Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2133/21.0T8VCT.G1
Relator: FRANCISCO SOUSA PEREIRA
Descritores: HORÁRIO DE TRABALHO FLEXÍVEL
RECUSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
O horário flexível, previsto nos art.s 56.º e 57.º do CT, é fixado pelo empregador dentro dos limites que a lei estabelece e, sem prejuízo de o trabalhador poder indicar o horário que mais lhe convém, deve ser um horário flexível, não podendo impor ao empregador um horário fixo.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

EMP01..., S.A., com os demais sinais nos autos, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra AA, também nos autos melhor identificado, pedindo:
- Seja declarada a existência de motivo justificativo para a recusa do horário de trabalho em regime de horário flexível requerido pelo réu.

Alega para tanto, e em síntese,
Vigora entre ela e o réu um contrato individual de trabalho, sendo que este lhe solicitou a atribuição de um regime de horário flexível, de 2.ª a 6.ª feira para prestar assistência aos filhos menores de 12 anos, das 7h às 13h e das 14h às 16h, constituído por uma componente fixa de quatro horas, correspondente ao período das 10h às 12h e das 14h às 16h, com período de descanso diário das 13h às 14h; este horário não é um horário flexível mas sim fixo, e coloca em causa o normal funcionamento do subsistema a que o réu está adstrito, que tem necessidade de operar de foram contínua e ininterrupta, sete dias por semana, 24 horas por dia, para assegurar o normal abastecimento de água à população, a que a autora se obrigou nos termos do contrato de concessão celebrado com o Estado Português; razão pela qual o réu presta a sua actividade sem descanso semanal fixo; após ter sido emitido parecer desfavorável à recusa da A. pelo CITE, a partir de 8/2/2021, o R. passou a ter horário flexível e, em consequência, foram alterados também os horários dos restantes colaboradores da equipa ETA da ..., que, por já incluir um trabalhador com horário flexível devido a ter um filho menor com deficiência profunda, leva à redução da mesma a três elementos em vez de cinco, o que causa enorme prejuízo e transtorno à A. que desse modo não consegue dar resposta ao cumprimento dos contratos de concessão no abastecimento de água e saneamento de águas residuais aos municípios, designadamente o de ...; a A. não tem dotação orçamental para proceder à contratação de um novo elemento para integrar a equipa, pois carece de autonomia financeira, sendo uma entidade exclusivamente financiada pelo Estado; o réu não fundamentou o seu pedido, nomeadamente com impossibilidade ou incompatibilidade do horário da mãe dos seus filhos, tendo-se limitado a referir que pretendia horário flexível até a sua filha menor de idade perfazer 12 anos.

Tendo-se realizado audiência de partes, malogrou-se a conciliação.
O réu apresentou contestação:
Defende-se por excepção, invocando a caducidade do direito da ação de reconhecimento da existência de motivo justificativo de recusa do pedido de horário flexível. Mais alega, em resumo, que a A. age em abuso de direito pois falta à verdade ao não ter indicado o verdadeiro horário do réu, que na verdade era fixo, das 9h às 18h, com intervalo para almoço das 13h às 14h, 5 dias por semana, e trabalho ao fim de semana uma vez por mês com folga fixa à sexta-feira e à segunda-feira, e só após o réu ter pedido o horário flexível é que alterou os horários como lhe alterou o local de trabalho a mais de 30 Km da sua residência; à data da interposição da acção o réu já não era trabalhador na ETA da ... por ter sido substituído por um colega sendo que o horário flexível pedido é compatível com o dos colegas, como efectivamente foi entre Fevereiro de 2021 até Junho 2021, altura em que a A. alterou o local de trabalho do R.

A autora apresentou resposta em que, no fundamental, reafirma a posição já vertida no articulado inicial, pugnando pela improcedência das excepções deduzidas pelo réu.

Prosseguindo os autos, veio a realizar-se a audiência final e, após, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Face a tudo o exposto, decide-se julgar a presente acção totalmente improcedente e, consequentemente, considerar não existir motivo justificativo para a Autora recusar a atribuição de horário flexível solicitada pelo Réu, pelo que se absolve o mesmo do pedido.”

Inconformada com esta decisão, dela veio o a interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam com as seguintes conclusões (transcrição):

“1º Por sentença proferida a 09/06/2023, o douto Tribunal a quo julgou a ação de processo comum emergente de contrato individual de trabalho totalmente improcedente e, consequentemente, considerou não existir motivo justificativo para a Autora recusar a atribuição de horário flexível solicitado pelo Réu, absolvendo-o do pedido, daí a oportunidade do presente recurso que versa tanto sobre matéria de facto como sobre matéria de direito.
2º Da sentença proferida ressaltam erros notórios na apreciação e decisão da matéria de facto, por incorretamente julgados, sendo manifesto o erro na sua apreciação, assim como é manifesto ter o douto Tribunal feito uma incorreta interpretação e aplicação do direito ao caso em apreço, nomeadamente por violação dos artigos 56.º e 57.º do Código de Trabalho.
3º Entende a Recorrente que o douto Tribunal deveria ter julgado a ação de processo comum emergente de contrato individual de trabalho totalmente procedente, por provada e, em consequência, deveria ter reconhecido a existência de motivo justificativo para a recusa do pedido de horário flexível.
4º Desde logo, com base nas declarações de parte da legal representante da Autora/Recorrida BB, a qual consta gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, em 19/01/2023, com duração de 38,57 minutos, com relevo para este recurso de [00:01:00], [00:02:00], [00:04:00], [00:05:00], (00:06:00), [00:09:00], [00:10:00], [00:11:00], [00:12:00], [00:13:00], [00:14:00], (00:20:00), [00:24:00], [00:25:00], [00:26:00], [00:28:00], [00:29:00], [00:31:00], [00:32:00], [00:33:00] e [00:34:00], que serviu para demonstrar que os factos dados como não provados sob as alíneas a), c), e), f) e h) deveriam ter sido dados como provados.
5º Ainda, com base no depoimento da testemunha CC, o qual se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, em 19/01/2023, com duração de 31,09 minutos, com relevo para este recurso de [00:01:00], [00:02:00], [00:03:00], [00:04:00], [00:05:00], [00:06:00], [00:07:00], [00:08:00], [00:14:00], [00:15:00], [00:23:00], [00:24:00], [00:26:00], [00:27:00], [00:28:00] e [00:29:00], que serviu para demonstrar que os factos dados como não provados sob as alíneas a), c), g) e h) deveriam ter sido dados como provados.
6º Com base no depoimento da testemunha DD, o qual se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, em 19/01/2023, com duração de 53,55 minutos, com relevo para este recurso de [00:04:00], [00:05:00], [00:06:00], [00:07:00], [00:08:00], [00:09:00], [00:10:00], [00:11:00], [00:12:00], [00:15:00], [00:16:00], [00:17:00], [00:18:00], [00:19:00], [00:20:00], [00:22:00], [00:23:00], [00:24:00], [00:25:00], [00:26:00], [00:27:00], [00:28:00], [00:29:00], [00:40:00] e [00:41:00], que serviu para demonstrar que os factos dados como não provados sob as alíneas a), e), f) e g) deveriam ter sido dados como provados.
7º Com base no depoimento da testemunha EE, o qual se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, em 21/04/2023, com duração de 37,44 minutos, com relevo para este recurso de [00:01:00], [00:02:00], [00:03:00], [00:04:00], [00:05:00], [00:06:00], [00:07:00], [00:08:00], [00:09:00], [00:10:00], [00:11:00], [00:13:00], (00:26:00), (00:27:00), (00:28:00), (00:29:00),  [00:31:00], [00:32:00], [00:33:00] e [00:35:00], que serviu para demonstrar que os factos dados como não provados sob as alíneas a), c), f) e g) deveriam ter sido dados como provados.
8º Mais, com base no depoimento da testemunha FF, o qual se encontra gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, em 26/05/2023, com duração de 48,22 minutos, com relevo para este recurso de [00:05:00], [00:06:00], [00:13:00], [00:14:00], [00:15:00], [00:16:00], [00:17:00], [00:18:00], [00:19:00], [00:20:00], [00:21:00], [00:22:00], [00:23:00], [00:24:00], [00:25:00], [00:26:00], [00:27:00], [00:29:00], [00:30:00], [00:31:00], [00:33:00], [00:34:00], [00:35:00], [00:37:00] e [00:38:00], que serviu para demonstrar que os factos dados como não provados sob as alíneas a), c), f) e g) deveriam ter sido dados como provados.
9º E, dessa forma, os factos dados como não provados sob as alíneas a), c), e), f), g) e h) deveriam ter sido dados como provados.
10º Deveria o douto Tribunal a quo ter decidido, face à prova produzida, que a alteração do horário de trabalho do Recorrido, por ser incompatível com os horários existentes no Núcleo da ..., colocava em causa o normal funcionamento da empresa e que a atribuição desse horário flexível, nos moldes em que foi solicitado pelo Recorrido, causou enorme prejuízo para a Recorrente que não conseguiu dar resposta às obrigações que assumiu por força dos contratos de concessão,
11º Mais, deveria o Tribunal a quo ter decidido que, verdadeiramente, apenas com uma equipa de cinco elementos é que era possível satisfazer as necessidades de laboração da Recorrente, não tendo esta dotação orçamental que permitisse contratar mais recursos humanos, para preencher o horário que o Recorrido não poderia assegurar, o que originou que os demais colegas de equipa ficassem sobrecarregados de trabalho, causando prejuízo à Recorrente que ficou exposta a erros e falhas nos procedimentos de trabalho.
12º Ora, a 11/12/2020, o Recorrido solicitou à Recorrente regime de horário flexível, pedindo que o seu horário de trabalho passasse a ser das 07:00 às 13:00 horas, da parte da manhã, e das 14:00 às 16:00 horas, da parte de tarde, constituído por uma componente fixa de quatro horas (das 10:00 às 12:00 horas e das 14:00 às 16:00 horas), com período para intervalo de descanso diário das 13:00 às 14:00 horas, durante pelo menos 10 anos (atendendo que a filha mais nova é bebé, desconhecendo-se a idade concreta).
13º Em cumprimento de todos os trâmites legais, a Recorrente, a 28/12/2020 comunicou ao Recorrido a decisão de recusa do pedido de horário flexível, devidamente fundamentada e justificada, enviando todo o processo para a CITE para que fosse emitido o Parecer, que acabou por ser desfavorável à intenção de recusa.
14º A Recorrente está obrigada a assegurar o normal abastecimento de água à população (água para consumo humano), nos termos do contrato de concessão estabelecido com o Estado Português, através do Decreto-Lei n.º 93/2015 de 29 de Maio, sendo que, para cumprimento das suas obrigações, tem de laborar forma contínua e ininterrupta, 7 dias por semana e 24 horas por dia – e é nestes moldes que opera o Núcleo Operacional da ..., no qual está integrado o Recorrido.
15º A ser concedido o horário flexível, conforme solicitado pelo Recorrido, fundamentou a Recorrente que a colocaria numa situação de enorme prejuízo e transtorno, já que, apenas com uma equipa de 3 elementos, deixaria de conseguir dar resposta, no cumprimento dos contratos de concessão, no abastecimento de água e saneamento de águas residuais aos municípios, designadamente o de ....
16º Mais, justificou a Recorrente que o horário solicitado pelo Recorrido é absolutamente incompatível com os horários de turnos existentes e necessários para a sua laboração e resposta aos contratos de concessão que assumiu através do Decreto-Lei n.º 93/2015 de 29 de Maio.
17º Para além de que, não tinha (e não tem) a Recorrente dotação orçamental para proceder à contratação de um novo elemento por não deter autonomia financeira, ou seja, não haveria qualquer tipo de possibilidade de assegurar os serviços da Recorrente – conforme referido pela legal representante da Recorrente, bem como pelas testemunhas DD, EE e FF.
18º Em sede de julgamento, entende a Recorrente que ficaram demonstradas as exigências imperiosas do funcionamento da empresa e que justificaram a recusa ao pedido de horário flexível apresentado pelo Recorrido, pois que o risco associado à concessão do horário flexível prende-se com questões técnicas, de extrema relevância, como sejam a de assegurar o fornecimento de águas às populações, e que, atenta atividade da empresa, tanto se pode consubstanciar em riscos imediatos, como eventuais.
19º Torna-se necessário definir e organizar os horários de trabalho, equipas de trabalho consoante as necessidades de cada posto de trabalho e consoante os possíveis riscos que possam ocorrem e que obriguem a equipa a dar resposta, o que, no caso em concreto, com apenas 3 elementos, numa equipa originariamente formada por 5 elementos, não é possível ou viável.
20º Mais, o horário indicado pelo Recorrido não parece constituir um pedido de atribuição de horário flexível, pois que o mesmo não é subsumível na previsão legal do art. 56.º do CT, nem foram cumpridos os pressupostos legais, porque não indicou expressamente durante quanto tempo requeria o horário flexível, apenas referindo que pretendia até a sua filha menor de idade perfazer 12 anos (desconhecendo a Recorrente a idade dos filhos do Recorrido), nem entregou a declaração referida no art. 57.º, alínea b) do CT.
21º É um facto que os nossos tribunais (e a CITE) têm decidido em sentido favorável ao trabalhador, ancorando as suas decisões com os comandos constitucionais de conciliação entre a vida familiar e profissional, algo que a Recorrente concorda, tanto que tem concedido vários pedidos de horário flexível, tendo sido o último a um colega de equipa do Recorrido, o GG – cfr. facto dado como provado sob o número 17.
22º Contudo, também não se poderá esquecer da figura do empregador que, para manter a rentabilidade e funcionamento da empresa, terá, quando assim o justificar, de recusar, desde que devidamente fundamentado, este tipo de pedidos de horário flexível – tal como sucedeu no caso, por estarem em causa exigências imperiosas da empresa.
23º Acresce que, resulta do n.º 3 do art. 56º do CT que é o empregador quem deve elaborar o horário, ou seja, este preceito não confere ao trabalhador o direito de balizar ou impor ao empregador as horas do início e do termo do período normal do trabalho que pretende que este lhe fixe o horário flexível, nem permite escolher os dias em que descansará e não prestará trabalho – vide Ac. do Tribunal da Relação do Porto, processo n.º 9430/18.0T8VNG.P1, de 18 Maio 2020 e Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 423/20.9T8BRR.L1-4, de 30-06-2021.
24º Não é, pois, admissível que o trabalhador delimite o cumprimento da sua prestação de trabalho a alguns dias do período de funcionamento do empregador – que é o que o Recorrido pretende fazer.
25º Na esteira do que consta do Ac. Tribunal da Relação de Évora, processo nº 3824/18.9T8STB.E1, de 11/07/2019, e do qual partilhamos o mesmo entendimento, ficou demonstrado que os motivos de recusa do pedido de horário flexível se devem às exigências imperiosas do funcionamento da empresa (que tem de dar resposta às suas obrigações, tendo sido organizada uma equipa de 5 elementos para o efeito) e da impossibilidade de substituição do trabalhador (já que não tem orçamento para contratar mais recursos humanos), para além de que, essa atribuição, acabaria por prejudicar outros colaboradores da Recorrente que, inevitavelmente, seriam afetados e sobrecarregados.
26º É natural que a ausência de um trabalhador faça falta ao serviço, o que consequentemente causa um grande impacto na reorganização das tarefas e de rotatividade nos horários de trabalho, mas a razão primordial para a recusa prende-se com o facto de que com o horário que o Recorrido pretendia fazer muito dificilmente poderia ser assegurado o cabal funcionamento da atividade da Recorrente.
27º É, pois, uma situação excecional e não de relativa dificuldade ou inconveniência de organização dos recursos humanos. 
28º Face ao exposto, ao decidir da forma que decidiu, e salvo o devido respeito, o douto Tribunal a quo pecou por errada aplicação da lei ao caso em apreço, nomeadamente por violação dos artigos 56.º e 57.º do Código de Trabalho, pois que deveria, considerando toda a prova produzida e o exposto supra, ter julgado a ação totalmente procedente, por provada e, em consequência, ter reconhecido a existência de motivo justificativo para a recusa do pedido de horário flexível tal qual solicitado pelo Recorrido.”

O recorrido apresentou contra-alegações, concluindo:

“1. A Autora não deu cumprimento ao dever de impugnação especificada a que estava obrigada nos termos do n.º 1 do art.º 640º do C.P.C. porquanto, não procedeu a uma impugnação individualizada dos factos, isto é, facto por facto, nem à indicação dos meios de prova e invocação das razões que justificam a alteração pretendida, também de forma individualizada, como devia.
2. Razão pela qual a impugnação da matéria de facto não deve ser apreciada.
3. Ademais, ainda assim os pontos de facto cuja alteração de não provados para provados a Autora pretende ver decidida, não merece provimento por não resultarem não só dos excertos da prova por isso indicados, como essencialmente da globalidade da prova quando considerada no seu todo, e em particular quando considerados os excertos apontados nas alegações supra.
4. No que à decisão de direito se refere, a  Autora não logrou demonstrar quaisquer factos suscetíveis de demonstrar a existência de exigências imperiosas do seu funcionamento que pudessem obstar ao horário flexível solicitado pelo trabalhador Réu. As únicas razões que poderiam sustentar uma decisão de direito contrária à vertida pela primeira instância.
5. Ademais, o horário flexível solicitado pelo trabalhador mereceu parecer favorável da CITE e tanto quanto resulta do mesmo respeita as alíneas do n.º 3 do art. 56º do Código do Trabalho.
6. Não existe por isso fundamento legal que suporte a alegação de que a decisão da primeira instância viola as normas previstas nos artigos 56º e 57º do Código do Trabalho.”

Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da procedência do recurso.
Tal parecer mereceu resposta de ambas as partes, consentâneas com as, respectivas, alegações e contra - alegações.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

QUESTÃO PRÉVIA:
O recorrido suscita a questão da inadmissibilidade do recurso da autora quanto à impugnação da matéria de facto alegando, em suma, que a recorrente não deu integral cumprimento aos ónus previstos no art. 640.º/1/2 do CPC, fazendo uma indicação “em bloco” dos factos que impugna e bem assim dos meios de prova em que sustenta a impugnação.
Será assim?
Estabelece o artigo 662.º n.º 1 do CPC , sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto, que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

Dispõe, por seu lado, o artigo 640.º/1 do CPC, cuja epígrafe é Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.” (sublinhamos)

Decorre com clareza das normas citadas que ao recorrente cumpre discriminar os pontos de facto que a seu ver foram incorrectamente julgados, especificar os meios probatórios que impunham, relativamente aos concretos pontos da matéria de facto impugnados, decisão diversa da recorrida, sendo que se se tratar de declarações/depoimentos gravados, incumbe ao recorrente indicar com precisão as passagens da gravação em que funda o recurso - sem prejuízo de poder, aí querendo,   proceder à transcrição   dos excertos das gravações que considere relevantes -, impondo-se-lhe ainda  que explicite a decisão que, no seu entender, deveria ter sido dada a cada um dos pontos de facto por si impugnados.
Tem a jurisprudência e a doutrina reiteradamente afirmado a obrigatoriedade de o recorrente cumprir tais ónus mas, não obstante, advertindo também que não se deve exponenciar os requisitos formais a um ponto que sejam violados os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.[1]
No caso em análise entendemos que, concatenando as conclusões do recurso com a sua motivação, a recorrente deu suficiente cumprimento aos assinalados ónus.
Com efeito, embora a recorrente tenha efectivamente impugnado os pontos da matéria de facto não provada que identifica (e que diz devem considerar-se provados) em «blocos» o certo é que todos eles se reconduzem à mesma questão essencial – existência de fundamento para recusar o pedido do trabalhador – e estão estreitamente conexionados, percebendo-se a relação que a recorrente estabelece entre a prova que delimita e a diferente decisão que propugna para a matéria de facto.
Assim, “atribuindo-se maior relevo aos aspectos de ordem material do que meramente formal”[2], admite-se o recurso também quanto à decisão da matéria de facto.

Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enunciam-se então as questões que cumpre apreciar:
- Impugnação da matéria de facto;
- Errado enquadramento jurídico dos factos provados.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que o Tribunal recorrido considerou provados são os seguintes:
1. Por carta registada enviada a 8 de Janeiro de 2021, a A. remeteu à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), cópia do pedido de autorização de trabalho em regime de horário flexível, apresentado pelo Réu, para efeitos da emissão e parecer.
2. Neste seguimento, a 05/02/2021, a A. recebeu parecer desfavorável à intenção de recusa relativamente ao pedido de trabalho em regime de horário flexível apresentado pelo réu.
3. Deste parecer a A. interpôs Reclamação Graciosa, que decidiu mantê-lo integralmente.
4. O Réu mediante contrato individual de trabalho, obrigou-se a prestar, sob autoridade e direcção da aqui A., tarefas e actividades na dependência da Gestão de Operação, correspondente à categoria profissional de Técnico Operativo A.
5. Enquanto Técnico Operativo de Exploração, à data do pedido referido em 1., o Réu exercia as suas funções de operador do Núcleo Operacional da ..., mais concretamente na ETA da ....
6. O referido contrato teve o seu início a 4 de Junho de 2010, tendo sido acordado entre o Réu e a A. que para efeitos do cômputo de antiguidade (e período experimental, se aplicável) deverá ser considerada a data de 27 de Dezembro de 2007, data em que o Réu iniciou a sua actividade na águas do EMP02..., S.A., entretanto extinta por fusão – cfr. clausula nona do contrato junto com a p.i., cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
7. Ficou ainda acordado que o trabalho seria prestado, de segunda a sexta-feira, num período normal de oito horas diárias e quarenta horas semanais, com uma hora para almoço, sendo que, foi dado conhecimento expresso ao Réu para qualquer alteração que viesse a ser necessária na organização do horário de trabalho, em virtude do funcionamento dos serviços da empresa – cfr. cláusula quinta do contrato de trabalho junto com a p.i..
8. Por comunicação electrónica (email), datada de 11 de Dezembro de 2020, dirigida ao coordenador dos Recursos Humanos da A., o Réu solicitou que lhe seja atribuído um regime de horário flexível no seguintes termos: “Eu, AA, técnico operativo de exploração AA a exercer função de operador na ETA de ..., nos termos do disposto no art. 56º e 57º do código do trabalho, e demais normas legais e regulamentares aplicáveis, venho por este meio solicitar que me seja atribuído um regime de horário flexível de segunda a sexta-feira para prestar assistência aos filhos menores de 12 anos, em vigor apartir do dia 12 de Janeiro de 2021 até a minha filha menor atingir 12 anos de idade.
Horário  
das 07:00 horas as 13:00 horas da parte da manhã
das 14:00 horas as 16:00 horas da parte da tarde, constituído por uma componente fixa de 4 horas (plataformas fixas)
das 10:00 horas as 12:00 horas da manhã
das 14:00 as 16:00 da tarde
período de intervalo de descanso diário das 13:00 as 14:00 horas.(…) ” – cfr. documento junto com a p.i., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
9. A 28 de Dezembro de 2020, a A., na pessoa do Coordenador de Recursos Humanos – Processamento Salarial e Administrativo, via email, comunicou ao Réu a decisão de recusa do pedido de autorização de trabalho em regime de horário flexível, nos termos que constam do documento junto com a p.i., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
10. Na mesma data, via email, o R. respondeu nos termos que constam do documento junto com a p.i. cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
11. Em Janeiro de 2021, a A. procedeu à alteração de horários de trabalho, que seriam alargados para duas escalas, e parcialmente noturno, compreendido das 09:00 às 17:00 horas e das 14:00 às 22:00 horas.
12. O Núcleo Operacional da ..., que o Réu integrava à data do pedido supra referido em 1., labora em contínuo 7 dias por semana, 24 horas por dia.
13. Fazem parte deste Núcleo os seguintes colaboradores: o réu, GG, HH, II e JJ.
14. Antes de o Réu ter requerido à A. o horário flexível estavam a ser praticados, pelo próprio réu e pelos colaboradores GG, II e JJ, o horário das 9:00 horas às 18:00 horas.
15. Depois de o Réu ter requerido o horário flexível, que apesar de lhe ter sido recusado pela A., uma vez que o parecer do CITE foi desfavorável ao sentido de recusa da A., a partir de 8 de Fevereiro de 2021, o réu passou a horário flexível, compreendendo o seguinte horário, de segunda a sexta: das 7:00 horas às 13:00 horas e das 14:00 horas às 16:00 horas, constituído por uma componente fixa de quatro horas (plataformas fixas), correspondentes ao período das 10:00 horas às 12:00 horas e das 14:00 horas às 16:00 horas.
16. A partir de 15 de Fevereiro de 2021, os horários dos colaboradores da ETA da ... passaram a ser os seguintes: das 9:00 horas às 17:00 horas e das 14:00 horas às 22:00 horas. 
17. Com o horário referido em 15. e por existir na equipa outro colaborador, o Sr. GG, a quem foi concedido horário flexível, pelo prazo de um ano, com início em 1 de Dezembro de 2020 e termo em 30 de Novembro de 2021, por ter um filho menor com deficiência profunda que precisa do seu apoio, a equipa ficou apenas com três elementos a fazer trabalho em regime de turnos e a trabalhar aos fins de semana, sendo um dos períodos parcialmente noturno (até às 22:00).
18. Em 28/05/2021, com confirmação escrita, via email a 09/06/2021, o R. recebeu ordem de alteração do seu local de trabalho que passou a ser a ETAR de ... em ... – cfr. doc. junto com a contestação, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.”
E considerou não provados os seguintes factos:
a) A alteração de horário do R. coloca em causa o normal funcionamento do subsistema a que está adstrito.
b) O alegado em 12., acontece também nos restantes Núcleos de Exploração.
c) O horário referido em 14., era sem descanso semanal fixo. (alterado infra para provado)
d) A situação referida em 16., ocorreu por causa do horário flexível do Réu.
e) A situação mencionada em 17., causa um enorme prejuízo e transtorno à A. que não consegue dar resposta no cumprimento dos contratos de concessão no abastecimento de água e saneamento de águas residuais aos municípios, designadamente o de ....
f) Tendo a equipa cinco elementos, sendo esse o número de pessoas necessário à satisfação das necessidades da A. para que esta consiga um cabal e normal funcionamento da ETA e para que seja possível o abastecimento de água à população, e não tendo a A. dotação orçamental para contratar mais pessoas, incluindo para a substituição do réu, é impossível à A. conseguir satisfazer os seus compromissos no âmbito dos contratos de concessão, com o horário que o Réu pretende fazer.
g) Essa impossibilidade traduz-se no enorme esforço que está a ser feito pelos restantes elementos da equipa (HH, II e JJ) que neste momento, de forma temporária, estão a assegurar o horário que anteriormente era feito pelo Réu, com prejuízo para o seu descanso, com prejuízo para as suas famílias, com prejuízo para a A. que tem de lhes pagar horas de trabalho suplementar, com prejuízo para a A. que devido aos cansaço destes colaboradores está mais exposta à ocorrência de erros e falhas nos procedimentos de trabalho, com o consequente prejuízo para os consumidores finais.
h) O horário solicitado pelo Réu é incompatível com os horários existentes na A. e absolutamente necessários à sua laboração e resposta aos contratos de concessão que assumiu.
i) O réu tem uma actividade profissional paralela com aquela que desempenha na A. sendo esse o verdadeiro motivo para requerer o horário flexível.”

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO
           
Da impugnação da matéria de facto:

Alega a recorrente que os factos dados como não provados sob as alíneas a), c), e), f) g) e h) deveriam ter sido dados como provados.
Tendo-se procedido à audição dos depoimentos indicados – não só dos excertos que indica, mas integralmente, e de todas as testemunhas inquiridas – não se pode dar razão à recorrente, senão muito residualmente.
Com efeito, e começando por aqui, efectivamente o que consta da al. c) dos factos não provados,
O horário referido em 14. [14. Antes de o Réu ter requerido à A. o horário flexível estavam a ser praticados, pelo próprio réu e pelos colaboradores GG, II e JJ, o horário das 9:00 horas às 18:00 horas.], era sem descanso semanal fixo
está provado.
Já no art. 20.º da contestação o réu admitiu que quando fez o pedido de alteração de horário em questão à autora o horário de trabalho era das 09 às 18 horas cinco dias por semana, “e trabalho ao fim de semana uma vez por mês, com folga fixa à sexta-feira e à segunda-feira.”
Ora, se o réu trabalhava ao fim de semana uma vez por mês, o descanso semanal não era fixo.
De resto, foi isso mesmo que resultou da prova produzida, designadamente dos depoimentos das testemunhas GG, HH e II, todos trabalhadores da autora e que, tal como o réu no período anterior à sua transferência para a ETAR de ..., trabalhavam (e trabalham) na ETA da ..., e que tinham o mesmo horário de trabalho do réu (mencionado no ponto 14 dos factos provados) e que confirmaram que então cada um deles trabalhava, em regra, um fim de semana por mês.

Assim, considera-se provada a matéria que consta da al. c) dos factos não provados.

Quanto à demais matéria de facto não provada indicada pela recorrente não vemos fundamento para censurar a decisão do Tribunal a quo.
Foram as testemunhas unânimes em que a atribuição do horário “flexível” solicitado pelo réu dificultava muito a organização dos turnos que a autora implementou, na ETA da ..., a partir de 15.02.2021, turnos esses que foram gizados para serem distribuídos por uma equipa de cinco trabalhadores (o próprio réu e GG, HH, JJ e II), tanto mais que à testemunha GG foi entretanto atribuído um “horário flexível”, de molde que este não faz o turno das 14:00 às 22:00 horas, nem trabalha aos fins de semana.
Todavia, e para além de as testemunhas praticamente não abordarem esta matéria com referência ao horário que era praticado na ETA da ... ao tempo do pedido efectuado pelo réu (mas horário esse que comportava já trabalho aos fins de semana, em média uma vez por mês, e deva consignar-se também que resultou de tais depoimentos que antes da referida alteração do horário de trabalho na ETA da ..., e antes do réu requerer à autora a atribuição do “horário flexível”, já a autora tinha comunicado aos trabalhadores essa intenção, de alterar o horário de trabalho para dois turnos, de molde que os trabalhadores exercessem as suas funções em “presença física” durante um período horário mais alargado, por via de um grande aumento do caudal a fornecer pela ETA da ..., que passou a abarcar também o Concelho ...) mas sim reportando-se ao horário implementado pela autora a partir de 15.02.2021, não foram as testemunhas inteiramente esclarecedoras no sentido de que é de todo impossível organizar estes turnos (de molde a respeitar os direitos dos trabalhadores, naturalmente, v.g. os períodos máximos de trabalho diário e semanal e os descansos obrigatórios), e muito menos que na sequência da execução (na sequência do parecer da CITE) do “horário flexível” solicitado pelo réu tenha havida algum problema com o abastecimento de água da alçada da ETA da ..., enfatizando sim a maior penosidade que o cumprimento do horário pretendido pelo réu acarretava para os trabalhadores que não beneficiavam de horário flexível, v.g., como explicaram as testemunhas HH e II, trabalharem mais vezes em período nocturno e mais fins de semana.
Acrescendo, e não menos importante, ficou claro – conforme depoimento da legal representante da autora, BB, e depoimentos das testemunhas CC, DD, KK e HH - que a autora, dentro da sua organização, colmatou as aludidas dificuldades (pelo menos) na organização/preenchimento do horário/turnos em vigor na ETA da ... ao colocar lá outro trabalhador (LL), que transferiu de uma ETAR que também explora, e transferiu o local de trabalho do réu, por sua vez, para essa ETAR.
E mesmo que não fosse (ou não seja, no futuro, por alguma razão) viável esta concreta solução, não demonstrou a prova recolhida que não possa a autora resolver o problema com recurso a uma situação idêntica (troca de trabalhadores), posto que a autora explora várias ETA e ETAR.

Assim, e relembrando que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (art. 607.º/5 do CPC) e que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, improcede a impugnação da matéria de facto, à excepção do tocante à matéria da al. c) dos factos não provados, que se considera provada.

Do errado enquadramento jurídico dos factos provados:

Por uma questão de precedência lógica, começa-se por abordar a questão por reporte ao fundamento invocado pela recorrente na conclusão 20.ª do recurso, i. é de que o “horário flexível” indicado pelo recorrido não constitui um pedido de atribuição de horário flexível, pois que o mesmo não é subsumível na previsão legal do art. 56.º do CT.

Contendendo com a questão supra enunciada, na decisão recorrida discorreu-se nos termos seguintes:

Em primeiro lugar, a A. suscita uma questão formal que, no seu entender, se prende com a falta de fundamentação do pedido de horário flexível deduzido pelo Réu.
Cremos, porém, que não tendo sido essa a razão subjacente à recusa do pedido por parte da A., não lhe é legitimo suscitá-la no âmbito da presente acção.
(…)
Nesta medida, entendemos que as razões de ordem formal invocadas extravasam o âmbito desta acção, desde logo, porque não constituíram o fundamento de recusa do pedido.
O mesmo se diga a propósito da alegação da A. quanto defende que o pedido formulado não se enquadra no regime de horário flexível. Questão que fica, também, afastada desta lide pelas razões invocadas, isto é, por não ter sido esta a razão que alicerçou à recusa.”

Não podemos acolher esta argumentação.

Efectivamente a A. na fundamentação do pedido em sede de petição inicial já defende que o pedido de horário formulado pelo réu não se enquadra no regime de horário flexível (cf. art.s 54.º, 56.º e 58.º).

Concordamos assim com o douto parecer do Ministério Público quando aí se defende “(…) não merecer acolhimento tal posição [a acima citada, do Tribunal recorrido]. Na realidade, a ação em apreço não se consubstancia numa instância de recurso relativamente a um ato do empregador ou de autoridade administrativa, competindo ao tribunal apreciar da existência ou não de fundamento para a recusa de atribuição de horário flexível, em função da análise de todos os elementos que conduziram à recusa do pedido, mas não estando tolhido pela argumentação expendida pela entidade empregadora para a recusa do pedido.” (o que não significa que, eventualmente, a posição e conduta assumidas pelo empregador na sequência de um pedido de horário flexível formulado por um trabalhador não possam assumir relevância numa posterior acção judicial que verse essa questão, por ex. em sede de boa fé ou abuso de direito)

Vejamos então.

Dispõe o artigo 56.º do CT:
Horário flexível de trabalhador com responsabilidades familiares
1 - O trabalhador com filho menor de 12 anos ou, independentemente da idade, filho com deficiência ou doença crónica que com ele viva em comunhão de mesa e habitação tem direito a trabalhar em regime de horário de trabalho flexível, podendo o direito ser exercido por qualquer dos progenitores ou por ambos.
2 - Entende-se por horário flexível aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho diário.
3 - O horário flexível, a elaborar pelo empregador, deve:
a) Conter um ou dois períodos de presença obrigatória, com duração igual a metade do período normal de trabalho diário;
b) Indicar os períodos para início e termo do trabalho normal diário, cada um com duração não inferior a um terço do período normal de trabalho diário, podendo esta duração ser reduzida na medida do necessário para que o horário se contenha dentro do período de funcionamento do estabelecimento;
c) Estabelecer um período para intervalo de descanso não superior a duas horas.
4 - O trabalhador que trabalhe em regime de horário flexível pode efectuar até seis horas consecutivas de trabalho e até dez horas de trabalho em cada dia e deve cumprir o correspondente período normal de trabalho semanal, em média de cada período de quatro semanas.
5 - O trabalhador que opte pelo trabalho em regime de horário flexível, nos termos do presente artigo, não pode ser penalizado em matéria de avaliação e de progressão na carreira.
6 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto no n.º 1.” (realçamos)

 O art. 57.º do mesmo Código estabelece, quanto aos procedimentos atinentes ao pedido e à atribuição ou rejeição de (nomeadamente) horário flexível:
Autorização de trabalho a tempo parcial ou em regime de horário flexível
1 - O trabalhador que pretenda trabalhar a tempo parcial ou em regime de horário de trabalho flexível deve solicitá-lo ao empregador, por escrito, com a antecedência de 30 dias, com os seguintes elementos:
a) Indicação do prazo previsto, dentro do limite aplicável;
b) Declaração da qual conste:
i) Que o menor vive com ele em comunhão de mesa e habitação;
ii) No regime de trabalho a tempo parcial, que não está esgotado o período máximo de duração;
iii) No regime de trabalho a tempo parcial, que o outro progenitor tem actividade profissional e não se encontra ao mesmo tempo em situação de trabalho a tempo parcial ou que está impedido ou inibido totalmente de exercer o poder paternal;
c) A modalidade pretendida de organização do trabalho a tempo parcial.
2 - O empregador apenas pode recusar o pedido com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa, ou na impossibilidade de substituir o trabalhador se este for indispensável.
3 - No prazo de 20 dias contados a partir da recepção do pedido, o empregador comunica ao trabalhador, por escrito, a sua decisão.
4 - No caso de pretender recusar o pedido, na comunicação o empregador indica o fundamento da intenção de recusa, podendo o trabalhador apresentar, por escrito, uma apreciação no prazo de cinco dias a partir da recepção.
5 - Nos cinco dias subsequentes ao fim do prazo para apreciação pelo trabalhador, o empregador envia o processo para apreciação pela entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, com cópia do pedido, do fundamento da intenção de o recusar e da apreciação do trabalhador.
6 - A entidade referida no número anterior, no prazo de 30 dias, notifica o empregador e o trabalhador do seu parecer, o qual se considera favorável à intenção do empregador se não for emitido naquele prazo.
7 - Se o parecer referido no número anterior for desfavorável, o empregador só pode recusar o pedido após decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo.
8 - Considera-se que o empregador aceita o pedido do trabalhador nos seus precisos termos:
a) Se não comunicar a intenção de recusa no prazo de 20 dias após a recepção do pedido;
b) Se, tendo comunicado a intenção de recusar o pedido, não informar o trabalhador da decisão sobre o mesmo nos cinco dias subsequentes à notificação referida no n.º 6 ou, consoante o caso, ao fim do prazo estabelecido nesse número;
c) Se não submeter o processo à apreciação da entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres dentro do prazo previsto no n.º 5.
9 - Ao pedido de prorrogação é aplicável o disposto para o pedido inicial.
10 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto nos n.os 2, 3, 5 ou 7.”

Já a Constituição da República Portuguesa (CRP), nossa lei fundamental, com inteira pertinência para o caso estatui:
“Artigo 59.º
Direitos dos trabalhadores 
1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:
(…)
b) A organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da actividade profissional com a vida familiar;”
(…)”.
“Artigo 67.º
Família
1. A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.
2. Incumbe, designadamente, ao Estado para protecção da família:
(…)
h) Promover, através da concertação das várias políticas sectoriais, a conciliação da actividade profissional com a vida familiar.”.
“Artigo 68.º
Paternidade e maternidade
1. Os pais e as mães têm direito à proteção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível ação em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia de realização profissional e de participação na vida cívica do país.
2. A maternidade e a paternidade constituem valores sociais eminentes.
(…).”

Assim, com acerto se diz na fundamentação da decisão recorrida que “o artigo 56º do Código do Trabalho materializa, assim, os princípios constitucionais de proteção dos direitos dos trabalhadores, da família, da paternidade e da maternidade, consagrados nos artigos 59º, nº 1, alínea b), 67º, nº 1 e 68º, nºs 1 e 4, todos da Constituição da República Portuguesa (CRP).”

E bem assim quando aí se expende que “Já os direitos ao livre exercício da iniciativa económica privada e à liberdade de organização empresarial, encontram-se consagrados nos artigos 61º [Artigo 61.º/1 - 1. A iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral.] e 82º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP).[ 3. O sector privado é constituído pelos meios de produção cuja propriedade ou gestão pertence a pessoas singulares ou colectivas privadas, sem prejuízo do disposto no número seguinte.], podendo ainda referir-se do mesmo diploma fundamental e com interesse neste campo o artigo 80.º c) - A organização económico-social assenta nos seguintes princípios: c) Liberdade de iniciativa e de organização empresarial no âmbito de uma economia mista - e o artigo 86.º/1/2 - 1. O Estado incentiva a actividade empresarial, em particular das pequenas e médias empresas, e fiscaliza o cumprimento das respectivas obrigações legais, em especial por parte das empresas que prossigam actividades de interesse económico geral. 2. O Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas a título transitório, nos casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão judicial.

Diz-se também na decisão recorrida que “A estes direitos sobrepõem-se os direitos à conciliação da atividade profissional com a vida familiar, o direito à proteção da família como elemento fundamental da sociedade e o direito à maternidade e paternidade em condições de satisfazer os interesses da criança e as necessidades do agregado familiar, cedendo estes últimos perante os primeiros, tão só quando em presença de interesses imperiosos.”

Mostra-se acertada esta conclusão de que a sobreposição dos supra referenciados direitos dos trabalhadores, de ordem e interesse público, não têm natureza absoluta, como claramente decorre do citado n.º 2 do artigo 57.º do CT, e competindo naturalmente à lei ordinária regular aqueles direitos programaticamente enunciados na lei fundamental, compatibilizando-os quando conflituantes, no que pode limitar o exercício de algum/alguns deles.

Como se afirma no acórdão da RL de 23-10-2019[3], “Como é sabido, até mesmo os direitos constitucionalmente protegidos admitem restrições legais. Donde, não é por a Constituição salvaguardar a conciliação entre a atividade profissional e a vida familiar, que o direito estabelecido para tal fim se tem como absoluto. Antes terão que ser salvaguardados os direitos dos trabalhadores num processo de equilíbrio com os interesses dos empregadores. Afinal, também estes vêem constitucionalmente protegidos o livre exercício da iniciativa económica e a liberdade de organização empresarial (Artº 61º e 80º/1-c) da CRP) do que é expressão o poder de estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem e o de determinar o horário do trabalhador dentro dos limites da lei (Artº 97º e 212º do CT).”

Ora, do conceito e regime de atribuição de horário flexível consagrado nos artigos 56.º e 57.º do CT resulta que este horário é, dentro dos limites legalmente estabelecidos, fixado pelo empregador - cabe ao empregador estabelecer os limites temporais dentro dos quais o horário flexível pode ser exercido, depois, dentro desses limites, é que o trabalhador poderá gerir o seu tempo por forma a poder cuidar do(s) seu(s) filho(s) menor(es).
E compreende-se que assim seja e que o legislador tenha consagrado um mecanismo para, na medida do possível, compatibilizar os interesses do trabalhador (a ter um horário de trabalho que lhe possibilite cuidar dos filhos) e da empregadora (a fixar aos seus trabalhadores horários de trabalho adequados à organização/eficiência da empresa).
Sucede que o horário indicado pelo réu não constitui, a nosso ver, um pedido de atribuição de horário flexível, uma vez que pretende ser ele próprio, unilateralmente, e sem qualquer maleabilidade (com efeito, sabendo-se que o réu/recorrido tem um período de trabalho normal diário de 8 horas e semanal de 40 horas, pretende um horário flexível que não dá ao empregador rigorosamente nenhuma margem para poder fixar o horário tendo também em conta o interesse da empresa – cf. pontos 7 e 8 dos factos provados), a estabelecer os limites dentro dos quais pretende exercer o seu direito, donde não ser o horário pretendido subsumível à previsão legal do art. 56.º do CT.
Com efeito, o trabalhador/réu pediu que lhe seja atribuído um regime de “horário flexível” “de segunda a sexta-feira (…)
Horário 
das 07:00 horas as 13:00 horas da parte da manhã
das 14:00 horas as 16:00 horas da parte da tarde, constituído por uma componente fixa de 4 horas (plataformas fixas)
das 10:00 horas as 12:00 horas da manhã
das 14:00 as 16:00 da tarde
período de intervalo de descanso diário das 13:00 as 14:00 horas.”
Ou seja, o horário é fixo, rígido em todos os seus parâmetros, não respeitando a expressão “horário flexível” a sua semântica pois que o termo “flexível” não tem no horário proposto pelo réu qualquer aderência à realidade, o que sucede também quanto à alusão às “plataformas fixas” (não diferem em nada, quanto à obrigação de permanência ou não no exercício de funções/possibilidade de ausência ao trabalho, do restante período horário diário, supostamente “plataformas variáveis”).
Como se sumariou em Ac. do STJ de 28.10.2020[4], “I. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 56.º, 57.º e 212.º n.º 2 do Código do Trabalho, compete ao empregador – naturalmente com respeito pelos limites da lei e com base na escolha horária que lhe tenha sido apresentada pelo trabalhador – determinar o horário flexível de trabalho do trabalhador que, com responsabilidades familiares, lhe tenha solicitado a prestação laboral nesse regime de horário, definindo, dentro da amplitude de horário escolhido por este, quais os períodos de início e termo do trabalho diário;”

Também em da Ac. RP de 18-5-2020[5], se defende que “Os limites dentro dos quais o trabalhador poderá escolher o horário serão os que decorrem do nº3. E, deste, resulta que é o empregador quem deve elaborar o horário em conformidade com o que nele se estipula, aí se prevendo:
a) deverão ser estipulados um ou dois períodos de presença obrigatória (com duração igual a metade do período normal de trabalho diário);
b) deverão ser indicados os períodos de início e termo do trabalho diário, cada um com duração não inferior a um terço do período normal de trabalho diário (podendo a duração ser reduzida na medida do necessário para que o horário se contenha dentro do período de funcionamento).
O que resulta do citado preceito é que o trabalhador poderá iniciar o trabalho no período ou faixa de tempo fixado para o início do trabalho diário, assim como poderá terminar o trabalho no período ou faixa de tempo fixado para o termo do trabalho diário (assim, poderá escolher iniciar o trabalho quando entender, mas entre as x e y horas fixadas pelo empregador, o mesmo valendo quanto ao termo do trabalho diário), considerando-se ainda o previsto no nº4 do artigo 56º do Código do Trabalho.”

A este propósito, diz-nos Maria do Rosário Palma Ramalho[6] que “Se o trabalhador pretender exercer esse direito, é ainda ao empregador que cabe fixar o horário de trabalho (art.º 56.º n.º 3 corpo), mas deve fazê-lo dentro dos parâmetros fixados pela lei (art.º 56.º n.º 3, alíneas a), b) e c) e n.º 4)”.

Neste sentido também se pronuncia Liberal Fernandes[7]: “Esta faculdade não põe em causa o disposto no art. 212º, n.º 1, não conferindo aquele qualquer prerrogativa quanto à escolha de um horário em concreto, sem prejuízo de poder manifestar a sua preferência — o que, eventualmente, facilitará ao empregador a fixação do horário e permitir a conciliação dos interesses de ambas as partes, além de que poderá revelar-se um elemento útil para o parecer da CITE. No entanto, aquele direito não deixa de limitar os poderes do empregador em matéria de fixação do horário de trabalho: não só porque está vinculado a elaborar esse tipo de horário, como ainda o deve fazer dentro dos limites legais (n.ºs 3 e 4 do art. 56º).».”

Alice Cristina Costa Matos defende também que “O horário flexível é definido pelo empregador e inclui um ou dois “períodos de presença obrigatória, com duração igual a metade do período normal de trabalho diário” (al. a) do n.º 3 do art. 56.º) - “plataformas fixas”62. São estipulados os “períodos para início e termo do trabalho diário, cada um com duração não inferior a um terço do período normal de trabalho diário, podendo esta duração ser reduzida na medida do necessário para que o horário se contenha dentro do período de funcionamento do estabelecimento” (al. b) do n.º 3 do art. 56.º) - “faixas de variação”63, e estabelece-se um intervalo de descanso não superior a duas horas [n.º 3, al. c)]64, no âmbito dos quais o trabalhador vai gerindo a sua prestação diária, devendo, para o efeito apreciar os critérios do n.º 4 do mesmo preceito legal.
A finalidade desta disposição é, precisamente, a garantia de flexibilidade na definição dos períodos de trabalho, para que o trabalhador disponha de alguma maleabilidade na definição e adaptação das suas rotinas, proporcionando-lhe um exercício mais eficaz das suas responsabilidades parentais65.”[8] (sublinhamos)

É certo que esta orientação não é unânime, havendo posições dissonantes quer na jurisprudência quer na doutrina, defendendo a aplicação deste regime legal a situações em que claramente não se pretende um horário flexível, mas sim um horário fixo, conquanto visando a conciliação entre a vida profissional e familiar, v.g. o apoio do trabalhador aos filhos, argumentando-se, designadamente, que se numa situação como a do horário flexível, o trabalhador pode definir, sem pré-aviso, a distribuição do seu horário nas “faixas de variação”, não faz sentido que um horário fixo, à partida menos prejudicial para o empregador em virtude da sua previsibilidade, esteja excluído do espírito da norma.[9]

Não nos parece, contudo, que este seja o melhor entendimento.
Em primeiro lugar, afigura-se-nos que uma tal interpretação do art. 56.º do CT não respeita os princípios que, nos termos do art. 9.º do CC, devem presidir à interpretação da lei.

Com efeito, se é certo que de acordo com o n.º 1. desse artigo “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.”, o número 2. do mesmo artigo ressalva que “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.”

Salvo melhor opinião, não tem um mínimo de correspondência na letra da lei uma interpretação do art. 56.º do CT no sentido de que aí se autoriza que o trabalhador, de forma unilateral e vinculativa para o empregador, possa fixar ele próprio o horário de trabalho (in totum), e menos ainda que possa fixar um horário fixo.

Como refere Sara Leitão[10], o número 3 do art. 56.º do CT “prevê regras aplicáveis à elaboração do horário flexível que, como esclarece de forma expressa, em concretização do disposto no art. 212.º do Código do Trabalho, é tarefa do empregador.”

Mais, e conforme número 3. do identificado artigo do Código Civil, “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

Como decorre do que se disse supra, a «solução mais acertada» importa no caso uma compatibilização de direitos e interesses, do trabalhador e da empregadora, e se assim é, como nos parece, efectivamente o legislador disse o que queria dizer, i. é, soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

Como se escreveu em Ac. da RL de 23-10-2019[11], “(…) o horário de um trabalhador não pode ficar apenas subordinado a interesses particulares deste, por muito relevantes e respeitosos que sejam, havendo ainda que ponderar e conciliar os interesses do colectivo dos trabalhadores e os da própria organização económica onde o trabalhador está inserido.”

Mesmo que, como se defende no Ac. da RL de 29-01-2020[12], sejam de considerar as nuances do caso concreto que podem determinar, sob pena de esvaziamento do desiderato do horário flexível (afinal de contas, possibilitar que o trabalhador cuide dos filhos) uma maior influência da vontade do trabalhador na definição do horário flexível e até uma maior rigidez deste - “Do cotejo das normas, nomeadamente contidas nos art.º 56, 57 e 212 do CT e da inserção sistemática dos primeiros, resulta que se pretende proteger a parentalidade, conforme lapidarmente referido no citado ac. da RP de 02/03/2017; que estão em causa prementes razões sociais, que por isso prevalecem sobre outros interesses legítimos, mormente de gestão, propriedade e iniciativa privada do empregador; e que tal opera através de um horário flexível ou da prestação de trabalho em tempo parcial. A própria razão de ser do direito (...) resultante do art.º 56 do CT acarreta, cremos, flexibilidade na interpretação das normas, admitindo alguma assimetria de acordo com as situações. É assim que é razoável uma assimetria de fundamentos consoante as situações em causa: exigir a um progenitor, em família monoparental, que carece necessariamente de sair a determinada hora, que o faça mais tarde, mais não leva do que à inutilização do direito em causa e à impossibilitação da conjugação da vida familiar com a prestação da atividade; já o mesmo não se pode dizer de outros casos, em que se impõe que o empregador possa, de alguma maneira, determinar o horário, nos termos genéricos do art.º 212/1, do CT, não estando a sua margem de manobra tão comprimida pelas circunstâncias. Ou seja: numa certa vulgaridade, ou se se preferir, mediania de situações, há lugar a uma efetiva determinação do horário, a qual carece de uma margem mínima de manobra da empregadora, sob pena de esvaziamento dos seus poderes de direção. Isso impõe que, ao indicar as horas de início e termo, mencionadas no art.º 56/2, o trabalhador o faça deixando alguma margem ao empregador, o qual só assim pode efetivamente concretizar o horário; menos do que isso – que redunda numa mera gestão do intervalo de descanso – só é razoável quando prementes limitações do trabalhador assim o impõem” (sublinhamos) - tal terá sempre de resultar das exigências do caso concreto e, quanto a nós, terá melhor fundamento legal no dever de boa fé que deve nortear a conduta de empregadores e trabalhadores (cf. art. 126.º, n.º 1, do CT) e ainda,  mais especificamente, no art. 212.º/2 b) do CT que, regendo quanto à elaboração de horário de trabalho pelo empregador diz que este deve: Facilitar ao trabalhador a conciliação da actividade profissional com a vida familiar.

Todavia, o réu/recorrido nada alegou, sequer, que possa justificar que, ao arrepio do regime previsto no art. 56.º do CT, seja ele e não o empregador a fixar o horário e, mais do que isso, a pretender impor ao trabalhador um horário fixo.

Ante o exposto, não se justifica, por prejudicado, que nos debrucemos sobre a demais argumentação da recorrente.

V - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, revogando a decisão recorrida, declara-se a existência de motivo justificativo para a recusa pela autora/recorrente do horário de trabalho requerido pelo réu/recorrido.
Custas da apelação a cargo do recorrido.
Notifique.
Guimarães, 01 de Fevereiro de 2024

Francisco Sousa Pereira (relator)
Antero Veiga
Vera Maria Sottomayor



[1] Cf. António Santos Abrantes Geraldes, recursos no Novo Código de processo Civil, Almedina, 4.ª Ed., pág. 160, e, a título de ex., Ac. do STJ de 06.7.2022, Proc. 3683/20.1T8VNG.P1.S1, Mário Belo Morgado, também em www.dgsi.pt e Ac. RP de 12-07-2023, Proc. 7250/20.1T8VNG.P1, Paula Leal de Carvalho, www.dgsi.pt
[2] Ac. STJ de 14-09-2023, Proc. 11175/20.2T8SNT.L1.S1, Maria da Graça Trigo, www.dgsi.pt
[3] Proc. 13543/19.3T8LSB, Manuela Fialho
[4] Proc. 3582/19.0T8LSB.L1.S1, José Feteira, www.dgsi.pt
[5] Proc. 9430/18.0T8VNG.P1, Teresa Sá Lopes, https://jurisprudencia.pt/acordao/194962/
[6] Direito do Trabalho Parte II – Situações Laborais Individuais, 3.ª Edição
[7] O Trabalho e o Tempo: Comentário ao Código de Trabalho, Biblioteca RED, 2018, pág. 37
[8] Regimes de Trabalho Flexíveis e Conciliação entre a Vida Profissional e Familiar, Tese de Mestrado em Direito na UCP sob orientação da Professora Doutora Catarina de Oliveira Carvalho, pág.s 27/28, https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/36557/1/202836444.pdf
[9] Cf, por ex., Ac. RE de11-07-2019, Proc. 3824/18.9T8STB.E1, Paula do Paço, www.dgsi.pt, e Catarina de Oliveira Carvalho, Novos Desafios da Parentalidade, in Covid-19 e Trabalho: o dia seguinte, Maria do Rosário Palma Ramalho/ Teresa Coelho Moreira (coords.), AAFDL, Lisboa, pág.s 232/233.
[10] Horário flexível de trabalhador com responsabilidades familiares, in Estudos do Instituto de Direito do Trabalho, Pedro Romano Martinez/Luís Gonçalves da Silva (Coord.), Vol. VIII, Almedina, Coimbra, pág. 123.
[11] Proc. 12472/18.2T8SNT.L1-4, Filomena Manso, www.dgsi.pt          
[12] Proc. 3582/19.0T8LRS.L1-4, Sérgio Almeida, https://jurisprudencia.pt/acordao/193251/