Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
55/23.0PTBRG.G1
Relator: PEDRO FREITAS PINTO
Descritores: CONDUÇÃO VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
DOLO
ELEMENTO VOLITIVO
AGIR VOLUNTARIAMENTE
AGIR LIVREMENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- “Um acto voluntário é um acto que se faz sem constrangimento, sem limitação. E se se age deliberadamente, age-se com o propósito de praticar o acto, com resolução prévia, o que é incompatível com um acto “forçado”, um acto praticado por uma qualquer imposição exógena. Agir voluntariamente é agir como se quer, e não por imposição, é agir de um modo livre e agir deliberadamente é agir como se decidiu agir”.
II- Ao constar do libelo acusatório que o arguido não se absteve de proceder à actividade de condução do automóvel, significa necessariamente que o arguido pôde determinar a sua conduta, não foi forçado à mesma, mostrando-se assim preenchido também este elemento subjetivo do tipo, apesar de não constar, nem era obrigatório estar, a expressão costumeira de “livre”.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I - Relatório

Decisão recorrida.

No âmbito do Processo Sumário nº 55/23...., do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Local Criminal ... foi proferido no dia 8 de setembro de 2023, o seguinte despacho a rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público, que se transcreve:
“Veio o Ministério Público deduzir acusação contra o arguido AA, imputando-lhe a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.
*
No que respeita à narração dos factos, preceitua a al. b), do n.º 3, do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, que a acusação deve conter a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;”.
Para que se preencha o requisito da narração dos factos, é necessário que a acusação contenha a “descrição dos factos imputados”, e acrescenta-se, “todos” os factos imputados, uma vez que o artigo 13.º, do Código Penal, dispõe que “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”, sendo que a acusação tem de descrever os factos provados relativos ao elemento subjetivo. Isto porque não se pode presumir que o agente agiu nem com dolo, nem com negligência.
O que atrás fica dito é corroborado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores. De facto, a título de exemplo pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/06/2003 (processo 10164/02-5, publicado no sítio www.dgsi.pt), que, “sendo a decisão omissa de factualidade provada quanto ao elemento subjectivo do ilícito contra-ordenacional imputado à ora recorrente, não poderia esta ter sido sancionada, impondo-se a respectiva absolvição”.
A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do art. 283.º, n.º 3, do Código Penal, constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.
A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, consagrado na Constituição da República Portuguesa – cfr. art.º 32.°.
Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem” - cf. Ac. deste STJ de 21-09-2006, Proc. n.º 3200/06 - 5.ª.
Descendo ao caso dos presentes autos, verifica-se que a acusação não contém a descrição de todos os factos no que concerne ao elemento subjetivo do ilícito.
De facto, analisada a mesma à luz dos considerandos supra expostos, verifica-se que não indica todos os factos dos quais se possa concluir pelo preenchimento do dolo.
Convocando-se a jurisprudência consagrada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, de 20 de novembro, poderá ler-se. relativamente ao dolo, que a sua alegação deverá ser feita através de uma «fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).».
O dolo como elemento subjetivo - enquanto vontade de realizar um tipo legal conhecendo o agente todas as suas circunstâncias fácticas objetivas – constitutivo do tipo legal, será, então, em definitivo, um dos elementos que o artigo 283.º, n.º 3, do C.P.Penal, impõe que seja incluído na acusação.
No que se refere ao seu elemento subjetivo, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez é um crime doloso, bastando, para uma plena imputação subjetiva, o mero dolo eventual, como resulta da conjugação do artigo 14.º do C.P. com o artigo 291.º, do mesmo diploma legal.
Nestes termos, entende-se que não consta, na acusação, a descrição de todos os factos pelos quais se possa concluir pelo preenchimento do elemento subjetivo.
Efetivamente, na acusação deduzida, nada se diz quanto à liberdade da ação.
Como se pode ler no ac. T.R.E., pr. n.º 967/19.5T8ABT.E1, disponível in www.dgsi.pt:
“Convoquemos novamente a este propósito o Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2015, de 20 de Novembro, no qual podemos ler relativamente ao dolo, que a sua alegação deverá ser feita através de uma «fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude).»
(…)
Somos assim a concluir que a factualidade imputada à arguida na acusação particular deduzida nos autos pela assistente não preenche a totalidade dos elementos do tipo penal do crime de injúria, pois que, no que diz respeito ao elemento subjetivo, apenas se alegam factos que se traduzem no elemento cognitivo do dolo – conhecimento e consciência da arguida de que os factos que as palavras que dirigia à ofendida eram ofensivos da sua honra ou consideração – faltando na referida peça processual os factos que corporizariam o elemento volitivo do dolo – a vontade livre da arguida de praticar os factos.”.
É que o arguido pode querer agir mas não de forma livre, pelo que, sem a alegação desse facto, não se poderá inferir pela culpa do mesmo e, consequentemente, pela existência de um ilícito penal.

Sumaria aquele douto acórdão:
“I - Não decorrendo da acusação particular deduzida pela assistente que a arguida tivesse agido voluntariamente e que tivesse sido livre no seu processo de decisão, não poderá tal facto extrair-se indiretamente dos restantes factos alegados na acusação.
II - Face à falta de integração na acusação particular da vontade livre de praticar os factos, ainda que viessem a ser dados como provados em sede de julgamento todos os factos aí imputados à arguida, não estaria o julgador habilitado a concluir ter a mesma praticado o crime de injúria simples previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal de que vem acusada, pelo que deverá a acusação ser rejeitada nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal.”.
Por fim, cumpre referir que não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 10/10/2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo IV, pág. 132).
*
Pelo exposto, considero a acusação apresentada manifestamente infundada e, consequentemente, rejeito a mesma.
Sem custas – artigo 522.º, do C.P.P.
Notifique e desconvoque”.
*
Recurso apresentado

Inconformado com tal decisão, o Ministério Público veio interpor o presente recurso e após o motivar, apresentou as seguintes conclusões e petitório, que se reproduzem:

“1) No dia ../../2023, o Ministério Público deduziu acusação para julgamento em processo especial sumário perante Tribunal Singular contra o arguido AA imputando-lhe a prática, como autor material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal.
2) Sucede porém, que remetidos os autos à distribuição, por despacho proferido no dia 8 de Setembro de 2023, o Tribunal a quo rejeitou a dita acusação pública, nos termos do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal, por entender que o libelo acusatório é manifestamente infundado na medida em que o elemento subjectivo se mostra insuficientemente narrado, porquanto “na acusação deduzida, nada se diz quanto à liberdade da ação”.
3) Todavia, no caso em apreço, a acusação pública deduzida possui todos os factos necessários à subsunção ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez imputado ao arguido, encontrando-se todos os elementos, objectivo e subjectivo, deste ilícito penal suficientemente narrados.
4) De facto, resulta do libelo acusatório em questão que:
1.No dia ../../2023, pelas 03H22, na Rua ..., União de Freguesias ..., ... e ..., conduziu o automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-IP-.., apresentando um TAS (Teor de álcool no sangue) de 1,37 g/l, deduzido o erro máximo admissível.
2.O arguido bem sabia que conduzia um veículo motorizado, estando também ciente do carácter público da via em que circulava.
3.Mais tinha consciência de que havia ingerido bebidas alcoólicas e que este facto lhe determinaria, como determinou, um teor de álcool no sangue superior ao legalmente permitido, não se abstendo de proceder à actividade de condução do automóvel.
4.Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
5) Ou seja, resulta do libelo acusatório que o arguido actuou com vontade de conduzir o veículo em questão após ter ingerido bebidas alcoólicas em quantidade superior ao permitido por lei, decidiu iniciar a condução da dita viatura mesmo assim, por determinação da sua vontade, da sua escolha, dos seus motivos, com determinada intenção, de forma resoluta, da sua decisão, não obstante saber que a actividade de condução naquelas condições não lhe era permitida por proibida e punida por lei penal, estando, por conseguinte, suficientemente descritos os elementos volitivo, intelectual e emocional do dolo.
6) O que vale por dizer que resulta da acusação pública que o arguido sabia o que fazia, queria fazê-lo e agiu com a consciência de que praticou um crime e que tal só poderia ter ocorrido de forma livre.
7) Veja-se, a propósito, o que ficou decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 28 de Março de 2019, proferido no âmbito do Processo nº 373/15...., no qual se decidiu que “I- Ao nível do que a doutrina de referência designa por dolo do tipo expresso na formulação “conhecimento e vontade de realização do tipo subjectivo de ilícito” assume-se uma decomposição em dois “momentos” que são o intelectual e o volitivo.
8) II-Como se extrai da leitura do AFJ1/2015, não há fórmulas sacramentais sendo possível transmitir o “dolo de culpa” ou “tipo-de-culpa dolosa” de diferentes formas desde que inequivocamente signifique, uma atitude, revelada no facto, de contrariedade ou indiferença do agente perante o dever-ser jurídico penal.
9) III-Incorre em contradição o Acórdão da Relação na analise semântica que faz do facto 18 dado como provado (“Agiram os referidos arguidos deliberada, voluntária e conscientemente, porquanto sabiam que tas condutas eram proibidas e punidas por lei penal”), pois embora reconheça que não há “fórmulas sacramentais” acaba por “exigir” a costumeira fórmula “agiu livre” alegando que ao gente pode agir de forma consciente e voluntária e, no entanto, a sua conduta não decorrer com liberdade, sugerindo que disso é exemplo uma actuação devida a coacção moral, concluindo pela nulidade contemplada na al. b) do nº 3 do art. 311º do CPP, por falta de descrição na acusação dos elementos subjectivos do crime.
10) IV-Um acto voluntário é um acto que se faz sem constrangimento, sem limitação. E se se age deliberadamente, age-se com o propósito de praticar o acto, com resolução prévia, o que é incompatível com um acto “forçado”, um acto praticado por uma qualquer imposição exógena.
11) V- Agir voluntariamente é agir como se quer, e não por imposição, é agir de um modo livre e agir deliberadamente é agir como se decidiu agir. Por conseguinte, o entendimento que se perfilha é o de que o ponto 18 dos factos provados contém a cabal descrição dos elementos subjectivos do crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade (…)”.
12) Ademais, sempre se dirá que o arguido ao ser confrontado com o teor do libelo acusatório em questão percebe perfeitamente o que lhe está a ser imputado e do que está a ser acusado, não se vislumbrando que resultem coarctados quaisquer direitos de defesa.
13) Nesta senda, urge concluir que a decisão recorrida não se afigura correcta, tanto mais que o julgador apenas deve rejeitar a acusação quando seja de todo inviável a condenação do arguido e, por isso, quando seja de evitar que seja sujeito injustificadamente à “violência” de um julgamento, o que não é, claramente, o caso dos autos, pois a mesma contém a narração dos factos imputados.
14) Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 11 de Julho de 2017, proferido no âmbito do Processo nº 649/16.0T9BRG.G1 (disponível in www.dgs.pt), no qual ficou exarado que “ainda que a matéria alegada no RAI possa não ter sido descrita de forma exemplar, se tal peça permitir aferir da verificação dos elementos objectivos e subjecivos do crime, o RAI não deverá ser rejeitado”.
15) Pelo que se entende que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 14.º, 26.º e 292.º, nº 1, e 69º, nº 1, alínea a), todos do CP, e 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea b), 386.º e 387.º, todos do CPP.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogado o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que receba a acusação pública deduzida pelo Ministério Público e determine o prosseguimento dos autos, com a realização da audiência de julgamento, nos termos do disposto nos artigos 386.º e 387.º, ambos do Código de Processo Penal. assim se fazendo, como sempre,
JUSTIÇA”.
***
Tramitação subsequente

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o processo foi com vista ao Ministério Público, tendo o Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto, emitido douto parecer, no sentido da procedência do recurso.
*
Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP não tendo sido apresentada resposta.
*
Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
*
II – Fundamentação.

Cumpre apreciar o objeto do recurso.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas essas questões, as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.
A questão que se coloca à apreciação deste tribunal de recurso é a de saber se a acusação deduzida pelo Ministério Público, consta, a descrição de todos os factos pelos quais se possa concluir pelo preenchimento do elemento subjetivo, no caso a “liberdade de ação”.
*
É a seguinte o teor da acusação deduzida pelo Ministério Público e que foi rejeitada pelo tribunal “a quo”.
“O Ministério acusa, para julgamento em processo sumário e por Tribunal de estrutura singular AA, filho de BB e de CC, nascido em ../../1975, natural de ..., ..., solteiro, electricista, residente na Rua ..., ... ..., ..., ...

Porquanto,

A/Dos factos

1.No dia ../../2023, pelas 03H22, na Rua ..., União de Freguesias ..., ... e ..., conduziu o automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula ..-IP-.., apresentando um TAS (Teor de álcool no sangue) de 1,37 g/l, deduzido o erro máximo admissível.
2.O arguido bem sabia que conduzia um veículo motorizado, estando também ciente do carácter público da via em que circulava.
3.Mais tinha consciência de que havia ingerido bebidas alcoólicas e que este facto lhe determinaria, como determinou, um teor de álcool no sangue superior ao legalmente permitido, não se abstendo de proceder à actividade de condução do automóvel.
4.Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

B/ Da incriminação

Cometeu, pelo exposto, na forma consumada e em autoria material:
- Um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º1, 69.º, n.º1, alínea a), do Código Penal;
C/ Da Prova
*documental
A dos autos, mormente:
- Auto de notícia;
- Talão de alcoolímetro;
- CRC
*testemunhal:
DD, melhor identificados no auto de notícia.
D/ Das Comunicações
Sem comunicações, conforme determinação hierárquica”.
*
Da existência na acusação pública de factos que consubstanciem a “liberdade de ação”, enquanto parte integrante do elemento subjetivo do tipo.
Face ao disposto no referido artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c) do C.P.P. a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
A exigência legal da acusação conter a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, refere-se tanto aos elementos objetivos como subjetivos do crime imputado, porquanto não existe crime sem que ambos se encontrem reunidos.
Efetivamente conforme resulta expresso no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, nº 1/2015 [1] “a acusação deve conter com a máxima precisão a descrição dos factos da vida real, os que configuram o acontecimento histórico que teve lugar e que correspondem aos elementos constitutivos do tipo legal de crime, tanto os do tipo objetivo do ilícito, como os do tipo subjectivo. (…), acrescentando-se ainda que “a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objectivo do ilícito, sejam ao tipo subjectivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico”.
Nos crimes dolosos, como é o caso do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, a verificação do tipo subjetivo de ilícito pressupõe, tradicionalmente, o conhecimento e vontade de realização de um tipo legal de crime por parte do agente – o elemento intelectual ou cognitivo e o elemento volitivo.
O primeiro refere-se ao “conhecimento material dos elementos e circunstâncias do tipo legal e o conhecimento do seu sentido e significação”, pelo que todos os elementos essenciais do facto típico, da parte objetiva do tipo de crime, têm de ser conhecidos pelo agente para se poder dizer que ele atuou dolosamente e, portanto, que preencheu, nesse aspecto subjectivo, o tipo legal de crime,
O segundo ensina Teresa Pizarro Beleza, refere-se “ao desejo, à vontade de querer um certo resultado ou um certo acto” [2]
Não existem fórmulas sacramentais, sendo possível transmitir o “dolo de culpa” ou “tipo-de-culpa dolosa” de diferentes formas desde que inequivocamente signifiquem uma atitude, revelada no facto, de contrariedade ou indiferença do agente perante o dever-ser jurídico penal.
Será que a acusação deduzida pelo Ministério Público é omissa em relação à determinação livre do arguido ?
Entendemos que não.
Conforme bem se salienta no Ac. do S.T.J. de 28 de março de 2019, processo 373/15.0JACBR [3] “um acto voluntário é um acto que se faz sem constrangimento, sem limitação. E se se age deliberadamente, age-se com o propósito de praticar o acto, com resolução prévia, o que é incompatível com um acto “forçado”, um acto praticado por uma qualquer imposição exógena.
Agir voluntariamente é agir como se quer, e não por imposição, é agir de um modo livre e agir deliberadamente é agir como se decidiu agir”.
Ora, ao constar do libelo acusatório no caso em apreço, que o arguido não se absteve de proceder à actividade de condução do automóvel, significa necessariamente que o arguido pôde determinar a sua conduta, não foi forçado à mesma, mostrando-se assim preenchido também este elemento subjetivo do tipo, apesar de não constar, nem era obrigatório estar, a expressão costumeira de “livre”.
Procede assim o recurso do Ministério Público.
*
III – Decisão.

Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência, revogam o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que receba a acusação pública e determine os ulteriores termos do processo.
*
Sem tributação.
Notifique.                         
Guimarães, 20 de fevereiro de 2024.
(Decisão elaborada pelo relator com recurso a meios informáticos e integralmente revista pelos subscritores, que assinam digitalmente).

Os Juízes Desembargadores,
Pedro Freitas Pinto (Relator)
Ana Teixeira  (1º Adjunta)
Isabel Ferreira de Castro (2ª Adjunta)     



[1] Relator: RODRIGUES DA COSTA, publicado no Diário da República, 1ª série, n.º 18, de 27.01.2015.
[2] In “Direito Penal”,aafdl, 2º volume, pág. 181.
[3] Relator: NUNO GOMES DA SILVA, publicado no site www.dgsi.pt, também citado pelo recorrente.