Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
115/18.9T8VNF.G1
Relator: ANIZABEL PEREIRA
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
RENÚNCIA AO CARGO DE ADMINISTRADOR
EFICÁCIA DA RENÚNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- o art. 404º do CSC, fixa, no respetivo nº 1, a regra da livre renunciabilidade ao cargo de administrador de sociedade anónima: o administrador pode, só por si e por ato unilateral, fazer cessar a relação de administração, a todo o tempo.
- a renúncia tem as seguintes regras: sendo comunicada ( e recebida pelo destinatário ou chegado ao seu poder- já que é uma declaração recetícia), a renúncia torna-se efetiva ou só produz os seus efeitos no final do mês seguinte àquele que tiver sido comunicada ( art. 404,nº2, 1ª parte).
- se o administrador pode, na comunicação referida no art. 404º do CSC, dilatar o prazo da efetividade da renúncia, e pode indicar a data em que a renúncia se tornará efetiva, cremos que também poderá condicionar a eficácia da renúncia à conduta da sociedade (no caso de esta, querendo, a utilizar), mas tudo reportado à vigência do mandato a que respeita a renúncia do cargo.
- No caso, com a nova eleição do A/recorrido, em 2015, iniciou-se um novo vínculo orgânico-administrativo, e neste o autor não renunciou por qualquer forma ao cargo de administrador para o qual foi eleito, pelo que tendo sido utilizada aquela mesma carta de renúncia e reportada a 2011 ( ou ao mandato anterior de 2011 a 2014), apenas se poderá concluir que não poderá a mesma valer com aquele intuito, não existindo, assim, título, pelo que o registo é nulo, nos termos do art. 22º do CRC, devendo ser cancelado.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I. Relatório:

Das partes.

J. C. veio requerer contra F. P. SGPS S.A. acção declarativa em processo comum.
Para o efeito, alegou ter sido eleito administrador da Ré e, em novembro de 2017, ter sido confrontado com o registo da sua renúncia ao referido cargo, sem que tivesse renunciado ao mandato correspondente ao quadriénio então em curso (2015 a 2018). Argumentou que a carta de renúncia que havia entregue aquando da sua primeira eleição e que perdera razão de ser - por ter sido convidado para continuar como administrador e, mais tarde, por ter sido novamente eleito -, tinha sido adulterada e apresentada por quem não representava a sociedade, existindo, pois, falsidade do título apresentado e inexistência do acto cujo registo havia sido requerido.
Concluiu, pedindo que fosse declarado nulo o registo lavrado sob o av. 2, Apresentação 45/20171117, referente à Inscrição 10, Ap. 10/20150821.
Após se ter julgado verificada a falta de citação da Ré e se ter determinado a sua repetição, foi apresentada contestação.
A Ré defendeu que a renúncia tinha sido apresentada pelo Autor e que era válida e, consequentemente, pugnou pela improcedência da acção e pela condenação do Autor como litigante de má fé.
Houve lugar à audiência prévia (fls. 201/205).
Ali se decidiu inexistir motivo para julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
Fixou-se, também, o objecto do litígio e os temas da prova.
Houve lugar à realização da audiência de discussão e julgamento, como emerge da respectiva acta.
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Após a competente audiência de julgamento, foi proferida sentença nos seguintes termos : “ a) julgar a acção procedente e julgar nulo o registo lavrado sob o Av. 2, Ap. 45/20171117, relativo à cessação de funções do Autor enquanto vogal do Conselho de Administração da Ré F. P. SGPS, S.A., por renúncia.
b) determinar o cancelamento do registo indicado em a).
c) julgar improcedente o pedido de condenação do Autor como litigante de má fé e absolvê-lo desse pedido.
Custas da acção a cargo da Ré. ”.
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É desta decisão que vem interposto recurso pela R., a qual terminou o seu recurso formulando as seguintes conclusões ( que transcrevemos):

1. A douta sentença recorrida enferma erro de julgamento, (error in judicando) que resultou de uma distorção da realidade factual (error facti) e na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa , pois erra na enunciação de alguma da matéria provada de forma tal que blinda a decisão a nova avaliação da factualidade e integração em solução jurídica diferente, erra na integração da factualidade com a decisão e com a matéria dada como provada em g), h), i), l) e y), tudo numa contradição insanável que redunda em erro de julgamento (violação dos arts 607º e 615º, al. c do CPC);
2. SDR e SMO, mais erra na forma como foi dada como provada a matéria ínsita nas al) k, t) e x), que deve ser alterada ou revogada porque bloqueia outras interpretações e aplicações do Direito à matéria factual em causa, aplica erradamente o art 22º do CRC
3. Mais ainda considerando a integração e conjugação de toda a prova e da provada incoerência (leia-se falta de credibilidade do A./recorrido) e do administrador/ cliente F. P., com as regras de experiencia comum e consequente aplicação do Direito de forma alternativa à ortodoxia seguida.
4. Devem ser retirados do elenco da prova as alíneas l),t) e x) e deve ser alterada a alínea k) retirando a parte do convite.
5. É o que resulta da lógica das coisas que bem vem expressa e relatada na sentença (se retirarmos essas alíneas eminentemente conclusivas e tendentes para uma factualidade que só encaixará numa solução de direito), o que resulta da avaliação da própria carta de renúncia (entregue sem data) e o que resulta da reavaliação dos depoimentos de D. M., que o tribunal a quo considerou com depoimento espontâneo e credível (ficheiro áudio 20190918105921_5533269_2870550, 18-09-2019, com inicio em 16:00:10 a 16:24:18), P. J. (ficheiro áudio 20190918120200_5533269_2870550, 18-09-2019, com inicio em 12:02:02 a 12:22:48), F. M., (ficheiro áudio 20190918152828_5533269_2870550, 18-09-2019, com inicio em 15:28:28 a 15:58:05), todos com trechos a relevar citados nas alegações, e da avaliação do enorme caudal de mentiras ou inverdades (na abordagem politicamente correcta), meias verdades, omissões e deturpações que o A/recorrido trouxe aos autos nas suas declarações e acolitado pelo administrador e cliente, F. P. e, finalmente do que disse o próprio A/recorrido (ficheiro áudio 20190918105921_5533269_2870550, 18-09-2019, de 10:59:22 a 10:00:30) que continuou como administrador não executivo e ao minuto 08:45 até 8:50 que “verificou em 2011, depois da AG que justificou a sua nomeação como administrador, que a renúncia não havia sido registada e alertou para isso”. Se assim fosse, nunca a carta de renúncia entregue em sequência de uma AG (que dura um dia) teria sido entregue sem data por um advogado experiente e sabedor. Obviamente que conteria o dia seguinte ao da A.G.
6. O erro de julgamento crucial foi a avaliação que a douta sentença fez de que a carta de renúncia foi entregue em 2011 para ser levada a registo nessa altura. Se fosse assim, NUNCA A CARTA DE RENUNCIA SERIA ENTREGUE SEM DATA POR UM ADVOGADO MUITO EXPERIMENTADO. (conclusão decorrente até do factos provados em i), nomeadamente da condição da confiança inerente ao exercício do cargo como não executivo.
Tal alínea – até porque com enunciação eminentemente conclusiva - tem de ser retirado do elenco da prova, pois bloqueia outras apreciações da factualidade.

7. A carta de renúncia era incondicional, “em aberto” porque sem data, situação absolutamente normal e lícita nestas situações de administrador de Direito, “de favor”, sempre válida e depositada na sociedade recorrente e para ser usada.
8. Válida, desde logo na medida em que a assinatura foi aposta, pelo próprio A., na carta de renúncia, bem conhecendo tanto o conteúdo da mesma, como os efeitos decorrentes da respetiva formalização (e independentemente da data em que tenha sido assinada), até como advogado. Válida porque estava na posse da R. Válida porque a renúncia que nunca foi revogada. Válida como o A/recorrido até fez questão de relembrar aos acionistas que a ele recorreram em duas reuniões em 2017.
9. A carta de renuncia sempre esteve válida e em vigor exactamente nos mesmo termos em que foi entregue pelo recorrido e exactamente enquanto vigorasse o estatuto de administrador porque a renovação do mandato em 2014 não concedeu ao A/Recorrido quaisquer poderes executivos (e isso é claro e transversal a toda a sentença).
10. Ao actuar executivamente – com um acto que teve um custo de 1.000,000,00 euros para os acionistas – o R/Recorrido despoletou a razão de ser da carta de renúncia que ele, tão bem, antecipou necessidade em 2011 e justificou ou legalizou a sua apresentação a registo, sendo-lhe aposta a data consequente à verificação da condição e fazendo cumprir a sua vontade.
11. A verdade é que a apresentação da carta de renúncia a registo foi a manifestação de vontade do recorrido em consequência da verificação da condição que ele e os acionistas haviam contratado em 2011.
12. A carta de renúncia foi apresentada a registo exactamente nos termos, tempo, modo e para o efeito para a qual foi fabricada, assinada e entregue pelo A/recorrido,
13. Por tudo, deve o A/recorrido ser condenado como litigante de má-fé, pois, até como advogado, trazer inverdades ao tribunal não pode passar impune..”
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Contra-alegou o R, pugnando pela improcedência do recurso e a título subsidiário veio deduzir ampliação do objeto do recurso, apresentando as seguintes conclusões:

1º) Apesar do esforçado e cuidado julgamento da matéria de facto por parte do Tribunal a quo, entende o Autor existirem determinados pontos deste elenco que, para espelharem com ainda com mais rigor a realidade dos factos, carecem de ser revistos, para o caso, que resolutamente se espera, de poder vir a proceder qualquer questão levantada pela Recorrente;
2º) Em relação ao ponto f), requer-se que o mesmo seja completado com a seguinte menção tendo o Autor intervindo efetivamente naquela Assembleia que teve lugar no ano de 2011”: é isto mesmo que decorre, sem oposição de qualquer outro meio de prova, das declarações de parte do Autor (cfr. depoimento gravado de minutos 04’02’’ a 07’29’’ do ficheiro áudio 20190918105921_5533269_2870550), do depoimento de parte do administrador F. P. (cfr. depoimento gravado de minutos 04’45’’ a 07’02’’do ficheiro áudio 20190918141937_5533269_2870550);
3º) No que respeita o ponto g), requer-se que seja alterada a menção que do mesmo consta em assembleias gerais para na assembleia geral que se alude no ponto anterior, prendendo-se a requerida alteração com a circunstância do uso do plural se ter devido certamente a lapso involuntário do douto Tribunal a quo, uma vez que só a menção no singular é que se coaduna com o facto provado na alínea f), que não foi objeto de impugnação pela Recorrente.
4º) Em relação ao ponto h) requer-se a eliminação do mesmo uma vez que a condição a que se alude no ponto em causa não foi objeto de qualquer prova (antes decorreu da instrução da causa os motivos que determinaram a eleição do Autor para o mandato de 2011 a 2014 [expressos na alínea f) e g)]: isto mesmo decorre das declarações de parte do Autor (cfr. depoimento gravado de minutos 04’02’’ a 07’29’’ do ficheiro áudio 20190918105921_5533269_2870550) e ao depoimento do administrador F. P. (cfr. depoimento gravado de minutos 04’45’’ a 07’02’’ do ficheiro áudio 20190918141937_5533269_2870550), únicas pessoas que depuseram diretamente sobre estes factos e ainda, à contrário, dos depoimentos de P. J. (cfr. depoimento gravado de minutos 00’00’’ a 01’29’’ do ficheiro áudio 20190918122446_5533269_2870550), F. M. (cfr. depoimento gravado de minutos 22’00’’ a 23’31’’20190918152828_5533269_2870550) e D. M. (cfr. depoimento gravado de minutos 16’57’’ a 17’50’’ do ficheiro áudio 20190918160010)
5º) Em relação ao ponto i) requer-se que a sua redação seja substituída nos seguintes termos: “Por consequência, logo em 2011 e após a intervenção do Autor na Assembleia a que se alude no ponto f), o Autor entregou ao então Presidente do Conselho de Administração da Ré, que a recebeu, a carta de renúncia de fls. 17, cujo teor se aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, uma vez que havia cessado a razão de ser do seu estatuto de administrador”.
6º) Isto mesmo decorre de forma lapidar das declarações de parte do Autor (cfr. depoimento gravado de minutos 04’02’’ a 07’29’’, minutos 07’30’’ a 09’01’’ e minutos 13’47’’ a 16’00’’ do ficheiro áudio 20190918105921_5533269_2870550) e do depoimento do administrador F. P. (cfr. depoimento gravado de minutos 07’24’’ a 09’52’’ e minutos 13’11’’ a 13’57’’ do ficheiro áudio 20190918141937_5533269_2870550), únicas pessoas que depuseram com conhecimento direto sobre estes factos, não tendo decorrido da instrução dos autos o que consta da redação primitiva daquele ponto i), conforme se constata pelas declarações de P. J. (cfr. depoimento gravado de minutos 00’00’’ a 01’29’’ do ficheiro áudio 20190918122446_5533269_2870550) e do depoimento da testemunha L. (conforme depoimento gravado de minutos 05’50’’ a 09’49’’ do ficheiro áudio 20190918145754_5533269_2870550), sendo inócuo o depoimento de D. M. (conforme depoimento gravado de minutos 19’37’’ a 20’53’’ do ficheiro áudio 20190918160010_5533269_2870550), que se revelou contraditório com o da única testemunha – a testemunha L. – cujo depoimento o tribunal a quo reputou de verdadeiramente imparcial;
7º) Por fim, em relação ao ponto y) requer-se que apenas fique do mesmo a constar o seguinte trecho “O Autor outorgou o contrato de fls. 174”, uma vez que tudo o mais que do mesmo consta não passam de factos que não tiveram qualquer acolhimento na instrução dos autos: nem o administrador P. J. afirmou ter-se oposto ou recusado a assinar tal contrato (cfr. depoimento gravado de minutos 08’43’’ a 09’06’’ do ficheiro áudio 20190918120200_5533269_2870550), nem o Autor poderia estar ciente de uma oposição que não existiu (cfr. depoimento gravado de minutos 24’06’’ a 27’22’’ e minutos 53’27’’ a 55’27’’ do ficheiro áudio 20190918105921_5533269_2870550).
8º) Aliás, essa consciência a que a redação original do ponto y) faz apelo não decorreu de nenhuma prova produzida nos autos, nem consta dos autos qualquer facto que permita tal ilação ou presunção.
9º) Quanto ao destino da quantia de € 1.000.000,00 que vem dada como provada na redação original do ponto y), não só entendemos que esse facto teria necessariamente de ser provado por documento, como também o que se inculca nestas afirmações não corresponde à verdade uma vez que até o P. J. referiu (cfr. depoimento gravado de minutos 06’31’’ a 07’47’’do ficheiro áudio 0190918122446_5533269_2870550) que a I. N. materialmente pertence aos 4 ramos da família, havendo até contratos nesse sentido.
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A recorrente exerceu o contraditório respetivo e pugnou pela improcedência da requerida ampliação.
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O recurso foi admitido ( um último despacho proferido em 16 de Junho de 2020), como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido.

II- FUNDAMENTAÇÃO

As questões a decidir no presente recurso, em função das conclusões recursivas e segundo a sua sequência lógica, são as seguintes:


A) – saber se existe alguma nulidade de sentença nos termos da invocada alínea c) do art. 615º do CPC ou se é apenas invocado o erro de julgamento;
B) saber se a matéria de facto deve ser alterada e caso o seja, se contende com o mérito da causa e em que medida e, nesse caso,
C) se a ampliação do objeto de recurso é de proceder e concernente à matéria de facto.
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III-
Para a apreciação das questões elencadas, é importante atentar na matéria que resultou provada e não provada, que o tribunal recorrido descreveu nos termos seguintes:

São os seguintes os factos provados relevantes para a decisão da causa:

a) No dia 21/2/2011, realizou-se a assembleia geral da sociedade F. P. SGPS S.A., sociedade comercial com o NIPC ………., à data, com sede na Avenida ..., n.º …, …, Vila Nova de Famalicão;
b) Nessa assembleia, o Autor foi eleito vogal do Conselho de Administração para o mandato de 2011-2014;
c) Nessa mesma assembleia, foi eleito Presidente do Conselho de Administração M. A. e como vogais do Conselho de Administração F. P., P. J. e J. F.;
d) Desta designação foi lavrada a inscrição 6, Ap. 19/20110329;
e) Na data de a), o domicílio profissional do Autor era na Avenida ... n.º ..., 7.º andar, no Porto;
f) A eleição do Autor como vogal do Conselho de Administração em 21/2/2011 teve como concreto objectivo poder representar a Ré na Assembleia Geral da sua participada ..., Têxteis, S.A.;
g) O Autor adquiriu o estatuto de administrador apenas para melhor exercer o mandato que a sociedade lhe conferiu para representar em assembleias gerais os seus interesses na sociedade Xinvest que detinha a sociedade Fábrica Têxtil ... e onde estava latente um conflito entre acionistas;
h) E tinha como condição nunca exercer o cargo de facto, mas apenas e tão só para melhor exercer o mandato de advogado nos interesses da família P.;
i) Por consequência, logo em 2011, o Autor entregou ao então Presidente do Conselho de Administração da Ré, que a recebeu, a carta de renúncia de fls. 17, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, sem data, e para que pudesse vir a ser utilizada pela Ré logo que cessasse a razão de ser do seu estatuto de administrador ou se a Ré ou qualquer um dos accionistas perdessem a confiança no Autor;
j) A carta foi assinada pelo Autor, bem conhecendo o conteúdo da mesma e os efeitos decorrentes da sua formalização;
k) A pedido de accionistas da Ré, o Autor manteve-se registado como administrador até ao final do mandato para que havia sido eleito (2011 a 2014);
l) A renúncia não foi levada a registo;
m) A carta de renúncia ficou depositada e arquivada nos dossiers internos da sociedade Ré;
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n) No dia 6/7/2015, realizou-se a assembleia geral da sociedade F. P. SGPS S.A., à data, com sede na Rua ..., n.º ..., em ....
o) Nessa assembleia, o Autor foi reeleito vogal do Conselho de Administração da Ré para o mandato de 2015 a 2018;
p) Desta designação foi lavrada a inscrição 10, Ap. 10/20150821;
q) Na data de n), o domicílio profissional do Autor era na Avenida ..., n.º ..., .., 5.1, no Porto;
r) Em 17/11/2017 foi lavrado registo de cessação de funções de membro de órgão social (on line), por renúncia, do Autor, através do Av. 2, Ap. 4520171117, referente à inscrição 10, Ap. 20150821;
s) O documento usado para a realização do registo foi a carta de i), onde o vogal do Conselho de Administração P. J. apôs a menção “recebido em 17/11/2017”;
t) O Autor não remeteu a carta de i) à Ré, nem esta a recebeu apenas em 17/11/2017, nem renunciou por qualquer forma ao cargo de administrador para que foi eleito em 6/7/2015;
u) A carta de s) foi apresentada a registo por F. J., advogado, portador da Cédula Profissional n.º …, cunhado do vogal do Conselho de Administração, P. J.;
v) Em novembro de 2017, a sociedade Ré já não tinha Presidente do Conselho de Administração desde abril de 2017, conforme Av. 1, Ap. 32/20170531;
w) Em novembro de 2017, o Fiscal único da Sociedade Ré era M. J. & N. B., SROC, Lda.;
x) A carta de i) foi usada em novembro de 2017 para criar a aparência de uma renúncia ao cargo de administrador no mandato de 2015 a 2018, que não existiu.
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y) O Autor outorgou o contrato de fls. 174, numa operação a que alguns accionistas se haviam oposto expressamente e estando ciente disso, permitindo que a quantia de € 1.000.000,00, à revelia daqueles, fosse destinada a outra empresa titulada apenas pelo seu cliente e testemunha P., a sociedade I. N., Unipessoal, Lda.

Não resultou provado que:

a) A Ré tenha prescindido dos serviços jurídicos de F. J., advogado, no Verão de 2017, nem que este se tenha feito passar por seu representante, não o sendo, nem que tenha abusado da prerrogativa que, como advogado, lhe era conferida, de efectuar registos on line sem necessidade de juntar procuração, nem que conhecesse a falsidade do título que apresentava a registo e a inexistência do acto cujo registo requereu;
b) A apresentação da cópia da carta a registo tenha sido efectuada por quem não tinha poderes para representar a sociedade, nem que o apresentante não fosse mandatário da Ré, nem que não tenha sido por ela instruído para apresentar a carta a registo.”
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IV. Do objecto do recurso.

– saber se existe alguma nulidade de sentença nos termos da invocada alínea c) do art. 615º do CPC ou se é apenas invocado o erro de julgamento.

Na conclusão nº1, a recorrente apesar de enquadrar a questão suscitada como se de “error in judicando” se tratasse, conclui invocando em parêntesis a al.c) do art. 615º do CPC ( causa de nulidade da sentença).
Para o efeito entende que a sentença contem uma contradição insanável porquanto erra “na enunciação de alguma da matéria provada de forma tal que blinda a decisão a nova avaliação da factualidade e integração em solução jurídica diferente, erra na integração da factualidade com a decisão e com a matéria dada como provada em g), h), i), l) e y)”.
Vejamos.
Prima facie, importa relembrar que as decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas causas distintas, obstando qualquer delas à sua eficácia ou validade: a) por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respetiva consequência a sua revogação; e b) como atos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do CPC.
Os vícios determinativos de nulidade da sentença, que se encontram taxativamente enunciados no referido art. 615º do CPC., reportam-se à estrutura ou aos limites da sentença, tratando-se de defeitos de atividade ou de construção da própria sentença, ou seja, a vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal.
Respeitam a vícios da estrutura da sentença os fundamentos enunciados nas alíneas b) - falta de fundamentação - e c) - oposição entre os fundamentos e a decisão -, e respeitam a vícios atinentes aos limites da sentença, os enunciados nas alíneas d) - omissão ou excesso de pronúncia - e e) - pronuncia ultra petitum.
Trata-se de vícios que “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”. (1)
Diferentemente desses vícios, são os erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de uma distorção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error iuris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, aliás conforme discurso plasmado pela recorrente na dita conclusão nº1.
Nos erros de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica das provas produzidas ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto, sendo que esses erros, por não respeitarem já a defeitos que afetam a própria estrutura da sentença (vícios formais), mas ao mérito da relação material controvertida nela apreciada, não a inquinam de invalidade, mas de error in iudicando, atacáveis em via de recurso. (2)
Acresce precisar que os vícios da decisão da matéria de facto nunca constituem causa de nulidade da sentença, designadamente por contradição insanável na integração da factualidade provada e a decisão, dado que a matéria de facto encontra-se sujeita a um regime de valores negativos – a deficiência, a obscuridade ou a contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação -, a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação, não constituindo, por conseguinte, causa de nulidade da sentença, mas antes sendo suscetíveis de dar lugar à atuação pela Relação dos poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto operada pela 1ª Instância, nos termos do disposto nos n.º 1 e 2 do art. 662º do CPC.
Seja como for, no caso, a impugnação da recorrente dirige-se, fundamentalmente, contra a decisão da matéria de facto, e, logicamente e numa primeira afirmação, enquadrou a questão como erro de julgamento.
Mas como também invocou a al. c) do art. 615º do CPC, vejamos se existe nulidade da sentença nos termos da al.c) do art. 615º do CPC ( invocada pela recorrente em parentesis) nomeadamente por contradição entre os fundamentos e a decisão?
O vício decorrente da existência de oposição entre os fundamentos e a decisão ocorre quando existe uma contradição lógica entre o raciocínio desenvolvido na fundamentação e a decisão tomada.
Lebre de Freitas salienta que (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2.º, pág. 670) entre “os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja juridicamente correta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial.”
No caso em análise, da leitura da decisão decorre que não existe qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão. Há uma absoluta coerência lógica entre o raciocínio desenvolvido e a conclusão a que se chegou. Em síntese, a decisão considera que logrando o A provar que a carta de renúncia por si assinada mas não datada, entregue e recebida pelo Presidente do Conselho de Administração, em 2011 ( durante o mandato para o qual foi eleito de 2011 a 2014), posteriormente arquivada, foi utilizada em 2017 para criar a aparência de uma renúncia ao cargo de administrador relativo ao mandato de 2015 a 2018, mas que não existiu, pelo que não existindo tal renúncia não existe título, foi a ação julgada procedente e o registo da renúncia declarado nulo.
Trata-se de um correto e lógico silogismo judiciário.
Agora o alegado pela recorrente, a respeito da fundamentação poderá, outrossim, em abstrato, configurar um erro de julgamento, mas nunca uma contradição lógica entre a fundamentação e a decisão.
Não existindo contradição lógica entre a fundamentação e a decisão conclui-se que a nulidade invocada não se verifica.

B – Da alteração da matéria de facto

Como resulta da identificação das questões que se efetuou, no essencial, no recurso vem impugnada a decisão sobre a matéria de facto.

Atento o teor das alegações e conclusões de recurso, desde logo, e além do mais, a recorrente questiona basicamente a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido no que respeita aos factos dados como provados nas alíneas i), k, l), t), x).

Nesses pontos, foi dado como Provado o seguinte:
-“i) Por consequência, logo em 2011, o Autor entregou ao então Presidente do Conselho de Administração da Ré, que a recebeu, a carta de renúncia de fls. 17, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, sem data, e para que pudesse vir a ser utilizada pela Ré logo que cessasse a razão de ser do seu estatuto de administrador ou se a Ré ou qualquer um dos accionistas perdessem a confiança no Autor”
( a R/apelante pretende que se elimine a alínea pela enunciação conclusiva);

- “k) A pedido de accionistas da Ré, o Autor manteve-se registado como administrador até ao final do mandato para que havia sido eleito (2011 a 2014)”
( a R/apelante pretende que se elimine “a pedido de acionistas”);

- “l) A renúncia não foi levada a registo”
( a R/apelante pretende que se elimine este facto);

- “t) O Autor não remeteu a carta de i) à Ré, nem esta a recebeu apenas em 17/11/2017, nem renunciou por qualquer forma ao cargo de administrador para que foi eleito em 6/7/2015”
( a R/apelante pretende que se elimine este facto);

- “x) A carta de i) foi usada em novembro de 2017 para criar a aparência de uma renúncia ao cargo de administrador no mandato de 2015 a 2018, que não existiu.”
( a R/apelante pretende que se elimine este facto);
*
Os recorridos sustentaram que deveria ser rejeitado o recurso por não observar o disposto no art. 640º do CPC.
Contudo sem razão, com exceção do ponto concreto impugnado e constante da conclusão nº 6 ( a alínea i) dos factos provados). Este ponto impugnado na conclusão não foi aludido como tal no corpo das alegações, porventura razão pela qual o recorrido não se referiu ao mesmo, passando-lhe despercebido.
Por conseguinte, quanto à restante matéria de facto impugnada, considera-se que a recorrente especificou os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, especificou os motivos pelos quais não deve ser atribuído valor probatório decisivo aos meios de prova considerados pelo julgador e os meios de prova que no seu entendimento justificam decisão diversa; indicou, com transcrição dos mesmos, os depoimentos que constituem tais meios de prova e concretizou ainda o sentido da decisão que deve ser proferida quanto a tais pontos da matéria de facto.
Assim, mostram-se preenchidos todos os requisitos de que depende a impugnação da matéria de facto, sendo certo que constam dos autos todos os elementos de prova que serviram de base à decisão e, como tal, a decisão sobre a matéria de facto poderia ser modificada por este tribunal da Relação (artigos 640.º e 662.º do Código de Processo Civil), com exceção do ponto impugnado na conclusão nº6 ( ponto i) dos factos provados).
A respeito apenas dir-se-á que não especificou, nem sequer na motivação ou no corpo das alegações, os motivos pelos quais não deve ser atribuído valor probatório decisivo aos meios de prova considerados pelo julgador para aquele facto provado, nem especificou os concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados e que levariam a tal conclusão nº6, não bastando para o efeito a sua referência genérica a respeito dos outros pontos concretos impugnados ou a simples referência de na sua ótica se tratar de alínea com “enunciação eminentemente conclusiva”.
Vale tudo por dizer que quanto a esta matéria de facto- alínea i) dos factos provados- não se mostram preenchidos todos os requisitos de que dependeria a impugnação da mesma, pelo que deveria ser rejeitado o recurso nesta parte (artigos 640.º e 662.º do Código de Processo Civil).
*
No mais, dir-se-á o seguinte:
Tem vindo a ser entendido de forma maioritária pelos Tribunais Superiores (3) que, por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal da Relação não deve reapreciar a matéria de facto quando os factos objeto da impugnação não forem suscetíveis de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, terem relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil (arts. 2º, n.º 1 e 130º, ambos do C.P.C.).
Nessa medida, e seguindo esse entendimento, no caso concreto, entendemos não se mostrar necessária a reapreciação da matéria de facto impugnada, pois que, o presente recurso, ainda que não apreciada tal questão, será sempre de improceder.
De facto, e no que respeita à matéria que a recorrente pretende que seja alterada, fosse a mesma alterada consoante a pretensão recursória, fosse a mesma considerada inalterada conforme sustentado pelo recorrido, o resultado do presente recurso será sempre o mesmo: a sua improcedência, conforme adiante se analisará.
Face a tal, por se tratar de ato inútil, não se reapreciaria a matéria de facto impugnada.
*
Vejamos.

Tal como o A/recorrido estruturou a petição inicial com que introduziu em juízo a presente ação, o objeto do litígio que lhe está subjacente, constituído, como se sabe, pelo pedido e pela causa de pedir que o suporta, reside na nulidade do registo de renúncia do apelado J. C. como administrador da sociedade F P.-SGPS, SA, com fundamento na falsidade ou na insuficiência do título com base no qual foi feito.
É isto, e só isto, que constitui o objeto do presente litígio!

É matéria não impugnada neste recurso, além do mais, o seguinte:

- o Autor foi eleito como vogal do Conselho de Administração da Ré no dia 21.02.2011 para o mandato de 2011 a 2014 (cfr. al. a e b) dos factos provados);
- O Autor adquiriu o estatuto de administrador apenas para melhor exercer o mandato que a sociedade lhe conferiu para representar em assembleias gerais os seus interesses na sociedade Xinvest que detinha a sociedade Fábrica Têxtil ... e onde estava latente um conflito entre acionistas ( al.g) dos factos provasdos);
- E tinha como condição nunca exercer o cargo de facto, mas apenas e tão só para melhor exercer o mandato de advogado nos interesses da família P. ( al. h) dos provados).
- a existência da carta de renúncia assinada pelo A/recorrido e sem data e entregue ao presidente do CA da Ré logo em 2011 ( cfr. al.i) dos factos provados e art. 20 da contestação) e para que pudesse vir a ser utilizada pela Ré logo que cessasse a razão de ser do seu estatuto de administrador ou se a Ré ou qualquer um dos accionistas perdessem a confiança no Autor;
- e que ficou depositada e arquivada nos dossiers internos da Ré ( cfr. al. m) dos factos provados).
- e, pelo menos, o A manteve-se registado como administrador até ao final do mandato para que havia sido eleito (2011 a 2014) ( 2ª parte da al. K) dos factos provados)

E ainda que:
- essa mesma carta foi usada para efetuar o registo em 17/11/2017 da cessação de funções de membro de órgão social (on line), por renúncia, do Autor, através do Av. 2, Ap. 4520171117, referente à inscrição 10, Ap. 20150821( cfr. al. r) dos factos provados).
- nessa carta usada para a realização do registo o vogal do Conselho de Administração P. J. apôs a menção “recebido em 17/11/2017” ( cfr. al. s) dos factos provados).

Acresce que:
- No dia 6/7/2015, realizou-se a assembleia geral da sociedade F. P. SGPS S.A., à data, com sede na Rua ..., n.º ..., em ... e o Autor foi reeleito vogal do Conselho de Administração da Ré para o mandato de 2015 a 2018 ( cfr. als. N) e o) dos factos provados).

Em suma, nesta fase do processo, é matéria assente a existência da dita carta de renúncia assinada pelo A/recorrido, sem data e entregue ao Presidente do Conselho de Administração ( doravante PCA) da Ré, logo em 2011.
Assim sendo, a questão essencial a decidir consiste, pois, em saber se, apresentada renúncia ao cargo de administrador de sociedade anónima, em conformidade com a previsão do art. 404º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), a mesma opera logo os seus efeitos ou se os efeitos da mesma foram diferidos no tempo e até quando.

Sem embargo, são 3 as teses que se perfilam no processo em face daquele facto e desta problemática:

1- a recorrente sustenta que a renúncia em causa apesar de ter sido entregue ao PCA em 2011, foi depositada e não tem data, concluindo, assim, que nunca foi revogada e era uma renúncia incondicional, em aberto, para ser usada logo que cessasse a razão de ser do estatuto de administrador ou se a Ré ou qualquer dos acionistas perdessem a confiança no autor, o que ocorreu, na sua ótica, quando o A outorgou o contrato aludido na alínea y) dos factos provados.
2- o recorrido entende que a renúncia apresentada em 2011 não foi operante no âmbito do mandato de 2011 a 2014, porque foi extinta na sequência do acordo das partes nesse sentido, daí continuar registado como administrador, não podendo, contudo, a carta de renúncia ser utilizada no âmbito de um novo mandato que fez nascer um novo direito, que só depois de existir, seria passível de ser renunciável.
3- a sentença considera que com a entrega ao PCA, logo, em 2011, da carta de renúncia, a renúncia operou os seus efeitos no mandato então em vigor ( mandato de 2011 a 2014) e na sua relação com a sociedade e membros da mesma, atenta a sua validade, eficácia e irrevogabilidade, pelo que foi resolvido o contrato de administração em que se consubstanciava tal mandato, (embora não tivesse efeitos em relação a terceiros, por não ter sido registada, sendo certo, por outro lado que se manteve registado administrador até ao fim do mandato de 2014); quanto ao mandato subsequente, trata-se de nova relação contratual que só depois de existir é que poderá ser renunciável, e nesse mandato o A não renunciou por qualquer forma ao cargo de administrador para o qual foi eleito em 06.07.2015, pelo que não existindo renúncia relativamente àquele mandato, não existe título e o registo é nulo.

Vejamos.
O Artigo 404º do CSC e sob a epígrafe “Renúncia” dispõe:1 – O administrador pode renunciar ao seu cargo mediante carta dirigida ao presidente do conselho de administração ou, sendo este o renunciante, ao conselho fiscal ou à comissão de auditoria.2 – A renúncia produz efeito no final do mês seguinte aquele em que tiver sido comunicada, salvo se entretanto for designado ou eleito o substituto.
Antes de mais, há que ter presente que a renúncia é o ato unilateral do administrador, pelo qual ele põe termo à situação de administração (Assim, na doutrina e entre outros, António Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, vol. II, Liv. Almedina, 2017, 3ª impressão da 2ª ed. 2007, p. 442., e J. M. Coutinho de Abreu, Governação das Sociedades Comerciais, Liv. Almedina, 2ª ed., p. 148.), devendo notar-se, ainda, que o art. 404 do CSC, fixa, no respetivo nº 1, a regra da livre renunciabilidade ao cargo de administrador de sociedade anónima.
Assim, o administrador pode, só por si, fazer cessar a relação de administração.
A renúncia é possível a todo o tempo, de outro modo, faz notar aquele insigne professor Menezes Cordeiro ( in ob cit,p. 442), “ estaríamos a admitir algo semelhante a trabalhos forçados”.
Todavia, ela não pode ocorrer sem regras, nomeadamente deixando a sociedade desamparada.
A competente declaração ou comunicação deve ser feita por escrito ( “ mediante carta”) .
Tem de ser dirigida ao PCA, ou sendo este o renunciante ( ou não o havendo) , ao conselho fiscal ou à comissão de auditoria ( cfr. art. 404,nº1) e na falta destes órgãos ao presidente da mesa da assembleia geral ( art. 10º,nº3 do CC).
Trata-se de um ato recipiendo ( Raúl Ventura, “ Sociedade por quotas”, 3, 122).
Sendo comunicada ( e recebida pelo destinatário ou chegado ao seu poder- já que é uma declaração recetícia), a renúncia torna-se efetiva ou só produz os seus efeitos no final do mês seguinte àquele que tiver sido comunicada ( art. 404,nº2, 1ª parte): trata-se de permitir designar o substituto ( se este for designado antes, ela produz efeitos com tal designação-art. 404º, nº2, 2ª parte).
De outra banda, a eficácia da renúncia perante terceiros depende de registo e, em princípio, de publicação ( cfr. art. 14º,nº1 e 2 do CRCom e 168º, 2 e 3 do CSCom). (4)

Em suma: A renúncia opera ex nunc: torna-se eficaz no final do referido mês perante a sociedade.
Assim é que a renúncia quebra a regra de que os anteriores titulares se mantêm em funções até à designação dos novos (art. 391 (Artigo 391º (Designação):

3 – Os administradores são designados por um período fixado no contrato de sociedade, não excedente a quatro anos civis, contando-se como completo o ano civil em que os administradores forem designados; na falta de indicação do contrato, entende-se que a designação é feita por quatro anos civis, sendo permitida a reeleição.
4 – Embora designados por prazo certo, os administradores mantêm-se em funções até nova designação, sem prejuízo do disposto nos artigos 394º, 403º e 404º.
5 - … )/4 CSC), já que, como nota Menezes Cordeiro (Veja-se o Código das Sociedades Comerciais Anotado, p. 1326, 3ªed de 2020.), não é possível manter alguém em funções contra sua vontade.

Ora, tendo isto presente – e assim revertemos ao caso concreto –, a renúncia de fls. 17 foi entregue ao PCA, em 2011, pelo administrador então eleito para o mandato de 2011 a 2014, presidente esse que a recebeu.
Trata-se de uma carta escrita e assinada pelo então administrador, ora A/recorrido, nos termos da qual o mesmo renunciava ao cargo de administrador.
Assim sendo, temos um documento que, ainda que não datado, foi comunicado e recebido pelo PCA, em 2011, da autoria do apelado, comunicação essa a colocar termo à relação de administração que o unia à sociedade;

Em suma, pois:
- a renúncia do A/recorrido à administração da sociedade recorrente, não pode deixar de ser tida como devidamente comunicada através daquela missiva;
- renúncia essa entregue e recebida pelo Presidente do CA, em 2011, tudo isto, não obstante o referido documento não se mostrar datado.
Ou seja, provando-se a data da comunicação da renúncia ( no ano de 2011) provar-se-ia a eficácia da mesma, não sendo elemento constitutivo do ato da renúncia a data da mesma.

Sem embargo, e seria de aceitar o raciocínio da sentença- eficácia imediata nos termos do art. 404º do CSC e apenas com a comunicação entregue e conhecida pelo PCA e, consequente, resolução contratual, caso o facto da alínea i) dos factos provados se ficasse apenas pelo teor do documento.
Porém, assim não se verifica.
Na verdade, deu-se como provado mais (e de acordo com a alegação aduzida na contestação pela Ré): o A entregou aquela carta de renúncia … sem data, e para que pudesse vir a ser utilizada pela Ré logo que cessasse a razão de ser do seu estatuto de administrador ou se a Ré ou qualquer um dos accionistas perdessem a confiança no Autor”.
Ou seja, trata-se de uma renúncia sui generis, porquanto o administrador declara à sociedade que pretende cessar a relação contratual que os une, mas deixa ao critério da ré ou dos seus acionistas o seu acionamento.
Com este facto, resta-nos concluir que a eficácia da renúncia ficou dependente da vontade da Ré, mais parecendo uma aceitação antecipada de eventual destituição(!).
Por tudo o exposto, entendemos que que aquela renúncia não produziu os seus efeitos pela simples comunicação prevista na lei nos termos do art. 404º do CSC, porquanto estava dependente da condição de ser utilizada pela Ré, como que consubstanciando uma declaração resolutiva sob condição, se quisermos seguir o raciocínio plasmado na sentença e respaldado na doutrina ali referida.
É que uma coisa é dizermos que a renúncia sendo uma declaração recetícia não carece de aceitação, para significar que se torna efetiva de forma automática e a partir do momento em que é levada ao conhecimento do PCA, conforme prescrito na lei. Situação diferente é a de o renunciante prever um diferimento na eficácia da sua declaração e torna-la dependente da conduta da ré, o que parece ainda assim ser admissível dentro do princípio da livre renunciabilidade.
Em verdade, se o administrador pode, na comunicação referida no art. 404º do CSC, dilatar o prazo da efetividade da renúncia, e pode indicar a data em que a renúncia se tornará efetiva ( cfr. Raúl Ventura, Comentário ao CSC, vol III, p. 123), cremos que também poderá condicionar a eficácia da renúncia à conduta da sociedade.

Em suma: entendemos que a renúncia apresentada em 2011 não foi operante para a sociedade, pelo que não fez cessar o mandato de 2011 a 2014, no qual o A/recorrido manteve-se até ao final registado como administrador.

Mais: o ato de renúncia corporizado naquela carta entregue em 2011 não foi operante no âmbito do mandato de 2011 a 2014, sendo certo que atento o teor da carta e a data dos factos somente a este mandato dizia respeito.

E neste último segmento, concordamos, no essencial, com a sentença e com o recorrido e discordamos da recorrente.
Com efeito, como dizer, conforme sustenta a recorrente, que aquela carta de renúncia ao cargo de administrador (eleito para o mandato de 2011 a 2014) e comunicada em 2011 ao PCA e depositada nos arquivos da Ré sociedade pode valer e ser utilizada pela Ré no âmbito de um outro mandato de 2015 a 2018 e para o qual o A/recorrido foi novamente eleito?
A propósito, na sentença lê-se de modo claro o seguinte: “ em 6/7/2015, o Autor foi novamente reeleito vogal do Conselho de Administração da Ré para o mandato de 2015 a 2018.
E, então, formalizou-se um contrato de administração ex novo porque “a reeleição e aceitação não corresponde aos mesmos pressupostos do anteriormente existente, nem tão-pouco, a prorrogação do prazo anterior” – cfr. o Ac. do TRP de 12/12/1994 supra citado.
Sendo um novo mandato e uma nova relação contratual mantida entre o Autor e a sociedade Ré, existe um direito novo que só depois de existir podia ser renunciável.
Em suma, a carta de renúncia entregue no mandato anterior reportava-se a uma relação contratual que se extinguiu pelo decurso desse quadriénio. Relativamente ao mandato subsequente, o Autor não renunciou por qualquer forma ao cargo de administrador para que foi eleito em 6/7/2015.”.

Atento o teor da carta de fls. 17 ( renúncia ao cargo de administrador) e demais factos provados, nomeadamente a data em que foi comunicada ( 2011) e encontrando-se em pleno exercício do mandato de administrador para o qual tinha sido eleito até 2014, apenas uma conclusão se afigura possível: aquela renúncia dizia respeito ao cargo de administrador em curso- mandato de 2011 a 2014.

Com efeito e não nos pretendendo embrenhar na vexata quaestio da admissibilidade da renúncia de direitos futuros ou de bens futuros, a verdade é que esta questão nem sequer se coloca porquanto não se provou por qualquer forma ( não tendo sido sequer alegado) que a carta de renúncia de fls. 17, assinada pelo A/recorrido e entregue e comunicada em 2011, dizia respeito a uma renúncia a qualquer cargo de administrador que o mesmo exercesse, fosse naquela ocasião (2011) fosse numa outra ocasião no futuro e quando novamente eleito.

Provou-se conforme consta da alínea i) dos factos provados, a qual contém “ in fine” a alegação aduzida pela Ré sociedade que aquela carta de renúncia entregue em 2011, assinada pelo A e sem data, seria para ser utilizada pela Ré “logo que cessasse a razão de ser do seu estatuto de administrador ou se a Ré ou qualquer um dos accionistas perdessem a confiança no Autor”.
Mas este facto de per si não é suficiente para se concluir conforme a recorrente pretende ( dá de barato que a primeira condição se esgotou, mas a segunda- a confiança de todos- manteve-se em vigor enquanto se manteve o exercício do cargo).
Esta construção esbarra com os factos dados como provados ( e que a impugnação feita não traz luz a respeito), conforme analisámos.
Por outro lado, a sua argumentação- “enquanto o A manteve-se no exercício do cargo até 2017” e que tem implícita uma continuidade do exercício do mesmo mandato e cargo de administrador, esbarra com a construção jurídica em que se consubstancia cada um dos mandatos para os quais são eleitos os administradores e aludida na sentença.
Em verdade, independentemente da controvérsia doutrinal e jurisprudencial acerca da situação jurídica da administração ( ora afirmando-se maioritariamente que ela é contratual, ora afirmando-se que não pode haver um contrato de administração, ora afirmando-se a inadequação do contratualismo puro (5)), a verdade é que no tocante às sociedades anónimas, o Código prevê um esquema complexo de designação de administradores ( e que no caso concreto, foi por eleição para cada um dos mandatos) e a vicissitude da sua cessação está sempre no horizonte por diversas formas, designadamente: a caducidade, a revogação, a resolução e a denúncia, renúncia.
Desde logo, há caducidade quando expira o prazo por que foi feita a designação- no caso das sociedades anónimas, que é o caso vertente, releva o prazo máximo de 4 anos, fixado no art. 391º, nº3 do CSC-prazo esse acrescido do lapso necessário, para que haja nova designação- art.391º,nº4 do CSC.
Neste particular, e à parte a problemática que divide a doutrina acerca de nessa última situação termos uma “administrador de direito” ( como é corrente sustentar-se) ou um “administrador de facto reconhecido por lei por interpretação objetivo-atualista do art. 391º,nº4”, na verdade, a caducidade não deixa de operar automaticamente-como é regra do regime da caducidade do vínculo orgânico-administrativo, uma vez que o exclusivo facto determinante da caducidade é o tempo ( dies certus na, certus quando). (6)
Vale tudo por dizer que o decurso do prazo provoca o efeito extintivo da relação jurídica entre a sociedade e o administrador com a automaticidade típica da caducidade.
É que a vigência do cargo está informada imperativamente pelo princípio da temporalidade.
Com o atingir desse “fim do período”, seguem-se as formas de designação originária para um novo ciclo temporal de exercício de funções, tal como ocorreu no caso vertente, com nova eleição do A/recorrido como administrador para um novo mandato de 2015 a 2018.
Destarte, como é que uma carta de renúncia, comunicada em 2011 (e entretanto depositada nos aquivos) pelo administrador no decurso do seu mandato que terminou em 2014, apenas porque não foi datada, poderia valer para um outro mandato que iniciou a sua vigência um ano depois do primeiro, ou seja, em 2015?
Apenas poderia ser assim se estivéssemos sempre perante o mesmo exercício de mandato de administrador.
Outrossim, temos a mesma pessoa que exerceu dois mandatos distintos: um de 2011 a 2014 e outro de 2015 a 2018.

No caso sub judicio, atentos os factos provados e nada mais tendo sido alegado pela Ré a respeito da renúncia em causa ( não sendo a impugnação aduzida em recurso relevante para o efeito), apenas se poderá concluir que a carta em causa e entregue no mandato anterior reportava-se àquele vínculo orgânico-administrativo, o qual se extinguiu pelo decurso do tempo em 2014.
Com a nova eleição do A/recorrido, em 2015, iniciou-se um novo vínculo orgânico-administrativo, e neste o autor não renunciou por qualquer forma ao cargo de administrador para o qual foi eleito, pelo que tendo sido utilizada aquela mesma carta de renúncia e reportada a 2011 ( ou ao mandato de 2011 a 2014), apenas se poderá concluir que não poderá a mesma valer com aquele intuito, não existindo, assim, título, pelo que o registo é nulo, nos termos do art. 22º do CRC, devendo ser cancelado.
Improcede, assim, a pretensão recursória, confirmando-se a decisão recorrida ainda que com alguma fundamentação diferente.
Atenta a presente decisão, não se conhece da requerida ampliação do recurso.

VI- DECISÃO:

Por tudo o exposto, acordam as Juízes que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela R/recorrente.
*
Guimarães, 8 de Outubro de 2020

Assinado electronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira ( relatora)
Rosália Cunha e
Lígia Venade


1. Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, pág. 734.
2. Ac. STJ. 08/03/2001, Proc. 00A3277, in base de dados da DGSI
3. Vide, por todos, o AC do STJ de 17-05-2017, in dgsi.
4. Com efeito, a renúncia está sujeita a registo ( art. 3ºnº1, m) doCRCom) e a publicação ( art. 70º, nº1, al. a) do CSC). Acresce que tem legitimidade para pedir o registo não apenas a sociedade, mas qualquer pessoa que tenha interesse ( art. 29º CSC) , nomeadamente o administrador que renuncia.
5. Sobre esta problemática, vide, “ Direito das Sociedades”, Vol I, Menezes Cordeiro, p. 834 e ssgs, 4ª ed., 2020ç.
6. Sobre esta problemática, vide “ CSC em Comentário”, 2º ed, Vol VI, p. 235 e ssgs, Ricardo Costa.