Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1338/21.9T8CHV-A.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
FACTOS EXTINTIVOS
CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO
INTERPRETAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – Se, como fundamento de oposição à execução baseada em sentença, os embargantes alegam factos extintivos da obrigação, designadamente, pelo cumprimento das obrigações a que ficaram adstritos, mas não os provam, os embargos terão de improceder.
2 - À interpretação duma sentença, como ato jurídico que é, são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique, os critérios interpretativos constantes do artigo 236.º e ss. do C. Civil, ou seja, uma sentença deve ser interpretada (segundo a doutrina da impressão do declaratário) com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu texto.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

AA e mulher BB deduziram embargos de executado por apenso à execução que lhes é movida por CC, DD, EE, FF e GG, pedindo a imediata rejeição da execução.
Alegam, para o efeito, que não existe qualquer incumprimento da sentença dada à execução por parte dos embargantes, que declarou constituída uma servidão de passagem a favor do prédio dos autores, através do logradouro do prédio dos embargantes. Alegam que os exequentes jamais foram impedidos de utilizar a referida servidão mas nunca pediram as chaves do cadeado do portão, não existindo atualmente qualquer murete e a servidão, em toda a sua largura e extensão não se encontra ocupada com o que quer que seja.
Recebidos liminarmente os embargos, foram os embargados notificados para contestarem, o que estes fizeram, alegando que os embargantes tudo fazem para impedir o acesso à sua casa, tornando o espaço da servidão num conjunto de muros e muretes, entulho, ferramentas e três portões praticamente seguidos, não tendo fornecido a chave do aloquete do portão existente junto à rua.
Foi proferido despacho saneador, fixado o valor da causa e designado dia para julgamento.
Teve lugar a audiência de julgamento, no decurso da qual foi entregue pelos embargantes aos embargados, uma chave do portão em causa nos autos. Procedeu-se à inspeção ao local.
Tendo-se verificado que não havia sido dado contraditório às partes relativamente às fotografias tiradas no local e juntas aos autos, foi ordenada a notificação das partes para, querendo, exercerem sobre as mesmas o contraditório.
Os embargantes, confirmando as medidas e fotos tiradas no local, vieram alegar que, tendo a servidão constituída pela sentença exequente, apenas 6 metros de comprimento e indo a propriedade dos embargantes para além desses 6 metros, até à distância de 7,80 metros, desde a entrada da propriedade, a servidão atribuída é inútil (tudo o que se encontra para lá desses 6 metros não se encontra abrangido pela sentença) e, por isso, inexequível, pelo que, ocorrendo inutilidade superveniente da lide, deve ser declarada a extinção da instância.
Responderam os embargados para dizer que a servidão não é inútil, uma vez que é o único acesso à sua casa, sendo a medida de 6 metros uma medida aproximada.
Foi proferida sentença que julgou a oposição à execução improcedente e determinou o prosseguimento da instância executiva.

Os embargantes interpuseram recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

1 – As Sentenças estão delimitadas pela causa de pedir e pelo pedido.
2 – A Sentença que constitui o título em execução, origem deste processo, é Sentença Transitada em Julgado.
3 – O Transito em julgado, conforme decorre do Artº 628 do C.P.C. tornou tal sentença insusceptível de impugnação por meio de reclamação ou através de Recurso Ordinário e atenta essa insusceptibilidade forma-se o caso julgado.
4 – O caso julgado traduz-se na impossibilidade da decisão proferida – a sentença que é o título executivo – poder ser substituída ou modificada por qualquer tribunal.
5 – Segundo o critério da eficácia a sentença, que é titulo executivo nestes autos, é caso julgado material que vincula no processo em que foi proferida e fora dele nos termos do Artº 619 do C.P.C.
6 – Do caso julgado resulta um efeito negativo que se traduz na impossibilidade de qualquer tribunal voltar a emitir pronuncia sobre a questão decidida e um efeito positivo que se traduz na vinculação do tribunal que julgou e quaisquer outros ao caso julgado material.
7 - Proferida a Sentença fica de imediato esgotado o poder jurisdicional do Juiz quanto à matéria da causa – Artº 613 do C.P.C. - e não pode o Juiz dos embargos fazer entendimento e alterar as áreas da servidão que foram atribuídas na sentença em execução – o titulo executivo - e que foram conformes ao pedido dos embargados/Recorridos.
8 – No tocante ao caso julgado material, a sentença em execução e conforme ao pedido dos AA, agora Recorridos, determinou que era constituída uma servidão de passagem (a favor do prédio dos AA ora Recorridos) e descrevia a servidão em termos exactos como se cita: «Tal servidão inicia-se no caminho publico a nascente, debaixo do local onde se encontra construída a casa de habitação dos Réus, e faz-se por uma faixa de terreno, com o seu leito batido com cerca de 15m² de área correspondente ao comprimento de 6 metros e à largura de 2,5 metros.». E este é o titulo constitutivo da servidão nos precisos termos em que foi decidido.
8 – A sentença ora recorrida, atento o exame ao local efectuado pelo Juiz A Quo, veio a decidir que “não faria sentido que a sentença dada à execução fixasse o limite da servidão num local que não coincidisse com a extrema do terreno dos executados que por isso não seria uma servidão; e assim considerando, a Juiz A Quo decidiu prolongar a servidão em mais 1,70 metros para além do que está determinado na sentença dada à execução.
9 – A Sentença Recorrida viola com isso o caso julgado material pois não pode alterar a decisão proferida na sentença dada à execução e, com isso, viola a intangibilidade da decisão material com isso violando o disposto no Artº 619 do C.P.C.
10 – O pedido dos 6 metros é exactamente o que pediram os AA ora Recorridos na sua acção proposta para o efeito de lhes ser reconhecido o direito à servidão; por isso a sentença não poderia condenar em quantidade superior ao que se pediu – Artº 609 do Código Civil; e os números dos metros constantes da sentença dada à execução são exactos e conformes ao pedido e daí que o Tribunal não pudesse dar para além do pedido.
11 – Se, como diz a Sr.ª Juiz A Quo, não faz sentido que a sentença dada à execução fixasse limites à servidão em local que não coincide com a extrema do terreno dos ora Recorrentes, esse já não é um problema que lhe caiba resolver e ultrapassar alargando a servidão através de uma alteração de medidas – não há alargamentos de servidões previstas na lei – e violando o caso julgado material e com isso alterando o titulo constitutivo da servidão e ainda com isso violando o direito ao contraditório dos ora Recorrentes.
12 – Esse problema do cumprimento da servidão dada em sentença não atingir o limite da propriedade dos ora Recorrentes é um problema que foi gerado pelos AA ora Recorridos e que o Tribunal que proferiu a sentença em execução não podia nunca ultrapassar porque não poderia condenar para além do pedido e se há responsáveis por esse facto são os ora Recorridos e o meio próprio para alterar ou corrigir essa situação não é em execução e ou em decisão de embargos pois terá que ser em uma qualquer outra acção que não nesta.
13 – Não pode a Sr.ª Juiz A Quo por raciocínios subjectivos ultrapassar dados objectivos que constam da sentença em execução pois tal gera violação de caso julgado material com a agravante de os ora Recorrentes não terem nessa parte (o alargamento concedido na sentença de embargos) tido a possibilidade de exercer o seu direito ao contraditório atento até o facto de que, a assim ser, todo o seu logradouro seria ocupado pela servidão o que determinaria a perda integral das utilidades do mesmo o que, a ser concedido, seria uma violação do seu direito de propriedade já que um direito real menor (servidão) não pode sobrepor-se e eliminar um direito real que lhe seja superior (a propriedade) para mais conhecendo um objecto que não podia conhecer ultrapassando a sua competência.
14 – Não é porque a servidão de passagem nos termos concedidos não é uma servidão, porque não cumpre o seu objectivo, que pode o Tribunal de execução e o seu Juiz vir a, em embargos, determinar uma alteração de modo a que passe a existir então uma verdadeira servidão em consequência de uma alteração substancial que além de extravasar os poderes da Juiz A Quo são violação de caso julgado material e violação do titulo constitutivo da servidão e consequentemente do Artº 1564 do C.Civil; e isto quando a pretensa servidão foi concedida nos termos requeridos pelos ora Recorridos.
15 - A sentença em execução constitui o título da servidão; é certa, determinada e é insusceptível de criar qualquer dúvida e não pode de alguma forma ser alterada depois de transitada em julgado para mais em embargos à execução do titulo. Artº 1564 do C.C.
16 – Atenta a inspecção efectuada ao local pela Sr.ª Juiz A Quo constatou-se que a execução deveria de imediato e oficiosamente ser considerada inútil porque a servidão nos termos concedidos era inexequível e daí o ter-se de imediato requerido a inexequibilidade do titulo e como consequência ser decretada a inutilidade da lide.
17 – A Servidão de passagem está sujeita a Registos Predial e a Declaração fiscal para efeitos de registo da matriz predial e para isso o titulo é o da sentença de que se pretende a execução e não outro; e por isso o que se pode registar são 6 metros por 2,5 metros numa área de 15 m² e não 7,80 metros por 2,5 metros que será o que resulta dos embargos e sua sentença e a área já será de 19,5m² e tudo isto sem titulo.
18 – Do que retro se refere resulta violação de caso julgado material, resulta violação grave de tudo o quanto será atinente a registo Predial e Registo da Matriz Predial Urbana da Autoridade Tributária com todas as consequências de beneficio e Prejuízo daí resultantes, com a concessão de direitos não constantes do titulo..
19 – Existe assim manifesta inexequibilidade do titulo porque o mesmo encerra em si o pedido dos Recorridos e porque o Tribunal não podia condenar para além do pedido, acrescendo que, agora, não pode a juiz A Quo, na sentença de embargos, ir além do que está determinado na sentença em execução alterando para mais do que foi pedido e concedido.
20 –A sentença recorrida é violadora do direito ao contraditório dos Recorrentes porque, estes, na acção, de que resultou a sentença em execução, jamais foram confrontados com o alargamento da servidão que ora é efectuada pela Sentença Recorrida.
21 - Existe por isso violação de caso julgado material e o título dado à execução é, em consequência, inexequível.
Termos em que,
V. Excias proferindo Acórdão que revogue a Sentença dos Embargos e declarando a inexequibilidade do Titulo Executivo na extensão dada na decisão dos embargos, (Sentença)
Farão Justiça.

Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, com efeito devolutivo e subida nos próprios autos.
Foram colhidos os vistos legais.

A questão a resolver prende-se com a eventual violação do caso julgado material formado pela sentença dada à execução.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:
Mostram-se provados os seguintes factos:
A) Os exequentes/embargados ofereceram como título executivo uma sentença proferida, em 07/09/2020, no Processo nº 730/19.... do Juízo Local Cível de Chaves - Juiz ..., transitada em julgado, podendo ler-se no seu dispositivo o seguinte: “(…) Julgo a presente acção que GG, FF, EE, DD e mulher CC instauraram contra AA e mulher BB parcialmente procedente por provada e em consequência:  - Declaro constituída por usucapião a favor do prédio dos autores composto de casa de habitação e logradouro no lugar do ..., com a superfície coberta de 90 m2 e descoberta de 335 m2, inscrito na matriz predial urbana da freguesia ..., concelho ..., sob o art. ...42º, e que se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...06, uma servidão de passagem a pé e com viaturas a motor, sobre o prédio urbano inscrito na matriz urbana da freguesia ..., ..., sob o art. ...88º e inscrito em nome do réu AA. - Tal servidão inicia-se no caminho público a nascente, debaixo do local onde se encontra construída a casa de habitação dos réus, e faz-se por uma faixa de terreno, com o seu leito batido com cerca de 15 m2 de área correspondente ao cumprimento de 6 metros e à largura de 2,5 metros. - Condeno os réus a permitirem aos autores o acesso ao seu prédio através da referida faixa de terreno, designadamente, removendo o murete e o portão que ali colocaram ou a facultarem aos autores as chaves do mesmo; - Condeno os réus a absterem-se de qualquer comportamento que impeça os autores e acederem ao prédio. - Julgo improcedentes os demais pedidos formulados pelos autores (…)”.
B) Os Executados foram condenados a permitir aos Exequentes o acesso ao seu prédio através daquela faixa, designadamente removendo o murete e o portão que ali colocaram ou a facultarem aos Exequentes as chaves do mesmo, abstendo-se de qualquer comportamento que impeça os Exequentes de o fazer.
C) Os Executados, ao invés de removerem o murete a que se alude no título executivo, limitaram-se a remover uma parte do mesmo, sendo que, na base dessa abertura, deixaram, ainda, parte do murete que foram condenados a remover, com cerca de 30 cm de altura, composto por pedras e cimento.
D) Deixaram, ainda, por remover, dois tramos laterais do dito murete.
E) Na abertura que fizeram no murete em causa, os Executados instalaram ainda um portão em ferro, anteriormente inexistente, com duas folhas de abrir.
F) No leito da faixa de terreno por onde os Exequentes têm o direito de passar, deixaram os Executados restos de argamassa de cimento e areia, pedras, dezenas de blocos de cimento, um balde em chapa com capacidade para 20 litros cheio de areia, tábuas e um carro de mão.
G) Os Executados não removeram o portão que colocaram a nascente, junto ao caminho público, nem forneceram aos Exequentes qualquer chave do mesmo, antes tendo ali colocado uma corrente em ferro com um aloquete fechado à chave que também impede os Exequentes de entrar e sair para o seu prédio.
H) Na audiência de discussão e julgamento que teve lugar no dia 07/11/2022 neste Juízo de Execução, sediado em ..., pelo ilustre mandatário dos embargantes foi entregue ao ilustre mandatário dos embargados, a chave do portão em causa nos presentes autos, que a recebeu.
I) Na diligência de inspeção ao local realizada no pretérito dia 06/07/2023, com a concordância das partes, foram considerados assentes os seguintes factos: “1 - O primeiro portão já se encontrava aberto e preso com um baraço junto à propriedade dos embargantes/executados.  2 - O segundo portão tem uma largura de 2,57 metros.  3 - O terceiro portão tem uma largura de 2,50 metros.  4 - Do primeiro portão ao segundo distam 6,50 metros.  5 - Do primeiro portão ao terceiro distam 7,80 metros.  6 - Do pilar que suporta o segundo portão ao lado oposto existe uma distância de 2,73 metros. 7 - Com o segundo portão aberto, de ferro a ferro, distam 2,57 metros.  8 - As partes aceitam que os executados colocaram o primeiro e terceiro portão. 9 - As partes aceitam que os exequentes colocaram o segundo portão. 10 - As partes aceitam que a colocação do terceiro portão assenta sob o murete em bloco que originou a instauração da ação onde foi proferida a sentença que se executa. 11 - Do limite da rampa para o terreno dos exequentes existe um declive com uma altura, que ao meio tem 26 centímetros, junto ao terreno dos executados o declive tem a altura de 21 centímetros e do lado oposto o declive tem uma altura de 27 centímetros. 12 - As partes aceitam que a rampa, que no cimo tem assente o terceiro portão, foi feita pelos executados.  13 - As partes aceitam que o murete onde assenta o terceiro portão foi construído pelos executados 14 - As partes aceitam que o terceiro portão foi colocado depois da sentença que se executa. 15 - As partes aceitam que o espaço livre de passagem com o terceiro portão aberto tem uma largura de 2,45 metros.  16 - As partes aceitam que das pedras salientes existentes na servidão de passagem junto ao muro dos executados até aos blocos existentes do lado contrário junto à grade, distam 2,00 metros
J)  17 - Consigna-se que, no final da diligência, o executado fechou o primeiro portão com o cadeado”.

Os apelantes sustentam o seu recurso afirmando que a sentença dos embargos constitui um alargamento da servidão de 6,00 metros para 7,80 metros de comprimento, o que altera radicalmente o título constitutivo da servidão e viola o que consta da sentença em execução, sendo que, de acordo com a decisão dos embargos, os proprietários perdem a totalidade dos eventuais proveitos que poderiam tirar da sua propriedade. Mais alegam que a decisão proferida ofende o direito ao contraditório dos embargantes, já que estes, no processo declarativo, não foram postos perante esse facto dos 7,80 metros, mas sempre diante dos 6 metros e, por isso, não puderam, em tempo oportuno, efetuar a sua defesa.
Concluem pela violação de caso julgado material, uma vez que a decisão transitada em julgado, que consta da sentença dada como título executivo nestes autos, é insuscetível de impugnação por meio de reclamação ou recurso ordinário e proferida a sentença fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, não podendo o juiz dos embargos alterar as áreas da servidão que foram atribuídas na sentença em execução, sendo que é esta que constitui o título da servidão e executar um direito não é alargar esse direito.

Vejamos.
Na execução a que estão apensos estes embargos, o título executivo é uma sentença condenatória – artigo 703.º, n.º 1, alínea a) do CPC – transitada em julgado, sendo que os fundamentos da oposição à execução baseada em sentença, são os constantes do artigo 729.º do CPC.

No caso dos autos, os embargantes/executados, opuseram-se à execução alegando que a sentença dada à execução já se encontrava integralmente cumprida e que nunca impediram os exequentes de utilizarem a servidão de passagem e que só não entregaram a chave do portão porque a mesma nunca lhes foi pedida. Mais alegaram que não existe qualquer murete e que a servidão não se encontra ocupada com o que quer que seja que impeça o seu uso.
Ou seja, os embargantes alegaram uma causa extintiva da obrigação – alínea g) do artigo 729.º do CPC.
Ora, o que se provou nestes embargos, foi que os executados, ao invés de removerem o murete a que se alude no título executivo, limitaram-se a remover parte do mesmo, deixando cerca de 30 cm de altura, composto por pedras e cimento e deixaram, também, por remover, dois tramos laterais do dito murete, sendo que, na abertura que fizeram no murete em causa, os executados instalaram um portão em ferro, anteriormente inexistente, com duas folhas de abrir (deixando um espaço livre de passagem de apenas 2, 45 metros). Provou-se, também, que os executados não removeram o portão que colocaram a nascente, junto ao caminho público, nem forneceram aos exequentes qualquer chave do mesmo, o que só vieram a fazer na audiência de julgamento que teve lugar no dia 07/11/2022, quando a sentença executiva foi proferida em 07/09/2020. Provou-se, ainda, que os executados deixaram o leito da faixa de terreno por onde os exequentes têm o direito de passar, cheio de objetos impeditivos do normal trânsito.
Da prova efetuada e que consta dos factos provados não questionados pelos apelantes, resulta, assim, que os embargantes/executados, não lograram provar, como lhes competia que, em cumprimento da sentença executiva, permitiram o acesso dos exequentes ao seu prédio através daquela faixa de terreno, nem provaram que removeram o murete e o portão ou que tivessem facultado a chave do mesmo, muito mesmo, que se tenham abstido de qualquer comportamento que impeça os autores de acederem ao seu prédio.
Não há, portanto, dúvida, que os embargos teriam de improceder por falta de prova do(s) facto(s) extintivo(s) da obrigação.

Contudo, os apelantes, sem nunca terem feito qualquer alusão a tal argumentação na sua petição de embargos, vieram, posteriormente, aquando da notificação das fotografias tiradas em sede de inspeção ao local, argumentar no sentido da inutilidade superveniente da lide por a servidão atribuída ser inútil e, por isso, inexequível, uma vez que os 6 metros contados desde a entrada do primeiro portão, não são suficientes para atingir a propriedade dos exequentes, o que só se atingiria com 7,80 metros, conforme se constatou na inspeção ao local.
Na sequência de tal requerimento, vêm agora, sustentar o seu recurso, nos termos já supra assinalados.
Mas, salvo o devido respeito, não têm razão.
Como os próprios referem na sua petição de embargos, no artigo 7.º, a servidão onera o seu logradouro numa faixa que vai da rua pública até à extrema da propriedade dos exequentes/embargados.
Nem de outro modo poderia ser, pois caso não desse para chegar ao prédio dos exequentes, não poderia a servidão ter sido constituída como foi declarado na sentença.
Veja-se que a “servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente” – artigo 1543.º do Código Civil – daqui resultando que a servidão tem que ter uma extensão que lhe permita alcançar esse desiderato, ou seja, tem que aproveitar a outro prédio, o que só é possível se os donos desse outro prédio lá conseguirem chegar através da servidão.
Trata-se de um encargo que recai sobre o prédio, “de uma restrição ao gozo efetivo do dono do prédio, inibindo-o de praticar actos que possam prejudicar o exercício da servidão” – Antunes Varela e Pires de Lima, CC Anotado, vol. III, 2.ª edição revista e atualizada, pág. 614 – pelo que não tem qualquer suporte legal os considerandos dos apelantes sobre poderem fazer o que entenderem na sua propriedade.
Ora, nunca aos executados foi negado o contraditório, tendo a ação declarativa corrido com a observância de todas as regras processuais e o mesmo se diga dos embargos agora em causa (em que a questão da inutilidade foi suscitada já em fase avançada, após ter sido dada oportunidade às partes de se pronunciarem sobre a junção das fotografias tiradas pelo tribunal no decurso da inspeção ao local, tendo ficado consignadas em ata todas as observações e medidas aí constatadas, tudo com o acordo e aceitação das partes). Os executados, réus na ação declarativa, conheciam a propriedade e a faixa de terreno aqui em causa e não podem invocar surpresa quanto às medidas da mesma.
A sentença que se executa, refere expressamente que a servidão (que se declara constituída por usucapião) se inicia no caminho público a nascente, debaixo do local onde se encontra construída a casa de habitação dos réus e faz-se por uma faixa de terreno com o seu leito batido, condenando os réus a permitirem aos autores o acesso ao seu prédio através da referida faixa de terreno.
Não há aqui qualquer ambiguidade ou dificuldade interpretativa, nem a sentença proferida nos embargos foi para além desta realidade.
Veja-se até que, no seu extrato decisório, a sentença refere “com cerca de 15 m2 de área”, não podendo retirar-se que se trata de uma medida certa e absoluta.
Constatou-se na inspeção ao local que o comprimento da faixa de terreno desde o caminho público até à extrema do prédio dos exequentes, é de 7,80 metros e não 6 metros como vem dito na sentença.
Para além da falta de certeza que resulta de expressão “cerca de”, o que é relevante na condenação dos réus é que terão que permitir aos autores o acesso ao seu prédio através da referida faixa de terreno, o que seria impossível se apenas fossem contados os 6 metros de comprimento (os autores ficariam a 1,80 metros de atingir a sua propriedade e sem o poderem fazer por qualquer outro meio).

À interpretação duma sentença, como ato jurídico que é, são aplicáveis, na medida em que a analogia das situações o justifique (cfr. artigo 295.º do C. Civil), os critérios interpretativos constantes do artigo 236.º e ss. do C. Civil, ou seja, uma sentença deve ser interpretada (segundo a doutrina da impressão do declaratário) com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu texto.
“Devendo ter-se em conta, claro está, as especificidades próprias do ato jurídico em causa, que não se traduz numa declaração pessoal da vontade do seu autor, mas antes numa operação lógico-intelectual, de determinação, interpretação e aplicação do direito aos factos que se apuraram, estando em causa acima de tudo, na sua interpretação, determinar o estatuído/decidido na sentença, razão pela qual o seu sentido se deve ir buscar, em primeira linha, ao segmento decisório e só num segundo momento, se necessário, à fundamentação/motivação do segmento decisório” – Acórdão do STJ de 26/05/2021, processo n.º 1608/14.2T8SLV-A.E3.S1 (António Barateiro Martins), in www.dgsi.pt.
Ora, tendo este critério presente, não pode haver qualquer dúvida que um declaratário normal interpretaria a sentença que declarou constituída por usucapião uma servidão de passagem como a mesma, partindo do caminho público teria que ter o comprimento necessário para atingir o prédio dominante (aquele que beneficia da servidão), sendo a medida de 6 metros aí constante, quando é necessário o comprimento de 7,80 metros para atingir tal desiderato, uma falha de medição, tanto mais que a sentença se refere a “cerca de 15 m2 de área”, o que inculca a ideia que as medidas não foram tomadas com rigor.
Como bem se refere na sentença recorrida, “não faria qualquer sentido que a sentença dada à execução fixasse o limite da servidão num local que não coincidisse com a extrema do terreno dos executados/embargantes”, pois caso tal acontecesse, os exequentes não poderiam entrar no seu prédio através desta servidão, “pelo que, obviamente, o trato de terreno em causa nos autos tem de iniciar-se no caminho a atingir o prédio dos exequentes, nem podia ser de outra forma”.
Não há aqui qualquer violação do caso julgado (aliás, a sentença proferida no apenso de embargos de executado, não declara quaisquer direitos ou condena em quaisquer obrigações, apenas decide sobre a procedência ou improcedência da oposição).
 O tribunal de execução/embargos não decidiu contra ou para além do estabelecido na sentença em execução, limitando-se a interpretá-la nos termos que já deixámos assinalados.
Improcede, assim, a apelação.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
***
Guimarães, 21 de março de 2024

Ana Cristina Duarte
José Carlos Dias Cravo
Maria dos Anjos Melo Nogueira