Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
992/16.8T8VNF-D.G1
Relator: FERNANDO FERNANDES FREITAS
Descritores: RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
MÁ FÉ
AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DA RESOLUÇÃO
ÓNUS DA PROVA
ATO PREJUDICIAL À MASSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Os art.os 120.º e 121.º do CIRE preveem diversas situações que permitem a resolução em benefício da massa insolvente dos atos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência, presumindo-se juris et de jure prejudiciais à massa as que vêm referidos no art.º 121.º, que são situações de resolução incondicional, sendo quanto às demais a resolução apenas condicional, sendo seu pressuposto justificativo a atuação de má fé do terceiro.

II – Considera-se ter agido de má fé o terceiro que, à data do acto, tenha conhecimento que o devedor se encontrava em situação de insolvência, ou então tenha conhecimento do carácter prejudicial do ato e de que o devedor em situação de insolvência iminente, ou ainda, tenha conhecimento do início do processo de insolvência.

III - Na carta em que o administrador de insolvência comunica a resolução do ato deve ele indicar pelo menos os factos essenciais em que fundamenta a resolução.

IV – A ação de impugnação da resolução é uma ação de simples apreciação negativa, já que com ela se pretende, apenas, obter a declaração da inexistência do direito à resolução exercido pelo administrador de insolvência.

V – No que se refere ao ónus da prova, de acordo com a regra estabelecida no n.º 1 do art.º 343.º do Código Civil (C.C.), compete ao administrador da insolvência a prova dos factos que invoca como fundamento da resolução do contrato, que são constitutivos do direito de o resolver, enquanto que o demandante fica onerado com a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito, de acordo com o princípio geral estabelecido no n.º 2 do art.º 342.º do mesmo Cód..

VI – É de considerar prejudicial à massa insolvente um contrato de dação em pagamento (datio pro solvendo) celebrado entre um credor e a devedora insolvente, cerca de quatro meses antes da data de entrada do pedido de insolvência, pelo qual esta entrega àquele, como forma de pagamento de parte do seu débito, bens que constituem a quase totalidade do seu património, ficando sem meios materiais para prosseguir a sua atividade, o que era do conhecimento do credor, existindo outros credores que, por via da entrega dos bens, veem frustradas as hipóteses de satisfazerem o seu crédito.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

A) RELATÓRIO

I.- “J. C. e Filhos, S.A.”, sociedade comercial com sede Guimarães, intentou contra a “Massa Insolvente de X Unipessoal, Ld.ª” a presente ação de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente do contrato de dação em pagamento que havia celebrado com a Insolvente, pelo qual esta, para pagamento de parte do crédito que tinha sobre ela, resultante de fornecimentos de mercadoria, lhe entregou os veículos: de marca Toyota Dyna, matrícula OR, com o valor de € 7.000,00; ligeiro, de marca Toyota Dyna, matrícula GN, com o valor de € 9.000,00; ligeiro de mercadorias, marca Opel Combo, matrícula UH, com o valor de € 1.800,00; e ainda 25 módulos de estantes Seedlook, com o valor de € 2.145,25, pedindo se mantenha a validade e eficácia deste contrato.

A Ré pugnando pela improcedência da ação, e para que se mantenha a resolução, declarando-se aquela dação em pagamento ineficaz relativamente à Massa Insolvente.

Os autos prosseguiram os seus termos, vindo a proceder-se ao julgamento que culminou com a prolação de douta sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu a Ré do pedido “contra si deduzido” pela Autora.

Inconformada, traz a Autora o pesente recurso propugnando pela revogação desta decisão e a sua substituição por outra que anule a declaração de resolução e mantenha a validade do negócio, com as legais consequências.
Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi recebido como de apelação, com efeito meramente devolutivo.
Colhidos, que se mostram, os vistos legais, cumpre decidir.
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II.- A Apelante/Autora formulou as seguintes conclusões:

I - A ação de impugnação da resolução é uma ação de simples apreciação negativa, pelo que o Administrador Judicial tem que concentrar na declaração de resolução os fatos tendentes ao preenchimento do requisito "prejudicialidade";
II - Não obstante ter sido invocado pela recorrente que a Sr.ª AI não descreveu, na sua declaração de resolução, os factos integradores de tal requisito essencial para a prejudicialidade da operação de dação em pagamento, a verdade é que sobre esta questão a Mm.ª Juiz "a quo" não se pronunciou;
III - Pelo que a sentença padece da nulidade prevista no disposto no art.° 615.°, n.º 1, al. d) do CPC, nulidade que expressamente se invoca.
IV - A recorrente, sob os art.°s 26.° e 27.° da petição inicial, alegou que no ano de 2015 a insolvente apresentava um passivo global de € 105.726,73 e que com a realização do negócio resolvido pelo valor de € 19.945,25, viu reduzido em quase 20% o passivo que apresentava os quais não foram impugnados e aceites pela recorrida - não estando em contradição com a demais alegação;
V - Pelo que, as alíneas H e I dos factos não provados deverão ser levados à matéria assente, considerando-se como factos provados, e tidos em consideração no julgamento da verificação ou não do requisito da prejudicialidade da dação em pagamento objeto de resolução;
VI - A Mm.ª Juiz "a quo" fundou a sua sentença no disposto no art.º 120.º do CIRE, tendo sublinhados as alíneas b) e f) e da referida norma, e fundado a sua decisão nestas normas;
VII - O negócio objeto de resolução pela Sr.ª AI, não se tratou de um ato gratuito e nem a dívida que subjaz à referida dação se tratava de uma dívida em que ainda não havia ocorrido vencimento, como resulta dos pontos 6 e 7 dos factos provados, e nem tal consta da declaração de resolução;
VIII - Na verdade, a Mm.ª Juiz "a quo" não tinha factos para averiguar da prejudicialidade da dação em pagamento operada entre a insolvente e a recorrente, no acervo patrimonial daquela, e com isso a diminuição da massa insolvente e nem a questão da maturidade da dívida da insolvente para com a recorrente relativamente a outras dívidas a outros credores se tratou de matéria objeto de discussão e prova;
IX - Como já entendeu Esta Relação de Guimarães, Proc.º n.º 1367/15.1 T8GMR, de 07/06/2018, "A impugnação da resolução dos "actos prejudiciais à massa" é um meio processual para se reagir à posição assumida pelo Administrador da Insolvência, pelo que, na sua substância, constitui uma contestação à declaração resolutiva, à semelhança do que sucede no processo executivo com os embargos de executado. Deste modo, aquele que ataca a resolução pode limitar-se a impugnar os factos em que esta radica, obrigando por essa via o Administrador da Insolvência a deles fazer prova, de forma a demonstrar a validade do ato que resolutivo."
X- Outrossim, a questão da alegação e prova da má-fé do terceiro interveniente na realização do negócio, cuja repartição do ónus vem expressa em recente Acórdão Desta Relação de Guimarães, proferido no Proc.º n.º 1730/15.8T8BGC-A.G1, de 04/10/2017, não se verificando os requisitos cumulativos previstos no n.º 4, do art.º 120.º do CIRE, não se reúnem nos presentes autos, os quais nem foram alegados;
XI - Assim, a sentença recorrida violou, para além de outros, os art.°s 120.° do CIRE e 837.° a 873.° Código Civil.
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III.- Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n.os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.

De acordo com as conclusões acima transcritas, cumpre:

- conhecer da nulidade arguida à sentença;
- reapreciar a decisão de facto;
- reapreciar a decisão de mérito.
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B) FUNDAMENTAÇÃO

IV.- Alegando que suscitara a questão da ausência de factos, na declaração de resolução, “tendentes ao preenchimento do requisito da prejudicialidade”, e que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre tal questão, argui a Apelante a nulidade da sentença prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C..

O n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C. enuncia taxativamente as causas de nulidade da sentença.

Trata-se de vícios formais, que afectam a sentença na sua estrutura (alíneas b) e c)), na sua inteligibilidade (2.ª parte da alínea b)), ou nos seus limites (alíneas d) e e)).

Como é inequívoco o princípio do dispositivo impõe que sejam as partes a circunscrever o thema decidendum e a nulidade de omissão de pronúncia traduz o incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito no n.º 2 do art.º 608.º do C.P.C. – o juiz deve pronunciar-se sobre as questões que as partes lhe coloquem, quer as formais, quer as que respeitam ao mérito da causa, devendo ainda conhecer de todos os pedidos que tenham sido formulados e de todas as excepções invocadas, apenas se excepcionando aquelas que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se mostre inútil pelo enquadramento jurídico ou solução encontrada para as outras questões.

Refere o S.T.J. no Acórdão de 29/11/2005, que a resposta à dificuldade em saber o que deve ser entendido por questões de que se deve conhecer, “tem de ser procurada na configuração que as partes deram ao litígio, levando em conta a causa de pedir, o pedido e as excepções invocadas pelo réu, o que vale por dizer que questões serão apenas, como se disse no (…) acórdão de 21.9.2005, "as questões de fundo, isto é, as que integram matéria decisória, tendo em conta a pretensão que se visa obter." Não serão os argumentos, as motivações produzidas pelas partes, mas sim os pontos de facto ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções (vide acórdãos deste tribunal de 7.4.2005 e de 14.4.2005)” (ut Proc.º 05S2137, Cons.º Sousa Peixoto, in www.dgsi.pt).

Ainda acerca deste dever pronunciou-se ANTUNES VARELA escrevendo: “Como corolário da consagração do sistema da justiça pública e no intuito de conseguir que as decisões judiciais, além de conterem a solução jurídica dos pleitos possuam força de convencimento, quer junto dos litigantes, quer, em geral, dos membros da comunidade, exige-se que o julgador seja completo na apreciação das questões submetidas pelas partes”, e prossegue, “Entende a doutrina que, se o autor alicerça a sua pretensão em duas ou mais causas de pedir, tratando-se de cumulação pura e simples ou simultânea – quer dizer, sem que as relacione um nexo de disjunção ou condicionalidade -, o juiz, embora considere a acção procedente com fundamento numa delas, não fica dispensado de apreciar as restantes, sob pena de incorrer no vício de omissão de pronúncia e correspondente nulidade. Diversamente, porém, quando se possa interpretar a petição inicial no sentido de as várias causas de pedir serem formuladas em alternativa ou ver no fundamento não analisado uma questão apresentada a título eventual relativamente ao que veio a constituir objecto de conhecimento” (in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 119.º, pág. 142).

É certo que a Apelante, na sua petição inicial (P.I.) alegou que Senhora Administradora da Insolvência “se limitou a afirmar de forma vaga e abstracta a prejudicialidade do contrato”, e “não indica, nem sequer um único facto concreto que traduza a prejudicialidade do acto”.

Não foi esse, porém, o entendimento do Tribunal a quo que integrou o conceito da prejudicialidade escrevendo: “No caso em apreço o negócio resolvido … foi prejudicial quer à massa insolvente quer aos seus credores, porquanto a massa insolvente ficou privada do activo móvel sujeito a registo prejudicando os restantes credores da insolvente, alguns muito mais antigos que a sociedade A.” (cfr. fls. 47, in fine e 48).

Foi, assim, foi dada resposta à questão colocada pela Apelante pelo que a sentença não enferma do apontado vício, julgando-se, por isso, improcedente a arguição.
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V.- O Tribunal a quo proferiu a seguinte decisão de facto:

i) julgou provado que:
1- Por carta registada com aviso de receção datada de 10-4-2017, a AI notificou a A da resolução em benefício da massa insolvente da dação em pagamento da viatura pesada de mercadorias Toyota Dyna, matrícula OR, com o valor de € 7.000,00, viatura ligeira de mercadorias Toyota Dyna, matrícula GN, com o valor atribuído de € 9.000,00, viatura ligeira de mercadorias Opel Combo, matrícula UH, com o valor atribuído de € 1.800,00 e ainda 25 módulos de estantes Seedlook, com o valor atribuído de € 2.145,25.
2- Na referida carta a R, representada pela AI, declarou resolvido o contrato supra descrito invocando para tal estarem verificados os pressupostos resultantes dos artigos 120º e ss do CIRE.
3- A AI foi citada da sentença de declaração de insolvência a 6-4-2016, na secretaria deste tribunal.
4- A AI referiu no relatório elaborado nos termos do artigo 155º CIRE, junto a 22-4-2016, que já havia procedido a buscas nas Conservatórias do Registo Predial e Automóvel bem como no Serviço de Finanças.
5- A X, Unipessoal, Lda foi declarada insolvente por sentença de 18-3-2016.
6- A dívida à A reporta-se a fornecimentos que haviam sido feitos entre 18-8-2015 e 15-10-2015.
7- Fornecimentos cuja obrigação de pagamento já se havia vencido.
8- Os bens dados em pagamentos constituem quase todo o ativo da insolvente.

ii) julgou não provado:

A- Que a A ignorava a situação patrimonial da empresa ou como esta vinha desenvolvendo a sua atividade.
B- Que o contrato de dação em pagamento foi celebrado após terem ocorrido fornecimentos por parte da A à insolvente e em avultada quantia.
C- O que indicava que a insolvente se mantinha na sua atividade normal de comércio.
D- A A é distribuidora Bebidas (Super Bock) e Refrige (Coca-cola) em Guimarães, Fafe, Felgueiras e Vizela.
E- E tinha necessidade de veículos para a sua atividade e de renovação de frota.
F- Só a 19-11-2016 é que a AI teve conhecimento dos elementos essenciais do negócio a resolver quando por informação do ex-gerente da insolvente se deslocaram às instalações do toc da mesma e lhe foi entregue uma pasta de documentos da insolvente onde foi descoberto o referido e resolvido contrato de dação em pagamento.
G- O valor que foi considerado na dação em pagamento para cada um dos veículos é superior ao valor de mercado que foi atribuído a cada um.
H- No ano de 2015 a insolvente apresentava um passivo global de € 105.726,73.
I- Com a realização do negócio resolvido pelo valor de € 19.945,25, a insolvente viu reduzido em quase 20% o passivo que apresentava.
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V.- A Apelante impugna a decisão de facto pretendendo que a facticidade constante das alínes H) e I) passe para o elenco dos factos provados, alegando não ter sido impugnada pela Ré/Apelada.
Têm-se, assim, por cumpridos os ónus impostos pelo art.º 640.º do C.P.C., com o que não há obstáculo legal a que se reaprecie aquele ponto da matéria de facto.
b) Como se sabe, o actual C.P.C. introduziu o duplo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto.

Na reapreciação desta decisão cumpre à Relação observar o que dispõe o art.º 662.º do C.P.C., tendo presente que, como consta da “Exposição de Motivos” da Proposta de Lei n.º 113/XII, foi intenção do legislador reforçar os poderes da Relação, com o objectivo primordial de evitar o julgamento formal, apenas baseado no ónus da prova, privilegiando o apuramento da verdade material dos factos, pressuposto que é de uma decisão justa.

Com efeito, é agora mais evidente que a Relação se deve assumir como um verdadeiro tribunal de intância também quanto à apreciação dos factos, tendo o poder, que é vinculado, de introduzir na decisão as modificações que se justificarem, seja nas situações em que o possa fazer oficiosamente, seja decidindo a impugnação do recorrente.
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VI.- Como se constata da acta da audiência de julgamento, não foi produzida prova pessoal, havendo mesmo os Exm.os Mandatários prescindido da gravação da audiência.
A decisão de facto acima transcrita, como consta da respectiva fundamentação, baseou-se na “prova documental junta aos autos”, e no relatório apresentado pela Exm.ª Administradora da Insolvência (A.I.) no processo principal.

Ora, o facto aludido na alínea H), consta, precisamente, deste relatório, num mapa aí inserido, no qual a A.I. introduziu, relativamente aos anos de 2013, 2014, e 2015, os valores do “Resultado líquido do exercício”, do “Total do activo”, do “Total do capital próprio” e do “Total do passivo”, sendo que o valor deste aí indicado, no ano de 2015, era de “€ 105.726,73”.

O que consta da alínea I) é meramente conclusivo, deixando-se apenas referido que os € 19.945,25 (valor total atribuído aos bens objecto do contrato) representam, mais precisamente, 18,8649% do valor do passivo, que não os “quase 20%”, sem embargo da inocuidade de tal facto.

Quer os documentos referidos, quer os processos - principal, (de insolvência), de reclamação de créditos, e de liquidação – aos quais estes autos foram apensados, contêm outros elementos probatórios de factos essenciais e instrumentais, que a decisão acima transcrita não contempla, impondo-se, assim, que esta Relação, use dos poderes, que, como se disse, são vinculados, conferidos pelo n.º 1 do art.º 662.º do C.P.C..

E tendo a ora Apelante sido citada nos termos do n.º 3 do art.º 37.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) por ser um dos cinco maiores credores da Insolvente, havendo-lhe sido reconhecido um crédito no valor de € 7.000, é de presumir que o acompanhamento do processo lhe tenha permitido conhecer de todos os documentos e incidências processuais que se irão ter por relevantes.
Deste modo, indo conhecer-se da matéria de facto, por uma questão metodológica e de clareza opta-se por refazer a decisão.
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VII.- Assim, esta Relação julga provados os seguintes factos, e considera relevantes as seguintes incidências processuais:

1.- Às 18:12 horas do dia 10/02/2016, P. J., deu entrada da petição inicial, via CITIUS, pedindo a declaração de insolvência da ora insolvente “X Unipessoal, Ld.ª”.
2.- Esta foi declarada insolvente por sentença proferida às 19:00 do dia 18/03/2016.
3.- Na assembleia de credores a que alude o art.º 156.º do CIRE, realizada em 28/04/2016, todos os credores presentes e com direito de voto aprovaram a decisão de encerramento do estabelecimento da Devedora/Insolvente e a liquidação dos bens que integram a massa insolvente, em conformidade com a proposta apresentada pela Administradora da Insolvência, no seu relatório.
4.- Em 14/12/2016 a Administradora da Insolvência apresentou um requerimento, a partir do qual se organizou o Apenso de Liquidação, com o objectivo de “prestar informação sobre o Estado da Liquidação”, referindo: “Em 19 de Novembro de 2016, a signatária teve conhecimento que a insolvente, em 10 de Novembro de 2015, ou seja, menos de 6 meses antes da declaração de insolvência, efectuou alienações de bens que serão susceptíveis de resolução, nos termos dos artigos 120º e ss do CIRE.
Esses bens foram alienados através de Dação em Pagamento a um credor reconhecido, tendo havido um favorecimento deste em detrimento dos outros, pelo que, face a estas informações, a signatária notificou os credores para se pronunciarem sobre a possibilidade de se efectuar a resolução do referido negócio, estando a aguardar resposta”.
5.- No escrito constante de fls. 7v.º dos presentes autos, datado de 10/Novembro/ 2015, titulado “Contrato de Dação em Pagamento”, a Insolvente “X Unipessoal, Ld.ª” declarou-se devedora da Apelante “J. C. & Filhos, S.A.” da quantia de € 26.945,25 “correspondente à parte do preço em dívida de bebidas que lhe foram fornecidas pela credora entre os dias 18 de Agosto e 15 de Outubro de 2015”, e declarou “Pretender extinguir tal dívida quanto ao montante de € 19.945,25 (…) através da entrega à credora das viaturas e estantes indicadas na cláusula seguinte”, e que são: “Viatura pesada de mercadorias Toyota Dyna, matrícula OR, ao qual atribui o valor de € 7.000,00, Viatura ligeira de mercadorias Toyota Dyna, matrícula GN, ao qual atribui o valor de € 9.000,00, Viatura ligeira de mercadorias Opel Combo, matrícula UH, ao qual atribubui o valor de € 1.800,00” e ainda “25 módulos de estantes Speedlook, às quais atribui o valor de € 2.145,25”.
A Credora declarou aceitar “a entrega antecedentemente referida”.
6.- Em 10/04/2017 a Adiministradora de Insolvência enviou carta registada com A/R à Apelante acima referida declarando a resolução, “em benefício da massa falida” da dação em pagamento a que se refere o documento acima referido em 5., e relativamente às três viaturas e estantes aí mencionadas.
Na mesma missiva escreveu aquela Adiministradora de Insolvência que “A referida dação foi outorgada em 10/11/2015, isto é, menos de seis meses antes do início do processo de insolvência (…) – 07 de Março de 2016 – e da declaração de insolvência – 15 de Março de 2016.
Estes factos, praticados muito pouco tempo antes da apresentação à insolvência, prejudicam de uma forma clara e evidente a satisfação dos créditos dos restantes credores, uma vez que, atendendo ao reduzido valor dos restantes bens da insolvente, constituem verdadeiramente o único património com potencialidade de, pelo menos, satisfazer parcialmente o crédito dos restantes credores, os quais, com esta dação, vêem frustradas e mesmo em perigo as hipóteses de verem satisfeitos os seus créditos.
Tal dação, foi feita com o intuito de favorecer um credor em detrimento dos outros, sabendo bem ambos, Vªs. Exªs e a insolvente que esta estava, pelo menos, em situação de insolvência iminente.
Foi assim praticado de má fé, pelos fundamentos supra expostos, e porque considerado prejudicial, de má fé, e ter ocorrido nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, é resolúvel a favor da massa insolvente nos termos do artigo 120.º n.º 1 e 2 do CIRE”.
7.- Na insolvência foram reclamados e reconhecidos créditos no valor total de € 71.194,95, sendo quatro deles – “Instituto de Segurança Social, I.P.”, no valor de € 13.843,34; “Fazenda Nacional”, no valor de 651,60; P. C., no valor de € 4.017,54; e P. J., no valor de € 5.426,39 – privilegiados, e os restantes créditos comuns, dentre os quais o da ora Apelante, no valor de € 7.000, de “L. L. – Comércio de Bebidas Unipessoal, Ld.ª, no valor de € 15.063,61, do “Instituto de Segurança Social, I.P.”, no valor de € 16.761,31, e de C. A., no valor de € 3.646,03.
8.- A Administradora da Insolvência declarou, no relatório a que alude o art.º 155.º do CIRE, junto aos autos em 22/04/2016, que, no sentido de investigar o património da Devedora/Insolvente, já havia procedido a buscas nas Conservatórias do Registo Predial e Automóvel bem como no Serviço de Finanças.
9.- No mesmo relatório a Administradora da Insolvência fez saber que a Devedora Insolvente no ano de 2013 tinha um passivo total de € 141.932,16; no ano de 2014 o seu passivo era de € 209.018,46, e no ano de 2015 o total do passivo era de € 105.726,73.
10.- A dívida referida no documento supramencionado em 5., reporta-se a fornecimentos cuja obrigação de pagamento já se havia vencido.
11.- Os bens dados em pagamento, identificados naquele documento, constituem praticamente todo o ativo da Devedora Insolvente.
12.- O Requerente da insolvência (credor P. J.) fundamentou o pedido alegando, além de outros, os seguintes factos: “No passado dia 02.11.2015 a requerida comunicou ao requerente a caducidade do contrato de trabalho por virtude de encerramento da empresa – cfr. Doc. 2. - com efeitos a partir de 31.10.2015”. “Assim, o contrato de trabalho entre as partes cessou no passado dia 31.10.2015, por iniciativa da requerida”. “A Requerida, depois do despedimento do requente deixou de funcionar, tendo sido despedidos todos os trabalhadores da requerida e encerradas definitivamente as instalações desta”. “Sendo certo que se encontra encerrada, não desenvolvendo qualquer atividade nas suas instalações onde funcionava ou em qualquer outro local”. “Ao que sabe o requerente a requerida terá inúmeras situações de dívida, motivo porque encerrou”. “Nem pagou a qualquer trabalhador os créditos e indemnizações decorrente do despedimento destes”. “De facto, a requerida tem uma suspensão generalizadas dos pagamentos das obrigações vencidas, nomeadamente os créditos salariais do requerente trabalhador e demais trabalhadores, incumprimento que revela impossibilidade de satisfazer pontualmente as suas obrigações”. “A empresa encerrou o estabelecimento onde tinha a sua sede, não funcionando em qualquer outro local e está em incumprimento das dívidas emergentes do contrato de trabalho”.
13.- Na oposição que apresentou, a Devedora/Insolvente confessouos factos alegados pelo Requerente que apontam no sentido da sua insolvência”, afirmando que “o Requerente já tinha conhecimento, muito antes daquela data, que isso iria acontecer, pois tinha-lhe sido comunicado em Setembro de 2015”. “E fê-lo pela sua total incapacidade financeira para, a partir de 31/10/2015, pagar não só o salário do Requerente e demais trabalhadores que tinha ao seu serviço, mas também todas as suas obrigações comerciais, nomeadamente para com os fornecedores, sendo certo que esgotou a sua capacidade de endividamento”.
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VIII.- O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores, (ainda que com primazia através de um plano de insolvência baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente) mediante a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

1.- Porque, antevendo-se a insolvência, podem ser praticados actos que causem prejuízo aos credores, o CIRE confere ao administrador da insolvência o direito de os resolver em benefício da massa insolvente, o mesmo é dizer, da generalidade dos credores, que, sem embargo das especificidades decorrentes da natureza do respectivo crédito, devem ser tratados de forma igual – é princípio estruturante do processo de insolvência o da igualdade dos credores (par conditio creditorum).

Como ficou expresso no preâmbulo do Dec.-Lei n.º 53/2004, de 18/03, que aprovou o CIRE, “A finalidade precípua do processo de insolvência – o pagamento, na maior medida possível, dos credores da insolvência – poderia ser facilmente frustrada através da prática pelo devedor, anteriormente ao processo ou no decurso deste, de actos de dissipação da garantia comum dos credores: o património do devedor ou, uma vez declarada a insolvência, a massa insolvente. Importa, portanto, apreender para a massa insolvente não só aqueles bens que se mantenham ainda na titularidade do insolvente, como aqueles que nela se manteriam caso não houvessem sido por ele praticados ou omitidos aqueles actos, que se mostram prejudiciais para a massa. A possibilidade de perseguir esses actos e obter a reintegração dos bens e valores em causa na massa insolvente é significativamente reforçada no presente diploma. No actual sistema, prevê-se a possibilidade de resolução de um conjunto restrito de actos, e a perseguição dos demais nos termos apenas da impugnação pauliana, tão frequentemente ineficaz, ainda que se presuma a má fé do terceiro quanto a alguns deles. No novo Código, o recurso dos credores à impugnação pauliana é impedido, sempre que o administrador entenda resolver o acto em benefício da massa. Prevê-se a reconstituição do património do devedor (a massa insolvente) por meio de um instituto específico – «a resolução em benefício da massa insolvente» –, que permite, de forma expedita e eficaz, a destruição de actos prejudiciais a esse património” (cfr. ponto 41).

De acordo com GRAVATO MORAIS, “os actos resolúveis não se configuram, nem são havidos como actos inválidos, seja do ponto de vista formal, seja sob o prisma substancial, atendendo naturalmente à inexistência de vícios que os afectem” e prossegue referindo que “Do que se trata aqui é de, em razão de interesses supremos da generalidade dos credores da insolvência sacrificar outros interesses havidos como menores (os de que contratam com o devedor insolvente e, eventualmente, os de que negoceiam com aqueles, portanto todos os terceiros em relação ao devedor insolvente) em função do empobrecimento patrimonial daqueles credores, por via da prática de actos num dado período temporal, designado como suspeito, que precede a situação de insolvência” (in “Resolução em Benefício da Massa Insolvente”, Almedina, 2008, pág. 47).

Nesta conformidade, vêm previstas nos art.os 120.º e 121.º do CIRE (como o serão todas as disposições legais infra citadas sem menção do respectivo Diploma) diversas situações que permitem a resolução em benefício da massa insolvente dos actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência – cfr. o n.º 2 do art.º 120.º.

Os actos que vêm descritos no art.º 121.º presumem-se, juris et de jure, prejudiciais à massa, nos termos estabelecidos no n.º 3 do art.º 120.º, constituindo, pois situações de resolução incondicional.

Relativamente aos demais a resolução é condicional, já que pressupõe que o terceiro tenha agido de má fé.

O n.º 5 do referido art.º 120.º densifica o conceito de má fé: é o conhecimento, à data do acto, de que o devedor se encontrava em situação de insolvência - alínea a); o conhecimento do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente - alínea b); ou o conhecimento do início do processo de insolvência - alínea c).

É apodíctico que a resolução pode sempre ser impugnada pela outra parte do acto resolvido.

2.- De acordo com o art.º 123.º, n.º 1, a resolução poderá ser efectuada pelo administrador da insolvência por carta registada com aviso de recepção.

Nessa carta, como vem sendo entendimento pacífico, deve o A.I. indicar pelo menos os factos essenciais em que fundamenta a resolução – cfr., por todos, o Ac. do S.T.J. de 29/04/2014, que, considerando ser excessivo “exigir que a declaração de resolução contenha uma exaustiva indicação de todos os factos que a justificam”, afirma que “essa declaração há-de integrar os factos concretos essenciais que revelem as razões invocadas para a destruição do negócio e permitam ao destinatário da declaração a sua posterior impugnação” (ut Proc.º 251/09.2TYVNG-R.P1.S1, Cons.º Pinto de Almeida, in www.dgsi.pt).

O Acórdão do mesmo S.T.J. de 25/02/2014 já havia decidido no mesmo sentido, acrescentando que a suficiência dos “elementos fácticos” deverá “ser objecto de uma análise casuística” (ut Proc.º 251/09.2TYVNG-H.P1.S1, Cons.ª Ana Paula Boularot, in www.dgsi.pt).

É igualmente pacífico que a impugnação “visa apenas a negação dos factos invocados para fundamentar a resolução operada pelo AI, não podendo o impugnante ser surpreendido com factos essenciais ou fundamentos novos, com que se pretenda suprir as deficiências da declaração de resolução” (cit. Ac. de 29/04/2014).

3.- A acção de impugnação é uma acção de simples apreciação negativa.

O que está em causa é a inexistência do fundamento da resolução operada.

Como resulta do disposto na alínea a) do n.º 3 do art.º 10.º do C.P.C., visando as acções de simples apreciação obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto, a sua improcedência não leva à absolvição do demandado do pedido formulado pelo demandante, antes implica o reconhecimento do direito deste, que fica, assim, estabelecido emn termos definitivos em face da parte contrária.

Assim, a procedência da presente acção não envolve a condenação da demandada “Massa Insolvente” mas apenas a declaração de que a resolução do contrato de dação em pagamento efectuada através da carta da A.I. não produziu quaisquer efeitos.

No que se refere ao ónus da prova, deve ter-se em consideração a regra estabelecida no n.º 1 do art.º 343.º do Código Civil (C.C.) – compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga, enquanto que o autor fica onerado com a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito, de acordo com a regra estabelecida no n.º 2 do art.º 342.º do mesmo Cód..

Compete, pois, ao A.I. a prova dos factos que invoca como fundamento da resolução, por serem factos constitutivos do direito de resolver o contrato.

4.- O direito à resolução, de acordo com o disposto no art.º 123.º, n.º 1, do CIRE, caduca se não for exercido nos seis meses seguintes ao conhecimento do acto, ainda que nunca decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência.
Foi debatida a questão de saber se o termo inicial do prazo era o do conhecimento do acto ou se era antes o do conhecimento dos pressupostos que podem fundamentar a resolução.

Como nos dá conta o recente Acórdão do S.T.J. de 18/09/2018, é agora “entendimento consolidado” que o referido prazo de caducidade “se conta a partir do conhecimento dos requisitos necessários à existência do direito de resolução” (ut Proc.º 195/14.6TYVNG-E.P1.S1, Cons.º José Rainho, in www.dgsi.pt).

Vingou, pois, a posição defendida, dentre outros, pelo Acórdão do mesmo S.T.J. de 18/10/2016, que, designadamente, refere: “Determinando o art. 329.º do CC que “o prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder legalmente ser exercido”, o facto de o n.º 1 do art. 123.º do CIRE se ter referido aos seis meses seguintes “ao conhecimento do ato” não deve implicar a fixação de outra data que não aquele momento em que o direito pode legalmente ser exercido”. “Partindo da presunção de que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (art. 9.º, n.º 3, do CC, que também se refere à presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados), entende-se que a referência ao conhecimento do acto implica o conhecimento da plenitude do mesmo em tudo o que ele releva para efeitos de resolução do contrato”. “Apesar de se aceitar que o administrador da insolvência não deva ficar inteiramente inerte ou passivo ao momento em que tem conhecimento da existência dos actos praticados pelo devedor, devendo, por exemplo, pedir esclarecimentos e informações ao devedor – sobre quem incumbe um dever de colaboração –, afigura-se excessivo impor-lhe um dever de investigar ou de averiguar o real conteúdo dos mesmos – por exemplo, impondo-lhe o ónus de, sob pena de caducidade do direito, de pesquisar as conservatórias – sobretudo porque não dispõe de especiais poderes para o efeito” (ut Proc.º 7/13.8TBFZZ-G.E1.S1, Cons.º Júlio Gomes, in www.dgsi.pt), tendo ido no mesmo sentido o Acórdão de 27/10/2016 (ut Proc.º 653/13.0TBBGC-F.G1.S1, Cons.º Pinto de Almeida, in www.dgsi.pt).

Posto que a extinção do prazo aquando do envio da carta registada a comunicar a resolução é um facto que faz extinguir o direito, o ónus da prova cabe ao autor, destinatário da declaração, conforme já se referiu (cfr. a regra estabelecida no n.º 2 do art.º 343.º do C.C., nas situações em que as acções devam ser propostas dentro de certo prazo a contar da data em que o autor teve conhecimento de determinado facto, nelas cabendo ao réu a prova de o facto já ter decorrido).
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IX.- Na situação sub judicio, temos que:

a) como se extrai inequivocamente dos dizeres acima transcritos em 6., na carta que enviou à ora Apelante, a Administradora de Insolvência fundamentou em factos concretos a resolução do contrato, tendo aí referido:

- terem os actos (a dação em pagamento) sido praticados “muito pouco tempo antes da apresentação à insolvência”;
- prejudicarem de forma “clara e evidente a satisfação dos créditos dos restantes credores”, uma vez que, atendendo “ao reduzido valor dos restantes bens da insolvente”, os referidos bens “constituem verdadeiramente o único património com potencialidade de, pelo menos, satisfazer parcialmente o crédito dos restantes credores”;
Acrescentando ainda que “a dação foi feita com o intuito de favorecer um credor em detrimento de outros, sabendo bem ambos, V.ªs Exªs e a insolvente que esta estava, pelo menos, em situação de insolvência iminente”.

Conclui imputando a ambas actuação de má fé.

Os factos que, na perspectiva da Administradora da Insolvência, integram o conceito de prejudicialidade são intuitivamente descortináveis nos trechos da carta acima transcritos, carecendo, pois, de fundamento o que a Apelante alega na conclusão I.

b) A carta foi tempestivamente enviada à Apelante (o que esta aceita posto que em sede de recurso não faz alusão à questão que suscitara na P.I., sendo certo que também não alegou factos concretos que inequivocamente demonstrassem o conhecimento da A.I., em data anterior, sequer da celebração do negócio, muito menos das bases negociais.

c) Como já acima se deixou referido, a resolução pressupõe a má fé do terceiro, entendendo-se que este está de má fé se, à data do acto, tiver conhecimento de qualquer das seguintes circunstâncias:

- de que o devedor se encontrava em situação de insolvência;
- do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente;
- do início do processo de insolvência.

De acordo com o disposto no art.º 3.º do CIRE é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.

Relativamente às pessoas colectivas e aos patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma directa ou indirecta, são considerados insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.

Apontam normalmente para uma situação de insolvência, para o que ora interessa, a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas, assim como a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações – cfr. alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 20.º do CIRE.

A insolvência é iminente quando está próxima alguma das situações referidas.

Como referem LUIS CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, a iminência da insolvência caracteriza-se “pela ocorrência de circunstâncias que, não tendo ainda conduzido ao incumprimento em condições de poder considerar-se a situação de insolvência já atual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exatamente pela insuficiência do ativo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível” (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2.ª ed., pág. 86).

Como ficou provado, a Insolvente entregou à Apelante praticamente todos os bens que constituíam o seu património.

Com a entrega de tais bens, a Insolvente deixava, pura e simplesmente, de ter meios materiais para prosseguir com a sua actividade.

A Apelante não tinha como ignorar esta situação dado que tinha relações comerciais com a Insolvente, e o valor dos bens entregues nem sequer foi suficiente para liquidar todo o débito (do valor de € 26.945,25 foram considerados pagos € 19.945,25).

Não havendo motivo para duvidar, posto que a própria Insolvente o confessou, ter esta encerrado o seu estabelecimento comercial e cessado toda a actividade, em 31/11/2015, data em que despediu todos os seus trabalhores, o contrato de dação em pagamento é posterior (foi outorgado em 10/11/2015), o que permite presumir, pela normalidade do acontecer, que a Apelante conhecia estes factos e, pelo menos, a situação de insolvência iminente da Devedora/ Insolvente.

d) Que o contrato de dação em pagamento é prejudicial à massa insolvente resulta inequívoco da circunstância de os bens entregues constituírem praticamente todo o património da Insolvente, o que, inelutavelmente, determina a significativa diminuição, se não a total frustração, da satisfação dos demais credores da insolvência.

Como refere a A.I., os bens entregues constituem “verdadeiramente o único património com potencialidade de, pelo menos, satisfazer parcialmente o crédito dos restantes credores, os quais, com esta dação, vêem frustradas e mesmo em perigo as hipóteses de verem satisfeitos os seus créditos”.

Recebendo a Apelante praticamente todo o património da Insolvente, o seu benefício tem o correspectivo do prejuízo para os demais credores, resultando evidente que a vontade que presidiu à celebração do referido contrato de dação em pagamento foi a de beneficiar um único credor - a Apelante.

Estão, pois, preenchidos todos os requisitos estabelecidos no art.º 120.º do CIRE que permitem a resolução do referido contrato.
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X.- Sem embargo, e uma vez que o contrato visado foi uma dação em pagamento, também estará preenchida uma causa de resolução incondicional.

Com efeito, nos termos do disposto na alínea g) do n.º 1 do art.º 121.º do CIRE, é resolúvel o “Pagamento ou outra forma de extinção de obrigações efectuados dentro dos seis meses anteriores à data do início do processo de insolvência em termos não usuais no comércio jurídico e que o credor não pudesse exigir”.

Referem LUIS CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA que “Esta fórmula legal envolve uma anormalidade do ato extintivo que tem de ser aferida em função da natureza da obrigação. Por outras palavras, a obrigação que concretamente se extinguiu não é usualmente extinta pelo modo por que o foi. Este modo não é usual em si mesmo ou atendendo às circunstâncias que o rodearam”, e concluem referindo que “a feição anormal que o ato reveste, justifica a sua resolubilidade incondicional, pois revela que ela se prende com o presuntivo favorecimento de credores” (in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2.ª edição, pág. 533).

A datio pro solvendo, a que se refere o art.º 840.º do C.C. é uma das causas de extinção das obrigações, que, como refere LUIS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, “consiste na execução de uma prestação diversa da devida para que o credor proceda à realização do valor dela e obtenha a satisfação do seu crédito por virtude dessa realização” (in “Direito das Obrigações”, vol. II, Almedina, 2017 – 11ª edição, pág. 187).

Em princípio, o crédito só se extingue quando o credor consiga realizar o valor dele, v.g. através da venda dos bens entregues.

Ora, esta forma de extinção das obrigações não é normal no tráfego comercial. Os comerciantes só lançam mão dela quando não podem obter o pagamento por outro meio (usualmente pela entrega de dinheiro, ou de letras, ou de cheques).

Como decidiu o S.T.J. no Acórdão de 07/10/2014, “embora a dação em pagamento constitua um modo normal de extinção de obrigações, o devedor não tem obrigação de efectuar essa prestação de substituição, não podendo esta ser imposta unilateralmente por qualquer das partes”. A dação em pagamento “de todo o património do devedor, em benefício de um único credor – representando uma liquidação antecipada e instantânea de todo esse património em favor deste –, não pode considerar-se usual no comércio jurídico, nem poderia ser exigida por esse credor” (ut Processo: 1393/11.0TBPMS-C.C1.S1, Cons.º Pinto de Almeida, in www.dgsi.pt).
Tem plena aplicação à situação sub judicio o que aí ficou referido sobre a situação sobre que se debruçou: “Sopesando a densidade do objecto da dação, que incluiu um conjunto de bens e direitos de apreciável importância, e a circunstância de se extrair do facto provado … que todos os bens da devedora foram dados em cumprimento da dívida que sobre ela a A. detinha, só podemos qualificar aquela dação como uma liquidação antecipada e instantânea do património respectivo em proveito de um único credor. É patente que houve o intuito de satisfazer um único credor, no caso a A. na presente acção, sem qualquer cautela ou salvaguarda para os demais, em que se incluía a Segurança Social …”.

Também aqui, os bens objecto do contrato de dação em pagamento constituíam, praticamente, todo o património da Insolvente, sendo inequívoco, face à existência de outros credores quando o negócio foi celebrado, que a sua celebração criou uma situação de favorecimento da Apelante, com o que fica demonstrada a intenção de prejudicar os demais credores, com violação do princípio par conditio creditorum.

Mostram-se, pois, preenchidos os pressupostos de resolução do contrato de dação em pagamento referidos na alínea g) do n.º 1 do art.º 121.º do CIRE.

A resolução, como se estabelece no art.º 126.º do mesmo Código, tem efeitos retroactivos, “devendo reconstituir-se a situação que existiria se o acto não tivesse sido praticado” (cfr., no C.C., art.os 433.º; 434.º; e 289.º), os três veículos automóveis e os módulos de estantes entregues para pagamento à Apelante deverão regressar ao património integrante da massa insolvente (cfr. art.º 46.º do CIRE).
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C) DECISÃO

Considerando quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o presente recurso de apelação, confirmando e mantendo a decisão de improcedência da acção, e, consequentemente, o reconhecimento do direito da Senhora Administradora da Insolvência resolver o contrato de dação em pagamento que a Apelante celebrou com a Insolvente.
Custas da acção e da apelação pela Apelante.
Guimarães, 14/02/2019

Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes
Maria Purificação Carvalho