Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1155/13.0TAVCT-A.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: PROCESSO PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Do ponto de vista das leis penal e processual penal, a indemnização civil fundada na prática do crime é encarada como um instituto de natureza estritamente civilístico, e como tal deve ser substantivamente visto e tratado.
Tal resulta, inelutavelmente, do Artº 129º do Código Penal, segundo o qual a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil, e tem expressão em toda a regulamentação dos Artºs. 71º e sgts. do C.P.Penal.
Nessas circunstâncias, no aspecto processual, tendo em conta o princípio da autonomia do processo penal, o correspondente pedido rege-se pelas normas pertinentes do C.P.Penal, sem prejuízo da aplicabilidade, como direito subsidiário, das normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal – Artº 4º do C.P.Penal.
Nada prevendo o C.P.Penal acerca da concreta questão da ampliação do pedido cível, a mesma terá de ser solucionada com recurso às normas do processo civil.
II - O “contraditório” é um princípio básico e estruturante de todos os direitos processuais e procedimentos judiciais, decorrendo do mesmo que, salvo em casos excepcionais, o tribunal não pode decidir sem que todas as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão.
III -Tendo o tribunal a quo admitido a ampliação do pedido de indemnização civil sem ter dado ao arguido / demandado a oportunidade de se pronunciar sobre a mesma, preteriu o aludido princípio do contraditório.
IV - Neste particular aspecto, a violação deste princípio não se subsume na previsão do Artº 120º, nº 2, al. b), do C.P.Penal, devendo antes ser enquadrada à luz do Artº 195º do C.P.Civil, só sendo geradora da nulidade processual se influir no exame ou na decisão proferida.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do processo nº 1155/13.0TAVCT, que ora corre termos como Processo Comum Colectivo no Juízo Central Criminal de Viana do Castelo, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, J. E. e mulher, C. F., aquele por si e em representação de “J. E., Lda.”, deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido J. S., pedindo “a condenação do demandado a indemnizar todos os demandantes no montante de 78 659,27€, a título de danos patrimoniais e os 1º e 2ª demandantes, J. E. e C. F., no valor de 20 000,00€, a título de danos não patrimoniais, sem prejuízo dos juros legais vincendos contados da data de notificação (...) até efectivo e integral pagamento.”.
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2. Tal pedido foi recebido pelo tribunal a quo, através do despacho de 24/01/2018.
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3. Entretanto, pelo requerimento de 12/11/2020, cuja cópia consta de fls. 2/3, estribando-se no Artº 265º do C.P.Civil, vieram os mencionados ofendidos/assistentes, “por desenvolvimento do pedido primitivo”, ampliar o dito pedido de indemnização civil, sustentando, em síntese, que, face à “Matéria de Facto Provada por este Tribunal e da concluída pelo TRG...”, “... contas feitas, para compensar os prejuízos patrimoniais sofridos pelos demandantes, deve o demandado ser condenado a indemnizá-los no montante de 103 109,96 e não os reclamados 78 659,27 aquando da formulação do PIC”.
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4. Apreciando tal requerimento, em 16/11/2020 a Mmº Juíza a quo proferiu o despacho cuja cópia consta de fls. 4, que ora se transcreve (1):

“Refª 2952382 - J. E. - LDA, J. E., e C. F., ofendida e assistentes nos autos. respectivamente, vieram ampliar o PIC formulado.
Por estar em causa um desenvolvimento do pedido primitivo, admite-se a requerida ampliação, ao abrigo do disposto no art. 265º nº 2 do CPC.
Notifique.”.
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5. Inconformado com esse despacho, dele veio o arguido / demandado J. S. interpor o presente recurso, nos termos da douta peça processual cuja cópia consta de fls. 6/13, cuja motivação é rematada pelas seguintes conclusões e petitório (transcrição):

“I.- Por douto despacho de 16 de novembro de 2020, foi admitida a ampliação do PIC formulado pela ofendida J. E. – Lda e assistentes J. E. e C. F., peticionada pelos mesmos através do seu douto requerimento de 12 de novembro de 2020.
II.- Nada prevendo o Cód. de Proc. Penal sobre a ampliação do pedido de indemnização cível, a questão terá de ser solucionada com recurso às normas do processo civil – cfr. dita o seu artigo 4º.
III.- O princípio do contraditório traduz-se na impossibilidade de se decidir de questões de direito ou de facto, mesmo as de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, princípio este que se aplica, in totum, aos casos de ampliação do pedido – cfr. nº 3 do artigo 3º do Cód. Proc. Civil.
IV.- O douto requerimento de ampliação do pedido de indemnização civil formulado foi junto aos autos no dia 12 de novembro de 2020 (Ref.ª 37130332).
V.- O Recorrente somente foi notificado da sua existência aquando da notificação do douto despacho de 16 de novembro de 2020, pelo qual, entretanto, se havia já deferido aquela pretensão de ampliação.
VI.- Aquando da notificação do despacho que se sindica, não só apenas aí o Recorrente tomou conhecimento do pedido apresentado pela ofendida e pelos assistentes, bem como, foi então surpreendido por uma imediata decisão sobre o mesmo, sem que este tivesse sequer sido dada a possibilidade de se pronunciar.
VII.- Não foi dada a possibilidade do Recorrente de exercer o contraditório quanto à pretensão dos Recorridos antes da sua aceitação.
VIII.- O despacho de 16 de novembro de 2020, que deferiu o pedido de ampliação do pedido de indemnização civil sem que previamente se tenha dado a possibilidade de o Recorrente quanto a ela se pronunciar, preterindo o seu direito ao contraditório, deve ser considerado nulo, por força do disposto nos artigos 78º, nº 1 e 120º, nº 2, al. b) do Cód. de Proc. Penal e nos artigos 188º e 195º do Cód. Proc. Civil.
IX.- O princípio da estabilidade da instância impõe a manutenção da identidade das partes, do pedido e da causa de pedir, após a citação ou, tratando-se de um pedido de indemnização civil como o que nos ocupa, após a notificação da sua dedução.
X.- Fazendo uma interpretação sistemática do normativo dos artigos 264º e 265º do Cód. Proc. Civil (o que, aliás, se impõe atenta a sua correlação e metodização), torna-se patente que o segmento “Na falta de acordo” constante deste último, não poderá ser interpretado como autorizando a modificação da instância à revelia da contraparte mas sim que, não tendo alcançado as partes o acordo a que alude o artigo 264º, ainda assim a o julgador poderá proceder à ampliação do pedido caso esta se funde no “desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo”.
XI.- A norma do artigo 265º não visa excluir a contraparte da apreciação do merecimento do pedido de ampliação mas sim, não tendo existido acordo prévio, que o julgador não se encontre cerceado de conhecer a integralidade da causa por via da recusa daquele acordo, quando tal se justifique.
XII.- Não alcançando as partes acordo prévio para alteração do pedido nos moldes previstos no artigo 264º, isto é, antes da apresentação do pedido em juízo, somente com a notificação à contraparte do pedido de ampliação e em face da posição que o mesmo adote face a este, poderá o julgador concluir pela existência ou não do referido acordo e assim lançar mão do poder de conformação conferido pelo artigo 265º.
XIII.- A utilização da norma do artigo 265º fora dos termos para que foi prevista pelo Legislador sempre se afigurará como indevida e não conforme com a ordenação jurídica vigente.
XIV.- A ampliação do pedido, admitida pelo artigo 265º, tem que necessariamente assentar na alegação dos factos jurídicos necessários e pertinentes à sua fundamentação.
XV.- No pedido de ampliação sub judice os Recorridos não alegam quaisquer novos factos, limitando-se a sustentá-lo nas ilações retiradas por este Venerado Tribunal da Relação quanto à matéria de facto que havia sido anteriormente fixada em sede de 1ª instância, no primeiro julgamento desta causa.
XVI.- O pedido de ampliação ora sindicado não se funda em quaisquer factos novos, nem estes sequer chegaram a ser alegados.
XVII.- Não é possível ampliar um pedido formulado após o seu julgamento, com base nas conclusões que determinaram o seu encerramento.
XVIII.- O requerimento destinado à ampliação do pedido só pode ser apresentado e aceite até o encerramento da discussão em 1ª instância.
XIX.- In casu, o pedido de ampliação funda-se em circunstâncias decorrentes do encerramento da discussão da causa.
XX.- O douto Ac. de 16/09/2019 ordenou a repetição do julgamento por considerar não ser possível manter a absolvição do Recorrido da prática do crime de que vinha acusado não se pronunciou quanto à improcedência do pedido de indemnização civil, não ordenando a repetição do julgamento quanto à matéria civil.
XXI.- Encontra-se, por conseguinte, já encerrada a discussão relativa àquela matéria civil, pelo que a ampliação pretendida pelos Recorrentes não pode ser tida como admissível, por extemporânea.
XXII.- Deve o douto despacho de 16 de novembro de 2020, ser revogado, por o douto tribunal a quo ter incorrido em erro do julgamento na interpretação e na aplicação do direito quanto à norma do artigo 265º do Cód. de Proc. Civil.

NESTES TERMOS e nos melhores de direito aplicáveis, deve julgar-se o presente recurso procedente, por provado e, em consequência, revogar-se o recorrido douto despacho de 16 de novembro de 2020.

Assim decidindo farão V/Exas. a sã e já costumeira,
JUSTIÇA!”.
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6. Tal recurso foi admitido pelo despacho de 10/12/2020, cuja cópia consta de 14, nos seguintes termos (transcrição):

“Por ser o despacho recorrível (arts. 399º e 400º a contrario CPP), o recorrente ter legitimidade (art. 401º nº 1 al. b) CPP) e estar em tempo (art. 411º CPP); admite-se o recurso interposto pelo arguido e demandado.
Sobe em separado (art. 406º nº 2 CPP), imediatamente (art. 407º nº 1 CPP) e com efeito suspensivo (art. 408º nº 3 CPP).
Notifique (art. 411º nº 6 CPP).
(...)”.
6.1. Cumprido o disposto no Artº 411º, nº 6, do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
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7. Antes de determinar a subida dos autos a este TRG, a Mmª Juíza a quo, ao abrigo do disposto no Artº 414º, nº 4, do C.P.Penal, tabelarmente, manteve integralmente a decisão recorrida (cfr. fls. 18).
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8. Recepcionados os autos neste Tribunal da Relação, após a legal distribuição, foi dada vista ao Ministério Público, nos termos e para efeitos do disposto no Artº 416º, nº 1, do C.P.Penal, tendo a Exma. Procuradora-Geral Adjunta exarado a seguinte declaração, que se encontra a fls. 24 (transcrição):
“O recurso interposto nos autos versa sobre matéria cível, pelo que nada temos a referir”.
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9. Aquando do exame preliminar, e por tais elementos não constarem dos autos, determinou o relator se oficiasse à 1ª instância no sentido de ser remetida certidão do pedido de indemnização civil oportunamente formulado pela ofendida “J. E., Lda.” e pelos assistentes J. E. e C. F., e do despacho que o admitiu, e bem assim para informarem, certificando, se em relação à ampliação desse pedido de indemnização civil, apresentado pelo requerimento de 12/11/2020, foi ou não exercido o contraditório.
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10. Cumprido tal despacho, foi processo presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no Artº 419º, nº 3, al. b), do C.P.Penal.
Cumprindo, pois, decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Como se sabe, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do C.P.Penal.

Ora, no caso vertente, da leitura e análise das conclusões apresentadas pelo recorrente, são as seguintes as questões que basicamente importa decidir:

- Saber se o despacho recorrido enferma, ou não, de nulidade, por preterição do exercício do contraditório;
- Saber se se verificam, ou não, os pressupostos legais que permitam a ampliação do pedido.

Vejamos, pois.
Começando, evidentemente, pela primeira questão suscitada.
Como se viu, a esse propósito, sustenta o recorrente que o tribunal a quo, ao admitir, através do despacho de 16/11/2020, a ampliação do pedido de indemnização civil formulado pela ofendida “J. E., Lda.” e pelos assistentes J. E. e C. F., através do seu requerimento de 12/11/2020, sem que previamente lhe tenha sido dada a possibilidade de quanto a ele se pronunciar, preteriu o seu direito ao contraditório, devendo (tal despacho) ser considerado nulo, por força do disposto nos Artºs. 78º, nº 1 e 120º, nº 2, al. b) do C.P.Penal, e nos Artºs. 188º e 195º do C.P.Civil.
Adiantando já a nossa posição, cremos que lhe assiste razão.
Como se sabe, do ponto de vista das leis penal e processual penal, a indemnização civil fundada na prática do crime é encarada como um instituto de natureza estritamente civilístico, e como tal deve ser substantivamente visto e tratado.
Tal resulta, inelutavelmente, do Artº 129º do Código Penal, segundo o qual a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil, e tem expressão em toda a regulamentação dos Artºs. 71º e sgts. do C.P.Penal.
Nessas circunstâncias, no aspecto processual, tendo em conta o princípio da autonomia do processo penal, o correspondente pedido rege-se pelas normas pertinentes do C.P.Penal, sem prejuízo da aplicabilidade, como direito subsidiário, das normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal – Artº 4º do C.P.Penal.
Ora, como bem aduz o recorrente, nada prevendo o C.P.Penal acerca da concreta questão da ampliação do pedido cível, a mesma terá de ser solucionada com recurso às normas do processo civil.
Feita esta precisão, voltando ao caso vertente, e relembrando as incidências processuais a este propósito evidenciadas nos autos, constata-se que, no âmbito do presente processo (processo principal, entenda-se), J. E. e mulher, C. F., aquele por si e em representação de “J. E., Lda.”, deduziram pedido de indemnização civil contra o arguido / demandado J. S., ora recorrente, visando a condenação deste “a indemnizar todos os demandantes no montante de 78 659,27€, a título de danos patrimoniais e os 1º e 2ª demandantes, J. E. e C. F., no valor de 20 000,00€, a título de danos não patrimoniais, sem prejuízo dos juros legais vincendos contados da data de notificação (...) até efectivo e integral pagamento.”.
Mais se constata que tal pedido foi recebido pelo tribunal a quo, através do despacho de 24/01/2018.
Que, pelo requerimento de 12/11/2020, estribando-se no Artº 265º do C.P.Civil, vieram aqueles ofendidos / assistentes, “por desenvolvimento do pedido primitivo”, ampliar o dito pedido de indemnização civil, sustentando, em síntese, que, face à “Matéria de Facto Provada por este Tribunal e da concluída pelo TRG...”, “... contas feitas, para compensar os prejuízos patrimoniais sofridos pelos demandantes, deve o demandado ser condenado a indemnizá-los no montante de 103 109,96 e não os reclamados 78 659,27 aquando da formulação do PIC”.
Que tal requerimento foi admitido pelo tribunal a quo através do despacho de 16/11/2020.
E que o mesmo requerimento apenas foi notificado ao arguido / demandado, conjuntamente com o aludido despacho de 16/11/2020, através do ofício de 17/11/2020, (referência 46087528) remetido ao seu Ilustre Mandatário.
Ora, como facilmente se concederá, e contrariamente ao que inexplicavelmente certificou o tribunal a quo em 10/03/2021 [na sequência do despacho supra referido em I.9], torna-se manifesto e evidente não ter sido exercido o contraditório em relação àquela ampliação do PIC, já que, como é bom de ver, o arguido / demandado, ora recorrente, apenas dele tomou conhecimento após o mesmo já ter sido admitido!
Sucede que o “contraditório” é um princípio básico e estruturante de todos os direitos processuais e procedimentos judiciais, decorrendo do mesmo que, salvo em casos excepcionais, o tribunal não pode decidir sem que todas as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão.
É isso que se extrai, desde logo, do Artº 3º do C.P.Civil, pertinentemente trazido à colação pelo recorrente, aqui aplicável ex-vi Artº 4º do C.P.Penal, em cujos nºs. 2 a 4 se impõe que, efectivamente, e salvo nos casos excepcionais previstos na lei, nenhuma providência ou decisão deve ser proferida pelo tribunal sem que as partes sejam previamente ouvidas sobre o assunto, evitando-se, assim, decisões surpresa.
E tal principio, no estrito âmbito do moderno processo penal, como assinala o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, Primeiro Volume, Reimpressão, Coimbra Editora, 1984, pág. 149, tem o sentido e o conteúdo das máximas audiatur et altera pars e nemo potest inauditu damnari, impondo, pois, que seja dada a oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afecte, nomeadamente que seja dada ao acusado a efectiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação e que seja dada “oportunidade a todo o participante processual de influir através da sua audição pelo tribunal no decurso do processo”.
Concordando-se com o mesmo Autor quando, a este propósito, ibidem, pág. 158, afirma que “O direito de audiência é a expressão necessária do direito do cidadão à concessão da justiça, das exigências comunitárias inscritas no Estado-de-Direito como tarefa do homem e, finalmente, do espírito do Processo como «com-participação» de todos os interessados na criação da decisão”, pelo que há-de assegurar-se “ao titular do direito uma eficaz e efectiva possibilidade de expor as suas próprias razões e de, por este modo, influir na declaração do direito do seu caso”.
Ora, na situação em apreço, torna-se manifesto e evidente que a Mmº Juíza a quo, ao ter admitido a ampliação do PIC sem que ao arguido / demandado tivesse sido dada a oportunidade de se pronunciar sobre a mesma, preteriu o aludido princípio do contraditório.
Sucede que, salvo o devido respeito, neste particular aspecto, a violação deste princípio não se subsume na previsão do Artº 120º, nº 2, al. b), do C.P.Penal, devendo antes ser enquadrada, em consonância com os princípios supra expostos, à luz do Artº 195º do C.P.Civil (que o recorrente também invoca), só sendo geradora da nulidade processual se influir no exame ou na decisão proferida.
E, no caso, dúvidas não há de que nos deparamos com uma nulidade processual traduzida na omissão de um acto com óbvia e manifesta influência na decisão proferida.
Pois, se os demandantes tiveram a oportunidade de, através do dito requerimento, alegarem as suas razões tendo em vista a condenação do arguido /demandado numa quantia muito superior à inicialmente peticionada, então, o que se se impunha, em primeiro lugar, e em homenagem ao basilar princípio do contraditório, era dar a oportunidade ao arguido / demandado de se pronunciar acerca do assunto, só então, após eventual resposta daquele, o tribunal a quo estando em perfeitas condições de aferir da verificação, ou não, dos pressupostos a que alude o Artº 265º, nº 2, do C.P.Civil.
É certo que, aqui chegados, poderíamos questionar se esta nulidade podia ser suscitada por via recursória e colocada directamente a este Tribunal da Relação, ou se, pelo contrário, deveria ter sido primeiramente invocada perante o Tribunal recorrido e só da respectiva decisão poderia, depois, ser interposto recurso para esta 2ª instância.
Isto porque, como é sabido, das nulidades cabe reclamação e não recurso [daí o postulado tradicional: “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se”] e a reclamação é, também em princípio, dirigida ao Juiz do tribunal que cometeu ou onde foi cometida a nulidade.
Ora, apesar destas duas regras básicas, já meados do século passado o Prof. Alberto dos Reis, no seu “Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 424, com a lucidez e a simplicidade que o caracterizavam, ensinava que “A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão do tribunal, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição de lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (…) e não por meio de arguição de nulidade de processo”.
No mesmo sentido se pronunciando, também, o Prof. Antunes Varela e os Drs. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, 1985, pág. 393, quando a este propósito referem que, “se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”.
Na situação em apreço dúvidas não há de que o acto afectado de nulidade (preterição do exercício do contraditório) se encontra coberto pela decisão que se lhe seguiu (o despacho recorrido), o que significa que tal nulidade podia ser objecto do presente recurso, como foi, e que a mesma pode ser declarada por este tribunal.
Nestas circunstâncias, comprovada a preterição do exercício do contraditório no que tange à ampliação do pedido de indemnização civil formulada nos autos, mostra-se verificada a nulidade prevista no Artº 195º do C.P.Civil, invocada pelo recorrente no presente recurso, impondo-se, pois, a anulação do despacho recorrido, para que seja cumprido o contraditório omitido, ficando prejudicada a apreciação da segunda questão elencada nas conclusões da motivação recursória do arguido / demandado (cfr. Artº 608º, nº 2, 1ª parte, do C.P.Civil, ex-vi Artº 4º do C.P.Penal).

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido / demandado J. S. e, consequentemente:

a) Revogam o despacho recorrido, determinando que o mesmo seja substituído por outro que previamente lhe assegure o exercício do contraditório em relação à aludida ampliação do pedido de indemnização civil, após se decidindo em conformidade com o direito aplicável; e
b) Consideram prejudicado o conhecimento da segunda questão suscitada pelo mesmo arguido / demandado, supra elencada.

Sem custas.
(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos, contendo as assinaturas electrónicas certificadas dos signatários - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
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Guimarães, 22 de Março de 2021

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)


1 - Todas as transcrições ora efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.