Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1193/14.5TBPVZ-A.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: CHEQUE
QUIRÓGRAFO
PRESCRIÇÃO
TÍTULO EXECUTIVO
RELAÇÃO SUBJACENTE
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Declarada prescrita a obrigação cambiária, o título executivo passa a constituir mero documento particular, quirógrafo da dívida causal ou subjacente;

II – O artigo 703.º, n.º 1, al. c), do CPC admite que sirvam de base à execução os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;

IIIA parte que queira prevalecer-se de um título de crédito que valha como mero quirógrafo tem o ónus de identificar adequadamente essa relação subjacente, de modo a possibilitar, em termos proporcionais, ao executado, o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo art. 458º do CC;

IV – Quando, relativamente à relação causal, no requerimento executivo apenas se mostra alegado um “adiantamento” pelo Banco Exequente ao Executado e a creditação do correspondente montante numa conta deste, impõe-se concluir que a causa debendi não está identificada de modo a facultar o contraditório ao executado, podendo dizer-se que, nessa medida, não há título executivo que suporte a execução.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

Por apenso à execução para pagamento de quantia certa, com processo comum, que lhe move o Banco ... S.A., deduziu M. C. oposição à dita execução mediante embargos de executado.

Invocou, para o efeito, para além da prescrição, a falta de alegação da relação causal.

A Exequente contestou, basicamente para, apesar de reconhecer a prescrição da obrigação cambiária enquanto tal, sustentar que, ainda assim, a letra é exequível como mero quirógrafo, desde que seja alegada a relação causal, como, na sua perspetiva, no caso, foi.

Em sede de saneamento dos autos, foi julgada procedente a exceção de prescrição arguida e foi proferida sentença que, a final, decidiu julgar, pela via da prescrição da obrigação cambiária e da consequente insuficiência do título executivo contra o embargante, extinta a execução contra o embargante.

Inconformado com a referida decisão, o Embargante interpôs o presente recurso, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

1. O presente recurso foi interposto do douto despacho saneador / sentença proferido pelo Mª. Juiz “a quo”, a fls.. do processo, que julgou procedente os Embargos de Executado intentados por M. C.
2. Decidindo como decidiu, salvo o devido respeito, o Mº Juiz "a quo" não fez correcta interpretação dos factos nem adequada aplicação do direito.
3. O art.703º, n.º1 do Código de Processo Civil (doravante CPC), refere, taxativamente, na alínea c) que podem servir de base à execução os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.
4. Face ao exposto e atenta a redacção actual do art.703º, n.º1, al.c), é lídimo e pacífico entendimento, na doutrina e jurisprudência, que o título cambiário prescrito continua a valer como título executivo, pois mantém a qualidade de documento particular assinado pelo devedor, desde que, no entanto, se faça expressa referência à relação material que lhe subjaz, uma vez que a abstracção do título se perde com a prescrição.
5. Posto isto, convém ressaltar que o Recorrente é legítimo dono e portador de uma Letra de câmbio, no valor de Eur.10.000,00 (dez mil euros), sacada pelo Embargante M. C..
6. Conforme o referido no respectivo requerimento executivo, o Banco Recorrente adiantou ao Executado M. C., a quantia titulada pela referida letra de Câmbio, que este usou em proveito próprio, tendo o montante sido creditado na conta de depósitos á ordem, aberta em nome do Embargante, com o n.º ...8, conforme se alcança no extracto bancário, que foi junto como doc.2.
7. Essa operação cambiária materializou-se numa operação bancária de desconto de letra de câmbio, através da qual o Banco satisfez a necessidade de financiamento invocada pelo Embargante.
8. O desconto bancário de letra pode ser reconduzido a uma espécie de contrato de mútuo com garantia, através do qual uma qualquer Instituição Bancária antecipa os montantes inscritos no título cambiário, que, para o efeito, lhe é endossado.
9. Refira-se que a entrega do título cambiário, através do endosso, considera-se uma data pro solvendo e não data pro soluto, pois o mutuante mantém a possibilidade de exigir o montante descontado ao mutuário.
10. Ora, como facilmente se apreende da análise do requerimento executivo apresentado, o Exequente, ora Recorrente, refere expressamente o negócio causal que esteve na base do negócio cambiário.
11. Por meio de proposta de desconto assinada pelo Embargante, o Banco Recorrente creditou o montante titulado na letra de câmbio na supra referida conta de depósitos à ordem, conforme se alcança do extracto de conta junto com o requerimento executivo.
12. Como facilmente se alcança do requerimento executivo apresentado e dos documentos que o acompanham, o Banco Apelante, para além da expressa invocação da relação material subjacente ao negócio cambiário, faz prova da operação bancária efectuada, através da proposta de desconto assinada pelo Embargante e pelo extracto de conta, do qual resulta inequivocamente a antecipação ao Embargante do montante inscrito no título cambiário, que este usou na totalidade e em proveito próprio.
13. O Executado, ora Recorrido, através da operação de desconto, assumiu a obrigação do pagamento da quantia aposta na mesma, o que consubstancia o reconhecimento expresso da obrigação assumida pessoalmente.
14. Mais, é inequívoco o nexo de ligação existente entre a operação de desconto bancário e o endosso da letra ao Banco Recorrente.
15. Essa operação cambiária materializou-se numa operação bancária de desconto de letra de câmbio, mediante a qual o Banco satisfez a necessidade de financiamento invocada pela sociedade Recorrida.
16. O desconto bancário de letra pode ser reconduzido a uma espécie de contrato de mútuo com garantia, através do qual uma qualquer Instituição Bancária antecipa os montantes inscritos no título cambiário, que, para o efeito, lhe é endossado.
17. Veja-se a este respeito o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25 de Janeiro de 2005, proferido no processo n.º0426397:

“I- O desconto bancário não consiste apenas na entrega a um Banco do título cambiário.
II- Para além da entrega, é preciso atender à proposta de desconto, ao recebimento antecipado das quantias e montante dos títulos pelo descontário e à relação de causalidade entre esse recebimento e a entrega dos títulos.”
18. Por outro lado é manifesto que o Banco Recorrente não foi ressarcido do montante em causa, porquanto a letra de câmbio permanece na sua posse, o que não aconteceria se houvesse pagamento, pois implicaria devolução da mesma.
19. Através da referida operação comercial, o Banco Exequente ficou investido de todos os direitos inerentes à posse de um título cambiário.
20. Por outro lado é manifesto que o Banco Recorrente não foi ressarcido do montante em causa, porquanto a letra de câmbio permanece na sua posse, o que não aconteceria se houvesse pagamento, pois implicaria a devolução da mesma.
21. Não subsistem, portanto, quaisquer dúvidas que na origem da assinatura do título de câmbio em causa esteve a operação de desconto bancário efectuada entre o Embargante e o Banco Recorrente, assumindo aquele, dessa forma, a responsabilidade pelo seu pagamento perante este.
22. Invocada e provada a relação material subjacente à referida assinatura do título cambiário, independentemente de o título, na sua vertente cambiária, se encontrar prescrito, este continua a valer como documento particular assinado pelo devedor, que, com a sua assinatura, assume a responsabilidade pelo pagamento do montante nele inscrito.
23. A letra de câmbio não perde a categoria de título executivo, ainda que já se encontre prescrita a obrigação cambiária.
24. Da simples análise do respetivo conteúdo da letra, resulta a certeza, liquidez e exigibilidade da obrigação exequenda.
25. Neste sentido entende a doutrina maioritária:
“Não obstante a prescrição da acção cambiária, o título cambiário pode, ainda, servir de título executivo relativamente à obrigação fundamental ou subjacente – por ser um documento particular, assinado pelo devedor, que envolve o reconhecimento dessa obrigação – desde que o Exequente invoque a relação jurídica subjacente e esta não constitua um negócio jurídico formal” – Acórdão da Relação do Porto, de 28.10.2010, in www.dgsi.pt.
26. O Banco Exequente apresentou à execução a letra, como título cambiário, ainda que mero quirógrafo, assinado, entre outros, pelo devedor M. C., aqui Embargante, e invocou os factos demonstrativos da respectiva relação jurídica subjacente.
27. De outro modo não se compreenderia que, não havendo qualquer relação entre os Executados, fosse sacada uma letra de câmbio no valor de Eur.10.000,00 (dez mil euros).
28. Assim, o Banco Exequente, enquanto legítimo portador da letra, tem o direito de accionar todos os intervenientes cambiários, uma vez que, a ordem de pagamento, inscrita no título, implica, só por si, um reconhecimento da dívida, como supra já se salientou.
29. Não se vislumbram, portanto, motivos que obstem a que se considere o documento dado à execução como um título executivo idóneo, uma vez que concluímos: i) os títulos cambiários prescritos valem como título executivo se for invocada a relação material subjacente e ii) a relação material subjacente foi, efectivamente, invocada e provada no requerimento executivo apresentado.
30. O despacho saneador/ sentença, ao decidir como decidiu, violou frontalmente, o disposto o disposto no artigo 703.º, n.º1, alínea c) e, ainda, o disposto no artigo 595, nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Civil.

Termina pedindo seja concedido provimento ao recurso e seja revogada a sentença recorrida, substituindo-se a mesma por outra que ordene o prosseguimento dos autos.
O Embargante apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência da apelação.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC).

No caso vertente, a questão a decidir é a seguinte:

- Saber se, para efeito de execução fundada em título de crédito que, declarado prescrito no âmbito de embargos, vale como mero quirógrafo, a alegação constante do requerimento executivo apresentado pelo ora Recorrente se revela suficiente para que haja título executivo que suporte a execução.
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III. FUNDAMENTOS:
Os factos.

Na primeira instância, foi dada como provada a seguinte factualidade:

1. Na execução a que os presentes autos estão apensos foi apresentada à execução a letra com o original junto a fls. 15 dos autos executivos, tendo inscrito, em algarismos e por extenso, a importância de € 10.000,00, donde consta: no local da data de emissão, 2008-07-29; no local da data de vencimento, 2008-10-29, no local do sacador, assinatura imputada ao embargante; no local do sacado “X – Sociedade Imobiliária, Lda.”; contendo, na parte anterior da letra, a seguir à expressão “Aceite”, uma assinatura com referência ao sacado.
2. A presente execução foi interposta em 25.06.2014,
3. Alegando a exequente o que consta do requerimento executivo, que aqui se reproduz, nos seguintes termos, na parte relevante:
“O Exequente é dono e legítimo portador de 1 (uma) letra de câmbio, sacada por M. C., e aceite por X, Sociedade Imobiliária, Lda., no valor de €10.000,00 (dez mil euros) e vencida em 29 de Outubro de 2008. (doc.1);

Assim, o Banco Exequente adiantou, ao Executado M. C., a quantia titulada pela referida letra de câmbio, que este usou em seu proveito próprio, tendo o montante sido creditado na conta de depósitos à ordem, aberta em nome do Sacador, com o n.º...8, conforme se alcança do extracto bancário que se junta, e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, (Doc. n.º2).
Acresce que, com a assinatura da referida letra, X - Sociedade Imobiliária, Lda., aceitou a ordem de pagamento emitida pelo Sacador M. C., reconhecendo, assim, a existência e exigibilidade do mencionado crédito.
Na data de vencimento da referida letra, nenhum dos intervenientes cambiários efetuou o pagamento da mesma.”

. Da consulta dos autos resulta ainda que:

- Em 24.05.2016, no âmbito dos embargos – a fls. 62 a 64 – e na sequência de notificação para o efeito, o Exequente/Embargado requereu a junção “do original da proposta de desconto da letra dada à execução”, bem como cópia do “despacho que originou a referida letra”, onde se caracteriza a operação em causa àquela se referindo como “reforma de efeito em situação de mora”.
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O Direito.

Está assente nos autos que a letra dada à execução se encontra prescrita (art. 70º da LULL).

“Daí decorre a perda da acção cambiária, o mesmo não sucedendo, porém, com a acção fundada na obrigação fundamental ou subjacente: a assunção da obrigação cambiária constitui simples dação pro solvendo e não produz, em princípio, novação da relação jurídica fundamental (só assim não será se houver manifestação expressa no sentido de a nova obrigação implicar a substituição da anterior – art. 859º do CC).

Assim, perdida a natureza cambiária, a letra passa a constituir mero documento particular, quirógrafo daquela dívida causal ou subjacente.

A letra deixa, por conseguinte, de ser título constitutivo da relação cambiária, para passar a valer como título certificativo da relação obrigacional subjacente, constituindo meio próprio para o reconhecimento dessa dívida pré-existente. (acórdão do STJ 27.05.2014 – Pinto de Almeida)

A interpretação do art. 46º, nº 1, c), do CPC (na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro), havia dado lugar a respostas divergentes à questão de saber se um título de crédito prescrito pode valer como título executivo, sendo maioritário, na jurisprudência recente, o entendimento que admitia tal possibilidade, enquanto quirógrafo da obrigação, desde que os factos constitutivos da relação subjacente constassem do documento ou fossem alegados no requerimento executivo. Este entendimento maioritário veio a ser consagrado no novo CPC, ao admitir o artigo 703.º, n.º 1, al. c), que sirvam de base à execução os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo. (Relação de Évora 09.11.2017 -Relatora Ana Margarida Leite)

E foi deste pressuposto que partiu a decisão recorrida.

A única questão a conhecer restringe-se, pois, a saber se a alegação efetuada pelo Exequente no respetivo requerimento executivo integra ou não os tais factos constitutivos da relação subjacente.

Para melhor se compreender a razão de ser e a função da aludida exigência legal de alegação, é de relembrar que, reconhecida a dívida, o credor fica dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário – art. 458º nº 1 do CC –, cabendo, pois, ao declarante alegar e provar que tal relação não existe (nunca existiu ou deixou de existir).

Por essa razão, já no anterior código, a orientação que acabou por ser acolhida pelo legislador no novo CPC defendia a razoabilidade da solução agora consagrada – a de fazer impender sobre o credor a invocação da relação subjacente – em razão da dificuldade de cumprimento, pelo devedor, do aludido ónus da prova, “se não souber qual a relação pressuposta pelo credor: seria uma verdadeira probatio diabólica, atenta a infinidade de causas possíveis”. (Lisboa 09.07.2009 - Márcia Portela)

Acentuando, de novo esta ideia, pode ler-se no Acórdão do STJ de 07.05.2014 (Relator Lopes do Rego), que embora proferido no âmbito de ação declarativa revela pertinência para a questão que ora nos ocupa: “A parte que quer prevalecer-se do título – letra – invocado como quirógrafo da obrigação causal subjacente à sua emissão tem o ónus de alegar, na petição inicial ou no requerimento executivo, os factos essenciais constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, desprovido de valor nos termos da respectiva LU, identificando adequadamente essa relação subjacente, de modo a possibilitar, em termos proporcionais, ao demandado/executado, o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo art. 458º do CC.”

E é esta ideia fundamental que é reafirmada no Acórdão desta Relação de 15.03.2018 (Relatora Eugénia Cunha):

“O exequente que propõe ação executiva fundada em quirógrafo da obrigação causal subjacente à emissão do cheque tem o ónus de alegar no requerimento executivo, em obediência ao estatuído na al. c), do nº1, do art. 703º, do CPC, os factos, essenciais, constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, sem valor como título de crédito nos termos da Lei Uniforme Sobre Cheques, quando dele não constem, de modo a possibilitar, em termos proporcionais, ao executado, o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo art. 458º, do Código Civil, que consagra uma inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental (exceção ao regime geral de distribuição do ónus da prova consagrado no nº1, do art. 342º, deste diploma), passando o devedor a ter de provar a falta da causa da obrigação inscrita no título ou alegada no requerimento inicial para ver os embargos proceder e a execução extinta”.

Por outro lado, como, invocando Lebre de Freitas, A Acção Executiva (à luz do código revisto), 2ª edição, pág. 54 e Abrantes Geraldes, Títulos Executivos, Separata Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano IV, nº. 7, 2003, pág. 64, se frisa no acórdão do STJ, de 2003.10.30, Pires da Rosa, www.dgsi.pt.jstj, proc. 03B2600), “é no requerimento executivo, e não posteriormente, na pendência do processo, que o exequente pode fazer essa invocação”.

Isto porque, se tal ocorrer sem o acordo do executado, há uma alteração não admissível da causa de pedir (Acórdão do STJ de 29.04.2014 – Relator Fernandes do Vale). No mesmo sentido Ac. da Relação do Porto de 10.05.2010 (Relator Alfredo Soares de Oliveira) e Ac. da Relação do Porto de 24.04.2014 (Relatora – Judite Pires).

“Um título executivo respeitante a uma obrigação causal exige, sempre, a indicação do respectivo facto constitutivo, porquanto sem este a obrigação não fica individualizada”, entendendo-se, por isso, que, sem essa indicação, “é inepto o requerimento inicial da execução, por falta de indicação da causa de pedir.” (Acórdão do STJ de 29.04.2014 – Relator Fernandes do Vale).

A fim de melhor se perceber como a jurisprudência tem densificado este ónus de alegação, citam-se de seguida exemplos de decisões que sobre esta matéria se pronunciaram.

Em Acórdão do STJ de 30.10.2013 (Relator Pires da Rosa), considerou-se que “a simples invocação da atinência da emissão do cheque a uma transacção comercial, sem indicação do tipo de transacção e dos transaccionantes e respectiva posição, não preenche a invocação de uma verdadeira e própria relação substancial que crie direitos e deveres entre duas pessoas que são agora exequente e executado”, ali se explanando que “o que falta ao exequente é, pode dizer-se, uma verdadeira e própria causa de pedir, o alinhamento «de acto ou facto jurídico - simples ou complexo, mas sempre concreto – donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer» - Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 111.”

Em acórdão da Relação do Porto – 24.04.2014 (Relatora – Judite Pires) respeitante a um caso em que o exequente no requerimento executivo escreveu que as livranças titulavam “um financiamento bancário, concedido pelo Banco cedente aos executados, no exercício da sua actividade bancária”, entendeu-se que tal não constituía a descrição de factos de que resulte ou nasça, sem mais, a obrigação de pagamento: se terá existido efectivo financiamento ou um empréstimo bancário, se se tratará de livranças – caução, qual o valor do capital, juros remuneratórios eventualmente estipulados ou acordados, forma e prazo de pagamento, quais as concretas operações de liquidação que se vieram a realizar (ou não) para preenchimento daquelas livranças, etc. (cfr., a este respeito, em situação análoga, Ac. da Relação de Lisboa de 21.04.2005, processo n.º 9012/2004-8, in www.dgsi.pt)”, pelo que ali se concluiu que “não foram alegados factos referentes ao negócio subjacente que de uma forma minimamente segura levasse à conclusão das suas características e efeitos”.

E já em Acórdão da Relação do Porto de 8 de Novembro de 2004
(Relator José António Sousa Lameira), num caso em que no requerimento executivo foi feita a alegação de que “Por virtude de endosso e operação de crédito praticada pelo ... a favor da primeira executada, o Exequente é dono e legítimo portador de uma letra”, se havia considerado que “a expressão em causa afigura-se insusceptível de constituir alegação bastante da relação causal”.


Por último e com particular relevância para o caso em apreço, veja-se o Acórdão da R. de Coimbra de 16.03.2016 (Relatora Maria Domingas Simões) onde, relativamente a um caso em que “o Banco exequente invocou ter sido o título cambiário emitido por via de transacções comerciais mantidas entre os executados, tendo sido sacada pela executada F..., Lda. devido a dificuldades de tesouraria, tendo o executado procedido posteriormente ao respectivo desconto”, se concluiu que “o banco exequente não alegou no requerimento executivo todos os elementos individualizadores do mesmo, não suprindo tal alegação a mera identificação, por apelo ao número que internamente lhe atribuiu, de uma “operação de desconto”.

Este entendimento foi também sufragado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Outubro de 2016 (Relator Tavares de Paiva) que confirmou o referido acórdão da Relação de Coimbra.

Face a este quadro jurisprudencial, pensamos que outra coisa não se pode concluir, relativamente ao caso em apreço, senão que a causa debendi não foi alegada de forma minimamente precisa e concretizada, no requerimento executivo, falhando na alegação factos estruturantes da causa de pedir, factos que permitam uma identificação com, nas palavras usadas no Acórdão do STJ de 07.05.2014 (Relator Lopes do Rego), “um nível de densificação e concretização aceitável, da relação causal à emissão das letras, facultando com isso o contraditório aos demandados”.

Na verdade, relativamente à relação causal, ali apenas se mostra alegado que o Banco Exequente adiantou, ao Executado M. C., a quantia titulada pela referida letra de câmbio, que este usou em seu proveito próprio, tendo o montante sido creditado na conta de depósitos à ordem, aberta em nome do Sacador, com o n.º...8, conforme se alcança do extracto bancário que se junta, e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, (Doc. n.º2)”.

E não se diga que tal alegação se completou ou concretizou através da junção efetuada em 24.05.2016, no âmbito dos embargos – a fls. 62 a 64 – e na sequência de notificação para o efeito, “do original da proposta de desconto da letra dada à execução”, bem como cópia do “despacho que originou a referida letra”, porquanto, em primeiro lugar, a junção de documentos não é forma adequada de efetuar a necessária alegação e, por outro lado, ainda que o fosse, como já se frisou, é no requerimento executivo que a alegação da causa de pedir deve ser feita, não podendo o exequente, na pendência do processo e sem o acordo do executado, colmatar a insuficiência da alegação por si anteriormente efetuada por tal se traduzir, como já se disse, numa verdadeira alteração da causa de pedir que, a admitir-se, impossibilitaria o exercício do direito de defesa do executado e o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo art. 458º do CC.

Veja-se, aliás, que face àquilo que se consegue extrair da caracterização da operação constante do “despacho de aprovação” junto – onde àquela se refere como “reforma de efeito em situação de mora” – a dita operação subjacente à letra não parece incluir nenhum “adiantamento”, mas sim uma reforma, o que contraria a interpretação da alegação constante do requerimento executivo feita pelo próprio Exequente.

A este propósito, não será demais acentuar que muitas realidades diversas se apresentam sob a capa de uma operação de desconto, o que torna ainda mais premente a necessidade de uma precisa descrição dos verdadeiros contornos da relação causal subjacente ao título de crédito prescrito.

Assim, pode dizer-se que, uma vez declarada prescrita a obrigação cambiária – tendo, por isso, a letra em causa passado a constituir mero documento particular, quirógrafo da dívida causal ou subjacente – e não traduzindo minimamente, o alegado no requerimento executivo, a invocação de uma relação causal geradora de direitos e obrigações entre Recorrente e Recorrido que legitimasse a emissão do documento em causa, não há título executivo que suporte a execução (STJ 15.09.2011 - Granja da Fonseca Relator), pelo que bem andou o julgador da primeira instância em julgar extinta a execução contra o Embargante.
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Sumário:

I – Declarada prescrita a obrigação cambiária, o título executivo passa a constituir mero documento particular, quirógrafo da dívida causal ou subjacente;
II – O artigo 703.º, n.º 1, al. c), do CPC admite que sirvam de base à execução os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
III – A parte que queira prevalecer-se de um título de crédito que valha como mero quirógrafo tem o ónus de identificar adequadamente essa relação subjacente, de modo a possibilitar, em termos proporcionais, ao executado, o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo art. 458º do CC;
IV – Quando, relativamente à relação causal, no requerimento executivo apenas se mostra alegado um “adiantamento” pelo Banco Exequente ao Executado e a creditação do correspondente montante numa conta deste, impõe-se concluir que a causa debendi não está identificada de modo a facultar o contraditório ao executado, podendo dizer-se que, nessa medida, não há título executivo que suporte a execução.

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Guimarães, 14.02.2019

Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues