Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3480/23.2T8BRG.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O abuso do direito na modalidade de desequilíbrio no exercício de posições jurídicas corresponde a um caso de exercício danoso do direito.
II - Nesta modalidade pode ser considerada a sub-hipótese de desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem.
III - Não sendo possível aferir, num juízo de proporcionalidade, da alegada desproporção entre a utilidade da servidão para o prédio dominante e o sacrifício que da mesma resulta para o prédio serviente, não se tem por verificado o alegado comportamento abusivo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA instaurou, no Juízo Local Cível ... – Juiz ... – do Tribunal Judicial da Comarca ..., procedimento cautelar de restituição provisória da posse contra BB e CC (ref.ª ...10), pedindo que fosse ordenada:
a) a restituição provisória à requerente da posse do caminho descrito em 16 a 20 do RI, com cerca de 15 mts de comprimento por 2,55 a 3 mts de largura, para acesso, entrada e saída e passagem a pé e de carro ao prédio identificado em 2º do RI, com a reposição do caminho, em todo o percurso, ao estado anterior à remoção das terras que efetuaram, mais eliminando os obstáculos à abertura do portão;
b) que os requeridos se abstivessem de impedir, por qualquer meio, a entrada, a pé, com veículos e outros bens pelo aludido caminho; caso se entendesse não ser o procedimento cautelar de restituição provisória da posse o adequado,
c) a reposição do caminho no status quo ante, restabelecendo e/ou desobstruindo o caminho e removendo todos os obstáculos ao acesso e à circulação, utilização e fruição a que se alude no pedido a) ao prédio descrito e, 2º do RI e deste para a via pública;
d) em qualquer das situações e sem prejuízo de indemnizações e tutela penal, a condenação dos requeridos a pagar sanção pecuniária compulsória, por cada vez/dia em que violem ou não acatem a decisão proferida, em montante não inferior a € 7.000,00.
Para tanto, e em síntese, alegou que é proprietária do prédio que descreve em 2º do RI, por tê-lo adquirido na sequência de licitações em inventário judicial, em que também os requeridos eram interessados, sendo-lhes adjudicado o prédio descrito em 12º do RI, sendo que o acesso ao prédio adquirido pela requerente sempre se fez por um caminho situado no lado norte do prédio adquirido pelos requeridos, sendo este, aliás, o único acesso ao mesmo.
Não obstante, os requeridos colocaram um portão fechado com cadeado e aloquete no acesso ao dito caminho e, no dia 17/04/2023, com recurso a uma retroescavadora, escavaram o dito caminho, criando um fosso com mais de 1 metros de altura que inviabiliza, em absoluto, a passagem para o prédio da requerente, com o que sai violada a servidão de passagem a favor do prédio da requerente, constituída por destinação do pai de família.
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Sem audiência prévia dos requeridos, e após produção da prova testemunhal indicada pela requerente, o Tribunal “a quo” julgou procedente o procedimento cautelar intentado e, consequentemente: a) ordenou a restituição provisória ao requerente da posse sobre o caminho descrito em F. da factualidade assente, para acesso, entrada, saída e passagem, a pé e de carro de bois/trator, ao prédio descrito em B dos factos provados, com reposição do mesmo, em todo o seu percurso, ao estado anterior, das terras que os requeridos retiraram, com eliminação de qualquer obstáculo à abertura do portão, que os requeridos devem manter aberto ou entregar uma chave à requerente, devendo, ademais, abster-se de estorvar e/ou impedir ou limitar, seja de que modo for, a circulação, livre e desimpedida, de pessoas, carros de bois e tratores, por esse caminho para e/ou a favor do prédio referido em B dos factos provados; b) condenou os requeridos a pagarem à requerente, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia de € 100,00 por cada dia em que violem ou se recusem a acatar a presente ação ou voltem a estorvar, dificultar e/ou impedir, por qualquer modo, a passagem e acesso ou mesmo a entrada e saída para ou do prédio referido em B dos factos provados (ref.ª ...84).
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Notificados dessa decisão, os requeridos deduziram oposição, pedindo a prolação de sentença que indefira a restituição da posse, com as devidas e legais consequências (ref.ª ...58).
Para tanto alegaram, em resumo, que o prédio urbano a poente do prédio B, que lhe é contíguo e não tem qualquer obstáculo natural, é da requerente, que, consequentemente, tem acesso direto e ilimitado ao prédio rústico através do seu prédio, sendo que o caminho reclamado pela requerente foi usado apenas aquando da sua integração na herança de DD e EE.
O prédio urbano foi destacado do prédio B, sendo que a passagem, para o prédio B por via do prédio E, apenas se fez por ali para evitar o constrangimento, para a requerente e então marido, de suportar a passagem pelo prédio doado.
O caminho reclamado é abusivo e inútil porque houve reunião de prédios na esfera da requerente, que lhe asseguram o acesso à via pública.
Desde a partilha, a requerente não mais acedeu ao prédio identificado em B através do prédio dos requeridos, salvo na ocasião em que arrombou e destruiu o aloquete que os requeridos ali haviam instalado, sendo que sequer cultiva o prédio desde 2019, passando, sempre que necessita, pelo seu prédio urbano, pelo que teria renunciado à passagem e teria a servidão extinguido pelo não uso.
Ainda que assim não fosse, a pretensão de manutenção da passagem configura abuso de direito, pelo que não deve manter-se a decisão de decretamento proferida.
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Designada data, realizou-se produção da prova arrolada (ref.ªs ...11 e ...10).
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Posteriormente, a Mm.ª Julgadora “a quo” proferiu decisão final, datada de 23/10/2023, nos termos da qual decidiu julgar a oposição improcedente e, em consequência, manteve «a providência cautelar decretada por despacho proferido no dia 04/07/2023, sob a ref.ª ...84» (ref.ª ...98).
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Inconformados, os requeridos interpuseram recurso desta decisão (ref.ª ...97) e, a terminar as respectivas alegações, formularam as seguintes conclusões (que se transcrevem[1]):

«I. Os Recorrentes não se podem conformar com decisão do Tribunal a quo considerar improcedente a oposição ao procedimento cautelar de restituição provisória de posse.
Isto porque o Tribunal a quo incorreu quer num erro decisório (ao nível do erro de julgamento) por não ter levado em consideração e valorado de forma correcta a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, quer, ainda, num erro de subsunção da matéria fáctica ao direito.
II. Os recorrentes impugnam o julgamento da matéria de facto indiciariamente dada como provada nos pontos: I., J., O. e P.
III. Resulta da prova testemunhal, além da prova documental junta em sede de Oposição que o acesso ao prédio dominante, prédio B identificado no levantamento topográfico, se dava tanto pelo prédio dos recorrentes, como pelo prédio da recorrida, conforme referido de forma clara e credível por duas testemunhas que têm conhecimento directo, dado serem estes quem realizaram trabalhos no referido prédio rústico.
IV. As testemunhas FF e GG são concludentes no sentido de que a passagem para o prédio rústico dominante era processada ora um por lado (prédio dos recorrentes) ora por outro (prédio da recorrida).
V. Por isso, também o prédio da recorrida esteve e está onerado com uma servidão de passagem para com o prédio dominante, conquanto o mesmo também serviu de acesso de pessoas e máquinas ao prédio B, não podendo deixar de ser considerado que também este prédio da recorrida pode se deve ser encarado com um prédio serviente ao do prédio dominante, o prédio B.
VI. Da prova testemunhal produzida e transcrita que, na essência foi coerente, ficou claro que o acesso ao prédio B era também realizado pelo prédio da recorrida, o qual possui um logradouro de várias centenas de metros e que se encontra a olho nu como que indiviso com o prédio B dada a inexistência de qualquer obstáculo natural ou artificial entre ambos, antes pelo contrário, pois como se referiu, ambos provêm do mesmo artigo matricial.
VII. Esse facto, concatenado com a inspecção judicial realizada corrobora que o Tribunal recorrido não ajuizou bem a realidade no local, não tendo percepcionado a questão na sua globalidade, dado que tais estruturas que actualmente existem e existiam à data da inspecção judicial são recentíssimas e bastante supervenientes à partilha judicial operada em 2019, onde a recorrida adjudicou em licitação o prédio B, sendo também a instalação de tais estruturas supervenientes à inegável passagem das pessoas que foram contratadas pela própria recorrida para ir limpar o prédio B, que se deram até data recente.
VIII. Como tal, a redacção do ponto I. da matéria de facto indiciariamente provada deverá ser alterado com a seguinte redacção:“Desde há mais de 20, 30 e 50 anos que a Requerente, por si e antepossuidores, têm utilizado o caminho referido em G., assim como o prédio urbano desta para passagem, a pé e de carro de bois/trator para acesso ao prédio referido em B., na convicção de exercer um direito de passagem, o que vem fazendo, sem oposição de ninguém, inclusive, e até às condutas supra referidas, dos Requeridos, continuamente, à vista de toda a gente. “
IX. Em face do referido no ponto I. deverá ser julgado como não provado o ponto J., ou caso assim não se entenda deverá ta ponto assumir a seguinte redacção: “O acesso de carro para o prédio B. deu-se pelo prédio F. e pelo da requerente.”
X. o facto de a recorrida ter por sua própria vontade e acção impossibilitado o acesso de carros ou tractores ao prédio B, e de, por seu turno, vir a invocar que se encontrou impossibilitada de aceder ao seu prédio através do prédio F constitui um claro exemplo de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium , dado que foi pela actuação desta que, em grande medida, ocorreu o facto de não poder aceder de carro ao prédio B.
XI. A pretensa situação de impossibilidade decorre em partes iguais da própria actuação da recorrida na medida em que a própria livremente obstucalizou o caminho carral de acesso ao prédio B do qual se poderia e deveria servir , pelo que a redação do ponto em apreço se afigura redutora, e, como tal, manifestamente incorrecta, devendo esse ponto ser dado como indiciariamente não provado.
XII. A postura da recorrida funda-se a todos os títulos numa conduta abusiva, utilizando um direito parcialmente existente de forma contrária aos limites impostos pelos usos, costumes e boa-fé, o que se confirma quando se verifica que o seu prédio urbano constituía e constitui também um modo de passagem para o prédio B adquirido pela recorrida.
XIII. O que decorre clarividente dos depoimentos das testemunhas quando unanimemente referem que a passagem para o prédio B tanto se processava por um lado, como por outro, ou seja, pelo prédio dos recorrentes, como pelo prédio urbano da recorrida.
XIV. A suposta impossibilidade de acesso ao prédio B por meio do prédio da recorrida apenas ocorre pela instalação de um capoeiro e redes de vedação do mesmo, constituindo essa instalação como um passo preparatório ao que viria a suceder a seguir, designadamente com a interposição da presente providência cautelar com intuito de forçar a passagem através do prédio dos recorrentes.
XV. Tal apenas assim sucede porque a recorrida de forma dolosa e consciente impediu voluntariamente o seu acesso carral ao prédio B, quando o mesmo, como deverá resultar provado, também se fazia em moldes similares pelo seu prédio, o que levou a que a recorrida se colocasse dolosamente numa situação de não poder aceder ao prédio B com veículos precisamente para depois invocar o direito de passagem através do prédio F dos recorrentes!
XVI. Em suma, os transtornos e incómodos versados no ponto P. da matéria de facto dada como provado são concausais à própria actuação da recorrida que, por isso, incorre em clara culpa do lesado, nos termos do artigo 570.º do Código Civil, o qual se invoca expressamente, além de abuso de direito, o que deverá levar a que o ponto P. deva ser excluído do indiciário probatório com as devidas e legais consequências.
XVII. Deverão ser aditados os seguintes pontos à matéria de facto indiciaramente provada:
1. O prédio dominante- prédio B- confronta a poente com o prédio urbano que constitui sua habitação adquirida no inventário por dissolução conjugal.
2. O prédio identificado no levantamento topográfico com a letra B é da propriedade da requerente por via da adjudicação no inventário das heranças abertas por óbito do Sr. DD e D. EE.
3. O prédio urbano situado a poente do prédio B, com área de 1238 m2, que lhe é contiguo sem qualquer obstáculo natural e por cerca de 30 a 50 metros de comprimento, é de sua propriedade.
4. O prédio dos requeridos designado no levantamento topográfico pela letra E tem um pequeno logradouro de 86 m2,
5. Esse prédio (urbano) doado à requerente foi “destacado” do prédio B, pois como se refere na escritura de doação que os progenitores “ são donos e legítimos possuidores do prédio denominado Campo ..., sito no lugar ..., da dita freguesia ..., o qual faz parte do descrito na conservatória sob o número ... e está inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., com o valor matricial de vinte e sete mil setecentos oitenta escudos.
Que pela presente escritura e do referido prédio doam à segunda outorgante, sua filha, uma parcela de terreno com a área de mil e duzentos metros quadrados, já demarcada e destinada a construção urbana, a qual fica a confrontar do poente com caminho público, do norte com DD e dos restantes lados com eles doadores, medindo do norte e do sul trinta metros e do nascente e do poente quarenta metros.” Sublinhado nosso.
XVIII. A clarificação da matéria de facto acima indicada como devendo resultar provada é essencial para a apreciação da questão de fundo nos presentes e que se prende em maior medida com a abuso de direito da recorrida na modalidade de Desequilíbrio.
XIX. O prédio dos recorrentes é um prédio urbano com um logradouro de 86 m2, quando por seu turno a recorrida possui um logradouro de várias centenas de metros quadrados, o qual, dá e pode dar, como deu durante vários anos até à pouco tempo atrás, acesso ao referido prédio B., pelo que não fora a premeditada e propositada instalação de estruturas acessórias e voluptuárias precisamente na zona onde se operava a passagem para o prédio dominante , a recorrida poderia e deveria aceder ou fazer aceder pessoas e máquinas por aquela zona.
XX. para que a recorrida possa manter o supervivente galinheiro e vedação desses animais, de molde a constranger a passagem existente para o seu prédio B, o qual, de resto, é um prédio rústico de limitadíssima aptidão urbanística, não tendo tido na passada década qualquer utilidade agrícola estando “ a velho”, os recorrentes ficarão, num primeiro momento, numa posição de perder uma quantia pecuniária muito significativa, e, num segundo momento, perderão a possibilidade de rentabilizar a sua propriedade que com a referida servidão fica complemente vilipendiada.
XXI. Ora, uma ponderação equilibrada e equitativa à luz do bom senso, do significado económico dos bens e direitos em confronto e, sobretudo, da boa-fé, deverá contemplar se os recorrentes deverão ser obrigados a suportar uma servidão de passagem que se afigura de cariz voluptuário e caprichoso para a recorrida, a qual, em circunstâncias de algum respeito e bom senso, jamais imporia aos recorrentes.
XXII. Com a decisão recorrida, a qual é de cariz provisório mas amplamente penalizador, os recorrentes veem um investimento realizado num prédio urbano totalmente desvalorizado, ao mesmo tempo que não fosse esse dano ou prejuízo outro se lhe adiciona que é o benefício coarctado que a requalificação de tal prédio urbano, nomeadamente com a reconstrução das edificações lá existentes lhe atribuiria.
XXIII. Por seu turno, a recorrida, na hipótese não concedida de manter-se a decisão de obrigar o prédio dos recorrentes a suportar e permitir a passagem de pessoas e máquinas para o prédio rústico B, tem o beneficio e gozo moral de constranger irremediavelmente a propriedade dos recorrentes, beneficio esse intangível e sem qualquer valor económico defensável que só à recorrida aproveita, assim como tem o beneficio de que os trabalhadores e máquinas que limpam o seu prédio rústico uma vez por ano possam passar livremente no prédio dos recorrentes.
XXIV. Uma ponderação racional e atenta dos interesses em questão demonstra o manifesto desequilíbrio que o potencial exercício do direito pela recorrida tal como é peticionado e provisoriamente deferido se afigura totalmente desproporcional relativamente ao sacrifício que é exigido aos recorrentes que perderão o investimento e as utilidades e rendimentos futuros associadas a um prédio urbano.
XXV. Pelo que a decisão recorrida ao apreciar a factualidade e o enquadramento jurídico da maneira em que o fez, ou seja, impor aos recorrentes a passagem para o prédio rustico através do seu prédio urbano, incorre em abuso de direito na modalidade de desequilíbrio na medida em que o sacrífico sofrido pelos recorrentes é totalmente desproporcional em relação ao, a todos os títulos, diminuto benefício que a recorrida pode retirar dessa imposição.
XXVI. Foram violados os artigos 334.º e 570.º do Código Civil.
XXVII. Deverá, pois, a douta sentença ser revogada e substituída por outra que julgue a oposição procedente por provada com as devidas e legais consequências.
Nestes termos e nos melhores de Direito deverá a presente Apelação ser julgada totalmente procedente e, em consequência, a sentença revogada e substituída por outra que julgue a oposição procedente por provada com as devidas e legais consequências, assim se fazendo inteira e habitual
JUSTIÇA!».
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Contra-alegou a recorrida (ref.ª ...88), pugnando pela improcedência do recurso, com as devidas consequências legais.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (ref.ª ...30).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:               
– Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
– Do abuso de direito.
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III. Fundamentos

IV. Fundamentação de Facto.
1. A decisão recorrida deu (indiciariamente) como provados os seguintes factos:
A. Correu termos pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Local Cível ..., Juiz ..., processo de inventário (herança) com o n.º ...40/08.5/..., por morte dos pais da Requerente e Requerida mulher, DD e EE, casados que foram entre si sob o regime de comunhão geral de bens, que culminou com sentença homologatória da partilha transitada em julgado em 11.09.2020.
B. Das verbas que compunham a relação de bens nesse inventário figuravam vários bens imóveis, entre outros, o seguinte:
Verba 18 – Prédio rústico, denominado “Campo ...”, identificado no levantamento topográfico com a letra ..., com a área na matriz de 6.000 m21, sito no lugar ..., União de freguesias ... (...), a confrontar do norte com DD, do sul e nascente com caminho e do poente com EE, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...31 (correspondente ao ...57 da extinta freguesia ...), descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o artigo ...58. Tal verba (prédio), aí avaliada(o) e descrita(o) com valor base de 22.100,00 €, foi objeto de licitações, às quais concorreram, além de outros interessados, a Requerente e os Requeridos, tendo o referido imóvel acabado por ser adjudicado à primeira, após oferta de sucessivos lanços de 2.000,00 €, pelo valor de 42.000,00 €.
C. O prédio referido em B. está inscrito a favor da autora na Conservatória do Registo Predial.
D. No inventário referido em A., foi adjudicado aos Requeridos a “Verba Nº 21 – Prédio urbano, identificado no levantamento topográfico realizado com a letra ..., destinado a habitação, composto por casa térrea com lojas e logradouro, com a área coberta de 268 m2 e logradouro de 660 m22, sito no lugar ..., União de freguesias ... (...), a confrontar do norte com GG, do sul com HH, nascente com caminho e HH e de poente com II, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...5 (correspondente ao artigo ...0 da extinta freguesia ...), e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...14, com o valor base de € 11.600,00 e com lances de € 1.000,00, foi adjudicada à interessada BB pelo valor de € 40.000,00”.
E. Os prédios referidos em B. e D. integravam um conjunto predial mais vasto, que incluía outros, contíguos, e que, no seu todo, formavam como que uma “Quinta” ou Unidade Agrícola, (com casa principal, casa de caseiros, anexos, varandas, eiras), sendo atravessados e unidos por caminhos, que ligavam as parcelas de terreno e os prédios urbanos, permitindo o acesso, entre eles, e circulação, inclusive na via pública e desta para os mesmos.
F. O acesso do prédio descrito em B. à via pública (Estrada Municipal), e desta ao mesmo, que se situa no seu lado poente, sempre se processou a pé, por carro de bois e trator através de caminho, em terra batida, bem demarcado com extensão, senão superior, de cerca de 15 metros por 2,55 metros a 3 metros de largura, situado no lado norte do prédio referido em D., que atravessa, sentido poente/nascente, em toda a sua extensão, desembocando na extrema sudoeste do prédio referido em B..
G. Tal caminho, junto à estrada/via, está à cota de nível desta e, no sentido poente nascente, apresentava um ligeiro declive, ascendente, atingindo, em rampa, uma altura de cerca de 1,30metros.
H. No limite poente do prédio referido em B. existia (à data das licitações no inventário) uma cancela, com cerca de 1,20 metros de altura, pela qual se processa, desde a sua extrema nascente, o acesso direto ao prédio referido em B..
I. Desde há mais de 20, 30 e 50 anos que a Requerente, por si e antepossuidores, têm utilizado o caminho referido em G. para passagem, a pé e de carro de bois/trator para acesso ao prédio referido em B., na convicção de exercer um direito de passagem, o que vem fazendo, sem oposição de ninguém, inclusive, e até às condutas supra referidas, dos Requeridos, continuamente, à vista de toda a gente.
J. O caminho referido em F. constitui a única passagem de carro para o prédio referido em B..
K. Algum tempo decorrido após a adjudicação ocorrida no inventário, os Requeridos colocaram uma cancela de ferro e arame, com cerca de 2,55 metros de largura por 2,00 metros de altura, na extrema poente do prédio referido em E. e junto à via pública que não impediu a requerente, em absoluto, de aceder pela mesma ao caminho e por este ao prédio referido em B.
L. Até que os Requeridos, por si e/ou por intermédio de outrem, começaram a colocar outras barreiras e entraves à passagem por esse prédio para o prédio referido em B., materializando, inclusive, com colocação de arames, que a Requerente vem abrindo, porém, os Requeridos, principalmente, o Requerido marido, voltam a repor.
M. Os Requeridos colocaram um cadeado, mantendo, por vezes, o dito portão fechado à chave, sem que facultassem à requerente uma chave.
N. No dia 17 do passado mês de Abril, com recurso a retroescavadora, os requeridos escavaram o caminho, no mesmo traçado e largura original, em toda a extensão do prédio referido em F., sentido poente/nascente, ao ponto do seu traçado e cota ficar, todo ele, ao nível da cota da estrada municipal, pelo que, na extrema sudoeste do prédio referido em B., onde está implantada a cancela referida em H., passou a existir um fosso superior a 1 metro de altura.
O. Com o comportamento referido em N., os Requeridos impediram, e em absoluto, o acesso e passagem ao prédio referido em B., pelo caminho, não só de pé como também, em maior grau, de carro, inclusive com trator agrícola, impedindo a requerente, familiares e outros de gozar o seu prédio na sua plenitude, como entrar e sair, proceder ao cultivo, a operações de transporte, de limpeza, bem assim carga e descarga de materiais.
P. Os comportamentos dos requeridos têm causado à requerente incómodos, inquietação, nervosismo, perturbação do repouso, perda de sono, desassossego, constante sobressalto, mal-estar que se vai prolongar.
Q. A poente do prédio identificado em B. dos factos provados localiza-se um prédio urbano, em que está edificada a casa de morada da requerente, vedada a toda a volta, sendo a vedação um muro na confrontação com a via pública e vedação em rede na confrontação com o prédio identificado em B. dos factos provados numa extensão de mais de 30 metros, em que pode ver-se uma cancela metálica pedonal, junto ao topo norte da propriedade.
R. Por ocasião dos factos a que se alude em L. a N. dos factos provados, e para possibilitar o acesso ao prédio descrito em B., a requerente fez a passagem pela sua propriedade, o que pressupôs a remoção da vedação, a passagem por zona com árvores de fruto e arbustos e o contorno do poço, para o acesso de trator.
S. A requerente, desde 2019 até à presente data, pelo menos procede à limpeza do prédio identificado em B. duas vezes por ano.
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2. E deu como não (sumariamente) provados os seguintes factos, com relevo para a decisão da causa:
1. O caminho referido em F. constitui passagem de veículos ligeiros e pesados.
2. Que o caminho a que se alude em F só tenha sido usado apenas e somente aquando da integração do prédio a que se alude em D. na herança de DD e EE.
3. Que desde a partilha a que se alude em A. a requerente não mais tenha acedido ao prédio identificado em B. através do prédio identificado em D., salvo no dia 15/03/2023, e que jamais haja passado ou mandado passar carros ou máquinas para o prédio B. através do prédio identificado em D..
4. Que a requerente tenha renunciado a qualquer tipo de passagem para o prédio identificado em B. pelo identificado em D.
5. Que a cancela existente no prédio a que se alude em B., imediatamente após o caminho identificado em F. se encontre fechada e sem utilização pela requerente.
6. Que a requerente não tenha qualquer prejuízo patrimonial ou não patrimonial pela privação do caminho identificado em F.
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V. Fundamentação de direito.

1. Da impugnação da decisão proferida da matéria de facto.
1.1. Em sede de recurso, os apelantes/requeridos impugnaram a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente o recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o (triplo) ónus de impugnação a seu cargo, previsto no artigo 640º do CPC, o qual dispõe que:
1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.».
Aplicando tais critérios ao caso constata-se que os recorrentes indicam quais os factos que pretendem que sejam decididos de modo diverso, inferindo-se por contraponto a redação que deve ser dada quanto à factualidade que entendem estar mal julgada, como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que, na sua ótica, o impõe(m), incluindo, no que se refere à prova gravada em que fazem assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua concreta ou exacta identificação – quanto aos pontos I e J) dos factos provados e ponto 6 dos factos não provados por referência aos depoimentos das testemunhas FF e GG –, procedendo (inclusivamente) à respetiva transcrição de trechos de tais depoimentos testemunhais que consideram relevantes para o efeito, julgando-se, assim, satisfeito o requisito da sua localização (quanto ao enunciado meio probatório), pelo que – contrariamente ao propugnado pela recorrida – podemos concluir que cumpriram suficientemente os ónus de impugnação estabelecidos no citado art. 640º.  
Acresce que, segundo a orientação predominante do STJ, entende-se que as conclusões não têm de reproduzir todos os elementos do corpo das alegações; mais concretamente, a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar, formalmente, das conclusões recursórias, bastando incluí-las no corpo alegatório, diversamente do que sucede, por razões de objetividade e certeza, com os concretos pontos de facto impugnados[2] [3].
Acresce ainda que a impugnação de alguns dos pontos de facto não se baseia exclusivamente na prova gravada, mas igualmente em deficiente valoração da prova documental, pelo que, nessa parte, o requisito da exata localização das passagens deixa de revestir qualquer relevo.
Mostrando-se, pois, satisfatória e suficientemente cumpridos os mencionados ónus de impugnação previstos no citado art. 640º do CPC – pois que os recorrentes indicaram concretamente os pontos determinados da matéria de facto que entendem incorretamente julgados, os concretos meios probatórios que alicerçam esse juízo, com a indicação, quanto à prova gravada, dos elementos que habilitam a localização dos trechos de tais depoimentos – inexiste fundamento para a rejeição do recurso da impugnação da decisão da matéria de facto.
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1.2. Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, preceitua o art. 662.º, n.º 1, do CPC, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Aí se abrangem, naturalmente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente.
Por referência às suas conclusões, extrai-se que os recorrentes pretendem:
i) - A alteração da resposta positiva para negativa dos pontos I, J, O e P dos factos provados 4;
ii) - Subsidiariamente, a alteração de redação dos seguintes factos: ponto J [onde se lê “J. O caminho referido em F. constitui a única passagem de carro para o prédio referido em B”, deverá ler-se “J. O acesso de carro para o prédio B. deu-se pelo prédio F. e pelo da requerente”];
iii) - Eliminação do ponto 6 dos factos não provados (em virtude de se afigurar contraditório com o ponto P dos factos provados).
iv) - O aditamento ao acervo de factos provados da seguinte facticidade:
1. O prédio dominante- prédio B- confronta a poente com o prédio urbano que constitui sua habitação adquirida no inventário por dissolução conjugal.
2. O prédio identificado no levantamento topográfico com a letra B é da propriedade da requerente por via da adjudicação no inventário das heranças abertas por óbito do Sr. DD e D. EE.
3. O prédio urbano situado a poente do prédio B, com área de 1238 m2, que lhe é contiguo sem qualquer obstáculo natural e por cerca de 30 a 50 metros de comprimento, é de sua propriedade.
4. O prédio dos requeridos designado no levantamento topográfico pela letra E tem um pequeno logradouro de 86 m2,
5. Esse prédio (urbano) doado à requerente foi “destacado” do prédio B, pois como se refere na escritura de doação que os progenitores “são donos e legítimos possuidores do prédio denominado Campo ..., sito no lugar ..., da dita freguesia ..., o qual faz parte do descrito na conservatória sob o número ... e está inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., com o valor matricial de vinte e sete mil setecentos oitenta escudos.
Que pela presente escritura e do referido prédio doam à segunda outorgante, sua filha, uma parcela de terreno com a área de mil e duzentos metros quadrados, já demarcada e destinada a construção urbana, a qual fica a confrontar do poente com caminho público, do norte com DD e dos restantes lados com eles doadores, medindo do norte e do sul trinta metros e do nascente e do poente quarenta metros”.
Antes de iniciarmos a nossa análise sobre se a discussão probatória fundamentadora da decisão corresponde, ou não, à prova realmente obtida, importa deixar consignadas duas breves considerações:
i) - Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à audição integral da gravação dos depoimentos testemunhais invocados na apelação e dos que serviram de fundamento à motivação da sentença recorrida, não nos tendo restringido aos trechos parcelares e/ou truncados (de tais depoimentos) invocados na apelação como justificadores da impugnação da matéria de facto; para além disso, foram analisados todos os documentos carreados aos autos.
ii) - No caso vertente, após a audição integral de tais depoimentos prestados e análise de toda a prova documental produzida, desde já podemos adiantar ser de sufragar, na íntegra, a valoração/apreciação explicitada pelo Tribunal recorrido, o qual – contrariamente ao propugnado pelos recorrentes –, em obediência ao estatuído no art. 607º, n.º 4 do CPC, fez uma análise crítica objetiva, articulada e racional da globalidade da prova produzida, que se mostra condizente com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, logrando alcançar nos termos do n.º 5 do citado normativo uma convicção quanto aos factos em discussão que se nos afigura adequada, lógica e plausível, em termos que (como melhor explicitaremos) nos merece adesão praticamente total.
*
1.3. Cumpre, agora sim, analisar das razões de discordância invocadas pelos apelantes e se as mesmas se apresentam de molde a alterar a facticidade impugnada, nos termos por si invocados.
No que concerne à prova testemunhal produzida – após a sua audição integral –, é de concluir que a súmula feita pela Mm.ª Juíza “a quo” na fundamentação da decisão de facto reproduz, com fidelidade, objetividade e rigor, o teor e o sentido dos depoimentos prestados.
Daí que, na enunciação que segue, tomaremos como guia de orientação a mencionada explicitação, sem embargo da introdução de ligeiras concretizações sempre que tal se justificar. 
A testemunha FF, lavrador, que pontualmente trabalha para a requerente e os requeridos, afirmou ter já trabalhado no terreno sito por trás da casa da requerente, concretamente no campo ao lado da casa da requerente (ou seja, no prédio a que se alude em B dos factos provados), o que faz há cerca de 15 anos, e que passa com o tractor, quer pelo prédio da requerente, quer pelo portão debaixo, onde tem uma “cancelinha”, esclarecendo que só ia pela casa da requerente (prédio aludido em Q dos factos provados) se a “cancelita” estivesse fechada com aloquete (referindo que chegou a pedir a chave ao requerido marido, que não lha facultou), o que só ultimamente começou a acontecer; explicou a “preferência” pela cancela de baixo porque a passagem pelo prédio da requerente pressupunha a remoção da rede que sempre existiu a separar esse prédio do campo atrás.
Segundo se recorda, no prédio referido no ponto D) sempre existiram dois portões (um junto à estrada e outro colocado no topo da passagem). Posteriormente, atestou que o portão junto à estrada só ali foi colocado recentemente, pois o que sempre existiu é o colocado junto à entrada do campo referido no ponto B.
Quando passou pelo prédio/casa da requerente (o que fez por duas ou três vezes), fê-lo ao acaso (“por onde calha”), inclusive por cima do jardim, pois não tem trilho (“não há caminho certo para passar”), sendo que numa das ocasiões deslocou um bocado o poço, que depois teve de repor.
Sempre conheceu o acesso ao campo pelo caminho de baixo – o acesso direto ao terreno/campo referido no ponto B era pelo prédio do sr. BB (mencionado em D); a passagem preferencial era por baixo e se não conseguisse passar por baixo é que ia por cima – e só recentemente se viu impedido de passar por aí, porque retiraram a terra que fazia a rampa. Nos últimos 3 meses não foi lá limpar o terreno.
Por sua vez, a testemunha GG – primo e vizinho da requerente e primo da requerida mulher, que foi reinquirido –, afirmou ter trabalhado o mesmo campo (referido no ponto B) com o trator, durante 12 anos, quando a requerente (e o marido) estava no ..., a pedido deles, embora na altura o campo ainda pertencesse aos pais dela, tendo sido adjudicado à requerente nas partilhas.
Embora referindo que chegou a passar pelo prédio da requerente (mencionado em Q), fê-lo com autorização desta.
Ao lado da casa “dos romenos” (assim chamada por ali terem vivido alguns anos cidadãos romenos), havia a entrada para o campo e, em rigor, para toda a propriedade dos pais da requerente e da requerida mulher, sendo que por cima (ou seja, através da casa da requerente) estava sempre tudo fechado. Daí que para aceder ao campo passasse sempre por baixo na parte dos romenos, sendo que a entrada para os Romenos era única entrada que havia.
Após a partilha viu o tratorista passar na casa da requerente, dizendo ser possível desde que se tire o capoeiro das galinhas.
Por fim, depôs a testemunha JJ, filho dos requeridos.
Reproduzindo a motivação da sentença recorrida, o referido interveniente acidental afirmou «que trabalhou o campo correspondente ao prédio descrito em B até 2008, onde se cultivava batatas e milho e que passava para lá de trator, através da passagem em causa nos presentes autos (a passagem a pé seria feita por umas escadas em prédio hoje dos pais), explicando que, tendo nascido em 1986, sempre conheceu a casa da tia e que por ali não passava, porque não havia autorização».
Afirmou «que depois de 2008 não mais ali passou, porque os tios puseram um aloquete na cancela de cima (…), sendo a limpeza do prédio confiada à testemunha FF, que, tal como a testemunha GG, passaria de trator.
De acordo com a testemunha, não mais usou a passagem e, do que sabe, estava “ao bravo”, com árvores enormes a impedir a passagem.
Referiu ter frequentado a casa da tia, ora requerente, e inexistir vedação alguma entre a casa e o campo, ainda que reafirmasse que desde a morte do avô, em 1999 passou exclusivamente por baixo, quer porque a tia passava o ano no ... e a sua casa estava fechada, quer porque sujava a calçada da casa da tia.
De acordo com a testemunha, até que os pais limparam o local porque passava antes, a tia não quis saber da passagem para nada, limpando os seus prédios sem a utilizar.
Reafirma que, entre 2008 e a limpeza que foi ordenada pelos seus pais, o caminho não era visível.
Ou seja, a testemunha JJ, ainda que refira as condições em que o acesso ao prédio em causa nos autos se fez até 2008 – e claramente referiu que se fazia pela passagem reclamada pela requerente – pretendeu fazer vingar de que a passagem estava intransitável e que as pessoas que reconhece que faziam a limpeza, passavam pelo prédio da requerente, contudo, estas duas pessoas esclareceram que, em rigor, utilizavam o caminho reclamado pela requerente e que só o não fizeram quando se viram impedidos de passar, seja pela colocação de aloquete na cancela que os requeridos ali colocaram, quer pela remoção das terras, não podendo as imagens do Google Earth juntas aos autos infirmar tal, até porque não esclarecedoras, assinalando-se, até, que a segunda fotografia de fls. 16-36 do relatório pericial junto pelos requeridos (relatório de 03/07/2017, seja, muito anterior à partilha que teria levado os seus pais a proceder à limpeza), desmente absolutamente o por si afirmado».
A estes meios de prova importa ter ainda presente a inspeção judicial ao local, sendo de sobrelevar os seguintes elementos exarados – sem contestação/impugnação – no respetivo auto (ref.ªs ...10 e ...30):
«(…)
Chegados à rua da ..., o tribunal adentrou na parcela em discussão nos autos, que está desimpedida, junto à rua, percorrendo-a até ao final, onde está uma cancela fechada, com cadeado, cancela que não é possível transpor e dá acesso ao campo da requerente, a favor do qual reclama passagem.
Quanto a este e daquilo que foi permitido perceber, está vedado a toda a volta, inclusive a área da casa, por rede sustentada em esteios de pedra ou cimento.
Aproximando-se o tribunal do portão carral, da casa da requerente, constata-se que o mesmo, dá acesso à garagem à esquerda da casa, e que entre o volume da garagem e a casa, percebe-se um passeio pedonal, a circundar a casa, com uma rede ao fundo a separar do campo, havendo de permeio, uma zona de terreno, com árvores de fruto arbustos e vasos.
Tendo tido visibilidade para a parte de trás da casa da requerente a partir de um prédio vizinho a que foi permitido o acesso, constata-se que a mesma está rodeada, a toda a volta, por uma vedação em rede, existindo na mesma, junto ao topo norte da propriedade, uma cancela metálica e pedonal, para além da qual, está uma parte de terreno vedada, afeta à criação de galinhas. Está também nessa zona o poço e árvores de fruto, existindo, por um lado, vários obstáculos à passagem carral e inexistindo, por outro lado, qualquer sinal de uma passagem habitual por ali».
Pois bem, no tocante à facticidade objeto da al. I dos factos provados, os recorrentes, na apelação, não deixam de reconhecer que, durante vários anos, designadamente desde 1980, que os pais da recorrida e da recorrente mulher usavam essa parcela de terreno [aludindo ao caminho referido em F e G] para alcançar o prédio descrito em B. Contrapõem, porém, «que tal sucedeu num contexto muito particular, nomeadamente no que diz respeito à doação do prédio à recorrida, em que esse prédio doado era sim o principal meio de acesso ao campo de cultivo corporizado no prédio B» e que «[f]oi apenas em função da doação da parcela de 1200 m2 à recorrida e de molde a não levantar questões incomodas entre familiares que os doadores e proprietários daqueles prédios começaram entrar para o campo de cultivo através dos prédio urbano que os recorrentes viriam a adquirir em sede de inventário judicial».
Ora, esta alegação (contraposição) não se mostra confirmada pela prova produzida nos autos, sendo certo que os recorrentes não indicam qualquer meio probatório que ateste essa facticidade.
Por outro lado, contrariamente ao propugnado pelos recorrentes, o Tribunal recorrido não ignorou de que o acesso ao prédio aludido em B também se fez através do prédio da requerente aludido no ponto Q) dos factos provados.
Simplesmente, ao invés do que os impugnantes pretendem fazer crer, da prova produzida resulta que a passagem por esse prédio era pontual e esporádica, posto que a passagem normal, usual e preferencial processava-se pelo prédio identificado em D), como referido pelas testemunhas FF e GG, os quais revelaram ter conhecimento directo dos factos por já terem agricultado (trabalhado) o campo pertença da recorrida, tendo explicitado o modo como, ao longo dos anos, era efetivado o acesso – a pé e de trator – a tal terreno rústico.
Ao nível da apreciação da impugnação da matéria de facto afigura-se-nos totalmente irrelevante aferir se o prédio da recorrida (descrito em Q) esteve/está também onerado com uma servidão de passagem para com o prédio dominante, posto que isso é (eventual) questão a indagar ulteriormente, a jusante, aquando da subsunção jurídica.
Nesta fase, importa apenas apreciar se os meios de prova produzidos impunham, ou não, uma decisão diversa no tocante ao apuramento da matéria de facto, sendo irrelevantes tais considerações jurídicas tecidas pelos recorrentes.
E não é pelo facto de a passagem para o prédio aludido em B ter sido feita algumas vezes através do prédio onde a requerente tem edificada a sua casa de morada de família que tal determina necessariamente a demonstração dos factos que os recorrentes pretendem ver provados.
Como já se disse, o acesso ao prédio referido em B era feito preferencialmente pelo caminho referido em F e G, sendo que as caraterísticas demonstradas quanto a essa concreta passagem/circulação – passagem a pé e de carro de bois/trator, na convicção de exercer um direito de passagem, sem oposição de ninguém, continuamente, à vista de toda a gente – apenas em relação a esse caminho se mostram feitas, e não quanto ao prédio referido na al. Q.
Acresce que, quanto a este prédio, a existência, por um lado, de vários obstáculos à passagem carral e a inexistência, por outro lado, de qualquer sinal de uma passagem habitual por ali, foi confirmada pela Mm.ª Juíza “a quo” aquando da inspeção judicial, conforme resulta do respetivo auto, sendo de sobrelevar aqui o princípio da imediação na apreciação direta da configuração actual dos prédios. E ainda que a colocação do galinheiro possa ser temporalmente recente – segundo o depoimento da testemunha GG terá sido colocado após as partilhas –, a verdade é que não resultou da prova produzida que as demais caraterísticas morfológicas desse prédio tenham sido supervenientemente objeto de alteração ou intervenção, pelo que a consideração aduzida no auto de inspecção não se mostra infirmada.
Termos em que, corroborando a fundamentação da decisão recorrida, julga-se improcedente a impugnação deduzida quanto aos pontos I e J dos factos provados.
No tocante ao ponto O) dos factos provados, a impugnação deduzida emerge do alegado erro do Tribunal recorrido na apreciação e julgamento dos antecedentes pontos da matéria de facto, que – na alegação dos recorrentes – não levou em linha de conta que o acesso ao prédio B sempre se processou em parte pelo próprio prédio da recorrida. 
Esse pressuposto tem-se por inverificado, pois a impugnação de tais pontos fácticos foi julgada improcedente.
Sempre se dirá que a prova produzida aponta indiciariamente no sentido de que o acesso do prédio referido em B à via pública (Estrada Municipal), e desta ao mesmo, sempre se processou a pé, por carro de bois e trator, através de caminho, em terra batida, bem demarcado com extensão, senão superior, de cerca de 15 metros por 2,55 metros a 3 metros de largura, situado no lado norte do prédio referido em D., que atravessa, sentido poente/nascente, em toda a sua extensão, desembocando na extrema sudoeste do prédio referido em B (cfr. ponto F dos factos provados, que não foi impugnado). Acrescentar-se-á que essa era a passagem preferencial, visto que o acesso através do prédio referido em Q revestia cariz pontual e esporádico, sendo ainda de atender ao contexto particular mencionado no ponto R dos factos provados (em que, na decorrência do esbulho perpetrado, e para possibilitar o acesso ao prédio descrito em B., a requerente fez a passagem pela sua propriedade, o que pressupôs a remoção da vedação, a passagem por zona com árvores de fruto e arbustos e o contorno do poço, para o acesso de trator).
Reitera-se que a invocação do instituto do abuso de direito em sede de impugnação da decisão da matéria de facto nenhum relevo assume, visto corporizar uma questão de direito a ser dirimida, ulteriormente, em sede de impugnação da matéria de direito.
Aquando do julgamento da matéria de facto, o tribunal tem apenas de discriminar os factos materiais julgados provados e não provados, motivando a sua convicção, pois que só ulteriormente procederá à subsunção destes factos à realidade normativa vigente (fundamentação de direito). A fundamentação de direito situa-se a jusante do apuramento da matéria de facto, sendo que somente em função da delimitação da facticidade apurada é que fará sentido subsumi-los ao direito aplicável, efectuando a sua qualificação e enquadramento jurídico, bem como aplicando as normas jurídicas correspondentes, com vista a proferir a decisão final da causa.
Pelo exposto, é de manter inalterada a resposta ao ponto O dos factos provados.
A facticidade objeto do ponto P dos factos provados foi dada como (sumariamente) apurada na decisão proferida sem prévio contraditório, tendo-se aí explicitado que se revelaram «como perfeitamente verosímeis os constrangimentos sofridos pela requerente, nos termos referidos em P., por serem consentâneos com a atuação dos requeridos, anotando-se que entre a requerente e a requerida existe um vínculo de sangue».
Pois bem, afora considerações genéricas e conclusivas como a de que «a postura da recorrida funda-se a todos os títulos numa conduta abusiva, utilizando um direito parcialmente existente de forma contrária aos limites impostos pelos usos, costumes e boa-fé acesso do prédio descrito em B. que se situa no seu lado poente» – pura questão de direito, como se disse –, a de «que o seu prédio urbano constituía também um modo de passagem para o prédio B adquirido pela recorrida» – já anteriormente contextualizado, visto a passagem preferencial ser exercida pelo prédio descrito em D) e não em moldes similares pelo prédio referido em Q –, certo é que os recorrentes não indicam concretos meios e elementos probatórios capazes de habilitar este tribunal a formar uma convicção distinta quanto à concreta facticidade impugnada.
Resta, pois, julgar improcedente a impugnação do ponto P) dos factos provados.
Consequentemente, e sob pena de contradição geradora da nulidade deste acórdão (art. 615º, n.º 1, al. c) “ex vi” do art. 666º, n.º 1, ambos do CPC), é de manter inalterada a resposta ao ponto 6 dos factos não provados.
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1.4. – Dos factos a aditar ao elenco dos factos provados.
No tocante ao ponto 1 - o prédio dominante- prédio B - confronta a poente com o prédio urbano que constitui sua habitação adquirida no inventário por dissolução conjugal –, dir-se-á que o segmento “prédio dominante” corresponde a um conceito de direito (art. 1543º do Cód. Civil), pelo que resta excluída a sua inclusão na materialidade fáctica (provada e não provada). Estando em discussão nos autos saber se o prédio da recorrida beneficia de uma servidão de passagem sobre o prédio dos recorrentes, relevante para efeitos da verificação do requisito da posse, a menção a “prédio dominante” não poderia ser dada como provada, na medida em que encerra em si a resolução dum concreto requisito legal ou normativo, que é objecto da providência cautelar requerida. Essa alegação comporta um juízo de valor de natureza conclusivo e é portadora de valoração jurídica que permita reportá-la ao thema decidendum, contendo a resolução da questão controvertida, pelo que se conclui pela inviabilidade da inserção desse ponto na matéria de facto provada.
No tocante à demais facticidade objeto do referido ponto impugnado, releva a materialidade que consta do ponto Q dos factos provados, pelo que, a fim de obviar a duplicações fácticas desnecessárias, é de rejeitar o propugnado aditamento.
Quanto ao ponto 2, a matéria que os recorrentes pretendem ver aditada mostra-se integralmente refletida e abrangida nos pontos A e B dos factos provados.
No que concerne ao ponto 3, releva a facticidade objeto do ponto Q dos factos provados, do qual resultam as caraterísticas do prédio urbano situado a poente do prédio B, bem como o modo como o mesmo está vedado, nomeadamente na confrontação entre esses dois prédios.
A matéria do ponto 4 extrai-se do relatório pericial elaborado no âmbito do processo n.º 6840/08...., cuja cópia consta de fls. 74 v.º a 93, por referência à aí indicada verba 21.
Nestes termos, ao rol dos factos provados adita-se um ponto com a seguinte redação (valendo como item T):
T. O prédio descrito em D tem um logradouro de 86 m2.
Quanto ao ponto 5, a sua materialidade resulta da escritura de doação, cuja cópia consta de fls.  93 v.º a 94 v.º.
Assim, adita-se à matéria de facto provada um ponto, com o item U, com a seguinte redação:
U. Por escritura pública de doação outorgada em 26/11/1980, os progenitores da recorrida declararam que “são donos e legítimos possuidores do prédio denominado Campo ..., sito no lugar ..., da dita freguesia ..., o qual faz parte do descrito na conservatória sob o número ... e está inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., com o valor matricial de vinte e sete mil setecentos oitenta escudos.
Que pela presente escritura e do referido prédio doam à segunda outorgante, sua filha, uma parcela de terreno com a área de mil e duzentos metros quadrados, já demarcada e destinada a construção urbana, a qual fica a confrontar do poente com caminho público, do norte com DD e dos restantes lados com eles doadores, medindo do norte e do sul trinta metros e do nascente e do poente quarenta metros”.
Procede, assim, parcialmente a impugnação da decisão da matéria de facto[4].
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2. – Enquadramento jurídico.
2.1. – Do abuso de direito.
Decretada a providência cautelar de restituição provisoria da posse sem audiência prévia dos requeridos, podem estes defender-se contra tal providência, por duas vias, em alternativa (art. 372° do CPC):
- recurso do despacho que tiver decretado a providência, quando entendam que, face aos elementos apurados, não devia ter sido decretada;
- oposição, quando pretendam alegar factos e/ou produzir meios de prova susceptíveis de afastar os fundamentos da providência ou reduzir o seu âmbito e que o tribunal não levou em conta ao decretar a restituição provisoria da posse.
Pela via da oposição à providência cautelar, os requeridos procuram alterar a decisão anteriormente proferida pelo julgador, carreando para os autos elementos factuais e/ou probatórios que eram desconhecidos do tribunal aquando do acolhimento da providência. Assim, deverão os requeridos carrear para os autos todos os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que foi sumariamente invocado pela requerente e que permitam infirmar os fundamentos em que residiu a decisão de decretamento da providência[5].
Como refere Abrantes Geraldes[6], "não se trata de facultar ao mesmo tribunal a reapreciação da decisão, a partir dos mesmos elementos, mas de conferir a possibilidade de revisão da convicção anteriormente formada, através de novos meios de prova ou de novos factos com que o tribunal não pôde contar".
Por isso se diz que os indícios trazidos pelo requerente do procedimento cautelar podem ser afastados por indícios de sinal contrário carreados pelo requerido[7]. E é a ponderação do conjunto da prova indiciária que permite ao julgador manter a providência decretada, afastar os seus fundamentos ou determinar a sua redução, constituindo esta nova decisão complemento e parte integrante da inicialmente proferida, como vem estabelecido no artigo 372°, n.º 3, do CPC. 
Significa isto que vai ajustar-se à decisão anterior, reforçando-a, anulando-a ou introduzindo-lhe modificações (atenuando-a).
i) Reforçará (manterá) a decisão anterior se os factos novos ou as provas oferecidas forem insuficientes para afastar os motivos em que se baseou a decisão anterior, caso em que a providência se manterá. 
ii) Anulará (revogará) a decisão se os novos elementos de facto ou as provas oferecidas produzirem uma convicção oposta à que presidiu ao decretamento da restituição provisória da posse (inexistência de alguns dos requisitos dessa providência especificada ou se concluir por uma atuação abusiva do direito por parte da requerente).
iii) Pode também o tribunal atenuar os efeitos da medida decretada, com redução da providência aos limites necessários e suficientes para afastar a situação de periculum in mora verificada nos autos e ora reapreciada (cfr. art. 372º, nºs. 1, al. b) e 3, do CPC).
No caso em apreço, os requeridos deduziram oposição alegando factos e provas tendentes a demonstrar a extinção da servidão de passagem por desnecessidade, não uso e renúncia, bem como a actuação abusiva do exercício do direito (por parte da requerente).
Após produção da respectiva prova, foi julgada improcedente a oposição apresentada, com a consequente manutenção da providência (de restituição provisoria da posse) decretada.
Ou seja, o tribunal “a quo” enveredou pela primeira hipótese supra enunciada, ao concluir pela inalteração da verificação dos requisitos do decretamento da providência cautelar de restituição provisória da posse (a posse, o esbulho e a violência) e pela improcedência da oposição, com a consequente manutenção da providência decretada nos autos.
*
2.2. É pacífico que a restituição provisória de posse tem lugar quando haja posse, seguida de esbulho, com violência; no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência (cf. arts. 377º e 378º, ambos do CPC).
O possuidor que for perturbado ou esbulhado pode manter-se ou restituir-se por sua própria força e autoridade, nos termos do artigo 336º, ou recorrer ao tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse (art. 1277º do Cód. Civil - CC).
O possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador (art. 1279º do CC).
A restituição provisória de posse tem natureza antecipatória, assegurando a satisfação provisória do possuidor e deverá ter lugar quando o juiz se convença da séria probabilidade da verificação dos requisitos da posse e do esbulho violento (cf. arts. 368º, n.º 1 e 378º do CPC), dependendo, pois, da verificação cumulativa de três requisitos: a posse, o esbulho e a violência.
O art. 1251 do Cód. Civil define a posse como o "(...) poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou outro direito real”.
Esbulho significa desapossamento, privação de posse, isto é, desapossamento (total ou Parcial) do possuidor de uma coisa, privando-o do poder de facto sobre a mesma[8].
O esbulho consiste, pois, na privação da posse de outrem contra a sua vontade. Neste sentido, o esbulho significa usurpação e implica aquilo que se chama o «animus spoliandi» - o intuito de despojar ou de espoliar – porque se não houver «animus» não há usurpação.
A violência está definida no art. 1261º, n.º 2, do Cód. Civil, que dispõe:
Considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de coacção moral nos termos do art. 255º”.
Embora a violência só possa recair sobre pessoas, há que entender que ela também pode ser produzida de do indirecto, como sucede, por exemplo, quando, através da colocação de um cadeado numa porta, se impede o acesso a uma habitação.
Na decisão recorrida, a Exma Juíza “a quo” explicitou a seguinte linha argumentativa:
i) - Além de ter saído corroborada a versão da requerente (nos termos em que, indiciariamente, resultaram assentes na decisão que decretou a medida cautelar sem prévia audição dos requeridos), prova alguma foi feita de que a requerente tenha renunciado ao direito de passagem ou que tenha deixado de usar a passagem, acedendo ao seu prédio pelo seu prédio urbano, outrossim resultando indiciado que a passagem só se processou pelo seu prédio urbano quando os requeridos impediram a utilização da passagem.
ii) - O argumento da desnecessidade não pode colher por estar em causa servidão constituída por destinação do pai de família, porquanto, de acordo com o art. 1569º, n.ºs 2 e 3, do CC, a contrario sensu, a desnecessidade não é fundamento de extinção; acresce que nem sequer se pode falar em desnecessidade, pois estão em causa prédios distintos e o identificado em B. não tem acesso direto à via pública, pelo que tal acesso terá de se processar por outro prédio; impor, sem mais, a um prédio que não estava onerado e que passaria a estar, uma servidão de passagem, pelo facto de, presentemente, estar reunido na mesma pessoa, não configura desnecessidade, mas, sim, alteração da servidão.
iii) - O argumento da confusão ou reunião também não pode colher, porquanto a extinção da servidão opera pela reunião dos prédios dominante e serviente na mesma pessoa (art. 1569º, n.º 1, al. a), do CC); no caso, a requerente não é a proprietária do prédio identificado em D (o serviente), antes o sendo os requeridos, pelo que inexiste a aludida reunião.
iv) - Não se mostra comprovada uma situação de abuso de direito – menos ainda em sede cautelar –, pois que não se vê como possa configurar uso reprovável de um direito que visa acautelar a manutenção do acesso a um prédio nos exactos termos em que vinha sendo feito aquando da aquisição, quando nada foi acordado em sentido contrário.
v) - Os factos consubstanciadores da posse, do esbulho e da violência mantêm-se inalterados e até densificados.
Insurgem-se os recorrentes com o facto de não ter sido avaliado e ponderado o total desequilíbrio dos interesses em questão no caso vertente.
Dizem, para tanto, que «uma ponderação equilibrada e equitativa à luz do bom senso, do significado económico dos bens e direitos em confronto e, sobretudo, da boa-fé, deverá contemplar se os recorrentes deverão ser obrigados a suportar uma servidão de passagem que se afigura de cariz voluptuário e caprichoso para a recorrida, a qual, em circunstâncias de algum respeito e bom senso, jamais imporia aos recorrentes».
Acrescentam que, com a decisão recorrida, a qual é de cariz provisório mas amplamente penalizador, os recorrentes veem um investimento realizado num prédio urbano totalmente desvalorizado, ao mesmo tempo que não fosse esse dano ou prejuízo outro se lhe adiciona que é o benefício coarctado que a requalificação de tal prédio urbano, nomeadamente com a reconstrução das edificações lá existentes lhe atribuiria.
Por seu turno, a recorrida, na hipótese «de manter-se a decisão de obrigar o prédio dos recorrentes a suportar e permitir a passagem de pessoas e máquinas para o prédio rústico B, tem o beneficio e gozo moral de constranger irremediavelmente a propriedade dos recorrentes, beneficio esse intangível e sem qualquer valor económico defensável que só à recorrida aproveita, assim como tem o beneficio de que os trabalhadores e máquinas que limpam o seu prédio rústico uma vez por ano possam passar livremente no prédio dos recorrentes».
«Uma ponderação racional e atenta dos interesses em questão demonstra o manifesto desequilíbrio que o potencial exercício do direito pela recorrida tal como é peticionado e provisoriamente deferido se afigura totalmente desproporcional relativamente ao sacrifício que é exigido aos recorrentes que perderão o investimento e as utilidades e rendimentos futuros associadas a um prédio urbano».
A «decisão recorrida ao apreciar a factualidade» e ao «impor aos recorrentes a passagem para o prédio rustico através do seu prédio urbano, incorre em abuso de direito na modalidade de desequilíbrio na medida em que o sacrífico sofrido pelos recorrentes é totalmente desproporcional em relação ao, a todos os títulos, diminuto benefício que a recorrida pode retirar dessa imposição».
Delineada a argumentação expendida pelos recorrentes, evidencia-se que, em sede de apelação, os mesmos não impugnam o decidido no tocante à inviabilidade da extinção da servidão por desnecessidade, não uso e renúncia, circunscrevendo a sua divergência ao decidido quanto ao abuso de direito.
Anote-se que, tendo delineado a oposição sob a égide do abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium”, os recorrentes vêm agora, em sede de apelação, invocar o abuso de direito não naquela modalidade, mas sim na de desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
Vejamos.
Preceitua o art. 334º do Cód. Civil que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Como ensina o Prof. Almeida Costa[9], o princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas situações particularmente clamorosas, às consequências da rígida estrutura das normas legais.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela[10], “[e]xige-se que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimaram, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos "exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (…)» e «Vaz Serra refere-se, igualmente, à «clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante»”.
O abuso de direito pressupõe logicamente que o direito existe, embora o seu titular se exceda no exercício dos seus poderes.
A fórmula adotada no actual Código Civil não se delimita tão só ao acto de emulação, entendido como o exercício de um direito sem utilidade própria e só para prejudicar outrem. Numa visão bem mais abrangente e ampla, o citado preceito normativo abrange o exercício de qualquer direito por forma anormal, quanto à sua intensidade ou à sua execução, de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiro e a criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular, e as consequências que outros têm de suportar[11].
Segundo o legislador, a determinação da legitimidade ou ilegitimidade do exercício do direito, ou seja, da existência ou não de abuso do direito, afere-se a partir de três conceitos: a boa fé, os bons costumes e o fim social ou económico do direito.
Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade.
Pelo que respeita, porém, ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei[12]. Se a lei consagra o direito para realizar um concreto interesse, o direito não pode ser exercido para satisfazer um interesse diferente pelo seu titular.
Como salienta Menezes Cordeiro[13], as exigências da vida em sociedade sempre acarretaram a existência de limitações gerais ao exercício dos direitos reais.
Nesta matéria é considerado fundamental o princípio da função social: "os direitos são concedidos às pessoas não para estas os utilizarem de acordo com o seu livre arbítrio, mas sim para que da sua utilização resulte um benefício social".
Perante este princípio orientador, o legislador tem adoptado limitações especiais ao exercício dos direitos reais. Para além destas limitações especiais o conteúdo dos direitos reais ainda pode ser limitado negativamente pelo aludido princípio através do abuso do direito (art. 334º do CC): "o conteúdo dos direitos reais é assim negativamente delimitado pela necessidade de não se proceder em contravenção com a finalidade económico-social do próprio direito"[14].
Menezes Cordeiro[15] sintetiza em seis tipologias as situações em que tem sido colocada a ocorrência do abuso do direito, quais sejam: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
Esta última modalidade de comportamentos abusivos, constituída pelo desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, corresponde a um caso de exercício danoso do direito[16].
Fruto de um formalismo positivista as pessoas juridicamente menos preparadas podem ser levadas a pensar que a titularidade do direito lhes permite exercê-lo de qualquer modo, causando quaisquer danos a outrem e que os danos que assim causar são lícitos porque causados no exercício de um direito. Trata-se de um grave erro. O exercício do direito deve ser feito de modo a causar o minino de dano a outrem - princípio do mínimo dano.
Quem exerce um seu direito deve, ao fazê-lo, usar da cautela e do cuidado necessários para que não ofenda direitos alheios ou cause danos[17].
Isto não significa que seja ilícito ou abusivo todo e qualquer exercício danoso do direito[18].
Nesta modalidade podem ser consideradas três sub-hipóteses[19]: (i) o exercício danoso inútil ou injustificado; (ii) exigência de algo que deva ser imediatamente restituído (dolo agit qui petit quod statim redditurus est); (iii) e a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem.
O exercício danoso inútil é contrário à boa fé, sendo, como tal, abusivo exercer os direitos de modo inútil, com o objectivo de causar danos na esfera alheia; o mesmo é dizer que é abusivo o exercício do direito que não represente qualquer vantagem para o seu titular, enquanto dele resulte para outrem um sacrifício injusto.
 Na segunda subespécie citada deparamos com os casos em que é contrário à boa fé exigir o que de seguida se deva restituir. Dito de outro modo, é abusivo exigir a entrega de uma coisa que deva ser imediatamente restituída ou o pagamento de uma quantia que deva também ser imediatamente paga; este é o fundamento da compensação.
Na terceira, tem-se em conta que a desproporcionalidade, ultrapassados certos limites, é abusiva, defrontando a boa fé. É abusivo o exercício do direito sempre que a vantagem dele resultante para o titular é mínima e desproporcionada com um sacrifício severo de outrem.
Como salienta Meneses Cordeiro[20], o desequilíbrio no exercício, na jurisprudência portuguesa, é hoje usado para corrigir soluções de Direito estrito que se apresentam injustas para os intervenientes, designadamente permitindo uma grande vantagem para um deles, à custa do outro e isso sem que se apresente uma especial justificação para tanto[21].
Como vimos, o Tribunal da 1ª instância reconheceu indiciariamente que se encontra constituída, por destinação do pai de família, uma servidão de passagem que onera o prédio dos recorrentes (D), em favor do prédio da recorrida (B).
Nos termos do disposto no art. 1543º do CC, “servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito á servidão e dominante o que dela beneficia”.
Trata-se de um direito real de gozo sobre coisa alheia, mediante o qual o proprietário de um prédio tem a faculdade de se aproveitar das utilidades de prédio alheio em benefício do aproveitamento das utilidades do primeiro. 
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela[22], são quatro as notas a destacar da noção genérica de servidão predial reportada no art. 1543º: a) a servidão é um encargo (constitui uma restrição ou limitação ao direito de propriedade do prédio onerado); b) o encargo recai sobre um prédio (é uma restrição ao gozo do prédio serviente, inibindo o seu proprietário de praticar os atos que possam prejudicar o exercício da servidão); c) e aproveita exclusivamente a outro prédio (dito dominante); d) devendo os prédios (o serviente e o dominante) pertencer a donos diferentes.
Desta forma, assinala a lei expressamente o carácter real da servidão, a qual é não só oponível ao proprietário do prédio onerado (por ela especialmente atingido na sua dominialidade), mas a todos os terceiros, e que ela vale tanto em relação ao primitivo proprietário, como em relação aos futuros adquirentes.
Reportando-nos ao conteúdo das servidões prediais, estabelece o art. 1544º do CC que “podem ser objecto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptíveis de ser gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor”.
«Este conteúdo sugere um tipo aberto, com múltiplas possibilidades de concretização, tantas quantas as utilidades que um imóvel possa fazer beneficiar outro e sem que seja necessário que aquelas estejam todas definidas»[23] pela lei, tais como água, passagem, pasto, lenha, vista, distância para construção.
Para haver servidão é preciso, então, que haja uma utilidade que possa ser gozada pelo prédio dominante, o prédio que dela beneficie.
No caso da servidão de passagem essa utilidade consiste no poder conferido ao proprietário do prédio encravado de exigir acesso à via pública através de terrenos vizinhos[24].
No tocante ao seu modo de constituição, todas as servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família (art. 1547º, n.º 1, do CC). No entanto, apenas as servidões legais, na falta de constituição voluntária, poderão ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, consoante os casos (n.º 2 do mesmo artigo).
Sob a epígrafe “Constituição por destinação do pai de família”, prescreve o art. 1549.º do CC:
«Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento».
Nas palavras de Armando Triunfante[25], «a destinação do pai de família pressupõe a existência de uma serventia, ou seja, um prédio proporciona uma utilidade a outro prédio. Não existe, ainda, servidão porque ambos os prédios pertencem à mesma pessoa (não está, portanto, verificado o requisito subjetivo do art. 1543º). Se, porventura, algum dos prédios passar a pertencer a proprietário diferente está verificado o pressuposto que falta. Nessa altura constitui-se a servidão de harmonia com a serventia que existia, desde que, no ato transferência da propriedade de um dos prédios, não se estabeleça solução distinta. A exclusão da constituição da servidão tem de obedecer a forma escrita (…). Caso não exista exclusão, a servidão constitui-se automaticamente por força de lei. Não é necessário qualquer ação judicial ou processo administrativo. Isso acontece porque o modo de exercício e a extensão da servidão estão já fixados: correspondem aos sinais que caracterizavam a serventia anterior.
A serventia existente tem de ser revelada através de sinais visíveis e permanentes».
A servidão por destinação do pai de família é considerada uma servidão voluntária, uma vez que "assenta num facto voluntário (a colocação de sinal ou sinais aparentes e permanentes)". Estando na disponibilidade das partes declarar outra coisa no respectivo documento da alienação do(s) prédio(s) ou da divisão do prédio único, é esta possibilidade de impedir a transformação de uma situação material ou fáctica numa consequência jurídica que qualifica a servidão como “servidão voluntária”. O que não equivale necessariamente a ter por certo que ela resulta de uma declaração negocial, designadamente de um acordo tácito; todavia, verificados os aludidos pressupostos, a servidão constitui-se automaticamente por mero efeito da lei[26].
Ora, como bem se concluiu quer na decisão de 4/07/2023 –  que decretou a providência cautelar (ref.ª ...84) –, quer na decisão recorrida – que julgou improcedente a oposição (ref.ª ...98) –, afigura-se inquestionável – e os recorrentes não o contestam – de que em benefício do prédio da requerente [aludido em B] se constituiu, por destinação do pai de família, a servidão de passagem por si alegada, a qual onera o prédio aludido em D.
De facto, como se extrai da factualidade sumariamente apurada, o prédio de ambas as partes integravam um conjunto predial mais vasto, que formavam como que uma “Quinta” ou Unidade Agrícola (com casa principal, casa de caseiros, anexos, varandas, eiras), sendo que o acesso do prédio da requerente (descrito em B) à via pública (Estrada Municipal), e desta ao mesmo, sempre se processou a pé, por carro de bois e trator através de um caminho em terra batida existente sobre o prédio dos requeridos (referido em D), estando o dito caminho bem demarcado, com uma cancela aposta na estrema dos prédios das partes (à data das licitações no inventário). – (pontos B, D, E, F e H dos factos provados).
A mencionada factualidade apurada permite, pois, que se conclua pelo preenchimento dos pressupostos exigidos para a demonstração da constituição de uma servidão por destinação do pai de família, porquanto o caminho e portão existentes à data da separação da titularidade jurídica dos prédios, que pertenciam ambos aos pais da requerente e requerida, separação esta realizada no âmbito do processo de inventário, constituem sinais visíveis e permanente reveladores da existência de uma serventia do prédio dos requeridos para com o prédio da requerente, não havendo qualquer menção no inventário que exclua a presunção que resulta daqueles sinais.
Por outro lado, da factualidade indiciariamente apurada retira-se que a requerente, por si e seus antepossuidores, estava na posse da servidão de passagem assim constituída, pois que vinha atuando sobre o caminho por forma correspondente ao exercício do aludido direito de servidão de passagem (art. 1251.º do CC).
Ora, apreciando a situação concreta dos autos à luz do invocado abuso de direito, facilmente se constata que não estaremos perante um mero exercício danoso inútil, por banda da requerente.
Estando em causa um prédio totalmente encravado, não se vê, sem mais, que não possa para ela ter qualquer utilidade a passagem pelo caminho existente no prédio dos requeridos, a fim de aceder à via pública e desta ao mesmo.
A servidão não depende da viabilidade económica ou da utilização do prédio, mas da sua falta de comunicação com a via pública, factor que, por si só, pode impedir a sua exploração, como, no caso se provou que impede.
A alegação de que os recorrentes se veem obrigados a suportar, no seu prédio, «uma servidão de passagem que se afigura de cariz voluptuário e caprichoso para a recorrida» não passa de um mero juízo conclusivo, pois que não assenta em factos sumariamente demonstrados nos autos.
Os autos não nos fornecem elementos bastantes para se poder concluir pela inutilidade da vantagem para a requerente advinda da procedência do procedimento cautelar. Pelo contrário. Relembre-se que, por força do esbulho perpetrado, os Requeridos impediram, e em absoluto, o acesso e passagem ao prédio referido em B., pelo caminho, não só de pé como também, em maior grau, de carro, inclusive com trator agrícola, impedindo a requerente, familiares e outros de gozar o seu prédio na sua plenitude, como entrar e sair, proceder ao cultivo, a operações de transporte, de limpeza, bem assim carga e descarga de materiais.
Quanto à desproporcionalidade entre a eventual vantagem auferida pela requerente, titular do direito que se arroga e que pretende ver satisfeito e o sacrifício imposto pelo seu exercício a outrem, não nos fornecem os autos elementos bastantes para se poder concluir pela sua existência.
Não é possível aferir, num juízo de proporcionalidade, da alegada desproporção entre a sua utilidade para o prédio dominante e o sacrifício que da mesma resulta para o prédio serviente.
Mais uma vez, nesta parte as considerações explicitadas pelos recorrentes não se mostram amparadas na factualidade sumariamente apurada.
Em parte alguma resulta demonstrado o alegado dano de natureza patrimonial (superior a €100.000,00) de que os recorrentes se arrogam.
Sempre se acrescentará que, aquando do investimento de €40.000,00, correspondente ao valor da aquisição do prédio aludido no item D no âmbito das licitações efetuadas no processo de inventário por óbito dos pais da requerente e da requerida, os recorrentes não podiam deixar de ter presente a existência de sinais visíveis e permanentes reveladores de uma relação de serventia entre esse prédio e o que foi adjudicado à requerente, atento o que decorre da facticidade objeto dos pontos F), I e J dos factos provados.
E, como se disse, verificados os aludidos pressupostos, a servidão por destinação do pai de família constitui-se automaticamente por mero efeito da lei.
Por conseguinte, nem sequer se pode excluir que a existência da dita serventia entre os dois prédios não tivesse sido sopesada pelos interessados no inventário aquando da decisão de licitar sobre o referido prédio.
Mas mesmo sob o prisma quantitativo correspondente ao preço da aquisição do(s) prédio(s), evidencia-se que o investimento feito pela recorrida na aquisição do prédio aludido em B foi superior aos dos recorrentes, posto que o prédio lhe foi adjudicado, no aludido inventário, pelo valor de €42.000,00.
Naturalmente, que a existência de uma servidão de passagem conduz à desvalorização do prédio serviente, por constituir um encargo que o onera e limita, prejudicando a sua plena exploração. Mas, como se disse, os requeridos não podiam deixar de estar cientes dessa realidade aquando da aquisição do prédio serviente.
Por outro lado, em parte alguma resulta dos autos que o propósito da recorrida seja o de depreciar o prédio urbano dos autores, pois – segundo os recorrentes – «terá ficado amargurada pelo facto de os recorrentes terem tido a veleidade de licitar no prédio B aquando da conferência do inventário».
Tão pouco se retira dos autos que o prédio urbano dos recorrentes – que pelas fotografias juntas aos autos revela um mau estado de conservação, o que é expressamente reconhecido por estes na apelação – tenha a potencialidade económica que os mesmos lhe atribuem.
Não se ignora que, na situação em apreço, a oposição ao exercício da servidão de passagem por parte dos recorrentes radica, essencialmente, no facto de a recorrida ser proprietária de um prédio urbano contíguo com o prédio dominante e de – segundo a alegação dos recorrentes – não haver qualquer obstáculo natural, advogando que o acesso a esse prédio encravado – a pé, de carro, de tractor ou máquinas – poderá ser estabelecido através desse prédio onde a requerente edificou a sua casa de habitação.
Sucede que, a entenderem os recorrentes que existe fundamento de extinção da servidão por desnecessidade, a mesma não opera automaticamente (nem a figura do abuso de direito é apta a esse efeito), conforme decorre do preceituado no n.º 2 do art. 1569º do CC, pois deve ser requerida – e declarada – judicialmente. Tão pouco lhes será lícito perpetrar os actos de esbulho apurados. Caberá, por conseguinte, ao proprietário do prédio serviente que requer a extinção da servidão a prova dos factos que fundamentam a desnecessidade.
Não deixa de se ter presente que a doutrina e a jurisprudência são predominantes no sentido de que a servidão por destinação do pai de família não pode, por regra, ser extinta por desnecessidade, pois este fundamento específico é aplicável à extinção das servidões constituídas por usucapião e das servidões legais (n.ºs 2 e 3 do art. 1569º do CC).
Entende-se, porém, que, apesar da sua constituição voluntária, não estará afastada a possibilidade de a servidão por destinação do pai de família poder ser considerada uma servidão legal, no sentido de poder ser imposta coactivamente. Com efeito, veja-se que o n.º 3 do art. 1569º do CC dispõe que a extinção por desnecessidade também é aplicável às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição. Isto significa que, "verificando-se os pressupostos que permitiam a imposição duma servidão legal, a servidão que se constituir se deve sempre considerar legal, mesmo que não tenha sido coactivamente actuada"[27].
No caso, os elementos disponíveis apontam no sentido de que a servidão podia ser coactivamente imposta (por encravamento do prédio dominante).
A verdade é que, no caso dos autos, não se mostra demonstrada a desnecessidade da servidão, aferida em função da desproporção entre a sua utilidade para o prédio dominante e o sacrifício que da mesma resulta para o prédio serviente. Não se mostra comprovado um desequilíbrio ou desproporção intolerável entre o exercício do direito (de servidão) e os efeitos práticos dele derivados.
À luz dos factos indiciariamente apurados, o exercício do direito dos requerentes não é, pois, ilegítimo, já que os seus titulares não excederam manifestamente os limites impostos, quer pela boa fé, quer pelos bons costumes, quer pelo fim social ou económico de tal direito.
No caso, porém, a requerente limitou-se a exercer um direito juridicamente reconhecido e tutelado, conformando-se a sua actuação com o fundamento dessa tutela legal.
Não existe, por isso, abuso do direito, como foi decidido.
A sentença recorrida merece, assim, plena confirmação, improcedendo as conclusões dos apelantes.
*
As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade dos recorrentes, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).
*
VI - DECISÃO

Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos apelantes, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo dos apelantes (art. 527º do CPC).
*
Guimarães, 25 de janeiro de 2024

Alcides Rodrigues (relator)
Raquel Batista Tavares (1ª adjunta)
Maria dos Anjos Nogueira (2ª adjunta)



[1] Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada.
[2] Cfr., neste sentido, Acs do STJ de 31/05/2016 (relator Garcia Calejo), de 28/04/16 (relator Abrantes Geraldes), de 21/04/2016 (relatora Ana Luísa Geraldes), de 18/02/2016 (relator António Leones Dantas), de 1/10/2015 (relatora Ana Luísa Geraldes), de 9/07/2015 (relatora Maria dos Prazeres Beleza), de 19/02/2015 (relator Manuel Tomé Soares Gomes), todos consultáveis in www.dgsi.pt.; em idêntico sentido, na doutrina, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo (…), Vol. I (…), p. 771.
[3] E, de acordo com essa prevalecente posição do Supremo Tribunal de Justiça, o ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados – por corporizar não um ónus primário, mas antes um ónus secundário, tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (previsto presentemente no art. 640º, n.º 2, al. a), do CPC) – deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação com exactidão das passagens da gravação onde se funda o recurso só será idónea a fundamentar a rejeição liminar do mesmo se dificultar, de forma substancial, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável [cfr., neste sentido, Acs. do STJ de 03/10/2019 (relatora Maria Rosa Tching), de 15/02/2018 (relator Tomé Gomes), de 26/05/2015 (relator Hélder Roque), de 22/09/2015 (relator Pinto de Almeida), de 29/10/2015 (relator Lopes do Rego) e de 19/01/2016 (relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt.].
[4] Por se tratar de uma ampliação limitada, dispensamo-nos de transcrever de novo toda a factualidade provada e não provada, devendo considerar-se os enunciados pontos fácticos incluídos no acervo dos factos provados, doravante valendo como itens T e U.
[5] Cfr. Marco Filipe Carvalho Gonçalves, obra citada, p. 359.
[6] Cfr. Temas (…), vol. III, p. 256.
[7] Cfr. Ac. da RE de 19/12/2006 (relator Almeida Simões), in www.dgsi.pt.
[8] Cfr. Prof. Mota Pinto, Parecer sobre Acção de Restituição de Posse, publicado in CJ, Ano X, T. III, p. 34 e segs..
[9] Cfr. Direito das Obrigações, 6ª ed., Almedina, p. 64.
[10] Cfr. Código Civil Anotado, Vol. 1, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 298.
[11] Cfr. neste sentido, entre outros, J. Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Vol. II, p. 102, Antunes Varela, RLJ, ano 114º, p. 75 e Das obrigações Em Geral Vol. I, 6ª ed., Almedina, p. 515 e Ac. do STJ de 28.11.1996, CJSTJ, 1996, T. III, p. 118.
[12] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil (…), Vol. 1, (…), p. 299.
[13] Cfr. Direitos Reais, Lex, 1979, pp. 411/412.
[14] Cfr. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, pp. 414/415.
[15] Cfr. Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo I, 2ª ed., Almedina, 2000, pp. 249-269 e Tratado de Direito Civil, Tomo V, Parte Geral, 2.ª ed., Almedina, 2015, pp. 295/381.
[16] Na exposição seguiremos de perto o ensinamento de Pedro Pais de Vasconcelos - Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil., 9ª ed., Almedina, 2019, p. 286.
[17] Assim, aquele que, no exercício do direito de caçar, atravessar a propriedade de outras pessoas, deve fazê-lo de modo a não danificar culturas ou a danificá-las apenas no indispensável.
[18] A sã concorrência comercial implica necessária e intencionalmente para os outros comerciantes do mesmo mercado danos consistentes em perda de mercado de clientela e de negócio. Mas só é ilícita nos casos de concorrência desleal.
[19] Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil (…), Tomo I, (…), p. 265 e Pedro Pais de Vasconcelos - Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, obra citada, p. p. 286.
Estes últimos autores acrescentam outra situação em que o exercício danoso é abusivo, que corresponde ao exercício emulativo, nos termos do qual «é abusivo o exercício do direito quando o titular é movido pela intenção exclusiva de prejudicar ou de fazer mal a outrem (caso da chaminé de ...)».
[20] Cfr. Tratado de Direito Civil, (…), Tomo V, p. 378.
[21] Foi usado o abuso:
- para enfrentar o problema das preferências em negócios simulados, que permitiriam ao preferente adquirir imoveis por uma pequena fração do seu valor;
- para resolver questões de inquilinato e, designadamente, quando as rendas pagas sejam insignificantes;
- no caso de sanções desproporcionadas;
- quando se exige demolições muito custosas para pequenas vantagens [cfr. Ac. do STJ de 29/01/2014 (relator Pinto de Almeida), in www.dgsi.pt.].
[22]  Cfr. Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., revista e atualizada, (reimpressão), com a colaboração de Henrique Mesquita, Coimbra Editora, pp. 613/618.
[23] Cfr. José Alberto Vieira, Direitos Reais, Almedina, 2017 – reimpressão, p. 725.
[24] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil (…), Vol. III, (…), p. 636.
[25] Cfr. Lições de Direitos Reais, Almedina, p. 329.
[26] Cfr. Henrique Mesquita, em anotação ao Ac. do STJ de 20/1/2005, na Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3936, Ano 135.º, p. 145 e segs., o Acórdão do STJ de 10/04/2018 (relator Pinto de Almeida), e o Ac. do TC n.º 484/2010, de 9/12/2010 (relator Vítor Gomes), in www.dgsi.
[27] Cfr. J. Oliveira Ascensão, Direito Civil – Reais, 4ª ed., p. 252; no mesmo sentido, Henrique Mesquita, RLJ, 129-254 e segs; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil (…), Vol. III, (…), p. 677; H. Sousa Antunes, Direitos Reais, Universidade Católica Editora, 2017, p. 489; José Alberto Vieira, obra citada, p. 739; Acórdãos do STJ de 05/05/2015 (relator Júlio Gomes), de 05/05/2015 (relatora Maria Clara Sottomayor) e de 10/04/2018 (relator Pinto de Almeida), in www.dgsi.pt.