Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2725/22.0T8VRL.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
INDEMNIZAÇÃO DOS AFECTADOS PELA INSOLVÊNCIA CULPOSA
ARGUIÇÃO DE NULIDADE DE ESCRITURA DE PARTILHA
SIMULAÇÃO
CONCEITO DE INTERESSADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- A impugnação pauliana é um dos meios de conservação da garantia patrimonial colocados ao dispor do credor sempre que o devedor pratique ato ou celebre negócio jurídico de que resulte a diminuição do seu ativo patrimonial, ou um aumento do seu passivo.
2- A ação de impugnação pauliana configura uma ação pessoal, uma vez que da sua procedência apenas resulta para o credor impugnante: o direito à restituição dos bens objeto do ato ou negócio impugnado; o direito a praticar atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei; e o direito de executar aqueles bens no património do terceiro a quem foram transmitidos. Esses direitos apenas aproveitam ao credor impugnante (não aos demais credores do devedor impugnado) e apenas lhe são conferidos na estrita medida em que tal seja necessário à satisfação do seu crédito.
3- A impugnação pauliana tem como requisitos gerais, que são cumulativos: 1º) a existência de um crédito do demandante sobre o devedor (demandado); 2º) que esse direito de crédito se tenha constituído antes do ato ou negócio impugnado ou, sendo posterior, que o ato ou negócio tenham sido realizados dolosamente com o fim de impedirem o direito do futuro credor; e 3º) que desse ato ou negócio resulte a impossibilidade ou o agravamento para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito. Se o ato ou negócio impugnados tiverem natureza onerosa, a esses requisitos gerais acresce o especial da má fé do devedor e do terceiro (ambos demandados, sob pena de ilegitimidade passiva).
4- O ónus de alegação e da prova da facticidade integrativa de cada um desses requisitos cumulativos impende sobre o credor demandante, enquanto ao devedor ou ao terceiro demandados (facto impeditivo ao direito exercido pelo credor demandante), impende o ónus de alegação e da prova em como o devedor possui bens penhoráveis de igual ou de maior valor ao crédito que o demandante se arroga titular sobre aquele.
5- O crédito à indemnização reconhecido aos credores da insolvência cujos créditos não obtiveram satisfação com o produto da liquidação da massa insolvente, que é imposto aos afetados pela qualificação da insolvência como culposa (al. e), do n.º 2, do art. 189º do CIRE) consubstancia um crédito indemnizatório que se encontra submetido a uma dupla condição suspensiva: a) a liquidação da massa insolvente e o pagamento e rateio do produto da liquidação pelos créditos da insolvência (isto é, os que tenham sido julgados verificados e graduados na sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado); e b) a insuficiência desse produto para satisfazer totalmente o crédito sobre a insolvência detido pelo autor da ação de impugnação pauliana.
6- Por isso, enquanto essa dupla condição não estiver verificada, aquele crédito indemnizatório do credor sobre o afetado pela qualificação da insolvência não se constitui na esfera jurídico-patrimonial daquele credor (que não pode fundar nele a ação de impugnação pauliana que instaurou, face à sua natureza meramente futura, hipotética e eventual e que não passa de uma mera expectativa jurídica, que poderá nunca se chegar a constituir em direito); credor que, contudo, pode exigir que o obrigado (devedor) dessa indemnização preste caução.
7- Pretendendo o autor que se declare a nulidade de uma escritura de partilha, por simulação, alegando ser detentor de um crédito indemnizatório sobre um dos nela outorgantes, cuja consistência jurídica e prática foi colocada em crise com a celebração dessa escritura de partilha, verifica-se que, de acordo com uma corrente doutrinária e jurisprudencial, que adota um conceito restritivo de “interessado”, para efeitos do disposto no art. 286º do CC, a prova do direito de crédito alegado pelo autor é condição de procedibilidade da ação, no sentido de que, não se provando esse direito de crédito, nunca o pedido de declaração de nulidade da escritura de partilha poderá proceder; mas uma outra corrente doutrinal e jurisprudencial adota um conceito amplo de “interessado”, em função da qual por “qualquer interessado deve entender-se, não apenas a pessoa diretamente afetada pelos efeitos jurídicos produzidos com a celebração do negócio celebrado e pretensamente nulo, por simulação, mas ainda todos aqueles que revelem possuir um interesse meramente indireto ou mediato na declaração da nulidade desse negócio, por simulação, como é o caso do autor.
8- É esse o caso do autor que viu o seu crédito sobre a devedora declarada insolvente reconhecido nos autos de insolvência (por sentença de verificação e graduação de créditos neles proferida, transitada em julgado), que viu essa insolvência da sua devedora ser qualificada como culposa e que viu uma das partes outorgantes na escritura de partilha que pretende ver declarada nula, por simulação, ser declarada afetada por essa qualificação (como gerente da inicial devedora) e ser ainda condenada a indemnizar os credores da insolvência pelos créditos que ficassem insatisfeitos, por sentença transitada em julgado, como é o caso do credor (autor), cujo crédito ainda não foi pago nos autos de insolvência.
9- Por isso, de acordo com as várias soluções de direito plausíveis de “interessado” para efeitos do art. 286º do CC, não se encontravam preenchidos os requisitos legais que permitiam ao tribunal a quo conhecer do pedido subsidiário em sede de saneador-sentença, impondo-se que os autos prossigam, com a seleção dos temas de prova pertinentes para conhecer do pedido subsidiário.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- RELATÓRIO

EMP01... – Produção, Comércio e Exportação de Produtos Regionais, Lda., com sede na Rua ..., Bairro ..., ... ..., instaurou ação declarativa de condenação, na forma de processo comum, contra AA e BB, residentes na Rua ..., ..., ... ..., pedindo que se:
 a- declarasse a ineficácia da escritura de partilha outorgada entre os réus, em 25/07/2017, declarando-se que a autora tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los, nomeadamente, no património do 2º réu, e ainda a praticar os atos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, mais devendo ser declarados ineficazes todos os atos de disposição posteriores àquela escritura de partilha;
Subsidiariamente,
b- declarasse a nulidade da escritura de partilha outorgada entre os réus, em 25/07/2017, por simulação e, em consequência, fossem os bens restituídos ao património conjugal e, bem assim, fossem cancelados todos os registos de disposição que tenham sido efetuados, ou que venham a ser efetuados sobre os bens objeto da escritura.
Para tanto alegou, em suma, que a sociedade EMP02..., Lda., foi declarada insolvente, por sentença proferida em 16/03/2016, transitada em julgado, e que, enquanto credora desta, reclamou o seu crédito no âmbito desse processo de insolvência, no valor global de € 67.774,35, tendo o mesmo sido julgado verificado e graduado como comum, por sentença proferida em 02/11/2016, transitada em julgado. 
Por sentença proferida no âmbito do incidente de qualificação de insolvência, transitada em julgado, foi decidido qualificar a insolvência de EMP02..., Lda., como culposa, e afetada por essa qualificação a Ré AA, que, nessa sequência, foi condenada a indemnizar todos os credores da sociedade insolvente que tivessem reclamado os seus créditos, até ao limite dos montantes reclamados, reconhecidos e graduados, e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente, tendo essa indemnização sido diferida para o momento em que fosse possível apurar em concreto o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente.
Acontece que, por escritura pública outorgada em 25/07/2017, os Réus, que se haviam divorciado, declararam proceder à partilha dos seus bens comuns, adjudicando bens de pequeno valor à Ré, e bens de grande valor ao Réu.
Ao outorgaram essa escritura os Réus não agiram com o propósito de partilhar o seu património comum, mas antes recorreram àquela enquanto expediente acordado entre ambos, com vista a, formalmente, subtraírem bens do mesmo património comum e, assim, prejudicarem os credores da sociedade.
O ativo da EMP02..., Lda. é manifestamente insuficiente para pagamento dos seus credores.
Os Réus contestaram, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Suscitaram a exceção perentória de caducidade do direito da Autora de impugnar a escritura de partilha, alegando que o prazo de cinco anos de que dispunham para o efeito já se encontrava decorrido à data da propositura da presente ação.
Impugnaram parte da facticidade alegada pela Autora; e alegaram, a título de exceção, que: no âmbito do identificado processo de insolvência da EMP02..., Lda., foi aprovado e homologado, por sentença de 13/09/2016, transitada em julgado, um plano de insolvência, que previa que, após um período de carência inicial, os créditos dos credores sobre a insolvência fossem pagos; nessa sequência, os bens da massa insolvente não foram liquidados; a pessoa encarregue de promover a boa execução do plano foi BB, sócio e gerente da sociedade devedora, EMP02..., Lda., que não encetou quaisquer diligências idóneas e adequadas no sentido de que a sociedade devedora retomasse verdadeiramente a sua atividade; essa inércia impunha à Autora que, decorrido o prazo de quinze dias sobre a data de vencimento da primeira prestação prevista no plano (que a devedora se obrigou a liquidar-lhe, mas que não lhe pagou, entrando em mora), tivesse de interpelar a sociedade devedora, por escrito, para que cumprisse com a obrigação a que se vinculara nos termos do plano, interpelação essa que não fez; e não passando, por isso, o crédito que aquela se arroga titular sobre a Ré AA  de um crédito futuro, hipotético e eventual.
Concluíram pedindo que se julgasse procedente a exceção perentória de caducidade do direito de impugnação do ato de partilha invocado pela Autora e, em consequência, fossem absolvidos do pedido; e, em todo o caso, se julgasse improcedente a ação e fossem absolvidos do pedido.
A Autora respondeu, concluindo pela improcedência da exceção de caducidade invocada pelos Réus.
Ordenou-se a notificação dos Réus para, “por referência ao art. 21º da contestação, concretizarem quais os artigos da p.i. ali mencionados que têm matéria que não é verdadeira, os que têm matéria que não é do conhecimento dos Réus e os que são conclusivos”, bem como a notificação da Autora para se pronunciar “sobre o invocado nos arts. 22º a 67º da contestação”.
A Autora respondeu ao convite que lhe foi endereçado, o mesmo sucedendo com os Réus.
Realizou-se audiência prévia, em que se notificou as partes de que o tribunal tencionava conhecer imediatamente de mérito da causa, na sequência do que, se lhes concedeu o prazo de dois dias, que requereram, para se pronunciarem de facto e de direito.
Em 15/09/2023, proferiu-se saneador-sentença, em que: se fixou o valor da causa em 87.029,51 euros; se proferiu despacho saneador tabular; e se julgou a ação totalmente improcedente, e se absolveu os Réus do pedido, constando esse saneador-sentença da seguinte parte dispositiva:
“Julgo a ação improcedente e, em consequência, absolvo os R.R. do pedido.
Custas a cargo da A. - art. 527º, do C.P.C., não havendo lugar ao pagamento da segunda prestação da taxa de justiça (uma vez já paga, deve ser devolvida, tal como o excesso pago, face ao valor fixado à causa) - art. 14º-A, d), do R.C.P.
Fixo o valor da causa em € 87.029,51 (art. 168º, da p.i.) - arts. 296º, n º 1, 297º, n º 1 e 3 e 306º, n º 1 e 2, do C.P.C.”.

Inconformada com o decidido, a Autora, EMP01... – Produção, Comércio e Exportação de Produtos Regionais, Lda., interpôs recurso, em que apresenta as conclusões que se seguem:

I- Vem o presente recurso interposto do despacho saneador-sentença proferido nos autos, datado de 15/09/2023, que, conhecendo imediatamente do mérito da causa, julgou a ação improcedente e, em consequência, absolveu os réus do pedido, por entender que a autora, ora recorrente, não é titular de um direito de crédito sobre a ré, ora recorrida.
II- A recorrente discorda da decisão constante do despacho saneador-sentença ora recorrido, pois, mui respeitosamente, considera que é titular de um direito de crédito sobre a ré, logo, não se encontra em falta o pressuposto substantivo (a recorrente ser credora da ré) para se apreciar a ineficácia da escritura de partilha em causa nos autos, por verificação dos pressupostos da impugnação pauliana ou, caso assim não se entenda, para se apreciar a nulidade de tal escritura, por verificação dos pressupostos da simulação.
III- Com efeito, a recorrente é credora da ré, ao contrário do entendido pela decisão recorrida, e é credora da ré pois possui uma decisão condenatória contra esta, não sendo o seu direito de crédito, salvo o devido respeito, atualmente inexistente, “meramente hipotético/eventual, futuro”.
IV- Conforme resulta dos factos provados constantes do rol elencado no despacho recorrido, o crédito que serviu de base à ação declarativa instaurada contra os recorridos assenta na sentença judicial condenatória, proferida no âmbito do processo n.º 1512/15...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de – Juízo Local Cível ... – Juiz ..., que decidiu, entre outros, qualificar a insolvência da sociedade comercial EMP02... Lda., como culposa, decidiu declarar afetada pela qualificação da insolvência a aqui recorrida, AA, e condenou-a a indemnizar todos os credores da sociedade insolvente, que tenham reclamado os seus créditos e até ao limite dos montantes reclamados, reconhecidos e graduados, e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente (alínea e) daquela sentença). Foi proferido Acórdão por este Tribunal Superior, datado de 23/11/2017, já transitado em julgado, que manteve a sentença de qualificação da insolvência proferida naquele apenso, com a ressalva de que a condenação da alínea e), respeitante àquela condenação em indemnização aos credores da insolvente, deve ser deferida para o momento em que for possível apurar em concreto o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente.
V- Dúvidas inexistem de que a recorrente é credora daquela sociedade insolvente, pelo que, nesta medida, tendo sido a recorrida condenada a indemnizar todos os credores da sociedade insolvente, nos quais se inclui a aqui recorrente, é esta última igualmente sua credora.
VI- Resulta, portanto, que, salvo o devido respeito por melhor entendimento, a recorrente possui um direito de crédito sobre a recorrida, direito esse que pode ser imediatamente exercido pelo seu credor – a aqui recorrente – não sendo hipotético ou eventual nem estando dependente da liquidação da massa insolvente da EMP02... Lda. Tal crédito está perfeitamente determinado, não sendo, salvo opinião em contrário, futuro, hipotético e eventual, como entendeu o despacho recorrido. 
VII- Na verdade, aquela sentença condenatória traduz uma obrigação certa, exigível e líquida, visto que a sua prestação encontra-se qualitativamente determinada, a obrigação encontra-se vencida e tem por objeto uma prestação cujo quantitativo está apurado. 
VIII- Isto porque, quando a presente ação declarativa foi instaurada, já era possível apurar em concreto o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto daquela massa insolvente, sendo que tal valor corresponde à totalidade dos créditos reclamados, reconhecidos e graduados naqueles autos de insolvência, encontrando-se preenchida na sua totalidade a ressalva proferida pelo Acórdão deste Tribunal relativa à condenação da alínea e) proferida pela primeira instância.
IX- Para além de que, a recorrente tinha de lançar mão da presente ação declarativa quando o fez, perante o iminente esgotar dos prazos de caducidade, como forma precisamente de salvaguardar aqueles prazos e acautelar os direitos creditícios da recorrente sobre as respetivas garantias patrimoniais que foram postas em causa pelos recorridos.
X- Naqueles autos de insolvência foi aprovado o Plano de insolvência da sociedade comercial insolvente, sendo que, com a aprovação de tal Plano, não se procedeu à liquidação do património daquela sociedade e, portanto, à repartição do produto obtido pelos seus credores, em conformidade, aliás, com a finalidade do processo de insolvência, constante do artigo 1.º do CIRE. Ademais, em 07/02/2018 foi determinado o encerramento dos autos de insolvência, com fundamento no trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência (cfr. artigo 230, n.º 1 al. b) do CIRE), não tendo os autos prosseguido para liquidação.
XI- Sucede que, por um lado, o plano de insolvência homologado não foi cumprido pela sociedade insolvente e, até à presente data, a recorrente não obteve qualquer pagamento, não obstante o plano de insolvência determinar somente um período de carência de seis meses.  A sociedade insolvente não possui património, em razão da conduta da recorrida e melhor espelhada na petição inicial que deu origem a estes autos e que se dá aqui por integralmente reproduzida por razões de economia processual.
XII- Além disso, a recorrida, não obstante ter sido condenada em sede de incidente de qualificação da insolvência, não indemnizou os credores daquela sociedade insolvente até à presente data, nada tendo pago à recorrente. 
XIII- Pelo contrário, os recorridos praticaram atos de disposição do seu património, obrigando a recorrente a instaurar a presente ação declarativa.
XIV- Com efeito, quando os recorridos outorgaram a partilha, em 25/07/2017, já a recorrida tinha sido condenada em primeira instância no âmbito do apenso C do processo n.º ...5..., a indemnizar os credores da sociedade EMP02..., Lda., nos termos do artigo 189.º, n.º 2, al. e) do CIRE, condenação essa que foi confirmada por este Tribunal superior, por acórdão de 23/11/2017, como suprarreferido. Assim, à data da outorga da dita partilha, realizada entre os recorridos, estes tinham plena consciência da possibilidade séria da decisão de primeira instância vir a ser confirmada pelo Tribunal da Relação, como efetivamente veio a suceder, fazendo com que a partilha tenha sido efetuada dolosamente com o intuito de impedir a satisfação futura daquele crédito (cfr. artigo 610º, a) do C.C.).
XV- Da celebração da escritura de partilhas entre os recorridos, resultou para a recorrente uma diminuição da garantia patrimonial do seu crédito e, consequentemente, a impossibilidade ou agravamento da impossibilidade da recorrente obter a satisfação integral do seu crédito.
XVI- Todo o circunstancialismo espelhado em sede de petição inicial, consubstanciado na existência do crédito por banda da recorrente sobre a ré, na combinação do divórcio entre recorridos, por forma a transferir, em sede de partilhas, para a esfera patrimonial do recorrido os bens que lhe aprouvessem, em prejuízo dos credores da recorrida, pese embora os recorridos jamais tivessem vontade de se divorciar ou partilhar o que quer que fosse entre si, não recebendo a ré quaisquer tornas e continuando os recorridos a coabitar na mesma casa e continuando a ser por todos reconhecidos, mesmo desde aí, como se de marido e mulher se tratassem, demonstra.
XVII- Por se encontrarem, salvo o devido respeito, verificados os requisitos gerais da ação de impugnação pauliana previstos no artigo 610º do C.C., a recorrente instaurou os presentes autos, sendo que, quanto à má-fé dos recorrentes, resulta claro que estes tinham consciência do prejuízo que a partilha, que realizaram no ano de 2017, causava à recorrente, tendo-a realizado naqueles termos para obstar ao pagamento do crédito desta. 
XVIII- Resulta claramente que, os recorridos, ao celebrarem aquela partilha, conheciam a concreta situação económico-financeira quer da sociedade insolvente, quer da própria recorrida, bem conhecendo o passivo de cada uma delas, configurando aquela partilha, uma partilha meramente virtual, de fachada, destinada a permitir a criação dos obstáculos necessários à limitação e obstrução do legítimo direito dos credores à liquidação do respetivo património. Para além de que, com a escritura de partilhas efetuada pelos recorridos, parte substancial do património ficou a ser pertença do recorrido, que por sua vez nada deve à recorrente. No entanto, os recorridos não fizeram efetiva e materialmente qualquer partilha entre si, não tendo havido entrega de bens ou tornas.
XIX- Na ação declarativa que deu origem a estes autos e sem prescindir, foi igualmente alegado e peticionado pela recorrente que, caso assim não se entendesse, mais se diga que, ao celebrarem a escritura de partilhas, os recorridos não pretenderam efetivamente partilhar e adjudicar quaisquer bens, tendo a vontade expressa por aqueles na aludida escritura divergido totalmente da vontade real de ambos, facilmente se alcançando que as partilhas realizadas pelos recorridos constituem um mero artifício realizado por aqueles para enganar terceiros, nomeadamente a recorrente, fazendo-os crer que parte substancial do património já não era pertença do dissolvido casal, mas apenas do recorrido, e dessa forma impedirem que tal património pudesse responder pelas dívidas, pois os recorridos continuam a atuar como sempre fizeram, ou seja, indistintamente como sendo os donos de todo o património do dissolvido casal, que efetivamente são, tudo o que determina a nulidade daquela escritura de partilhas, por força da simulação - cfr. artigos 240º e ss. do C.C. -, nulidade essa que se invocou para os devidos e legais efeitos, atenta a simulação da partilha efetuada entre os recorridos.
XX- Portanto, do supra exposto resulta que, todos os créditos reclamados, reconhecidos e graduados nos autos de insolvência encontram-se insatisfeitos na sua totalidade, pois nenhum deles obteve até aqui qualquer pagamento, nem o irá obter pelo produto da massa insolvente – que não existirá, logo não haverá produto de qualquer liquidação do património da insolvente para ser repartido pelos credores desta, por forma a aferir se, posteriormente a este rateio, ainda existirão créditos não satisfeitos pelo produto da massa e qual o seu valor.
XXI- Para efeitos de titularidade do direito de crédito da recorrente sobre a recorrida, apenas interessa que os créditos reclamados, reconhecidos e graduados (no caso concreto, por sentença de verificação e graduação de créditos datada de 02/11/2016) não tenham sido satisfeitos no processo de insolvência, precisamente o que apreciou a qualificação da insolvência, e efetivamente não foram satisfeitos por qualquer produto da massa insolvente, devendo, repete-se, entender-se que apenas está em causa a verificação da não satisfação dos créditos no processo principal de insolvência onde foi apreciada a qualificação da insolvência, não existindo qualquer necessidade, salvo melhor opinião, de realizar a liquidação da massa insolvente, ao contrário do que vem vertido no despacho recorrido, pois o quantum do crédito da recorrente já está perfeitamente determinado.
XXII- Importa ter em conta a ratio da introdução da condenação exposta na alínea e) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, que fundamenta a presente ação, a qual não parece ter sido tomada em consideração no despacho recorrido, que se prende com o reforço da tutela dos credores pois, na verdade, o próprio incidente de qualificação da insolvência surgiu da necessidade de responsabilizar as pessoas que criaram ou contribuíram para a situação de insolvência que se verificou, através da sua atuação com dolo ou culpa grave, em prejuízo dos interesses da pessoa coletiva insolvente e dos credores desta. Com aquela condenação, pretende-se alcançar uma maior proteção dos credores que não conseguiram ver os seus créditos satisfeitos pela massa insolvente.
XXIII- Na verdade, nada impõe que a recorrente, antes de lançar mão da presente ação, pelos fundamentos que o fez, tivesse de interpelar a insolvente nos termos previstos no artigo 218.º, n.º 1, al. a) do CIRE, uma vez que o que se pretendeu foi, em face da ausência de satisfação dos créditos reclamados, reconhecidos e graduados através do processo de insolvência onde se apreciou a qualificação da insolvência, que a credora conseguisse obter o pagamento da indemnização, na sua quota-parte, nos termos em que a ali recorrida foi condenada. 
XXIV- A recorrente possui um direito de crédito bastante e um título que baseia tal crédito – a sentença condenatória de qualificação de insolvência - do qual resolveu lançar mão, faculdade que lhe é conferida nos termos da Lei, não estabelecendo esta qualquer condição ou pressuposto prévio para tal.
XXV- No momento da instauração da ação declarativa em apreço, o estado do processo já permitia definir o valor dos créditos por satisfazer, que correspondem à sua totalidade, tendo ficado evidenciado, no processo de insolvência, que a insolvente deve a terceiros um valor global não inferior a €109.963,00, sendo que, não possui património que lhe permita fazer face a tal passivo. Pelo que, também por este motivo, a ressalva proferida por aquele acórdão encontrava-se preenchida no momento da instauração da presente ação declarativa.
XXVI- Portanto, ao contrário do vertido no despacho recorrido e salvo melhor opinião, a recorrente tem um direito de crédito atual, um direito de crédito existente, razão pela qual, pelas razões expostas, não necessita de ser liquidada a massa insolvente da EMP02..., Lda. para, só aí, se concluir pela existência de um direito de crédito da recorrente sobre a recorrida. 
XXVII- A massa insolvente daquela sociedade insolvente nunca será suficiente para satisfazer o crédito da recorrente, ou de outros credores, presumindo-se que sequer será suficiente para satisfazer as custas de um processo de insolvência futuro e as despesas com o Administrador da Insolvência que será nomeado. Razão pela qual, se prevê que a recorrente não conseguirá obter qualquer pagamento através desta sociedade, como não o conseguiu obter até ao presente. Tudo circunstâncias bem sabidas e conhecidas dos recorridos.
XXVIII- O direito de crédito da recorrente existe e é atual, está é, no limite, diferido para um momento posterior, sendo que, não podemos olvidar que, ao contrário do prazo de prescrição ordinário de 20 anos que goza o direito de crédito da recorrente em termos gerais, a impugnação pauliana está sujeita a um curto prazo de caducidade, que a recorrente necessitou de salvaguardar, de modo a acautelar o seu direito creditício sobre as respetivas garantias patrimoniais.
XXIX- Desta forma, mal andou a sentença recorrida, ao julgar que falta um pressuposto substantivo (ser a recorrente credora da recorrida) para que possa proceder a pretensão da primeira, de declaração de ineficácia da escritura de partilha e/ou de declaração de nulidade da escritura de partilha, com fundamento na sua simulação.
XXX- Estão preenchidos, salvo melhor entendimento, todos os pressupostos para ser apreciada a pretensão da recorrente, quer de impugnação pauliana, quer, caso assim não se entenda, de declaração de nulidade da partilha, com fundamento na sua simulação.
XXXI- O despacho saneador-sentença proferido pelo tribunal a quo mostra-se, assim, violador, pelo menos, dos artigos 601.º, 605.º e ss., 610.º e ss., 240.º, 286.º, todos do C.C., artigo 189.º, n.º 2, al. e) e 218.º, n.º 1, al. a), ambos do CIRE, devendo, por isso, ser revogado, nos termos supra expostos e, considerando-se que a recorrente é titular de um direito de crédito sobre a recorrida, deve a ação prosseguir os seus termos contra os recorridos, para apreciação dos pedidos, com as legais consequências. 

Termos em que, deve o presente recurso merecer provimento em toda a sua extensão, com as legais consequências, e ser o despacho saneador-sentença recorrido revogado e alterado em conformidade, devendo determinar-se o prosseguimento dos demais trâmites legais e até final da presente ação declarativa, com as legais consequências. Assim decidindo, farão V. Exas Justiça!

Os Réus contra-alegaram, pugnando no sentido de que o recurso fosse julgado improcedente ....
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A 1ª Instância admitiu o recuso interposto como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo, o que não foi alvo de alteração no tribunal ad quem.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido objeto do saneador-sentença sob sindicância, salvo se se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo de nulidade), ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito), nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, o saneador-sentença recorrido[1].
No seguimento desta orientação, cumpre ao tribunal ad quem apreciar uma única questão que consiste em saber se o saneador-sentença recorrido, ao julgar improcedente a ação e ao absolver os apelados dos pedidos principal e subsidiário (com fundamento de que a apelante não é titular do direito de crédito que alega sobre a apelada AA), padece de erro de direito e se, em consequência, se impõe a sua revogação e ordenar o prosseguimento dos autos.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade com relevo para a decisão a proferir:

1- A A. é uma sociedade comercial por quotas, que se dedica, designadamente, e com carácter lucrativo, às atividades comerciais de produção, comercialização e exportação de produtos regionais.
2- No exercício da sua atividade comercial, a A. foi contactada pela sociedade comercial EMP02..., Lda., NIPC ...95, com sede no Largo ..., ..., ..., com vista a fornecer-lhe diversos bens e produtos, o que a A. efetivamente fez.
3- A R. é sócia desta EMP02..., Lda., e, à data do mencionado fornecimento, era também a sua única gerente.
4- O Tribunal da Relação de Guimarães condenou a EMP02..., Lda., a pagar à A. a quantia de € 39.200,36, a título de capital, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal para as transações comerciais, a contar da data de vencimento de cada uma das faturas em causa na mesma até efetivo e integral pagamento.
5- Como a EMP02..., Lda., não pagou o sentenciado à A., esta instaurou ação executiva, que corre termos neste Tribunal Judicial, no Juízo de Execução ..., sob o nº 1474/15.....
6- A EMP02..., Lda., decidiu instaurar PER, que correu termos ..., no Tribunal Judicial da Comarca de - Juízo Local Cível ... - Juiz ....
7- No âmbito do qual, o crédito da A. também foi reconhecido, definitivamente, à data, no valor global de € 65.742,64.
8- Impondo a suspensão daqueles autos de execução, que se mantêm suspensos desde ../../2017.
9- A sociedade comercial EMP02..., Lda., foi declarada insolvente em 16/03/2016, por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo n.º 1512/15...., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de - Juízo Local Cível ... - Juiz ....
10- Uma vez que, o administrador judicial provisório nomeado no âmbito do PER, comunicou o encerramento da fase de negociações sem acordo entre esta e os credores e emitiu parecer no sentido da declaração de insolvência da EMP02..., Lda.
11- A A., enquanto credora da sociedade comercial EMP02..., Lda., reclamou o seu crédito no âmbito desse processo de insolvência, no valor global de € 67.774,35, à data.
12- Este crédito consta da lista definitiva de créditos reconhecidos, junta pelo Sr. Administrador da Insolvência, no âmbito do apenso de reclamação de créditos (processo n.º 1512/15....).
13- Por sentença de verificação e graduação de créditos, datada de 02/11/2016, já transitada em julgado, proferida no âmbito do apenso de reclamação de créditos, foi o crédito da autora considerado comum, tendo sido julgados verificados e graduados os créditos reconhecidos.
14- Foi também apresentado um plano de insolvência, que consagrava, para o crédito comum da Autora: 6 meses de carência de capital em dívida após o trânsito em julgado da homologação do plano; início de pagamento de capital 6 meses após trânsito em julgado da homologação do plano; e pagamento do capital em dívida em 48 prestações mensais, iguais e sucessivas.
15- Em 07/02/2018, foi determinado o encerramento dos autos de insolvência, com o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência.
16- Por sentença proferida no âmbito do Incidente de Qualificação da Insolvência (1512/15....), processo apenso ao de insolvência acima referido, datada de 03/07/2017, foi decidido, entre outros, qualificar a insolvência da sociedade comercial EMP02..., Lda., como culposa, e declarar afetada pela qualificação da insolvência a R., e foi decidido, na alínea e), condenar a R. a indemnizar todos os credores da sociedade insolvente, que tivessem reclamado os seus créditos e até ao limite dos montantes reclamados, reconhecidos e graduados, e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente.
17- Discordando desta sentença, a R. interpôs recurso, tendo sido proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 23/11/2017, já transitado em julgado, que decidiu julgar parcialmente procedente a apelação, “alterando-se as alíneas c) e d) da sentença, quanto ao período de inibição, que se fixa em 2 (dois) anos e mantendo-se as restantes alíneas, com a ressalva de que a condenação da alínea e) deve ser deferida para o momento em que for possível apurar em concreto o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente”.
18- Através de escritura pública outorgada no dia 25/07/2017, os R.R. procederam à partilha dos bens comuns pertencentes ao dissolvido casal.

IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A- Do pedido principal – ação de impugnação pauliana
A apelante, EMP01... – Produção, Comércio e Exportação de Produtos Regionais, Lda., instaurou a presente ação contra AA e BB, pedindo: a título principal, que, “por força da procedência da impugnação pauliana”, se declarasse a “ineficácia da escritura de partilha outorgada entre os réus, em 25/07/2017, declarando-se que a autora tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los, nomeadamente, no património do 2º réu, e, ainda, a praticar os atos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei, mais devendo ser declarados ineficazes todos os atos de disposição posteriores àquele escritura”;  e, a título subsidiário, se declarasse que, “por força da procedência da arguição da simulação”, se declarasse “a nulidade da escritura de partilhas outorgadas entre os réus em 25/07/2017 e, em consequência, serem os bens restituídos ao património conjugal e, bem assim, serem cancelados todos os registos de disposição que tenham sido efetuados, ou que venham a ser efetuados sobre os bens objeto daquela escritura de partilha, com as legais consequências”.
No que respeita ao pedido principal, a apelante fundou a sua pretensão (causa de pedir) no seguinte: no exercício da sua atividade comercial forneceu mercadoria, pelo preço global de 40.000,00 euros, à sociedade EMP02..., Lda., de que a apelante AA era a única gerente; a EMP02..., Lda., não lhe pagou o preço da mercadoria vendida e foi condenada, por acórdão, transitado em julgado, a pagar-lhe  a quantia de 39.200,36 euros, a título de capital em dívida, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal para as transações comerciais, a contar desde a data de vencimento de cada uma das faturas em causa na dita ação, até integral e efetivo pagamento; a sociedade devedora não pagou a referida quantia à apelante, tendo-lhe instaurado execução, onde foi penhorado o estabelecimento comercial da sociedade devedora, mas essa execução foi, entretanto,  suspensa, na sequência da sociedade devedora se ter apresentado a PER; a sociedade devedora foi declarada insolvente, por sentença proferida em 16/03/2016, transitada em julgado; os apelantes reclamaram o seu crédito no âmbito do processo de insolvência; por sentença de 02/11/2016, transitada em julgado, foi julgado verificado e graduado, como comum, aos apelantes um crédito global de 67.774,35 euros, à data, sobre a sociedade devedora; por acórdão de 23/11/2017, a insolvência da sociedade devedora foi qualificada como culposa, e foi declarada afetada pela qualificação a apelante AA, que foi condenada “a indemnizar todos os credores da sociedade insolvente”, que tivessem “reclamado os seus créditos e até ao limite dos montantes reclamados, reconhecidos e graduados, e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente”, ficando essa condenação “deferida para o momento em que fosse possível apurar, em concreto, o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente”; os apelados AA e BB eram casados no regime da comunhão de adquiridos; por sentença proferida por conservador do registo civil, em ../../2007, o casamento daqueles foi julgado extinto, por divórcio; por escritura outorgada  pelos apelados, em 25/07/2017, partilharam os bens comuns pertencentes aos extinto casal, no âmbito da qual adjudicaram a AA bens cujo valor real de mercado não é superior a 20.000,00 euros, enquanto a BB adjudicaram bens cujo valor de mercado é superior a 150.000,00 euros; quando outorgaram a escritura de partilha, a apelada AA já tinha sido condenada a indemnizar os credores da sociedade devedora, EMP02..., Lda., e agiram com o intuito de, dolosamente, impedirem a satisfação daqueles créditos; e da celebração da escritura de partilha resultou a impossibilidade ou agravamento da impossibilidade da apelante de obter a satisfação integral do crédito que detém sobre AA.
No que tange ao pedido subsidiário, os apelantes filiaram-no na alegação de que, ao outorgarem a escritura de partilha do património comum do extinto casal formado pelos apelantes, estes não quiseram, nem efetivamente realizaram, qualquer partilha do seu património comum, enquanto extinto casal, mas recorreram concertadamente a esse expediente com vista a, formalmente, subtraíram os bens do património comum da apelante AA e, assim, prejudicarem os credores desta, pelos fundamentos fácticos que concretizaram.
No saneador-sentença recorrido o julgador a quo julgou improcedente o pedido principal, com fundamento que: “Destinando-se a impugnação pauliana a proteger o património enquanto garante do cumprimento das obrigações do seu titular, é condição para o seu exercício, a existência de um crédito que justifique a sua utilização”; e adiantou que: “O direito da Autora a ser indemnizada pela Ré, atualmente, não existe e, poderá nunca vir a existir, dado que, a existência desse direito de crédito está dependente da condição de a liquidação da massa insolvente EMP02..., Lda., ser insuficiente para satisfação integral do crédito que a Autora tem sobre a mesma. Trata-se um direito de crédito (da Autora sobre a Ré) meramente hipotético/eventual, futuro. Só quando realizada a liquidação e esta se revelar insuficiente para satisfazer o crédito da A. sobre a EMP02..., Lda., é que se poderá concluir pela existência (ou não) de um direito de crédito da A. sobre a Ré. E tal liquidação terá de ser realizada por apenso ao processo de insolvência (e não nestes autos, (…). Não tendo ainda sido promovida a liquidação do ativo da insolvente EMP02..., Lda., o crédito de que a A. se arroga titular sobre a R., não existe, não passando de uma expectativa, que ainda não se encontra concretizada em direito, na esfera jurídica da A., e onde poderá nunca se vir a constituir. (…). Não se está perante uma situação de mera iliquidez ou de inexigibilidade do crédito da A. sobre a R., mas perante a inexistência do mesmo”.
Mais adiantou que: “No âmbito do processo de insolvência da EMP02..., Lda., foi aprovado e homologado, por sentença transitada em julgado, um plano de insolvência. Esse plano contempla o pagamento do crédito da A. sobre a insolvente, como crédito comum, e prevê que os créditos comuns serão pagos pela insolvente em 45 prestações mensais e sucessivas, com seis meses de carência de capital em dívida, após trânsito em julgado da sentença de homologação do plano. Perante o incumprimento desse plano por parte da insolvente, a A. tem de lançar mão do mecanismo do art. 218º do CIRE, interpelando a insolvente, por escrito, para que cumpra as obrigações incumpridas, acrescida de juros de mora, no prazo de 15 dias, a correr dessa interpelação, sob pena da moratória ou o perdão previstos no plano ficarem sem efeito – art. 218º, n.º 1, al. a) do CIRE -, repristinando-se os créditos originais da A. sobre a massa insolvente, ficando-lhe conferido o direito de instaurar novo processo de insolvência contra a insolvente, onde o património desta será apreendido para a massa insolvente e, caso seja liquidada essa massa e o seu produto seja insuficiente para satisfazer os créditos da A. sobre a insolvente, é que então se constituirá o direito de crédito da A. sobre a Ré, relativamente aos créditos insatisfeitos da A. sobre a insolvente”.
E concluiu que: “O valor do crédito da A. sobre a R., e, consequentemente, a sua existência, só poderá ser fixado em incidente de liquidação, a ser instaurado por apenso ao processo de insolvência, de acordo com os critérios estabelecidos na sentença que qualificou a insolvência como culposa. Antes de ocorrer o acima referido, inexiste direito de crédito da Autora, sobre a R.”, pelo que, “falta um pressuposto substantivo (ser a A. credora da R.) para que possa proceder a pretensão da Autora, de declaração de ineficácia da escritura de partilha, que terá assim de improceder”.
No saneador-sentença sob sindicância julgou-se, por sua vez, improcedente o pedido subsidiário, com fundamento de que: a declaração da nulidade da escritura de partilha, por simulação, “a prova de que o autor é titular de um direito de crédito sobre o devedor que praticou o ato nulo, constitui uma condição de procedibilidade, no sentido de que, não se provando esse direito de crédito, nunca o pedido poderá proceder”.
Os apelantes imputam ao assim decidido erro de direito, advogando que, contrariamente ao decidido, o crédito indemnizatório que lhe foi reconhecido sobre a apelada AA (no âmbito do acórdão que confirmou parcialmente a sentença da 1ª Instância, proferido no incidente de liquidação da insolvência como culposa), existe e trata-se de “uma obrigação certa, exigível e líquida, visto que a sua prestação encontra-se qualitativamente determinada, a obrigação encontra-se vencida e tem por objeto uma prestação cujo quantitativo está apurado, isto porque, quando a presente ação declarativa foi instaurada, já era possível apurar em concreto o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto daquela massa insolvente, sendo que tal valor corresponde à totalidade naqueles autos de insolvência. Para além de que, a recorrente tinha de lançar mão da presente ação declarativa quando o fez, perante o iminente esgotar dos prazos de caducidade, como forma precisamente de salvaguardar aqueles prazos e acautelar os direitos creditícios da recorrente sobre as respetivas garantias patrimoniais que foram colocadas em causa pelos recorridos. Naqueles autos de insolvência foi aprovado o plano de insolvência da sociedade comercial insolvente, sendo que, com a aprovação de tal plano, não se procedeu à liquidação do património daquela sociedade e, portanto, à repartição do produto obtido pelos seus credores, em conformidade, aliás, com a finalidade do processo de insolvência, constante do artigo 1.º do CIRE. Ademais, em 07/02/2018, foi determinado o encerramento dos autos de insolvência, com fundamento no trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência (cfr. artigo 230, n.º 1 al. b) do CIRE), não tendo os autos prosseguido para liquidação. Sucede que, por um lado, o plano de insolvência homologado não foi cumprido pela sociedade insolvente e, até à presente data, a recorrente não obteve qualquer pagamento, não obstante o plano de insolvência determinar somente um período de carência de seis meses.  A sociedade insolvente não possui património, em razão da conduta da recorrida e melhor espelhada na petição inicial que deu origem a estes autos e que se dá aqui por integralmente reproduzida por razões de economia processual. E, além disso, a recorrida, não obstante ter sido condenada em sede de incidente de qualificação da insolvência, não indemnizou os credores daquela sociedade insolvente até à presente data, nada tendo pago à recorrente”.
Vejamos se assiste razão à apelante para os erros de direito que assaca ao saneador-sentença recorrido.
Lê-se no art. 601º do CC, que: “Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios”.
Consagra-se na previsão acabada de transcrever, como regra, o princípio de que todos os bens do devedor (isto é, todos os que integram a sua esfera jurídico-patrimonial e que sejam suscetíveis de serem penhorados, quer os que já o integravam à data da constituição da obrigação, quer os que foram adquiridos posteriormente a essa constituição) respondem pelo cumprimento das suas obrigações[2].
O património do devedor constitui, assim, a garantia geral dos credores, garantia essa que se efetiva pela execução, uma vez que, caso o devedor não cumpra voluntariamente a obrigação, assiste ao credor o direito a instaurar contra aquele execução, nos termos estabelecidos no CC e nas leis de processo, com vista a obter a cobrança coerciva da obrigação de que é credor (art. 817º, n.º 1 do CPC).
Acontece que o credor pode praticar atos que levem à perda, total ou parcial, do seu património, levando à perda ou diminuição do seu ativo patrimonial (v.g., venda, doação, dação em pagamento, etc.), ou que agravem o seu passivo (v.g., assunção de dívidas de terceiro, prestação de fiança ou de aval a favor de débito alheio, etc.), colocando, assim, em crise a garantia geral que assiste aos credores, a qual, como se disse, se consubstancia no património do devedor suscetível de ser penhorado.
O instituto da impugnação pauliana tem raízes no direito romano e confere precisamente ao credor “a possibilidade de reagir contra atos praticados pelo devedor que inconvenientemente diminuam o ativo ou aumentem o passivo do património deste”[3].
Trata-se de um dos meios de conservação da garantia patrimonial que o legislador colocou ao dispor dos credores do devedor sempre que se confrontem com ato(s) deste que, mediante uma das vias já acima mencionadas (diminuição do ativo, ou aumento do passivo) coloque(m) em crise a garantia geral daqueles, assente no património do devedor suscetível de ser penhorado.
Com efeito, o instituto da impugnação pauliana confere ao credor o direito: à restituição dos bens na medida do seu interesse; a praticar atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei; e o direito de execução no património do obrigado à restituição (art. 616º, n.º 1, do CC).
Enfatize-se, porém, que, julgada procedente a ação de impugnação pauliana, qualquer um dos direitos que se acabam de referir (que, por via dessa procedência, são reconhecidos ao credor demandante, que, com êxito, impugnou o ato realizado pelo seu devedor determinativo da diminuição do seu ativo patrimonial ou que aumentou o seu passivo), apenas aproveitam (isto é, são conferidos) ao credor que impugnou, com êxito, aquele ato do devedor (art. 616º, n.º 4 do CC).
Deriva do que se acaba de  dizer que, por um lado, em caso de procedência da ação de impugnação pauliana, os direitos dela decorrentes para o credor/demandante apenas aproveitam a este (não aos restantes credores que o devedor possa ter), e são-lhe concedidos apenas na estrita medida em que tal seja necessário à satisfação do crédito que detém sobre o devedor; e, por outro, que a pauliana configura uma ação pessoal (não real), uma vez que que a sua procedência não determina a invalidade (nulidade ou anulabilidade do ato praticado pelo devedor), mas apenas confere ao impugnante um direito pessoal de restituição, de conservação e de execução.
Neste sentido obtemperam Pires de Lima e Antunes Varela que: “O caráter pessoal da impugnação aparece afirmado especialmente nos n.ºs 1 e 4 deste artigo: o primeiro, ao atribuir ao credor o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse; o segundo, não atribuindo aos outros credores quaisquer direitos sobre esses bens. (…). Por outro lado, sacrificando o ato apenas na medida do interesse do credor impugnante, mostra-se claramente que ele não está afetado por qualquer vício intrínseco capaz de gerar a sua nulidade, pois se mantém de pé, como ato válido, em tudo quanto excede a medida daquele interesse”[4].
Enfatize-se que, dada a natureza da ação de impugnação pauliana (a qual implica uma intromissão na esfera jurídico-patrimonial do terceiro que beneficiou ou celebrou com o devedor o ato impugnado), compreende-se que o legislador tenha submetido o recurso a essa ação a uma série de pressupostos, de natureza cumulativa, que se distribuem entre: requisitos gerais (por terem de estar presentes em todas as ações de impugnação pauliana, quer quando o ato a impugnar tiver natureza onerosa, quer quando tiver natureza gratuita); e o pressuposto especial, por apenas ser aplicável quando o ato a impugnar tiver natureza onerosa.
Os pressupostos gerais encontram-se discriminados no art. 610º do CC, e reconduzem-se aos seguintes requisitos legais cumulativos: 1º- a existência de determinado crédito do demandante sobre o devedor demandado; 2º- que esse crédito seja anterior ao ato ou negócio jurídico a impugnar (respetivamente, praticado pelo devedor a favor do terceiro demandado, ou celebrado entre aquele e esse terceiro) ou, sendo posterior, que esse ato ou negócio jurídico tenha sido realizado/celebrado dolosamente com o fim de impedir o direito do futuro credor; e 3º- que desse ato ou negócio resulte a impossibilidade, para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade. Se o ato a impugnar tiver natureza onerosa, a esses requisitos gerais cumulativos acresce o pressuposto especial do art. 616º, n.º 1 do CC, da má fé do devedor e do terceiro, entendendo-se, para esses efeitos, “por má fé a consciência (de devedor e de terceiro) do prejuízo que o ato causa ao devedor” (n.º 2, do art. 616º)[5].
Acresce dizer que, tratando-se de requisitos constitutivos do direito do credor impugnante a que lhe seja reconhecido o direito pessoal à restituição, à conservação e à execução, nos termos dos arts. 5º, n.º 1 do CPC e 342º, n.º 1 do CC, recai sobre o credor demandante/impugnante o ónus de alegação e da prova de facticidade integrativa de todos os pressupostos cumulativos que se acabam de elencar, enquanto ao devedor ou ao terceiro interessado (demandados), enquanto facto impeditivo do direito que é exercido pelo credor demandante, impende o ónus de alegação e de prova de que o devedor (obrigado) possui bens penhoráveis de igual ou maior valor ao crédito a que se arroga titular o credor demandante (art. 611º do CC e arts. 5º, n.1 do CPC, 342º, n.º 2 do CC).
Assentes nas premissas que se acabam de elencar, revertendo ao caso dos autos, a questão neles suscitada quanto à existência do crédito que a apelante EMP01... alega deter contra a apelada AA foi tratada pelo aqui relator no âmbito do acórdão de 18/06/2020, Proc. 464/19...., que igualmente relatou, e em cujas considerações jurídicas se ancorou o julgador a quo para concluir, no âmbito do saneador-sentença recorrido, que o crédito invocado pela apelante sobre aquela, à data da propositura da presente ação, tem natureza meramente hipotética, eventual e futura, não se tratando de uma situação de iliquidez, nem de inexigibilidade desse crédito, mas antes de inexistência do mesmo, e julgar, consequentemente, improcedente o pedido principal e absolver os apelados desse pedido, solução jurídica essa que, salvo melhor entendimento, é aquela que se impõe efetivamente ser adotado no âmbito dos presentes autos.
No âmbito daquele acórdão, proferido nuns autos de arresto instaurados pela aqui apelante (EMP01..., Lda.) contra a aqui apelada (AA), escreveu-se o seguinte:
“No caso dos autos, o crédito que a apelada invoca e que visa acautelar através do arresto reconduz-se ao crédito relativo ao preço das vendas que a mesma efetuou à sociedade “EMP02..., Lda.”, acrescida dos juros de mora vencidos e que não terá obtido satisfação com a liquidação do ativo dessa sociedade.
À data daquelas compras e vendas e aquando da insolvência da “EMP02..., Lda.”, a apelante era sócia e a única gerente dessa sociedade.
A sociedade “EMP02..., Lda.” veio a ser declarada insolvente em 16/03/2016, por sentença transitada em julgado, proferida no Proc. 1512/15...., do Tribunal Judicial da Comarca de – Juízo Local Cível ... – Juiz ....
A apelante veio reclamar esse crédito nesse processo de insolvência, onde o mesmo veio a ser reconhecido e graduado como comum, por sentença proferida em 02/11/2016, transitada em julgado (cfr. doc. de fls. 92 a 96).
Nesse processo de insolvência foi proferida sentença, entretanto transitada em julgado, no âmbito do incidente de qualificação da insolvência, que qualificou a insolvência como culposa e condenou a aqui apelante AA, enquanto gerente da insolvente, a indemnizar todos os credores da insolvente “EMP02..., Lda.”, que tivessem reclamado os seus créditos e até ao limite dos montantes reclamados, reconhecidos, graduados e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente (cfr. doc. de fls. 81 a 91).
Acresce que, nesse processo de insolvência, foi apresentado, aprovado e homologado, por sentença transitada em julgado, um plano de insolvência, onde se prevê uma moratória para o pagamento do crédito detido pela apelante sobre a sociedade “EMP02..., Lda.” e satisfação/cumprimento desse crédito em determinadas condições (cfr. documentos de fls. 91 a 100).
O crédito que a apelada alega como fundamento do arresto e que visa acautelar mediante o decretamento deste é precisamente o crédito que aquela reclamou e que lhe foi reconhecido e graduado no processo de insolvência, por sentença aí proferida e transitada em julgado, e que não terá obtido satisfação com a liquidação do ativo da insolvente “EMP02..., Lda.”, pretendendo a apelante que, na sequência da sentença proferida nesse processo insolvencial, no âmbito do incidente de qualificação da insolvência, que a qualificou como culposa e que condenou a apelante AA a indemnizar todos os credores da insolvente que tivessem reclamado os seus créditos até ao limite dos montantes reclamados, reconhecidos e graduados, e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente, detém esse crédito indemnizatório contra a apelante, dado que o mesmo não obteve satisfação em sede de liquidação do ativo da insolvente, uma vez que o processo insolvencial se encontra encerrado.
Neste âmbito, convém esclarecer não convir confundir o crédito da apelada sobre a sociedade insolvente “EMP02..., Lda.”, cuja existência se encontra declarada no processo de insolvência, por sentença transitada em julgado, que o reconheceu e graduou como comum, mas que não é o crédito que se visa acautelar com o presente arresto, com o direito de crédito que a apelada pretende ver acautelado mediante o decretamento do arresto, cujo sujeito passivo não é a sociedade insolvente, mas antes a apelante AA, gerente desta, que se funda na sentença condenatória proferida no  âmbito do incidente de qualificação dessa insolvência e que qualificou a insolvência como culposa.
O crédito que está em causa nos presentes autos é assim o crédito a que se reporta a al. e), do n.º 2 do art. 189º do CIRE, que resulta da responsabilização pessoal e solidária da apelante, enquanto gerente da sociedade da insolvente, pela satisfação da indemnização devida à apelada quanto aos créditos que esta reclamou nos autos de insolvência e que aí foram reconhecidos e graduados, mas que não foram satisfeitos pelo produto da massa insolvente e a “ser deferida para momento em que for possível apurar em concreto o valor dos créditos não satisfeitos pelo produto da massa insolvente” – vide parte dispositiva do acórdão de fls. 81 a 90.
A propósito dessa condenação, conforme ponderam Carvalho Fernandes e João Labareda, esta “constitui um imperativo do tribunal. Se for declarada a culpa, o juiz não tem a faculdade de excluir a responsabilidade do culpado. Sucederá muitas vezes – porventura nas mais delas – que, ao tempo da decisão do incidente de qualificação, o estado de liquidação da massa não permitirá fixar de imediato o valor a indemnizar, por não estar definitivamente apurado o diferencial entre o ativo e o passivo. Mas também pode acontecer o contrário (…). Quando, realmente, o processo permite saber, com grau suficiente de segurança, quanto é que os credores não conseguirão receber à custa da massa, então o tribunal, de imediato, deve fixar nesse valor o montante indemnizatório pelo qual respondem os culpados. Se assim não for, então esse valor só poderá ser apurado em liquidação de sentença, tendo em conta os critérios que o juiz estabelecer (…)”, devendo essa liquidação ter “lugar por apenso ao próprio processo de insolvência”.
Reportando-se aos casos em que o juiz não dispôs de elementos para, desde logo, na sentença que qualificou a insolvência como culposa, fixar a indemnização devida pelos afetados pela qualificação da insolvência como culposa e em que, consequentemente, essa liquidação foi relegada para incidente de liquidação, segundo esses autores, o n.º 4 do art. 189º do CIRE impõe que o juiz fixe os “critérios a utilizar na futura quantificação dos prejuízos, em sede de liquidação da sentença” e ponderam que “o significado relevante do n.º 4 será o de permitir ao juiz referenciar fatores que, designadamente em razão de circunstâncias do processo, devam mitigar o recurso, puro e simples, a meras operações aritméticas de passivo menos resultado do passivo”, concluindo: “neste quadro, haverá, aliás, espaço para uma reflexão atinente ao grau de culpa atribuído aos atingidos pela qualificação da insolvência”[6].
Deriva do que se vem dizendo que o valor da indemnização devida pela apelante AA, afetada pela qualificação da insolvência da sociedade de que era gerente, a “EMP02..., Lda.” à apelada, que foi condenada pessoal e solidariamente com a insolvente a indemnizá-la pelos créditos que a primeira reclamou nos autos de insolvência e que viu aí reconhecidos e graduados por sentença transitada em julgado, que não viessem a ser satisfeitos pelo produto da massa insolvente, a liquidar “para momento posterior” (conforme se escreve na parte dispositiva do acórdão de fls. 81 a 90 dos autos), só poderá ser fixado em incidente de liquidação dessa indemnização, a ser instaurado por apenso ao próprio processo de insolvência, uma vez verificado que seja que o crédito reclamado pela apelada, reconhecido e graduado nesse processo insolvencial não foi satisfeito (total ou parcialmente) pelo produto da liquidação da massa insolvente da “EMP02...”, carecendo essa indemnização de ser aí liquidada em função dos critérios fixados pelo juiz na sentença que qualificou a sentença como culposa.
Daqui deriva que a condenação de que foi objeto a apelante AA no âmbito da sentença que qualificou a insolvência da “EMP02..., Lda.” como culposa é absolutamente genérica e imprecisa, antes de se proceder à liquidação da massa apreendida à insolvente, uma vez que o direito da apelada a obter essa indemnização da apelante poderá nem sequer existir, uma vez que a existência desse direito indemnizatório está dependente da condição da liquidação da massa ser insuficiente para satisfação integral do crédito que a apelada detém sobre a “EMP02..., Lda.”, que esta reclamou e viu verificado e graduado no processo de insolvência, se mostrar insuficiente para satisfazer esse crédito da apelada sobre a insolvente.
Do que se acaba de dizer decorre que o crédito indemnizatório de que a apelada se arroga titular e cujo cumprimento a mesma visou acautelar mediante o arresto do património da apelante é um direito de crédito meramente futuro, hipotético e eventual e, por isso, seguramente, não atual[7] à data da instauração do arresto  e à data do decretamento deste, uma vez que se encontra dependente de, uma vez feita a liquidação da massa insolvente, esta se revelar insuficiente para satisfazer essa crédito que a apelada detém sobre a insolvente, altura em que apenas, e só então, se poderá ou não concluir pela existência desse crédito indemnizatório da apelante sobre a apelada e que aquela o poderá e terá de liquidar, por apenso aos autos de insolvência, onde o juiz terá de fixar o quantum dessa indemnização de acordo com os critérios definidos na sentença que qualificou a insolvência como culposa.
Ora, não tendo à data da instauração da presente providência cautelar de arresto, sequer aquando do seu decretamento (sequer ainda atualmente) sido promovida a liquidação do ativo da insolvente “EMP02..., Lda.”, é apodítico que o crédito indemnizatório que a apelada se arroga titular perante a apelante, não existe, não passando de um direito de crédito futuro, de natureza eventual e hipotética, isto é, de uma mera expectativa, que ainda não se encontra concretizada em direito na esfera jurídica da apelada e onde poderá nunca, sequer, vir a constituir-se.
Na verdade, a existência desse pretenso direito de crédito indemnizatório que a apelada se arroga titular perante a apelante AA encontra-se absolutamente dependente da circunstância do crédito reconhecido e graduado na sentença de verificação e graduação de créditos proferida no processo insolvencial da “EMP02...” que a apelada detém sobre a última não ser satisfeito pelo produto da massa insolvente da “EMP02...”, o que significa que se a massa for suficiente para dar satisfação a esse crédito, o crédito indemnizatório sobre a apelante AA nem sequer se constituirá.
Para saber se esse crédito indemnizatório da apelada sobre a apelante AA existe, não fora a circunstância de nos autos de insolvência da “EMP02..., Lda.” ter sido aprovado um plano de insolvência (o que acarreta a especialidade que infra se enunciará) tinha, pois, que se promover essa liquidação da massa insolvente e de se aguardar por essa liquidação e pelos pagamentos.
Com efeito, com o produto da liquidação da massa insolvente, antes de proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, o administrador teria de deduzir da massa insolvente os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta, incluindo as que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo (art. 172º, n.ºs 1 e 2 do CIRE).
De seguida, o administrador teria de efetuar o pagamento aos credores garantidos, com respeito pela prioridade que lhes coubesse, devendo incluir como crédito comum o saldo remanescente que não obtivesse satisfação à custa do produto dos bens onerados (art. 174º, n.º 1 do CIRE).  Esse valor é necessariamente uma incógnita, por ser desconhecido o valor daquela liquidação.
O n.º 2 do art. 174º prevê que sejam feitos rateios entre os credores comuns antes que estejam liquidados bens sobre os quais incidem garantias reais.
A estimativa do valor a incluir nesses rateios “não pode deixar de constituir uma atribuição do administrador da insolvência, a quem, por um lado, está cometida a competência geral para a liquidação e, por outro, a de propor, sendo caso disso, os planos e mapas de rateio que entenda ser efetuados, embora tenha de obter o parecer da comissão de credores, se existir (ex vi do art. 178º, n.º 1)”[8].
Pagos os créditos garantidos à custa dos bens sobre os quais incide a garantia de que gozam, o saldo que remanescer, isto é, dos créditos desses credores garantidos que ficaram por satisfazer, concorrem então com os credores comuns ao produto da venda dos demais bens, apenas podendo esses créditos comuns ser pagos após a satisfação integral dos que sobre eles têm prioridade. Finalmente, caso o produto da massa não seja suficiente para satisfazer todos os créditos comuns, o pagamento desses créditos é feito rateadamente (art. 176º do CIRE).
Decorre do que se vem dizendo, que apenas uma vez feitas todas essas operações de liquidação do ativo da massa insolvente e feitos os enunciados pagamentos do passivo é que se poderia saber se o crédito que a apelada detém sobre a insolvente “EMP02..., Lda.”, que foi verificado e graduado, por sentença transitada em julgado proferida nos autos de insolvência, foi ou não suficiente para satisfazer o crédito da apelada e só perante a constatação da insuficiência do produto da massa insolvente é que se poderia concluir se a apelante AA se encontra ou não constituída no dever indemnizatório perante a apelada nos termos fixados na sentença proferida no incidente de qualificação da insolvência como culposa, que a condenou a indemnizar todos os credores da sociedade insolvente “EMP02..., Lda.” que tivessem reclamado os seus créditos (como é o caso da aqui apelada), até ao limite dos montantes reclamados, reconhecidos e graduados e não satisfeitos pelo produto da massa insolvente.
Até lá esse crédito indemnizatório da apelada sobre a apelante AA, reafirma-se, afirma-se como crédito meramente futuro, hipotético, de natureza eventual, quiçá, uma mera expectativa, que poderá ou não constituir-se na esfera jurídica da apelada.
Assim, apenas feita a liquidação do ativo da insolvente “EMP02...” e feitas as retenções pelo administrador de insolvência e os pagamentos dos créditos privilegiados e feitos os necessários rateios dos créditos comuns é que perante a constatação da insuficiência da massa para satisfazer o crédito detido pela apelada sobre a insolvente “EMP02..., Lda.”, é que se constituía (ou não) o direito indemnizatório da apelada sobre a apelante AA, fixado na sentença condenatória proferida  em sede de incidente de qualificação da insolvência como culposa, podendo então passar-se à liquidação do quantum desse crédito indemnizatório – só a partir de então, uma vez constatada a existência desse crédito indemnizatório perante aquela insuficiência da massa para satisfazer o crédito da apelada sobre a insolvente, é que se podia falar em existência desse crédito indemnizatório, o qual, dada a sua iliquidez, teria de ser liquidado por apenso aos autos de insolvência, onde este carecia de ser liquidado/fixado de acordo com os critérios estabelecidos na sentença que qualificou a insolvência como culposa.
Logo, enquanto a massa da insolvente “EMP02...” não for liquidada e não se realizarem as descritas operações destinadas ao pagamento do passivo aprovado no processo de insolvência, não existe na esfera jurídica da apelada qualquer crédito indemnizatório sobre a apelante, não se estando perante qualquer situação de iliquidez e de inexigibilidade desse crédito, mas de inexistência do mesmo na esfera jurídica da apelada.
Acontece que apesar de ao decretamento da providência cautelar de arresto a lei se bastar  com a séria probabilidade da existência do crédito, contrariamente ao entendimento sufragado pela 1ª Instância na sentença sob sindicância, a jurisprudência é unânime no sentido de que o crédito cuja garantia patrimonial se visa salvaguardar com o arresto tem de ser atual, já constituído, vigente, não podendo ser um crédito meramente futuro, hipotético, de natureza eventual, ainda que provável, à data em que é instaurado o processo de arresto e em que este é decretado[9].
Neste sentido escreve Abrantes Geraldes, ao diferenciar crédito ilíquido de crédito futuro que “o primeiro integra-se já na esfera jurídica do interessado; por seu lado, a correspetiva obrigação já onera o património do devedor. Já no que concerne aos créditos futuros, a sua constituição ainda está dependente de eventos vindouros, podendo existir, porventura, uma expectativa quanto à sua concretização, mas que não encontra nas regras do arresto qualquer espécie de tutela (…) a probabilidade de existência do direito exigida como condição necessária ao decretamento do arresto reporta-se ao momento da instauração do procedimento, não bastando a formulação de um juízo de probabilidade quanto à sua constituição dependente de eventos futuros e incertos”[10].
Na mesma linha pronuncia-se Paulo Silva Campos, ao ponderar que ao decretamento do arresto “não é necessário que o crédito seja certo, líquido e exigível à data da instauração ou do deferimento, mas tão só que, a nível de uma indagação sumária, se verifique uma indiciária probabilidade ou verosimilhança da sua existência. Mas não é suficiente um crédito futuro, um crédito futuro que no momento ainda não existe na esfera jurídica do credor requerente da providência e dada a sua natureza, poderá nunca vir a constituir-se, porquanto a sua constituição está dependente de eventos posteriores e incertos, podendo existir quiçá uma mera expectativa quanto à sua concretização. Porém, não se mostra como fundamento satisfatório para legitimar o recurso a esta figura, como meio conservatório da garantia patrimonial dessa expectativa, tanto mais que não se encontra na disciplina do arresto qualquer espécie de tutela. Seria de sujeitar no presente, o património de um possível e futuro devedor a um ónus que podia revelar-se totalmente injustificado no momento de nascer o direito, por não se verificar os pressupostos que lhe estiveram então subjacentes. Sintetizando, o crédito deve existir na data do arresto, pois o arresto destina-se a garantir créditos atuais e não futuros”[11].
Decorre do que se vem dizendo, que na data em que a apelada instaurou o presente procedimento cautelar especificado de arresto e em que este foi decretado, o crédito indemnizatório que aquela se arroga titular perante a apelante não existia, sequer continua, no presente, a existir, uma vez que ainda não se procedeu à liquidação da massa insolvente da “EMP02...”, sequer se deu início aos pagamentos, desconhecendo-se, por isso, se o produto dessa liquidação é ou não suficiente para dar satisfação ao crédito da apelada que se encontra reconhecido e graduado nos autos de insolvência, condição de cuja verificação está dependente o nascimento na esfera jurídica da apelada do crédito indemnizatório que lhe foi reconhecido na sentença que qualificou a insolvência como dolosa e que esta visa acautelar com o arresto.
E não existindo esse crédito indemnizatório, à data em que foi instaurado o arresto e em que este foi decretado, o qual então não passava (e continua a não passar) de um crédito futuro, hipotético, de natureza meramente eventual, ainda que provável, uma mera expectativa, não se verifica o pressuposto da provável existência desse crédito que a apelada visa garantir com o arresto que requereu.
Acresce precisar que no âmbito processo de insolvência objeto presentes autos, foi aprovado e homologado, por sentença transitada em julgado, um plano de insolvência (cfr. documentos de fls. 98 a 100).
Esse plano contempla o pagamento do crédito da apelada sobre a insolvente “EMP02..., Lda.”, como crédito comum e prevê que os créditos comuns serão pagos pela insolvente em 48 prestações mensais e sucessivas, com seis meses de carência de capital em dívida, após o trânsito em julgado da homologação do plano.
O plano de insolvência é o meio preferencial eleito pelo legislador para satisfazer os interesses dos credores (art. 1º do CIRE), mediante o afastamento de parte do regime jurídico previsto no CIRE para o processo insolvencial, podendo ou não o plano perseguir ainda finalidades liquidatárias.
Na verdade, o plano pode ter finalidades liquidatárias e regular o pagamento dos créditos sobre a insolvência, a liquidação da massa insolvente e a sua repartição pelos credores ou a responsabilidade do devedor após o termo do processo de insolvência, mas pode ainda ter a finalidade de recuperação da empresa e regular as medidas para a atingir[12].
Acontece que prevendo aquele plano que os créditos comuns seriam pagos, após um período de carência de seis meses, em 48 prestações mensais e sucessivas, daqui decorre que, tendo os credores autolimitado os seus direitos sobre o insolvente nos termos fixados no plano, decorrido o período de carência de seis meses para se iniciar o pagamento dos créditos comuns, como é o caso do crédito detido pela apelada sobre a insolvente “EMP02..., Lda.”, perante o incumprimento desta desse plano,  tinha a apelada de lançar mão do mecanismo previsto no art. 218º do CIRE, interpelando a  insolvente por escrito para que cumprisse as prestações insatisfeitas, acrescidas de juros de mora, no prazo de 15 dias, a contar dessa interpelação escrita, sob pena da moratória e o perdão previstos no plano ficarem sem efeito (al. a), do n.º 1 do art. 218º), repristinando-se os créditos originais da apelada sobre a apelante e de lhe ficar conferido o direito potestativo de instaurar novo processo de insolvência contra a insolvente, onde o património desta seria apreendido para a massa insolvente e, caso, uma vez liquidada essa massa, o produto não fosse suficiente para satisfazer os créditos que a apelada tinha reclamado no processo de insolvência onde o plano insolvencial tinha sido aprovado e que viu aí a ser reconhecido e graduado por sentença transitada em julgado, ficar a apelante AA constituída na obrigação indemnizatória em relação aos créditos insatisfeitos, fixada na sentença que tinha qualificado a insolvência como culposa.
Ora, no caso dos autos, a apelada e arrestante não alega, sequer, na petição inicial em que requereu o arresto do património da apelante AA com vista a garantir o crédito indemnizatório a que se arroga titular perante a pretensa insatisfação do seu crédito por insuficiência da massa insolvente da “EMP02..., Lda.” que tivesse interpelado, por escrito, a insolvente “EMP02..., Lda.”, nos termos previstos no art. 218º, n.º 1, al. a) do CIRE.
Deste modo, conforme se escreve no acórdão desta Relação de 06/12/2018, proferido no âmbito do Proc. 1512/15....., junto aos presentes autos a fls. 107 a 121, sem aquela interpelação escrita da insolvente por parte da apelada “não se pode sequer falar em incumprimento do plano de insolvência” por parte da insolvente “EMP02..., Lda.”, pelo que nem sequer estão verificadas as condições para que a apelada pudesse desenvolver os mecanismos processuais tendentes à liquidação do património daquela insolvente, apenas no termo do qual, perante uma eventual insuficiência desse património para satisfazer o crédito da apelada verificado e graduado nessa insolvência, é que se poderia concluir (ou não) pela existência, na esfera jurídica da apelada, do direito indemnizatório (a liquidar) a que se arroga titular sobre a aqui apelante e que lhe foi fixado nos termos da sentença que qualificou como culposa a insolvência da “EMP02..., Lda.”.
Decorre do que se vem dizendo que porque o pretenso crédito indemnizatório que a apelada se arroga titular perante a apelante e que a mesma visa acautelar com o arresto do património da última era, à data da instauração do presente procedimento cautelar de arresto e do respetivo decretamento (e continua a sê-lo) meramente futuro, hipotético e eventual e como tal insuscetível de preencher os requisitos legais necessários ao decretamento do arresto, impõe-se concluir pela procedência deste fundamento de recurso e, em consequência, julgar a oposição ao arresto procedente e ordenar o levantamento do arresto decretado”.
As considerações jurídicas explanadas no acórdão que, em parte, se acabou de transcrever, são integralmente transponíveis, com as necessárias adaptações, para o caso sobre que versam os autos.
Na verdade, atenta a causa de pedir eleita pela apelante e que alegou na petição inicial, o crédito de que se arroga titular sobre a apelada AA é o crédito que deriva da qualificação como culposa da insolvência da sociedade devedora, EMP02..., Lda., de AA ter sido declarada afetada por essa qualificação e de, nessa sequência, ter sido condenada a indemnizar os credores da insolvência, cujos créditos (julgados verificados e graduados na sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado, proferida nos autos de insolvência, onde se inclui o crédito que a apelante detém sobre a sociedade devedora) permanecessem insatisfeitos, uma vez liquidada a massa insolvente, por acórdão, transitado em julgado, que assim decidiu.
No dito acórdão sujeitou-se, assim, a indemnização que nele se reconheceu à apelante sobre a apelada AA a duas condições futuras, ambas com natureza suspensiva, a saber: 1ª- a liquidação da massa insolvente; e 2ª- a insuficiência do produto decorrente da liquidação da massa insolvente para satisfazer o crédito da apelante sobre a sociedade devedora (EMP02..., Lda.).
Destarte, conforme se salientou no acórdão acima identificado, enquanto essas duas condições futuras e suspensivas do direito à indemnização que assiste à apelante sobre a apelada AA não se verificarem, esse direito indemnizatório: por um lado, apenas pode ser fixado em incidente de liquidação, a ser instaurado por apenso ao processo de insolvência, uma vez verificado que seja que, liquidada a massa insolvente, o respetivo produto foi insuficiente para satisfazer o crédito que a apelante (e outros credores, que viram os seus créditos julgados verificados na sentença de verificação e graduação de créditos proferida e que transitou em julgado) detêm sobre a sociedade devedora (EMP02..., Lda.); e, por outro, enquanto não for concluída a liquidação da massa insolvente e não se proceder ao pagamento dos credores da insolvência com o produto da liquidação da massa (operações a serem realizadas no processo de insolvência da sociedade devedora), desconhece-se se o produto da liquidação é (ou não) suficiente para satisfazer o crédito que a apelante detém sobre a sociedade devedora e, consequentemente, se lhe assiste (ou não) o crédito indemnizatório que se arroga titular sobre a apelada AA (e que lhe foi reconhecido, por acórdão transitado em julgado, mas sujeito a essas duas condições suspensivas).
Daí que, enquanto não se verificarem as duas condições (liquidação da massa insolvente e distribuição do respetivo produto pelos credores da insolvência), o crédito indemnizatório de que a apelante se arroga titular sobre a apelada AA não passa de um direito de crédito meramente futuro, hipotético e eventual; e, por isso, seguramente não atual, que, no limite poderá nunca se chegar a constituir na esfera jurídico-patrimonial daquela (basta que para tal o produto da liquidação da massa insolvente seja suficiente para satisfazer o crédito da apelante sobre a devedora EMP02..., Lda.).
Ora, a apelada AA alegou (na contestação) e provou que, no âmbito do processo de insolvência, foi apresentada pela devedora EMP02..., Lda. um plano de insolvência, em que se prevê que o crédito da apelante sobre aquela lhe seria integralmente satisfeito pela devedora (após o decurso de um período de carência de seis meses, a contar do trânsito em julgado da sentença que viesse a homologá-lo, em 48 prestações mensais, iguais e sucessivas); e que esse plano veio a ser aprovado e homologado, por sentença transitada em julgado, na sequência do que, em 07/02/2018, foi determinado o encerramento do processo de insolvência (cfr. pontos 14º e 15º dos factos apurados).
Destarte, deriva do que se vem dizendo que as duas condições suspensivas impostas à indemnização da apelante sobre a apelada AA (a liquidação da massa insolvente e a insuficiência do respetivo produto para satisfazer o crédito da apelante sobre a devedora EMP02..., Lda.) nunca mais se poderão verificar, exceto se o plano de insolvência tiver sido incumprido pela devedora (mora) e, perante esse incumprimento, a apelante tiver reagido pelo modo estabelecido no art. 218º do CIRE.
Com efeito, homologado o plano de insolvência e encerrado o processo de insolvência, por decisões judiciais transitadas em julgado, sem que tivesse sido liquidada a massa insolvente, esta jamais poderá vir a ser liquidada no âmbito daquele processo de insolvência e, por isso, as duas condições a que se subordinou a constituição do direito indemnizatório reconhecido à apelante sobre a apelada AA nunca mais se poderão vir a verificar.
Por outro lado, caso a devedora tivesse incumprido o plano de pagamento aprovado e homologado, por sentença transitada em julgado, como tudo indica ser o caso (mas que a apelante não alegou, na petição inicial, e que, por isso não pôde provar – art. 5º, n.º 1, do CPC), também como se deixou exarado no acórdão acima identificado, a apelada teria de ter lançado “mão do mecanismo previsto no art. 218º do CIRE, interpelando a  insolvente, por escrito, para que cumprisse as prestações insatisfeitas, acrescidas de juros de mora, no prazo de 15 dias, a contar dessa interpelação escrita, sob pena da moratória ou o perdão previstos no plano ficarem sem efeito (al. a), do n.º 1 do art. 218º), repristinando-se os créditos originais da apelada sobre a devedora (EMP02..., Lda.) e de lhe ficar conferido o direito potestativo de instaurar novo processo de insolvência contra” a última.
Não tendo a apelante alegado, na petição inicial, ter procedido à mencionada notificação admonitória escrita da devedora EMP02..., Lda. (relembra-se que nem sequer alegou ter ocorrido a aprovação e homologação de plano de insolvência, por sentença transitada em julgado, nem o eventual incumprimento desse plano pela devedora EMP02..., Lda. quanto ao seu crédito), ficou impedida de provar, quer ter procedido a essa notificação, quer o eventual incumprimento do plano pela devedora quanto ao seu crédito; e que, consequentemente, o direito indemnizatório que lhe foi reconhecido sobre a apelada AA se chegou a constituir efetivamente na sua esfera jurídico-patrimonial.
Deriva do excurso antecedente, em suma, que a apelante não provou que o crédito indemnizatório que alega deter sobre AA se chegou a constituir na sua esfera jurídico-patrimonial, pelo que, tal como decidido pela 1ª Instância, tem de se julgar improcedente o pedido principal que formulou.
Acresce dizer que o pedido principal tinha de improceder, por uma outra razão.
Com efeito, lê-se, no art. 614º, n.º 1 do CC, que: “Não obsta ao exercício da impugnação o facto de o direito do credor não ser ainda exigível”, mas acrescenta-se, no n.º 2 do mesmo preceito, que: “O credor sob condição suspensiva pode, durante a pendência da condição, verificados os requisitos da impugnabilidade, exigir a prestação da caução”, o que significa que se a iliquidez do crédito não obsta a que credor recorra à ação de impugnação pauliana em prol da conservação da garantia patrimonial do crédito (ainda ilíquido) que detém sobre o devedor, já tratando-se de crédito sujeito a condição suspensiva (como é o caso do crédito indemnizatório que o apelante detém sobre a apelada AA, conforme resulta do antedito), aquele não pode recorrer ao instituto da impugnação pauliana, mas apenas exigir que AA lhe prestasse caução para garantir a satisfação desse crédito indemnizatório, caso este se viesse a constituir.
Nesse sentido, asseveram Pires de Lima e Antunes Varela, que o art. 614º do CC resolveu “dúvidas que se suscitavam anteriormente. Discutia-se se o credor a prazo e o credor condicional podiam usar da impugnação pauliana. Quanto ao primeiro, solucionou-se afirmativamente o problema. A solução é paralela à fixada no art. 607º, em matéria de sub-rogação. O seu direito é já certo, escreve Vaz Serra, e pode ter interesse legítimo em impugnar o ato antes de vencido o seu crédito, para impedir que os bens se percam ou se inutilizem as provas a produzir na ação. Quanto ao segundo, adotou-se a solução inversa; não deve permitir-se a anulação de um ato que, no caso de não verificação da condição suspensiva de que depende o crédito, não poderia ser anulado. Para não prejudicar os direitos eventuais do credor, permite-se-lhe, todavia que exija uma caução. É a doutrina do n.º 2. Não sendo a caução prestada, aplicar-se-á o disposto no art. 625º. Se o credor a prazo pode usar a impugnação pauliana,  por igualdade ou maioria de razão poderá recorrer a ela o titular de crédito ilíquido, pois a iliquidez da dívida não obsta à verificação de qualquer dos requisitos essenciais da impugnação”[13].
Decorre do exposto que, ao julgar o pedido principal improcedente, a 1ª Instância não incorreu em nenhum dos erros de direito que a apelante assaca ao saneador-sentença recorrido, improcedendo o fundamento de recurso que se acaba de apreciar.

B- Do pedido subsidiário – legitimidade substantiva para deduzir o pedido de nulidade da escritura pública de partilha, por simulação.
A apelante pediu, a título secundário, que se declarasse a nulidade, por simulação, da escritura de partilha outorgada entre os apelados (Réus) em 25/07/2017 e, em consequência, os bens que dela foram objeto fossem restituídos ao património conjugal, e fossem cancelados todos os registos de disposição que tenham sido efetuados, ou que venham a ser efetuados, sobre os mesmos, com as legais consequências.
Esse pedido subsidiário foi julgado improcedente pelo julgador a quo com fundamento de que: “numa ação que vise a declaração de nulidade, a prova de que o autor é titular de um direito de crédito sobre o devedor que praticou o ato nulo, constitui condição de procedibilidade, no sentido de que, não se provando esse direito de crédito, nunca o pedido poderá proceder”, pelo que, não tendo a apelante feito prova da existência do direito indemnizatório a que se arroga titular sobre a apelada AA, falta-lhe legitimidade substantiva para requerer a declaração de nulidade da escritura”.
Insurge-se a apelante contra o decidido, imputando-lhe erro de direito.
Vejamos se lhe assiste razão.
Lê-se no art. 286º do CC que: “A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal”.
Por sua vez, referindo-se especificamente à legitimidade para invocar a nulidade de negócio, decorrente de simulação, estatui o art. 242º do CC que:
1- Sem prejuízo do disposto no artigo 286º, a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta.
2- A nulidade pode também ser também invocada pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar”.
E, referindo-se à legitimidade dos credores para invocar a nulidade de negócios celebrados pelos devedores, expressa o art. 605º do mesmo Código que:
1- Os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos atos praticados pelo devedor, que estes sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração da nulidade, não sendo necessário que o ato produza ou agrave a insolvência do devedor.
2- A nulidade aproveita não só ao credor que a tenha invocado, como a todos os demais”.
Na sentença recorrida, decidiu-se que, não tendo a apelante (Autora) feito prova de ser titular do direito de crédito que alegou deter quanto à apelada AA, aquela não dispõe de legitimidade substantiva, nos termos do art. 286º, do CC, para requerer que se declare a nulidade da escritura de partilha outorgada, em 25/07/2017, entre AA e o apelado (Réu), BB, com fundamento em simulação, uma vez que “numa ação que vise a declaração de nulidade, nos termos desta norma, a prova de que o autor é titular de direito de crédito sobre o devedor que praticou o ato nulo «constitui uma tal ou qual condição de procedibilidade, no sentido de que, não se provando esse direito de crédito, nunca poderá proceder»”, conforme expendido no acórdão do STJ, de 10/01/2017[14]; e, em consequência, julgou improcedente  esse pedido.
 Acontece que o conceito de “interessado” para efeitos do art. 286º do CC que é adotado no mencionado aresto é o restrito,  segundo o qual “por qualquer interessado” entende-se os que sejam titulares “de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio”[15].
Esse conceito restritivo de interessado é adotado por Pires de Lima e Antunes Varela, para quem a nulidade do negócio apenas pode ser invocada por aqueles  que sejam titulares de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio nulo, nomeadamente, os credores, que têm de ser titulares efetivos do crédito que alegam sobre o outorgante do negócio nulo para que disponham de legitimidade para poderem invocar essa nulidade, independentemente do negócio ser anterior ou posterior à constituição do crédito, e sem que seja necessário que este produza ou agrave a insolvência do devedor, conforme  o determina o art. 605º do CC.
Neste sentido, referindo-se à disposição do art. 605º, expendem aqueles autores que: “em rigor, a doutrina deste artigo parece ser desnecessária em face do que está genericamente, no art. 286º. Tem legitimidade, nos termos deste último artigo, para a ação de nulidade (equivalente, como se sabe, à antiga nulidade absoluta), qualquer interessado, e os credores são interessados nas respetivas declarações. Todavia, o preceito não é inútil, na medida em que vem resolver dúvidas que se suscitavam no antigo direito, não obstante serem paralelos os princípios sobre legitimidade em ações de nulidade, designadamente no campo da simulação. Sustentou-se, por exemplo, que o credor só teria legitimidade para impugnar o ato simulado, desde que dele tivesse resultado a insolvência do devedor ou o agravamento dela (Guilherme Moreira) ou, pelo menos, um prejuízo efetivo para o seu direito (Beleza dos Santos). O art. 605º afasta estas interpretações. O interesse dos credores e, portanto, a sua legitimidade, não depende nem da anterioridade da dívida, nem da insolvência ou agravamento da insolvência do devedor; basta o interesse, nos termos em que é definido genericamente no art. 26º do Código de Processo Civil, segundo o qual o do autor se exprime na utilidade (prática) derivada da procedência da ação. Esta solução é justificada por Vaz Serra, com as seguintes palavras: «Ora, convém não cercear os meios de atacar os atos absolutamente nulos do devedor, em especial os simulados, e, desde que do ato resulte uma diminuição patrimonial, parece dever facultar-se aos credores o meio de fazer declarar logo a nulidade para que se não exponham a ver, de um momento para outro, insolvente o seu devedor. Mantendo-se o ato simulado, mais fácil se tornará cair ele em insolvência, além de que a declaração de nulidade do ato o tornará talvez mais prudente e evitará porventura que reincida. O interesse dos credores existe, ainda que do ato não tenha resultado a insolvência ou o agravamento da insolvência do devedor ou este não esteja insolvente, não só pelas razões já expostas e ainda porque o ato restringe o valor do crédito (este é tanto maior quanto mais avultado for o ativo responsável), mas também porque o ato simulado obriga os credores a vigiar mais cuidadosamente a situação económica do devedor, uma vez que diminui o seu ativo”[16] (destacados nossos).
No mesmo sentido, escreve Carlos Alberto da Mota Pinto, que: “O negócio nulo não produz, desde o início (ab initio), por força da falta ou vício de um elemento internos ou formativo, os efeitos a que tendia. (…). O regime e os efeitos mais severos da nulidade encontram o seu fundamento teleológico em motivos de interesse público predominantemente” enquanto “as anulabilidades fundam-se na infração de requisitos dirigidos à tutela de interesses predominantemente particulares”. As nulidades “são invocáveis por qualquer pessoa interessada, isto é, pelo sujeito de qualquer relação jurídica afetada, na sua consistência jurídica ou prática, pelos efeitos a que o negócio se dirigia (art. 286º)[17]. E debruçando-se especificamente sobre a legitimidade dos credores para invocarem a nulidade de negócio jurídico celebrado pelo devedor, por simulação, adianta: “Quanto a legitimidade dos credores para obter a declaração de nulidade dos atos simulados do seu devedor, levantava-se na nossa doutrina o problema de saber se era indispensável, para surgir aquela possibilidade, a insolvência do devedor ao tempo da ação destinada à declaração de invalidade. A doutrina tradicional tendia para exigir este requisito, mas Manuel de Andrade, atacando a solução no plano da razoabilidade, repelia-a, mesmo «de jure constituto» e entendia que os credores podiam arguir a nulidade, desde que tivessem nisso «algum interesse sério». Esta solução deve reputar-se consagrada no atual Código Civil. Com efeito, já nesse sentido se teria de concluir a partir do artigo 286º (legitimidade para invocar as nulidades. Qualquer interessado). Acresce, porém, existir uma norma (art. 605º) que, ao lado de outros meios destinados à conservação da garantia patrimonial dos créditos (sub-rogação do credor ao devedor, impugnação pauliana, arresto), reconhece aos credores legitimidade para invocar a nulidade dos atos praticados pelo devedor, quer anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, «desde que tenham interesse na declaração da nulidade, não sendo necessário que o ato produza ou agrave a insolvência do devedor»[18] (destacados nossos).     
Também Manuel Andrade se pronuncia no mesmo sentido, ao obtemperar que: “(…) a nulidade absoluta é de interesse público. (…). Podem ser invocadas por qualquer pessoa que tenha interesse em que se não produzam em relação a si os efeitos do respetivo negócioDaí o chamar-se-lhes absolutas. Interessado é aqui o sujeito de qualquer relação jurídica que de algum modo possa ser afetado pelos efeitos que o negócio tendia a produzir (acrescentando na nota para que remete: “Trata-se aqui de simples legitimação, no sentido processual). Afetado na sua consistência jurídica (v.g., subadquirentes) ou mesmo só na sua consistência prática (credores)[19] (destacados nossos).
Ainda Rodrigues Bastos, que defende que o conceito de “qualquer interessado” do art. 286º, abrange “as partes no negócio, os seus sucessores (a título universal ou particular), e qualquer outra pessoa que tenha, relativamente ao reconhecimento da nulidade, um interesse direto, legítimo e juridicamente protegido”[20] (sublinhado nosso).
Finalmente, no mesmo sentido dos autores que se vêm identificando pronuncia-se Maria Clara Sottomayor, ao expender que a lei “usa o conceito “qualquer interessado, querendo significar que pode invocar a nulidade o “sujeito de qualquer relação jurídica afetada, pelos efeitos que o negócio jurídico se dirige (Mota Pinto, 2005, pág. 620). O direito de invocação da nulidade não é conferido a todos. Não é qualquer pessoa a quem dê jeito, de alguma maneira, a declaração de nulidade do negócio, que preenche os requisitos do conceito de interessado para efeito do art. 286º. O sujeito legitimado deve ter um interesse direto substantivo, que pressupõe a disponibilidade do negócio porque o negócio prejudica a consistência prática ou económica de um direito seu (Lebre de Freitas, 2007, 384). Por exemplo, são terceiros legitimados para invocar a nulidade o cônjuge responsável por dívida contraída pelo outro através de contrato nulo celebrado sem a sua intervenção e os adquirentes de direitos reais ou pessoais sobre o mesmo bem”[21] (destacados nossos).
No sentido de que no art. 286º do CC se adota um conceito restrito de “interessado” para efeitos de arguição de nulidade de negócio se tem pronunciado parte da jurisprudência nacional, apontando-se, a título exemplificativo o acórdão do STJ. de 13/02/2003, onde se lê:
“Segundo esse artigo, pode invocar a nulidade "qualquer interessado".
A redação do preceito não se afasta do que se entende nos sistemas jurídicos mais próximos.
O Codice Civile fala de "qualquer que nisso tenha interesse"- artº 1421º.
Santoro-Passarelli limita-se a afirmar a legitimidade de "qualquer interessado".
A. Von Tuhr, escreve: "A nulidade pode suscitá-la qualquer um, não só as partes que intervieram no negócio, seus sucessores e "causahabientes", mas também aquele terceiro a cujos direitos interesse a nulidade do negócio, e muito principalmente os credores...". Mais longe vão Enneccerus-Nipperdey: "todo o mundo pode invocar a nulidade contra qualquer um". Curiosas são as observações de P. Esmein: Aí se lê que deve tratar-se de um interesse protegido pelo direito, suscetível de abrir uma ação na justiça. Que um habitante não pode arguir a nulidade de um negócio se visar ver-se livre de um vizinho indesejado. Nem um comerciante pode pedir a dissolução de uma sociedade apenas para se livrar de uma concorrente no mercado ... Se invocar outros fins que não esses (ilegítimos, inaceitáveis) já será de lhes conceder legitimidade, deduz-se do texto. Segundo Heinrich Ewald Hörster, não é qualquer pessoa que pode invocar a nulidade mas apenas o particular cujos interesses, jurídicos ou económicos ou morais, tiverem sido afetados pelo negócio nulo. Parece-nos ser esta uma formulação adequada para a interpretação do artº286º do CC”
[22].
 E o acórdão desta Relação de 08/10/2020, cujo sumário consta do seguinte: “Nos termos do art. 286º do CC não é interessado para invocar a nulidade de um contrato de compra e venda de imóvel celebrado entre terceiros, por falta de licença de utilização com documento com declaração falsa, quem alega para tanto que lhe foram dadas “algumas expectativas” pelo vendedor de que o prédio lhe seria antes vendido ainda que pretextando impedimentos de vária ordem relacionados com a situação legal do prédio. Nessa medida também não tem interesse em agir em ação intentada contra esses terceiros pedindo a declaração de nulidade do negócio”. E em cuja subsunção jurídica se lê: “A existência de qualquer expectativa de compra do prédio não corresponde à titularidade de qualquer direito de compra ou mesmo segura existência de qualquer expectativa de compra juridicamente fundada. A declaração de nulidade do negócio jurídico de compra e venda em nada mudaria a posição do autor, que nunca poderia exigir a si do prédio (…). Julgamos ter o tribunal a quo decidido bem e sem que se possa afirmar, apesar de nomeação de doutrinadores, que se acabou por interpretar restritivamente o conceito de “interessado”, de modo a nele abarcar apenas, como afirma o recorrente “um elevado grau de interesse”[23].
Para os defensores do conceito restritivo de “interessado” do art. 286º do CC, em sede de apuramento da determinação das pessoas com legitimidade para arguir a nulidade do negócio, este entendimento filia-se na circunstância de sendo os pressupostos processuais “os elementos de cuja verificação depende o dever do juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida”, tratando-se “das condições mínimas consideradas indispensáveis para à partida garantir uma decisão idónea e um decisão útil”[24] e para que seja consentido ao julgador entrar no conhecimento do mérito da causa, sendo um desses pressupostos processuais o da legitimidade processual, impõe-se ter presente que a mesma exige que, na falta de indicação da lei em contrário, atenta a relação jurídica material controvertida, tal como é configurada pelo autor na petição inicial (art. 30º, n.º 4 do CPC), estejam no processo como autor e como réu as partes exatas. E estarão no processo “as partes certas”, quanto ao autor, quando este tenha interesse direto em demandar, o que se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação (n.ºs 1 e 2 do art. 30º), independentemente daquele vir (ou não) a provar os factos que integram a causa de pedir que alegou na petição inicial (no caso presente, de ser, ou não, titular efetivo do direito ao crédito indemnizatório que alega deter sobre a apelada AA).
Ora, se isto é assim em sede de pressuposto processual de legitimidade – exceção dilatória -, em sede de legitimidade substantiva (condição de procedência da ação – mérito), exige-se naturalmente que o autor seja efetivamente titular do direito de crédito que alegou ser titular sobre a apelada AA, cuja consistência jurídica e prática alegou ter sido colocada em crise com a celebração, entre esta e o seu ex-marido (o apelado BB), da escritura de partilha, que alega tratar-se de negócio jurídico simulado e que, por isso, pretende ver declarada a respetiva nulidade.
Dito por outras palavras, se para efeitos de pressuposto processual de legitimidade, a lei não se satisfaz “com a existência de qualquer interesse, ainda que jurídico (não apenas moral, científico ou afetivo), na procedência ou improcedência da ação”, mas exige “que as partes tenham um interesse direto, seja, em demandar, seja em contradizer”, não se bastando com “um interesse indireto, reflexo ou derivado”[25] para que seja consentido ao julgador entrar na apreciação do mérito da causa, já em sede de legitimidade substantiva exige-se que o autor prove ser efetivamente titular do direito que se arroga titular sobre um dos outorgantes no negócio que pretende seja declarado inválido, por simulação, sob pena de não lhe poder ser reconhecido o direito à sua anulação.
Ou seja, numa ação em que o autor pede que seja declarada a nulidade de uma escritura de partilha, com fundamento em simulação, o direito de crédito que o autor alegou, na petição inicial, deter sobre um dos outorgantes naquela escritura (no caso, o direito indemnizatório que se arroga titular sobre a apelada AA), constitui condição de procedibilidade, no sentido de que não se provando esse direito de crédito, nunca o pedido poderá proceder.
Sucede que, a par da corrente doutrinária e jurisprudencial que sufraga a interpretação restritiva de “interessado” para efeitos de arguição de nulidade do art. 286º do CC, que se vem explanando, uma outra corrente defende um entendimento amplo daquele conceito, sustentando que o referido dispositivo legal confere legitimidade para arguir a nulidade do negócio não apenas ao terceiro cuja esfera jurídica seja diretamente e atualmente afetada pelos efeitos decorrentes do negócio nulo, mas também os que “só indireta ou eventualmente” são “afetados pelo negócio jurídico”[26].
Em concordância com este conceito amplo de interessado pondera-se no acórdão desta Relação de 08/11/2018, que:
“(…) a nulidade, além de poder ser declarada oficiosamente pelo tribunal, pode ser invocada por qualquer interessado. É isso que se dispõe no art. 286º do CC e interessado para esse efeito será – como referem Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., revista e atualizada, pág. 261- e “…o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica como prática (…).
Nada encontramos no CIRE ou noutro diploma legal que seja suscetível de ser interpretado no sentido de estar vedado ao administrador da insolvência a propositura de ação com vista à declaração de tal nulidade e no sentido de lhe retirar a legitimidade que, por efeito da aplicação da regra geral consagrada no art. 286º do CC, lhe deverá ser reconhecida.
É certo que o artº 605º do Código Civil dispõe “os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos atos praticados pelo devedor, quer estes sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração da nulidade, não sendo necessário que o ato produza ou agrave a insolvência do devedor”.
Porém sabemos que este artigo veio apenas tornar expresso – esclarecendo algumas dúvidas que até então se suscitavam - que os credores são titulares de um interesse relevante para efeitos de invocação da nulidade de atos praticados pelo devedor e que tal interesse não depende da anterioridade do crédito relativamente ao ato cuja nulidade se pretende invocar e não depende da circunstância de este ato ter produzido ou agravado a situação de insolvência do devedor- neste sentido Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil,  ob. cit., págs. 589 e 590.
Os recorrentes aludem a um paralelismo entre esta situação e a impugnação pauliana, dizendo nas conclusões i e j) - que aproveitando a procedência da ação pauliana somente ao credor impugnante, o administrador de insolvência carece de legitimidade para deduzir este tipo de ações ou nelas intervir.
Todavia esta interpretação não corresponde à consideração de todas as normas legais aplicáveis ao caso em apreço.
Se é certo que a impugnação pauliana é um instituto que, nos termos da lei geral (art. 610º do CC), apenas está na disponibilidade dos credores não existindo atualmente no CIRE qualquer norma que atribua ao administrador da insolvência legitimidade para esse efeito, também é certo que a invocação da nulidade de atos praticados pelo devedor está na disponibilidade de qualquer pessoa que demonstre ter interesse na respetiva declaração (cf. art. 286º do CC), interesse que através do administrador da insolvência, se reconhece à massa insolvente.
E não se diga como fazem os recorrentes que para o efeito aqui em apreço a identidade entre a massa insolvente e o insolvente é a mesma.
Na verdade, se a doação e subsequente compra e venda prevalecer válida, nenhum benefício daí pode advir para o insolvente que lhe interesse defender e, assim, justificar que se aqui se batesse pela validade do negócio uma vez que os bens deixaram de lhe pertencer.
Pela mesma razão se aqueles atos forem declarados nulos, também nenhum prejuízo daí pode para ele resultar e que justifique opor-se a tal invalidade.
A pretendida nulidade não tem, por outro lado, outros efeitos pessoais que ele tenha interesse em defender. Tais interesses são de natureza exclusivamente patrimonial e circunscrevem-se no respetivo âmbito, regulando-se em função do regime normativo implicado, além do mais, pela insolvência.
Concluímos, portanto, que a massa insolvente, através do administrador de insolvência, tem legitimidade, ao abrigo do disposto no art. 286º do CC, para instaurar ação com vista a obter a declaração de nulidade, por simulação, de um contrato de compra que havia sido celebrado entre o devedor insolvente e a 1ª Ré., legitimidade que ao contrário do que se afirma na conclusão c) o tribunal de forma expressa afirmou existir(sublinhado nosso)[27].
No acórdão desta Relação de 12/01/2017 que:
“Consagrando a lei a nulidade do negócio simulado, daí resulta que a nulidade da simulação pode ser invocada por qualquer interessado e ser oficiosamente declarada, conforme decorre da regra geral expressa no artigo 286.º do Código Civil.
Ao dizer “qualquer interessado”, não pode deixar de entender-se que a lei se está a referir ao “titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio” – Antunes e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 263 e, no mesmo sentido, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, 2.ª reimpressão, Coimbra Editora, pág. 620 – ou seja o sujeito de qualquer relação jurídica que, de algum modo, possa ser afetado pelos efeitos que o negócio tendia a produzir.
A lei não está a referir-se apenas aos credores. A expressão “qualquer interessado” tem um campo muito mais vasto. Para os credores em particular, veja-se o que dispõe o artigo 605.º do CC.
No caso dos autos, como muito bem se analisa na sentença recorrida, o autor, não sendo neste momento, ainda, detentor dos créditos sobre o réu por si invocados, já foi citado como executado pela Segurança Social, após despacho de reversão fiscal, pelas dívidas da sociedade L, Lda.”, no valor global de € 415.885,20 e é executado no âmbito de processo executivo instaurado por um Banco, por força de livrança subscrita pela sociedade e avalizada por si e por outros, designadamente o réu, tendo já visto serem penhorados bens seus e encontrando-se a execução em fase de venda.
Neste âmbito e considerando o teor da Declaração a que se refere o n.º 9 dos factos provados (em que o réu se obrigou, com os outros sócios da sociedade, perante o autor, a suportar integralmente as dívidas fiscais, à segurança social, a instituições financeiras ou quaisquer outros credores, eximindo o autor de toda e qualquer responsabilidade pessoal, ainda que decorrente de aval, fiança ou qualquer outra forma de vinculação pessoal na qualidade de gerente da sociedade), não há dúvida que o autor tem aquela qualidade de interessado em invocar a nulidade do contrato simulado. É que, ainda que, perante o Banco, o autor seja responsável, por força do aval, não tem responsabilidade perante o réu e, por isso mesmo, tem todo o interesse em ver declarada a nulidade da dação em cumprimento simulada, que retira do património dos réus a propriedade de prédios passíveis de responderem pelas suas dívidas”[28].
No acórdão da R.L., de 07/03/2023 que:
“Concordamos com o autor quando defende que, estando em causa a arguição da nulidade de deliberação social, a legitimidade para a impugnar é mais alargada, devendo ser aferida “em face da relação jurídica controvertida, tal como configurada pelo autor” (Conclusões 10 e 11), valorando-se, para tanto, o disposto no artigo 286.º do CC - “A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal”.
Não se poderá, contudo, deixar de realçar que, como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, interessado para efeitos do artigo 286.º do CC será “o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pelo negócio.”
Será essa a situação do autor?
Como decorre do artigo 56.º, n.º 1, al. a), do CSC, “São nulas as deliberações dos sócios (…) Tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados.”
No caso, invoca o autor não ter sido convocado para a assembleia geral que se realizou no dia 30/11/2021 (nem na mesma tendo estado presente), nessa medida reputando como nula a deliberação que nessa assembleia foi aprovada (segundo a qual a primeira ré se iria apresentar à insolvência).
Considerando a preterição invocada pelo autor como sendo causa de nulidade da deliberação - não convocação da assembleia -, sempre estaremos perante uma nulidade de procedimento, sendo que os vícios de procedimento são passíveis de ser sanados – cfr. artigo 62.º, n.º 1 do mesmo código. Daí que Menezes Cordeiro refira que, em “rigor, a não convocação de um sócio dá lugar a anulabilidade: cabe ao sócio atingido decidir se anula, ou não, o que tenha sido deliberado”.
Contudo, como se defendeu no acórdão da Relação de Guimarães de 18/01/2018, está previsto “no artigo 57º nº 1 e nº 4 do Código das Sociedades Comerciais que o órgão de fiscalização da sociedade deve dar a conhecer a nulidade aos sócios, em assembleia geral e que nas sociedades que não tenham órgão de fiscalização, os deveres supramencionados são incumbidos a qualquer gerente. Daqui é patente a vontade que o sistema jurídico tem de expurgar as deliberações sociais nulas (e podendo estas serem sanadas, que tal ocorra) do seu universo, a par do seu conhecimento oficioso e alargamento da legitimidade para a sua invocação a qualquer interessado. É ainda pacífico, na doutrina e na jurisprudência, que estas normas, especialmente previstas no artigo 57º do Código das Sociedades Comerciais, não afastam o regime geral previsto no artigo 286º, do Código Civil: a mesma nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente (…) também aqui não há razões para afastar o regime legal que permite o conhecimento oficioso da nulidade e a pedido de qualquer interessado, atenta a elevada ilicitude de que padece o ato nulo. Enfim, nos termos do artigo 286º do Código Civil, a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.”
E, continua, “
os contitulares das quotas têm necessariamente interesse no destino da sociedade, nada obstando que cada um no seu interesse, enquanto titular de uma expetativa de aquisição, despolete a simples declaração de nulidade de uma deliberação social. (…) Há, assim, que concluir pela legitimidade dos Autores para a dedução do primeiro pedido, com, obviamente, a causa de pedir formulada na ação: a declaração de nulidade por preterição da convocação para a Assembleia Geral.”
No seguimento do aqui defendido, com o qual se concorda, e reportando à situação dos autos, dir-se-á assistir razão ao autor/apelante quando defende ser interessado para efeitos de peticionar a nulidade da deliberação com fundamento na não convocação para a assembleia geral realizada em 30/11/2021. E, se assim é, ao contrário do decidido pela 1.ª Instância, é o mesmo parte legítima para intentar a ação com esse fundamento (independentemente de a convocação cuja omissão foi invocada dever ou não ter lugar, o que contende já com o mérito da causa e não com a análise do pressuposto processual de que estamos a cuidar)”[29].
E no acórdão da R.P., de 11/01/2021 que, para efeitos de legitimidade de arguir a nulidade de negócio, entende-se por:
“Terceiro interessado é o sujeito (que não ocupe a posição de simulador) cuja situação jurídica - de que já era titular antes de decesso do de cujus e que manteve após a abertura da herança – pode resultar afetada pela celebração do negócio simulado – neste sentido, v. Ac. do STJ de 03.06.1992, BMJ, nº 418, pp. 732-736. Devem considerar-se abrangidos pelo conceito de terceiros todos os sujeitos que, não ocupando a posição de simuladores (quer originariamente quer por sucessão mortis causa), sejam titulares de um direito suscetível de ser afetado pelos efeitos desencadeados pelo negócio simulado. O critério determinante é a existência de prejuízo para um direito próprio do terceiro, não confundível com o dos simuladores (e não transmitido mortis causa) – v. Acs do STJ de 29/5/2007 (07ª1334), de 04.05.2010 (2964/05.9TBSTS.P1.S1) e de 06.07.2011 (9343/04.3TBVNG.P1.S1) – este último, que reconhece legitimidade a um promitente comprador para a arguição da nulidade da compra e venda simulada, pela circunstância de a celebração da referida compra e venda frustrar a possibilidade de cumprimento do contrato prometido. Seguindo a lição de CARVALHO FERNANDES, 2004:79 “são interessados justamente na medida em que sejam sujeitos de uma relação jurídica afetada pelo ato simulado na sua consistência jurídica ou prática”. Por “qualquer interessado” entende-se não apenas a pessoa diretamente afetada mas ainda todo aquele que revele possuir um interesse meramente indireto ou mediato”.
Ora, se dentro do conceito restritivo de “interessado” utilizado pelo art. 286º do CC para efeitos de se reconhecer legitimidade a terceiro interessado para arguir a legitimidade do negócio de partilha celebrado entre os apelados, por simulação, o crédito que a apelante invoca ser titular sobre a apelada AA é condição de procedibilidade do pedido subsidiário, em que a apelada pede que se declare nula aquela partilha, por simulação, já na conceção ampla daquele conceito, em que basta que a apelada tenha um interesse ainda que indireto ou mediato em ver essa nulidade daquele negócio, por simulação declarada, não é assim.
Nos termos do disposto na al. b), do n.º 1, do art. 595º do CPC, apenas é consentido ao tribunal conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo o permitir sem necessidade de mais provas, ou seja, quando não exista matéria controvertida suscetível de justificar a elaboração de temas da prova e a realização da audiência final, porquanto, toda a matéria relevante esteja provada por confissão expressa ou tácita, por acordo ou documento  e quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis de direito a prova dos factos que permaneçam controvertidos[30].
Verificando-se não ser este o caso dos autos quanto ao pedido subsidiário, em que a apelada pede que se declare a nulidade da escritura de partilha outorgada ente os apelados (Réus) em 25/07/2017, por simulação e, em consequência, serem os bens que dela foram objeto restituídos ao património conjugal e, bem assim, serem cancelados todos os registos de disposição que tenham tinha efetuados, ou que venham a ser efetuados sobre os bens objeto daquela escritura de partilha, posto que, de acordo com a conceção ampla de “interessado” do art. 286º do CC (uma das soluções de direito que é suscetível ser adotada sobre esta concreta questão), apesar da apelada não ter demonstrado o direito de crédito que alegou deter em relação à apelada AA, é indiscutível que a mesma detém legitimidade para requerer a declaração da nulidade daquela escritura de partilha celebrada entre os apelados (AA e ex-marido desta, BB), por simulação, em face da condenação da identifica apelada a satisfazer os créditos da insolvência da sociedade devedora, EMP02..., Lda.” (como é o caso do crédito da apelada que foi reconhecido e graduado no âmbito do processo de insolvência desta, por sentença de graduação e verificação de crédito nele proferida e transitada em julgado, e que ainda não obteve aí pagamento).
Resulta do excurso antecedente proceder parcialmente a presente apelação, impondo-se confirmar o saneador-sentença recorrido no segmento em que julgou improcedente o pedido principal e absolveu dele os apelados e revogá-lo no segmento em que conheceu do pedido subsidiário e ordenar o prosseguimento dos autos quanto a este, com a seleção de temas de prova pertinentes para conhecer desse pedido, seguindo-se a posterior realização de audiência final e a prolação de sentença.
*
Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).

1- A impugnação pauliana é um dos meios de conservação da garantia patrimonial colocados ao dispor do credor sempre que o devedor pratique ato ou celebre negócio jurídico de que resulte a diminuição do seu ativo patrimonial, ou um aumento do seu passivo.
2- A ação de impugnação pauliana configura uma ação pessoal, uma vez que da sua procedência apenas resulta para o credor impugnante: o direito à restituição dos bens objeto do ato ou negócio impugnado; o direito a praticar atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei; e o direito de executar aqueles bens no património do terceiro a quem foram transmitidos. Esses direitos apenas aproveitam ao credor impugnante (não aos demais credores do devedor impugnado) e apenas lhe são conferidos na estrita medida em que tal seja necessário à satisfação do seu crédito.
3- A impugnação pauliana tem como requisitos gerais, que são cumulativos: 1º) a existência de um crédito do demandante sobre o devedor (demandado); 2º) que esse direito de crédito se tenha constituído antes do ato ou negócio impugnado ou, sendo posterior, que o ato ou negócio tenham sido realizados dolosamente com o fim de impedirem o direito do futuro credor; e 3º) que desse ato ou negócio resulte a impossibilidade ou o agravamento para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito. Se o ato ou negócio impugnados tiverem natureza onerosa, a esses requisitos gerais acresce o especial da má fé do devedor e do terceiro (ambos demandados, sob pena de ilegitimidade passiva).
4- O ónus de alegação e da prova da facticidade integrativa de cada um desses requisitos cumulativos impende sobre o credor demandante, enquanto ao devedor ou ao terceiro demandados (facto impeditivo ao direito exercido pelo credor demandante), impende o ónus de alegação e da prova em como o devedor possui bens penhoráveis de igual ou de maior valor ao crédito que o demandante se arroga titular sobre aquele.
5- O crédito à indemnização reconhecido aos credores da insolvência cujos créditos não obtiveram satisfação com o produto da liquidação da massa insolvente, que é imposto aos afetados pela qualificação da insolvência como culposa (al. e), do n.º 2, do art. 189º do CIRE) consubstancia um crédito indemnizatório que se encontra submetido a uma dupla condição suspensiva: a) a liquidação da massa insolvente e o pagamento e rateio do produto da liquidação pelos créditos da insolvência (isto é, os que tenham sido julgados verificados e graduados na sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado); e b) a insuficiência desse produto para satisfazer totalmente o crédito sobre a insolvência detido pelo autor da ação de impugnação pauliana.
6- Por isso, enquanto essa dupla condição não estiver verificada, aquele crédito indemnizatório do credor sobre o afetado pela qualificação da insolvência não se constitui na esfera jurídico-patrimonial daquele credor (que não pode fundar nele a ação de impugnação pauliana que instaurou, face à sua natureza meramente futura, hipotética e eventual e que não passa de uma mera expectativa jurídica, que poderá nunca se chegar a constituir em direito); credor que, contudo, pode exigir que o obrigado (devedor) dessa indemnização preste caução.
7- Pretendendo o autor que se declare a nulidade de uma escritura de partilha, por simulação, alegando ser detentor de um crédito indemnizatório sobre um dos nela outorgantes, cuja consistência jurídica e prática foi colocada em crise com a celebração dessa escritura de partilha, verifica-se que, de acordo com uma corrente doutrinária e jurisprudencial, que adota um conceito restritivo de “interessado”, para efeitos do disposto no art. 286º do CC,  a prova do direito de crédito alegado pelo autor é condição de procedibilidade da ação, no sentido de que, não se provando esse direito de crédito, nunca o pedido de declaração de nulidade da escritura de partilha poderá proceder; mas uma outra corrente doutrinal e jurisprudencial adota um conceito amplo de “interessado”, em função da qual por “qualquer interessado deve entender-se, não apenas a pessoa diretamente afetada pelos efeitos jurídicos produzidos com a celebração do negócio celebrado e pretensamente nulo, por simulação, mas ainda todos aqueles que revelem possuir um interesse meramente indireto ou mediato na declaração da nulidade desse negócio, por simulação, como é o caso do autor.
8- É esse o caso do autor que viu o seu crédito sobre a devedora declarada insolvente reconhecido nos autos de insolvência (por sentença de verificação e graduação de créditos neles proferida, transitada em julgado), que viu essa insolvência da sua devedora ser qualificada como culposa e que viu uma das partes outorgantes na escritura de partilha que pretende ver declarada nula, por simulação, ser declarada afetada por essa qualificação (como gerente da inicial devedora) e ser ainda condenada a indemnizar os credores da insolvência pelos créditos que ficassem insatisfeitos, por sentença transitada em julgado, como é o caso do credor (autor), cujo crédito ainda não foi pago nos autos de insolvência.
9- Por isso, de acordo com as várias soluções de direito plausíveis de “interessado” para efeitos do art. 286º do CC, não se encontravam preenchidos os requisitos legais que permitiam ao tribunal a quo conhecer do pedido subsidiário em sede de saneador-sentença, impondo-se que os autos prossigam, com a seleção dos temas de prova pertinentes para conhecer do pedido subsidiário.
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V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação parcialmente procedente e, em consequência:
I- confirmam o saneador-sentença recorrido no segmento em que julgou improcedente o pedido principal e absolveu dele os apelados;
II- revogam o saneador-sentença recorrido no segmento em que conheceu do pedido subsidiário, julgando-o improcedente e absolvendo dele os apelados, e ordenam o prosseguimento dos autos quanto a este pedido subsidiário, com a seleção de temas de prova pertinentes para dele conhecer, seguindo-se a posterior realização de audiência final e a prolação de sentença.
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Custas da apelação por apelante e apelados na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 50% para a apelante e em 50% para os apelados (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 15 de fevereiro de 2024

José Alberto Moreira Dias – Relator
Rosália Cunha – 1ª Adjunta
Maria João Marques Pinto de Matos – 2ª Adjunta              
 


[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 12ª ed., Almedina, págs. 844 e 845, em que expende que, o art. 601º do CC, consagra “o princípio geral da responsabilidade ilimitada do devedor: o cumprimento da obrigação é assegurado pela totalidade dos bens penhoráveis existentes no seu património ao tempo da execução, mesmo os que tenham sido adquiridos depois da constituição da obrigação. (…). Porém, a regra geral da responsabilidade ilimitada do devedor comporta exceções. Há casos de responsabilidade limitada a certos bens, que resultam da lei, de convenção das partes ou de determinação de terceiro. Observe-se que se trata aqui de limitação da garantia patrimonial, e não propriamente de limitação da responsabilidade civil do devedor, no sentido em que esta constitui fonte de obrigações. São dois planos ou significados diversos em que se utiliza o termo responsabilidade”.
[3] Antunes Varela, “Direito das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª ed., Almedina, pág. 446.
No mesmo sentido, Almeida Costa, ob. cit., págs. 868 e 869, em que se lê: “Ao credor que impugnar com êxito o ato do devedor cabe o direito à restituição dos bens, «na medida do seu interesse». Mas os bens não têm de sair do património do obrigado à restituição, onde o credor poderá executá-los e praticar quanto a eles os atos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei (n.º 1). (…). Aa referidas soluções mostram claramente que o legislador se afastou do sistema da nulidade. (…). Dado que o novo sistema não é o da invalidade, mas o de qua a impugnação pauliana se analisa num direito pessoal de restituição, (…)”.
[4] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 633.
[5] Acs. STJ., de 10/11/1998, Proc. 98A1006; RG., de 09/02/2017, Proc. 162/10.9TBAVV.G1; RP., de 11/01/2021, Proc. 3672/17.3T8PRT.P1; RL., de 26/01/2023, Proc. 11724/18.6T8LSB.L1-6; RE., de 13/02/2020, Proc. 632/18.0T8FAR.E1, todos in base de dados da DGSI, onde constam todos os acórdãos a que se venha a fazer referência sem menção em contrário.
[6] Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª ed., Quid Juris, págs. 697 e 698.
Ac. RP., de 29/06/2017, Proc. 2603/15.0T8STS-A.P1, cujo sumário é o seguinte: “A al. e), do n.º 2 do art. 189º do CIRE deve ser interpretada em termos hábeis quando conjugada com o subsequente n.º 4: a indemnização não pode ultrapassar a diferença entre o valor dos créditos reconhecidos e o que é pago aos credores pelas forças da massa insolvente, e também não pode ser desproporcional relativamente à gravidade da situação prejudicial criada pelo afetado na insolvência, aproximando-se do valor dos danos efetivamente causados, sem esquecer que tem natureza sancionatória”..
[7] Ac. RC., de 22/10/2019, Proc. 743/18.2T8CNT-A.C1.
[8] Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit., pág. 650.
[9] Acs. RG., de 27/10/2014, Proc. 543/09.0TBPTL-G.G1; RE. de 20/08/2010, Proc. 918/09.5TBLGS-A.E1; RC. de 27/05/2008, Proc. 948/03.0TBTNV-D; 22/10/2019, Proc. 743/18.2T8CNT-A.C1; RL. 08/01/2019, Proc. 12428/18.5T8LSB.L1-7.
[10] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. IV, Almedina, pág. 174.
[11] Paulo Silva Campos, “O Arresto como Meio de Garantia Patrimonial – Uma Perspetiva Substantiva e Processual”, Revista do Direito das Sociedades 3, pág. 760.
[12] Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, págs. 315 e 316.
[13] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 631.
[14] Ac. STJ., de 10/01/2017, Proc. 761/13.1TVPRT.P1.S1.
[15] Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 263.
[16] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, Coimbra Editora, 1987, pág. 621.
[17] Carlos Alberto da Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed. atualizada, Coimbra Editora, 1985, págs. 610 e 611.
[18] Carlos Alberto da Mota Pinto, ob. cit., págs. 482 e 483.
[19] Manuel A. Domingues de Andrade, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, Coimbra, 1983, pág. 417.
[20] Rodrigues Bastos, “Notas ao Código Civil”, vol. II, Lisboa, 1988, pág. 43.
[21] Maria Clara Sottomayor, “Comentário ao Código Civil, Parte Geral”, Universidade Católica págs. 610 a 613.
[22] Ac. STJ., de 13/02/2003, Proc. 03B113.
[23] Ac. R.G., de 08/10/2020, proc. 239/19.5T8PRG-A.G1.
[24] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 104.
[25] Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, ob. cit., pág. 135.
[26] Castro Mendes, “Direito Civil, teoria Geral”, 1979, vol. III, pág. 629.
[27] Ac. R.G., de 08/11/2018, Proc. 2395/17.8T8GMR.G1.
[28] Ac. R.G., de 12/01/2017, Proc. 2476/12.4TBBCL.G1.
[29] Ac. R.L., e 07/03/2023, Proc. 523/22.0T8BRR-L1-1.
[30] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 721.