facto assente”, afigura-se-nos que, com vista à apreciação da questão de direito em discussão, não estava o Tribunal recorrido dispensado de elencar essa matéria fáctica, consubstanciada na enunciação das incidências fáctico-processuais verificadas essencialmente no processo de insolvência que correu termos sob o n.º 1808/22...., porquanto na reclamação apresentada a reclamante, ora recorrente, não deixou de especificar autonomamente tais incidências fácticas sob o item “Os Factos”.
Reconhecida a falta de enunciação dos fundamentos de facto – atenta a não menção dos factos assentes – geradora da nulidade da decisão (arts. 615º, n.º 1, al. b) e 613º, n.º 3, ambos do CPC), valerá a regra da substituição da Relação ao tribunal recorrido (art. 665º, nº. 1).
A esse respeito dir-se-á que a indicação da matéria de facto relevante mostra-se já efetuada no presente acórdão, como se alcança do item IV, do qual consta a enunciação da “Fundamentação de facto”. 
No tocante ao segundo vício apontado – nulidade por falta de apreciação da inconstitucionalidade suscitada –, o Tribunal “a quo”, no despacho a que se reporta o art. 617º, n.º 1, do CPC, datado de 27/02/2024 (ref.ª ...47), expressamente reconheceu haver omissão de pronúncia, pelo que, ao abrigo do disposto no art. 613º, n.ºs 2 e 3, do CPC, supriu a invocada nulidade. 
Assim, mostrando-se suprida a invocada nulidade, resta-nos considerar prejudicada tal questão ou vício processual (sem embargo da ulterior apreciação da inconstitucionalidade suscitada, na hipótese de a mesma não se mostrar prejudicada).
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2. Da extinção da execução na sequência do encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa.
Os efeitos da declaração de insolvência têm como princípio fundamentante o princípio par conditio creditorum ou da igualdade de credores[5] [6].
No que aqui releva, destacam-se os efeitos processuais que são todos aqueles que atingem processos e que, sendo exteriores ao processo de insolvência e podendo, inclusivamente, envolver pessoas distintas do devedor, são relevantes para a massa insolvente (a sua constituição e o seu valor).
Tais efeitos processuais, tendo subjacente o princípio da par conditio creditorum, dirigem-se, basicamente, a impedir que algum credor possa obter, por via distinta do processo de insolvência, uma satisfação mais rápida ou mais completa, em prejuízo dos restantes credores.
Aos efeitos processuais correspondem, fundamentalmente, quatro providências: a apreensão de determinados elementos e dos bens do devedor [arts. 36º, n.º 1, al. g) e 149º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (abreviadamente designado por CIRE e ao qual pertencem todas as disposições legais que forem citadas sem denominação de origem)[7]], a apensação (arts. 85º, nºs 1 e 2, 86º, n.ºs 1 e 2 e 89º, n.º 2), a impossibilidade de instauração (arts. 87º, n.º 1, 88º, n.º 1 e 89º, n.º 1) e a suspensão de certas ações (artºs 87º, n.º 1 e 88º, n.º 1)[8].

Releva o art. 88.º, que sob a epígrafe “Acções executivas” prescreve:

«1 - A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes.
2 - Tratando-se de execuções que prossigam contra outros executados, e nas quais hajam sido penhorados bens compreendidos na massa insolvente, é apenas extraído e remetido para apensação traslado do processado relativo ao insolvente.
3 - As ações executivas suspensas nos termos do n.º 1 extinguem-se, quanto ao executado insolvente, logo que o processo de insolvência seja encerrado nos termos previstos nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 230.º, salvo para efeitos do exercício do direito de reversão legalmente previsto.
4 - Compete ao administrador da insolvência comunicar por escrito e, preferencialmente, por meios eletrónicos, aos agentes de execução designados nas execuções afetadas pela declaração de insolvência, que sejam do seu conhecimento, ou ao tribunal, quando as diligências de execução sejam promovidas por oficial de justiça, a ocorrência dos factos descritos no número anterior».
Paralelamente, o art. 793º do CPC determina que “[q]ualquer credor pode obter a suspensão da execução, a fim de impedir os pagamentos, mostrando que foi requerida a recuperação de empresa ou a insolvência do executado[9].

Com a declaração de insolvência, suspendem-se, necessariamente, as execuções pendentes (art. 88.º, n.º 1).
Destinando-se a liquidação do activo, no processo de insolvência, à satisfação dos créditos reclamados e verificados, a prévia suspensão das execuções pendentes contra o insolvente revela-se um meio eficaz para assegurar que os credores concorram em condições de igualdade a este pagamento, fazendo jus ao aludido princípio par conditio creditorum.
A suspensão das execuções pendentes constitui, pois, um efeito necessário da declaração da insolvência e não um efeito possível, como nas hipóteses a que se refere o art. 793º do CPC. Por isso, ao contrário do que sucede com este último preceito, as consequências previstas no art. 88º do CIRE, resultantes da declaração da insolvência, são automáticas e oficiosamente decretadas[10].
Se, não obstante a declaração de insolvência, devidamente anunciada, a execução prossegue, deve declarar-se oficiosamente a nulidade dos actos praticados após aquela declaração[11].
Donde serão nulas todas as diligências executivas que sejam realizadas após a declaração de insolvência do devedor, nomeadamente, a penhora ou a venda de bens penhorados, assim como a realização de pagamentos na execução[12], atento o facto de estar em causa a prática de um ato que a lei não admite e que, necessariamente, terá influência quer no desfecho do processo executivo, quer no desfecho do processo de insolvência (art. 195º, n.º 1, do CPC).
Semelhante efeito processual encontra justificação na circunstância de a insolvência constituir uma execução universal e coletiva, a qual implica a apreensão da totalidade do património do devedor, não sendo, por isso, possível o prosseguimento de diligências executivas sobre bens que integrem a massa insolvente, sob pena de violação do princípio par conditio creditorum,
Daí que este efeito suspensivo das diligências executivas ou de outras providências requeridas pelos credores do devedor não se produza na eventualidade de a insolvência do devedor ter sido declarada com carácter limitado, nos termos dos arts. 39º e 131º do CIRE, sem que, entretanto, tenha sido requerido o complemento da sentença, já que, nesse caso, não há lugar à apreensão de bens, nem à reclamação de créditos.
Ademais, a declaração de insolvência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência, já que, à luz do art. 90º, os credores da insolvência devem exercer os seus direitos de crédito no próprio processo de insolvência. Vale isto por dizer que a declaração de insolvência do devedor determina a suspensão imediata da instância executiva e não a extinção da execução por inutilidade superveniente da lide[13].
No que às execuções diz respeito, da conjugação entre o art. 85º, n.º 2 e o art. 88º, n.ºs 1 e 2, resulta o seguinte regime geral[14]:
- Todas as execuções contra o insolvente se suspendem;
- Se nessas execuções não existir qualquer bem integrante da massa insolvente penhorado, o processo não é remetido para apensação ao processo de insolvência; havendo outros executados, prossegue contra eles;
- Se nessa execução existirem bens integrantes da massa insolvente penhorados, o processo é remetido para apensação ao processo de insolvência (o que é feito oficiosamente); havendo outros executados, é apenas extraído e remetido para apensação traslado do processado relativo ao insolvente.
A acção executiva que tiver ficado suspensa extingue-se ou prossegue os seus termos em função do desfecho do processo de insolvência[15]:
a) se o processo de insolvência for encerrado após a realização do rateio final [art. 230º, n.º 1, al. a)] ou pelo facto de o administrador da insolvência ter concluído pela insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente [art. 230º, n.º 1, al. d)], a execução extingue-se, por inutilidade superveniente da lide [art. 277º, al. e), do CPC], atento o disposto no art. 88º, n.º 3;
b) se o processo de insolvência for encerrado antes da realização do rateio final, em virtude da aprovação e subsequente homologação de um plano de insolvência [art. 230º, n.º 1, al. b)] ou de um plano de pagamentos (art. 259º, n.º 4), o destino da ação executiva ficará dependente daquilo que, em concreto, tiver sido previsto no plano de insolvência ou no plano de pagamentos, nomeadamente o prosseguimento da execução, a extinção da execução, a prorrogação do prazo de suspensão da execução ou a concessão de perdões, totais ou parciais, ou de moratórias;
c) se o processo de insolvência for encerrado com outro fundamento, a execução prossegue os seus termos, já que, à luz do art. 233º, com o encerramento do processo de insolvência os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor, sem prejuízo de eventuais restrições impostas pelo plano de insolvência ou plano de pagamentos, bem como da limitação resultante do art. 242.º, n.º 1, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência.
Como fazem notar Carvalho Fernandes e João Labareda[16], quanto à norma do n.º 3 do art. 88º do CIRE, “(…), trata-se, em bom rigor, somente de plasmar directamente no texto da lei uma solução que não podia deixar de prevalecer mesmo na ausência de qualquer previsão específica – como até aqui sucedia –, em razão da natureza das causas que a determinam”.
Efectivamente, diz o n.º 1 do art. 230º que: “Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento:
a) Após a realização do rateio final, (…);
(…)
d) Quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente;
(…)”.
Assim, o que resulta das disposições conjugadas do n.º 3 do art. 88º e das als. a) e d) do n.º 1 do art. 230º é que “[a]s execuções não se extinguem senão nos casos de encerramento do processo de insolvência após o rateio final ou por ausência/insuficiência da massa insolvente. Não se extinguem em nenhum dos demais casos. Por outras palavras, as execuções só findam e não prosseguem quando se liquidou todo o património e se repartiu o produto por todos os credores que se apresentaram a concurso ou quando não há activo para satisfazer sequer os credores da massa insolvente[17].
Compreende-se que, quando o processo de insolvência é encerrado nas duas situações previstas nas als. a) e d) do n.º 1 do art. 230º, o destino das execuções instauradas contra o insolvente (que estão suspensas) só possa ser a extinção, porque[18]:
- Se houve rateio final é porque houve liquidação de todo o património do insolvente e os credores estão pagos, tendo o processo de insolvência atingido a sua finalidade (cfr. art. 1º, n.º 1, 2ª parte);
- Se há insuficiência da massa insolvente é porque não há património, ou seja, não há bens penhorados nas execuções que estão suspensas, pois que, se os houvesse, as execuções estariam apensadas ao processo de insolvência e os bens teriam sido apreendidos para a massa insolvente.
Em qualquer dos casos, as execuções perdem a sua razão de ser, ocorrendo uma situação de inutilidade superveniente da lide, causadora da extinção da instância (art. 277º, al. e), do CPC).
Podemos assim dar como adquirida a seguinte regra: encerrado o processo de insolvência após a realização do rateio final ou quando o administrador constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e restantes dívidas, a ação executiva que estava suspensa nos termos do art. 88º, n.º 1, deve ser declarada extinta, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo; ressalva-se, todavia, o caso de exercício do direito de reversão legalmente previsto[19].
Importa, porém, não confundir extinção da execução com extinção do crédito do exequente, se total ou parcialmente não satisfeito pelo rateio final ou mercê da verificação da insuficiência do ativo da massa para satisfazer as dívidas próprias dela.
Encerrado o processo de insolvência, na insolvência plena, cessam, em regra, todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, podendo os credores que não tenham obtido o ressarcimento integral no processo de insolvência exercer os seus direitos contra o devedor nos termos gerais, recuperando este o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no art. 234º [cf. al. a) do n.º 1 do art. 233º].
Os credores da insolvência poderão, assim, exercer os direitos que tenham contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos. Por outro lado, se o insolvente for pessoa singular e tiver havido exoneração do passivo restante, manda a alínea c) do n.º 1 do art. 233º que se observe o n.º 1 do art. 242º, nos termos do qual, durante o período da cessão (os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo), “não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência".
Ou seja, o credor que não tenha obtido satisfação integral do seu crédito no processo de insolvência poderá fazê-lo nos termos gerais (art. 233º, n.º 1, al. c)); não na ação executiva suspensa, cuja suspensão termina (art. 233º) e que deve ser declarada extinta por força do n.º 3 do art. 88º, mas através de nova execução para cobrança do passivo não satisfeito.
Para o exercício judicial dos direitos dos credores da insolvência constitui título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos [art. 259º], bem como a sentença de verificação de créditos [art. 141º] ou a decisão proferida em ação de verificação ulterior [art. 146º], em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência [art. 214º].
Contudo, em especial quando do encerramento do processo antes do rateio final, em que se determina o não prosseguimento do apenso de verificação de créditos, os credores reclamantes não terão possibilidade de obter um título executivo no processo de insolvência.
Nessa situação, defendem Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões[20] que os credores da insolvência que já dispusessem de título executivo anteriormente à declaração da insolvência, e que tenham visto suspensas as execuções que tenham promovido anteriormente a tal declaração, podem agora promover o prosseguimento das execuções. Naturalmente que só podem prosseguir as execuções por créditos que não tenham ficado satisfeitos no processo de insolvência.
Como se explicita no Ac. da RP de 10/11/2022 (relator Filipe Caroço), in www.dgsi.pt.:
- No caso de encerramento do processo de insolvência decorrente de homologação do plano de insolvência nos termos da alínea b) do n.º 1 do art.º 230º do CIRE, não ocorre a absoluta inutilidade ou impossibilidade da execução suspensa, podendo vir a ocorrer o prosseguimento da ação executiva.
- Poderá ainda o plano de insolvência prever a não exoneração do devedor da totalidade das dívidas da insolvência remanescentes (art. 197º, al. c)), caso em que, após o cumprimento do plano de insolvência, poderão ser executadas as dívidas em que não se verificou a exoneração (art. 233º, n.º 1, als. c) e d)).
- Após a liquidação da massa insolvente podem ainda sobrevir rendimentos e, desde que o devedor não beneficie da exoneração do passivo restante ou venha, entretanto, a ser revogada tal concessão, podem os credores que não obtiveram no processo de insolvência o ressarcimento integral do seu crédito, prosseguir a execução relativamente a esse novo e autónomo património. A lide executiva poderá continuar a ser possível, sendo que o princípio da economia processual aconselha a que a execução se aproveite de forma a obstar a que haja necessidade de se iniciar um processo novo. O encerramento do processo que se segue ao termo da liquidação (art.º 230º, n.º 1, al. a)), não obsta a que os credores que não tenham obtido o ressarcimento integral no processo de insolvência, venham posteriormente a atacar o novo património adquirido pelo devedor, suscetível de penhora. Nesta hipótese, desde que o crédito não tenha sido extinto por força da concessão do benefício da exoneração do passivo restante, uma vez encerrado o processo de insolvência, o seu titular é livre de intentar ou fazer prosseguir execuções para cobrança do passivo não satisfeito[21].
A propósito, veja-se o Ac. da RC de 7/03/2017 (relatora Maria João Areias), in www.dgsi.pt., depois de referir que a solução de extinção das execuções prevista no n.º 3 do art. 88º – no caso de encerramento do processo após o rateio final (al. a), do n.º 1 do art. 230º) ou por insuficiência do ativo da massa para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente (al. d), do n.º 1 do art. 230º) –, é merecedora das maiores reservas no seu confronto com as demais soluções previstas no CIRE:
«Com efeito, no caso de insolvência de pessoa singular, não se percebe por que motivo, num caso ou no outro, o encerramento do processo de insolvência acarretará automaticamente a extinção das execuções pendentes: não implicando a declaração da insolvência a extinção da pessoa singular, com o encerramento do processo de insolvência o devedor recupera o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios» (art. 233º, nº 1, al. a), CIRE).
E, a não ser que tenha sido abrangido pelo decretamento da exoneração do passivo restante[22], o credor que não tenha obtido satisfação integral do seu crédito no processo de insolvência poderá fazê-lo nos termos gerais (artigo 233º, nº1, al. c), CIRE).
E, apesar do fim do processo de insolvência, podem existir ou vir a ser gerados bens ou rendimentos, suscetíveis de penhora, que permitam ao exequente a satisfação do crédito.
Assim sendo, não faz qualquer sentido que se decrete, sem mais, a extinção da execução pendente quando, no momento seguinte, lhe é facultada a instauração de uma execução para cobrança dos créditos não satisfeitos.
Na hipótese de o insolvente ser uma sociedade comercial, já se compreende que o encerramento do processo de insolvência após o rateio final importe a extinção da execução, pois o registo de tal encerramento acarreta a extinção da própria sociedade (nº4 do artigo 234º CIRE).
Maiores dúvidas se poderão levantar no caso de encerramento do processo por insuficiência da massa, insuficiência que se presume desde que o património da devedora não seja superior a 5.000,00 € (nº7 do artigo 232º CIRE): tal património poderá ser insuficiente para a satisfação das dívidas da massa e das custas do processo de insolvência e não o ser para a satisfação do crédito exequendo (…).
Uma vez que o que aqui se encontra em causa é a eventual inutilidade no prosseguimento da lide no processo de execução, só da avaliação das circunstancias do caso concreto tal (in)utilidade se poderá aferir. (…).»
Ora, está subjacente ao art. 88º a ideia de que os credores virão reclamar os seus créditos ao processo de insolvência, neste processo sendo reconhecidos e graduados para lhes ser dado pagamento, pelo menos na medida do possível.
Deste modo, sendo o processo de insolvência um processo de execução universal, nos termos definidos pelo n.º 1 do art. 1.º, a sua finalidade é coincidente com a da ação executiva. Daí que o encerramento do processo de insolvência determine a extinção das ações executivas nas situações a que se refere o art. 230º, n.º 1, als. a) e d).
O caso em análise tem, porém, contornos peculiares.
Como vimos, o processo em que foi declarada a insolvência do ora executado foi declarado encerrado, por insuficiência da massa insolvente, ao abrigo do disposto nos arts. 232.º, n.ºs 1 e 7 e 230º, n.º 1, al. d) do CIRE.
Se bem que o Administrador da Insolvência constatou a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente, o que, em princípio, só por si, justificaria a extinção da execução, nada nos diz que a mesma perdeu a sua utilidade, podendo tê-la. Na realidade, foi julgada extinta, na insolvência, a instância de reclamação de créditos, sem sentença de verificação e de graduação de créditos, atenta a insuficiência do activo da massa insolvente, de onde resulta não ter perdido validade e eficácia o título executivo pré-existente ao processo de insolvência e que serviu de base à execução. Acresce que o pedido de exoneração do passivo restante foi liminarmente rejeitado, pelo que não há que observar um período de “cessão do rendimento disponível”.
Ora, subscrevendo o aduzido pela recorrente, não existindo um período de cessão, não tendo sido aprovado um plano de insolvência nem um plano de pagamentos, não se verifica nenhuma das restrições impostas pelo art. 233.º, n.º 1, al. c).
Nem sequer se chegou, pois, a formar um novo um título executivo no âmbito do processo de insolvência.
Assim sendo, urge questionar: por que não aproveitar toda a utilidade e economia de meios que emergem da cessação da suspensão da execução? E por que não evitar uma nova execução que sempre teria que repetir o esforço e o desempenho entretanto desenvolvidos, quando continua a estar em causa o mesmo título executivo e as mesmas partes na execução, sendo que a exequente no processo de execução entretanto nomeou um outro bem à penhora que não poderá ser atendido no processo de insolvência? Para quê extinguir uma execução quando não está excluída a possibilidade de a exequente ter de instaurar outra execução de conteúdo exatamente idêntico, com os mesmos pressupostos, de facto e de direito, visando recuperar o mesmo crédito e com base no mesmo título executivo?[23]
Como bem salienta a recorrente – e muito embora não seja o caso dos presentes autos –, no caso de pluralidade de executados, casos há em que a acção executiva, suspensa quanto ao devedor insolvente por virtude da declaração de insolvência, continua a prosseguir quanto aos devedores solidários demandados.
Ora, em face disso, faz sentido interpretar-se que o legislador tenha pretendido extinguir esta execução só quanto ao executado insolvente não exonerado nos termos do art. 88.º, n.º 3 do CIRE e ter o exequente de apresentar uma nova acção quando a primitiva execução prossegue contra os demais co-obrigados?
Trata-se, sem dúvida, de uma situação especial em que uma interpretação teleológica do art. 88º, n.º 3, e o respeito pelo princípio da economia processual e aproveitamento dos atos processuais hão de conduzir, na nossa perspetiva, à possibilidade de levantamento da suspensão da execução, sem extinção, para que prossiga a sua tramitação.
Por conseguinte, tendo sido encerrado o processo de insolvência, com os efeitos previstos no art. 233º, e podendo os credores do insolvente exercer os seus direitos contra o devedor insolvente não exonerado nos termos gerais, nem sequer se coloca o impedimento previsto no art. 242º, pelo que nada obsta à dedução de execuções sobre os bens do devedor.
Nos termos acima explicitados, os credores da insolvência que já dispunham de título executivo anteriormente à declaração da insolvência do executado singular, e que tenham visto suspensas as execuções que tenham promovido anteriormente a tal declaração, e que não viram satisfeitos os seus créditos no processo de insolvência, podem promover o prosseguimento das execuções.
Em suma, face às peculiares circunstâncias do caso, em que não chegou a ser proferida sentença de verificação e graduação de créditos na insolvência, foi liminarmente rejeitado o pedido de exoneração do passivo restante e determinado o encerramento do processo de insolvência por insuficiência de massa, afigura-se-nos estarem reunidas as condições necessárias à utilidade da continuação da lide executiva, na qual foi, entretanto, nomeado um novo bem à penhora (não considerado na insolvência)[24].
Justificando-se a cessação da situação da suspensão da execução, não é de determinar a sua extinção, mas antes a sua prossecução com base no mesmo título executivo que lhe deu origem.
A apelação será, pois, de proceder.
*
Atenta a procedência da apelação, prejudicada fica a apreciação da última questão suscitada sob o item iii) - art. 608º, n.º 2 do CPC.
*
VI. DECISÃO

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando a decisão recorrida, declarando-se que a declaração de encerramento do processo de insolvência do executado insolvente não importa a extinção da execução, nem obsta ao prosseguimento da execução.
Custas a cargo do executado/recorrido.
*
Guimarães, 11 de abril de 2024

Alcides Rodrigues (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Afonso Cabral (2º adjunto)


[1] Cfr., entre outros, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, 1984, Coimbra Editora, p. 140, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, p. 736, Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2ª ed., 2014, Almedina, p. 603.
[2] Cfr. Ac. do STJ de 10/05/2021 (relator Henrique Araújo) e Acs. da RP de 28/10/2013 (relator Oliveira Abreu) e de 2/05/2016 (relator Correia Pinto), ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Alberto dos Reis, Código …, vol. V, p. 140.
[4] Cfr. Ac. do STJ de 28/02/2013 (relator João Bernardo), in www.dgsi.pt.
[5]  Cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, p. 137.
[6] Consagrado no art. 604.º, n.º 1, do Cód. Civil, Ana Prata define o referido princípio nos termos seguintes:
«Princípio segundo o qual todos os credores — que não gozem de nenhuma causa de preferência relativamente aos outros credores — se encontram em igualdade de situação, concorrendo paritariamente ao património do devedor para obter a satisfação dos respectivos créditos» (cfr. Dicionário Jurídico, Coimbra, Almedina, 2005, 4.ª ed., p. 848).
O princípio da igualdade tem aplicação rigorosa apenas no âmbito do processo de insolvência (Maria de Fátima Ribeiro, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Universidade Católica Editora, 2018, p. 669).
De facto, no quadro da insolvência existem limitações quanto à liberdade de actuação do devedor, privilegiando-se o tratamento paritário dos credores a partir do princípio par conditio creditorum [cfr. Ac. do STJ de 26/01/17 (relator Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt.]
[7] Aprovado pelo Dec. Lei n.º 53/2004, de 18/03 e posteriores alterações.
[8]  Cfr. Catarina Serra, obra citada., p. 196/197.
[9]  Este regime visa, fundamentalmente, impedir a realização de pagamentos no âmbito da ação executiva estando pendente um processo de insolvência contra o executado.
[10]  Cfr. Ac. do STJ de 19/06/2018 (relator Henrique Araújo), in www.dgsi.pt.
[11] Impedindo-se o prosseguimento de acções executivas já em curso contra o insolvente, bem como a instauração de novas execuções, Carvalho Fernandes e João Labareda dizem que "a consequência é a da nulidade dos actos que em qualquer delas tenham sido praticados após a declaração de insolvência, o que deve ser oficiosamente ser declarado logo que no tribunal do processo a situação seja conhecida". E acrescentam: "Mas as razões determinantes da solução aqui consignada não ocorrem no caso de proferimento de sentença de insolvência com carácter limitado, quando não seja prestado complemento, tendo em conta o regime então aplicável ao processo" (cfr. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., Quid Juris, 2015, p. 435).
[12]  Cfr. Ac. do STJ de 19/06/2018 (relator Henrique Araújo), in www.dgsi.pt.
[13]  Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Almedina, 2023, p. 317, cuja explanação seguimos de perto.
[14] Cfr. Acs. da RP de 01/06/2017 (relatora Deolinda Varão) e de 10/11/2022 (relator Filipe Caroço), in www.dgsi.pt.
[15]  Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, obra citada, p. 319.
[16]  Cfr. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., Quid Juris, 2015, p.436.
[17]  Cfr. Fátima Reis Lima, Fátima Reis Lima, “Efeitos Processuais da Declaração de Insolvência”, in Primeiro Congresso de Direito da Insolvência, 2013, pp. 260 e 261.
[18] Cfr. Acs. da RP de 01/06/2017 (relatora Deolinda Varão) e de 10/11/2022 (relator Filipe Caroço), in www.dgsi.pt.
[19] Cfr. Ac. da RE de 15/09/2022 (relatora Anabela Luna de Carvalho), in www.dgsi.pt.
[20] Cfr. Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, Almedina, p. 644.
[21] Cfr. Ac. da RC de 7/03/2017 (relatora Maria João Areias), in www.dgsi.pt.
[22] Se tiver sido proferido despacho de exoneração do passivo restante, cessado o processo de insolvência e durante o período da cessão, manter-se-á a suspensão das execuções, por força do n.º 1 do art. 242º do CIRE, segundo o qual durante o período da cessão não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor.
[23] Como questiona Maria do Rosário Epifânio, por que não deixar atuar as regras gerais de extinção da instância executiva, previstas no art. 849º, mais concretamente nos arts. 748º, n.º 3, 750º, n.º 2, 799º, n.º 6 e 855º, n.º 4, todos do CPC (cfr. Manual de Direito da Insolvência, 2016 - 6ª ed., Almedina, p. 166).
[24] Os Tribunais Superiores, em situações peculiares ou singulares, nomeadamente quando na execução se mantém penhorado um bem que não foi contemplado na massa insolvente, têm propugnado pela não extinção da instância executiva, mas sim pela prossecução da execução [cfr. Acs. da RP de 01/06/2017 (relatora Deolinda Varão), de 26/10/2017 (relator Filipe Caroço) e de 10/11/2022 (relator Filipe Caroço), in www.dgsi.pt.)].
Também o Ac. da RC de 7/03/2017 (relatora Maria João Areias), in www.dgsi.pt. versou sobre um caso em que, no processo de insolvência, o Administrador da Insolvência não optou pelo cumprimento do contrato de mútuo com reserva de propriedade e, na execução, o financiador havia dado à penhora o bem objeto da reserva de propriedade, subsistindo tal penhora.
Aí se sumariou:
«1. Apesar de o atual nº3 art. 88º CIRE prever a extinção das execuções no caso de encerramento do processo de insolvência por insuficiência de bens, se neste não tiver sido decretada a exoneração do passivo restante, tal encerramento não implica a inutilidade do prosseguimento das execuções instauradas contra o insolvente/pessoa singular.
(…)».