Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2248/22T8VCT.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DO RÉU PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- Em incidente de má-fé processual impõe-se que o Tribunal conceda ao requerido o prazo tabelarmente previsto para o seu contraditório, previsto no art. 149º, do Código de Processo Civil;
- Por isso, viola o disposto no art. 3º, do Código de Processo Civil, o Tribunal que decide proferir sentença anulando ou limitando esse prazo, ao proferir decisão de mérito sobre esse incidente sem o respeito por esse prazo ou sem que tenha havido renúncia clara do requerido ao mesmo.
Decisão Texto Integral:
Relator – Des. José Manuel Flores
1º - Des. Sandra Melo
2º - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves

ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I – Relatório

Recorrente(s): AA;

- Recorrido/a(s): EMP01..., S.A. OPERADORA, ....
*
Na presente acção da EMP01..., S.A. OPERADORA, ... contra AA, peticionou-se, a final, a condenação deste Réu a pagar a quantia de €1005,48, acrescida dos juros de mora, desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Regularmente citada o Réu contestou, por excepção e impugnação.
Invocou a excepção de ilegitimidade passiva, alegando, em síntese, que é casado com BB, no regime de comunhão de adquiridos, pelo que aquela é sujeita da relação material controvertida, nos termos do disposto no art.º 34º, nº 1 e 2 do CPC. Acresce que a esposa do Réu era igualmente Autora na acção que determinou os presentes autos.
No mais, defende-se por impugnação, e alegou, em síntese, que a Autora quis pagar o montante de € 2.010,96, com vista a ressarcir os danos efectivamente causados com o extravio das bagagens, no cumprimento de um dever moral.
Cumprido o contraditório relativamente à excepção invocada, respondeu a Autora, pugnando pela improcedência da excepção deduzida.
Por despacho proferido em 25/10/2022, foi convidada a Autora a suprir a ilegitimidade passiva, através da dedução do respectivo incidente de intervenção principal provocada da esposa do Réu.      
A Autora respondeu ao convite, deduzindo o incidente de intervenção de terceiros.
Citada a chamada, declarou aderir aos articulados apresentados pelo Réu AA.
Findos os articulados, procedeu-se à prolação do despacho saneador, tendo-se dispensado a realização da audiência prévia.
Dispensou-se a fixação do objecto do litígio e a enunciação dos temas de prova, designando-se, de imediato, data para a audiência de julgamento.
Realizou-se a audiência de julgamento de acordo com o formalismo legal, conforme resulta da respectiva acta.
Em sede de alegações orais finais, conforme resulta do respectivo registo áudio e é referido na sentença em crise, a Autora suscitou a questão em sede das suas alegações no termo final da audiência de julgamento, tendo inclusive deduzido pedido de indemnização correspondente às despesas com deslocações ao tribunal para a realização da audiência final (valor/km + portagens).  
Em resposta a essas alegações, o Réu, através da sua mandatária forense, limitou-se a contestar essa pretensão alegando que fez uso dos meios judiciais que estão ao seu dispor e impugnando algumas alegações de facto da requerente.
Sem mais, foi encerrada a audiência e determinada a conclusão dos autos para prolação da sentença.

A final foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:

 “Pelo exposto, decide-se julgar a acção totalmente procedente, por provada, e, em consequência:
- Condenam-se os Réus a restituir à Autora a quantia de € 1.005,48 (mil e cinco euros e quarenta e oito cêntimos), acrescida dos juros de mora a contar desde a citação até efectivo e integral pagamento.
- Condena-se o Réu AA, em litigância de má-fé, em 7 uc´s de multa, bem como na indemnização à contraparte no montante de € 330,24 (trezentos e trinta euros e vinte e quatro cêntimos).
Custas pelos Réus (art.º 527º, nº 1 e 2 do CPC).”
*
Inconformada com tal decisão, dela interpôs o Requerido/Réu o presente recurso de apelação, em cujas alegações formulam as seguintes
conclusões:

a. A sentença proferida no presente processo decidiu condenar o Réu AA, em litigância de má-fé, em 7 ucs de multa, bem como na indemnização à contraparte no montante de € 330,24 (trezentos e trinta euros e vinte e quatro cêntimos). Custas pelos Réus.
b. Considerou o tribunal de primeira instância que o réu/recorrente contestou bem sabendo que não lhe assistia fundamento e que se recusou a autorizar a prestação de informações bancárias pelo Banco 1... demonstrando falta de colaboração com o tribunal.
c. O réu/recorrente contestou a ação na profunda convicção de que lhe assistia fundamento, consciente de que tinha razão, aliás, a contestação do réu/recorrente assenta na mesma factualidade da autora, sendo que o que difere entre ambas as posições, não são os fatos, mas antes a subsunção legal que cada uma das partes fez desses fatos. Nunca negou ter recebido o valor em questão nos presentes autos, simplesmente, considerou, como é seu direito pugnar, que tal pagamento corresponde a um dever (moral e de justiça) da autora e que encontra acolhimento na lei sob a forma do instituto das obrigações naturais.
d.         A esse respeito vide sessão de julgamento de 09/05/2023 # AA - Réu/recorrente:
05:37 - M. Juiza: Essa é a sua convicção? 05:39 - Réu!recorrente: Exatamente.
09:48 - Advogada: Bom dia Sr. AA, diz que é sua convicção aqui ao Tríbunal de que o valor que lhe foi pago, em duplicado, enfim, de que para si é um dever de justiça, é Isso? O Senhor sente-se enriquecido com ... com ...
10:07 - Réu!recorrente:          uma ação de míl e tal euros ... míl e cinco euros ... pronto ... eu gastei multo mais do
que Isso e que é que vou      .
8. O réu/recorrente, em momento algum, arguiu um fato que fosse falso ou contraditório e a demonstra-lo, recorde-se que, na sentença recorrida, não foi dado nenhum fato como não provado.
f. As partes apresentaram em juízo posições controvertidas e diferentes subsunções legais sobre os mesmos fatos, recorrendo ao tribunal a quo para que decidisse qual a versão procedente - ratio da jurisprudência.
g. E a este respeito, pronunciou-se já o Tribunal Constitucional", decidindo
que: (. . .) só a lide essencialmente dolosa justifica a condenação como litigante de má-fé e não a lide meramente temeráría ou ousada, nem multo menos a sustentação de teses controvertidas na doutrína de
Interpretações sem grande solidez ou consistência das normas jundices. ". Portanto, o fato da autora ter pago o montante em discussão nos autos, foi lido por esta como um enriquecimento sem causa, nos termos do art. 4730 do CC e pelo réu/recorrente como o cumprimento de uma obrigação natural, prevista no art. 4020 do CC.
h. Na sua contestação o réu explicou as razões pelas quais considera que o valor que lhe foi pago pela autora lhe é devido, designadamente, fazendo o paralelismo com outro processo (o dos seus filhos), que nas mesmas circunstâncias de tempo, lugar e dentro da mesma factualidade, foram ressarcidos por um valor superior ao que obteve o réu/recorrente, não fosse o pagamento ora em discussão.
i. Pelo exposto, pugna-se para que o tribunal ad quem entenda a defesa do réu/recorrente como o exercício de um direito e não da litigância de má¬fé.
4 Ac. Nº 442/91 do Tribunal Constitucional de 20/11/1991: BMJ, 411º-611º e Ac. TC 20º-469º.
 j. Por outro lado, a recusa do réu em autorizar a prestação de informações bancárias pelo Banco 1... com base da violação da reserva da intimidade da vida privada constitui um direito do réu/recorrente nos termos do art. 417°, nO 3 aI. b) do CPC, sendo que, o fato de deles lançar mão, não significa que esteja a litigar de má-fé e que, com isso, tenha a intenção deliberada de entorpecer a justiça. Além disso, o tribunal tinha, como teve, sempre a hipótese de dispensar o dever de confidencialidade e ordenar o Banco 1... a facultar as informações que pretendia - tal como efetivamente o fez.
k. Na contestação o réu/recorrente requereu a prestação de declarações de parte, o que revela uma atitude processual antagónica com a falta de colaboração e cooperação com a justiça e cooperação com a justiça e declarou no requerimento com ref.: ...51 estar disposto a colaborar com a resposta às questões suscitadas em sede de julgamento - e assim o fez no dia 09/05/2023.
I. O réu propôs-se a prestar declarações em sede de julgamento. Fê-lo, explicando ao Meritíssimo julgador as razões pelas quais considerou sempre não ser devida a devolução do valor reclamado pela autora. Fê¬lo, explicando a razão pela qual não estaria confortável com o levantamento do sigilo por questões de exposição da vida íntima. Fê-lo de forma serena e explicativa, convicta (cfr. sessão de julgamento de 09/05/2023 declarações de parte de 01 :57 a 02:20 e 8:29).
m. Além disso, o Tribunal pareceu ter invertido o ónus da prova, nos termos de art. 342°, CC, quando decidiu pela falta de colaboração do réu/recorrente em não juntar documentação que prove os pagamentos feitos pela autora. A esse respeito vide sessão de julgamento de 09/05/2023 # CC (…)
 n. E pior, ao não obter essa prova da parte do réu/recorrente (junção de extratos bancários ou autorização para levantamento do sigilo bancário) o tribunal considerou que o réu/recorrente não estava a colaborar com a justiça, condenando-o como litigante de má-fé.
o. O réu/recorrente valeu-se apenas de si mesmo para expor ao tribunal a sua versão, não tendo arrolado testemunhas, como seria seu e isso sim, poderia in casu representar uma tentativa de entorpecer e dilatar no tempo a ação da justiça.
p. A condenação que ora se recorre foi uma surpresa para o réu/recorrente, dado que até à última audiência de julgamento nunca tal questão havia sido suscitada, pois toda a defesa já estava explanada na contestação, aliás, quando a autora respondeu à matéria de exceção (vide reposta com ref.: ...84) nunca sequer aflorou o tema da litigância de má-fé nem mesmo após a não autorização por parte do réu/recorrente (ref.: ...51) justificada com a reserva da intimidade da vida privada.
q. Não foi possível ao réu/recorrente sequer antever a arguição da litigância de má-fé, não lhe foi dada a oportunidade de se pronunciar sobre a mesma, sendo imperioso que o visado seja previamente ouvidoS a fim de se defender da acusação nos termos do art. 3°, nO 3 do CPC. Não houve prévia audição do réu/recorrente, em clara violação do princípio do contraditório, da igualdade e da proibição das decisões-surpresa. A este propósito atente-se à jurisprudência do STJ que nos ensina que a: "(. . .) condenação como lítigante de má fé não pode ser decretada sem prévia  audição da parte a sancionar, sob pena de se violar o principio do contraditório, na vertente da proibição de decisão-surpresa. cometendo-se nulidade que influi na decisão da causa, sendo que tal omissão infringe os princípios constitucionais da igualdade, do acesso ao direito, do contraditório e da proibição da indefesa."6 - sublinhado e negrito nosso. Vide Acórdão n.0357/98 do Tribunal Constitucional, de 12.5.1998 - in, "Acórdãos do Tribunal Constitucional", 40.°-275 - interpretou o art. 456.°, nOs 1 e 2, do CPC. Também Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in "Código de Processo Civil Anotado", vol. 2°, pág. 197, em nota s Cfr. Ac. Nº 440/94 do Tribunal Constitucional de 07/06/1994 (Ac. TC, 28º-319º e BMJ 438º-84º) 6 STJ - 2326/11.09TBLLE.E1.S1 de 11/09/2012 ao art, 456° do Código de Processo Civil, escrevem-a condenacão como litigante  de má fé deve ser precedida de discussão contraditória, em obediência ao disposto no art. 3-3, gue proibe as decisões-surpresa. Por isso, quando não tenha sido objecto de discussão entre as partes, designadamente em alegação que preceda a decisão, deve o tribunal, antes de a proferir, proporcionar o contraditório, ouvindo, nomeadamente a parte contra a qual tem a intenção de proferir a condenação como litigante de má fé." ¬sublinhado nosso.
r. O tribunal não proporcionou ao réu/recorrente a possibilidade de este vir a exercer o contraditório, oferecendo as provas que considerasse pertinentes para a sua defesa, cometeu o tribnal a quo uma nulidade ¬art, 201°, n01, daquele Código - já que estando em causa a omissão de formalidade relacionada com o direito de defesa, sendo ilegal a proibição da indefesa, sempre tal omissão tem influência na decisão deste concreto aspeto da causa.
s. Se é certo que à luz do art.? 542°, n? 1 do CPC uma multa decorrente da litigância de má-fé não carece de ser pedida pela parte, como não o foi até às alegações finais, a verdade é que, no mesmo artigo, resulta consignado que a indemnização à parte contrária apenas deve ser fixada se esta a pedir. O quantitativo indemnizatório a que o réu foi condenado, nunca foi sequer mencionado em nenhum dos articulados e em sede de alegações não foi quantificado nem provado. O princípio do contraditório saiu mais uma vez lesado, não tendo sido possível ao réu/recorrente conhecer os fundamentos probatórios que justificam a aplicação do valor indemnizatório de € 330,24.
1. A autora não peticionou a litigância de má-fé e não requereu, nem provou, em momento algum do processo o pagamento de € 330,24 ou de qualquer outro valor, pelo que, o réu/recorrente foi condenado numa quantia superior ao pedido, ora, o tribunal ultrapassou os limites do quantitativo do pedido ditados pelo princípio do dispositivo (art. 3°, nO 1 e art. 609° do CPC).
u.         O valor consignado como indemnização à parte contrária está fundamentado na sentença como sendo o valor de despesas de deslocação do mandatário (valor/km + portagens), mas não teve o tribunal, nem o réu/recorrente, forma de verificar a veracidade de tais deslocações e respetivo valor associado. Desconhece-se, por  exemplo, que meio de transporte foi usado, não existindo prova alguma se a deslocação foi realizada em veículo particular, por autoestrada ou estrada nacional, comboio, avião, gratuitamente etc e qual o efetivo ponto de origem.
v. Além disso, o valor que diz respeito a despesas de deslocação, sempre entrará em conta em sede de custas de parte nos termos do art. 26° do RCP - o que representa uma duplicação de pagamento dos mesmos encargos - o que não se aceita.
w. Portanto, também nesta parte de condenação em pedido superior ao peticionado, estamos perante uma nulidade de sentença.
x. Por todo o exposto deverá a sentença ser reformulada, não havendo lugar a condenação do réu como litigante de má-fé e no pagamento de uma multa ou montante indemnizatório, porquanto não teve oportunidade processual para exercer o direito ao contraditório, porque o mesmo não foi peticionado e porque os valores não foram comprovados.
y. Sem prejuízo, no caso de assim não se entender e se decida pela condenação em litigância de má-fé, requer-se que a mesma seja fixada pelo mínimo legal de 1 uc dada a desproporcionalidade de 7 ucs face à conduta processual do réu/recorrente que apenas lançou mão de direitos consagrados na Constituição e no direito substantivo e adjetivo.
Termos em que,
Requer-se a V. Exa. se digne a admitir o presente recurso, devendo ao mesmo seu concedido provimento, revogando¬se a douta decisão recorrida na parte em que condenou o réu/recorrente como litigante de má-fé, no pagamento de uma multa e de um valor indemnizatório, que deverá ser substituída por outra que o julgue a Iitigância de má-fé procedente.

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

II – Delimitação do objecto do recurso e questões prévias a apreciar:

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas[2] que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[3]
No caso, as questões enunciadas pelo recorrente prendem-se:
- Com a alegada nulidade processual, por omissão de formalidade essencial relacionado com o direito de defesa do Recorrente;
- A nulidade da sentença por condenação superior ao pedido;
- O mérito da imputação de má-fé que lhe foi dirigida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos

1. Factos (cf. art. 662º, do Código de Processo Civil)

a) A Autora é uma sociedade comercial que tem por objecto a exploração de transporte aéreo de pessoas, mercadorias de todos os tipos e correio; exploração de serviços de assistência técnica operacional e comercial de aeronaves, passageiros, carga e correio; exploração dos serviços de assistência tecnológica e de consultoria em matéria aeronáutica, aeroportuária e de transporte aéreo; exploração e desenvolvimento de sistemas informatizados de reservas e de outros serviços relacionados com o transporte aéreo; exploração de serviços de manutenção aeronáutica de célula, motores, instrumentação e equipamentos auxiliares, exploração de serviços de formação e instrução em matéria aeronáutica. 
b) Correu termos no Juízo Local Cível ... (J...), sob o nº 2533/19...., a acção declarativa de condenação, com processo comum movida por AA e BB contra a EMP01..., em que era peticionado o pagamento da quantia de € 2.398,56, correspondente ao atraso na disponibilização das bagagens pertencentes a estes, acrescida de juros vencidos no montante de € 121,97 e vincendos a apurar e no pagamento do montante despendido por aqueles na aquisição de vestuário e calçado, no montante de € 1.862,48, acrescido de € 94,71 a título de juros vencidos e, ainda, nos vincendos a apurar.
c) Por sentença proferida no âmbito do referido processo em 10/02/2020, foi a acção julgada parcialmente procedente e condenada a Ré EMP01... a pagar aos Autores a quantia global de € 1.000,00 (€ 500,00 para cada um deles).
d) No dia 29/05/2020, a Autora efectuou o pagamento da quantia de € 1.005,48 para a conta do Banco 1..., com o IBAN  ...80.0065.3, de que é titular o Réu.
e) Por lapso dos serviços administrativos/tesouraria da Autora, o referido pagamento foi efectuado em duplicado no mesmo dia 29/05/2020, tendo sido efectuadas duas transferências bancárias do mesmo valor, no valor total de € 2.010, 96.
f) O Réu apoderou-se da importância em causa, no montante de € 1.005,48, sabendo perfeitamente que tal valor não lhe era devido.
g) Apesar da Autora ter solicitado ao Réu a devolução da importância paga indevidamente, o Réu não efectuou essa mesma devolução.

2. Direito

Entre outros argumentos esgrimidos por ordem arbitrária, que não tem em conta o disposto no art. 608º, nº 1, do Código de Processo Civil, o Apelante invoca nulidade procedimental decorrente de alegada falta relacionada com a previsão do art. 3º, do Código de Processo Civil, ou seja, com a necessidade de pedido e de contradição para que o Tribunal esteja apto a resolver algum conflito de interesse.
Com efeito, dita o seu nº 1, que o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
Mais acrescenta o legislador que (2) só nos casos excepcionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida. (3) O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Subjazem a este dispositivo dois princípios fundamentais no nosso ordenamento processual: o do dispositivo e o do contraditório.

Estes preceitos, maxime o referido nº 3, do art. 3º, emergem duma concepção moderna do princípio do contraditório, mais ampla do que a do direito anterior, como garante da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os aspectos potencialmente relevantes para a decisão.[4]
Sem dúvida que, em regra, a violação desse princípio acarreta a nulidade do respectivo procedimento, como previsto no citado art. 195º, nº 1, do C.P.C., na medida em que essa possa influir no exame ou na decisão da causa.
Com foi dito no Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães em que participámos em 19.4.2018[5], dada a relevância e primordial importância do contraditório, como analisamos, é indiscutível que a inobservância desse princípio, com prolação de decisão-surpresa, é susceptível de influir no exame ou decisão da causa, pelo que esta padece de tal nulidade (constituindo a referida inobservância uma omissão grave e representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja susceptível de influir no exame ou na decisão da causa).
Subjacente a essa norma – art- 3º - está assim a proibição das “decisões surpresa”.
Com efeito, o princípio do contraditório – que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem considerado inserto no direito fundamental de acesso aos tribunais (art. 20º, n.º 1, da CRP) – envolve, desde logo, como vertente essencial, a proibição da «indefesa» que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito.
Nesse sentido, como se reconhece, entre outros, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 259/2000 (DR, II série, de 7 de Novembro de 2000): “A norma contida no artigo 3° n.º 3 do CPC resulta, assim, de uma imposição constitucional, conferindo às partes num processo o direito de se pronunciarem previamente sobre as questões – suscitadas pela parte contrária ou de conhecimento oficioso – que o tribunal vier a decidir.”
Além disso, o princípio do contraditório ou da contrariedade, deriva de outro princípio processual: o da igualdade das partes, o qual resulta necessariamente da imparcialidade do órgão incumbido de compor o litígio.
Na verdade, resulta do disposto no art. 4º do C.P.C., que “o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade, substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.”
Descendo ao caso em apreço, podemos constatar que algumas das faltas apontadas pelo Apelante ignoram aquilo que os autos revelam e ficou acima relatado.
Em abono do rigor que falta a alguma das conclusões do Apelante, há que notar que o pedido de condenação por litigância de má-fé foi formulado pela parte contrária e, de imediato, foi dado a conhecer ao Requerido, aqui Recorrente, que se se quedou, nos termos acima expressos, perante a determinação do Tribunal em abrir conclusão para proferir sentença!
Perante este cenário, a questão que se coloca é a de saber se isso seria suficiente para se considerar aqui cumprido o direito ao contraditório e o princípio conexo do julgamento equitativo que o juiz, árbitro do processo, deve observar e fazer cumprir?
Ora, neste plano, julgamos que não foram cumpridos, no referido sentido amplo e actualmente considerado, esse direito ao contraditório e ao processo equitativo, na medida em que foi cerceado ao Recorrente um prazo mínimo para que pudesse contribuir para a formação da decisão que veio a ser proferida, ainda para mais em matéria tão gravosa como a de litigância de má-fé.
É que, em rigor, o Tribunal estava também aqui adstrito a deferir activamente ao Requerido pelo menos o prazo previsto no art. 149º, do Código de Processo Civil, para que este se pronunciasse e, eventualmente, indicasse prova pertinente para a boa decisão do incidente suscitado em última instância e no final da audiência de julgamento.
E não se diga que a breve pronúncia da sua advogada em sede de alegações finais pode constituir uma renúncia a este prazo, que só esta poderia expressar de forma clara, o que aqui, julgamos, não aconteceu.
Em suma, ao Tribunal estava vedado reduzir unilateralmente esse prazo.[6]
Por outro lado, cabia-lhe, activamente, ter concedido esse prazo à parte Requerida, a fim de se cumprir o preceituado no art. 3º, do Código de Processo Civil, e não, como fez, encurtar ou anular esse prazo proferindo de imediato decisão, sobrevalorizando assim, porventura, a celeridade processual, ao proferir de imediato uma sentença que corria o risco, agora materializado, de se tornar nula.
É que a violação do princípio do contraditório, mediante a prolação de uma decisão viciada com a apontada falta, constitui nulidade processual, prevista no nº1, do art. 195º, onde se consagra que “a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produz nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Aqui chegados a questão que se coloca é a de saber se esse vício devia ter sido discutido em reclamação da decisão ou podia, como sucedeu, ser invocada em sede de recurso.
Este aspecto vem sendo amplamente discutido na jurisprudência e na doutrina e é nelas posição dominante, que vimos seguindo, a que defende que quando o acto viciado se encontra coberto por decisão que se lhe seguiu, essa nulidade pode ser objecto de recurso e pode ser declarada por este tribunal de apelação.
Como se escreveu no Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 21.5.2015[7]: Neste caso, a decisão veio sancionar aquela omissão geradora de nulidade e, por isso, o conhecimento desta pode fazer-se através de recurso, mesmo que o prazo de arguição da nulidade já se tenha esgotado – neste sentido, cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 04/06/2000, in BMJ, 496.º-314, onde se pode ler “É que a nulidade está coberta por uma decisão judicial que a sancionou ou confirmou, pelo que o meio próprio de a arguir será precisamente o recurso”.
Neste conspecto, considerando procedente a apontada nulidade procedimental, haverá que ter em conta o disposto no art. 199º, nº 2, do Código de Processo Civil, no qual se estabelece que: quando um acto tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do acto não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.
Portanto, no caso, importa apenas anular a decisão recorrida, ou seja, aquela que condena o Recorrente em má-fé, deixando intocada a restante parte que se pronunciou sobre o mérito da causa e que já transitou, a fim de que se retome o devido procedimento e seja concedido ao Apelante o prazo para contraditar, querendo, o pedido incidental formulado pela Autora.
Fica assim prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas (cf. art. 608º, nº 2, do C.P.C.), desde já se adiantando que a decisão a proferir deverá cuidar de cumprir, como em qualquer outra sentença, o preceituado no art. 607º, nºs 3 e 4, do C.P.C., expondo os factos a atender e a motivação subjacente ao sentido do seu julgamento.

É, por isso, que se decide julgar procedente a apelação.

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação, anulando a decisão recorrida na parte em que condenou o Apelante como litigante de má-fé, a fim de que lhe seja concedido prazo para o contraditório do incidente suscitado pela Requerente e, após isso, oportunamente, seja proferida nova decisão.

Sem custas, atendendo ao sentido da decisão, sem prejuízo das custas de parte (cf. art. 527º, do Código de Processo Civil).
N.
*
Sumário[8]:
- Em incidente de má-fé processual impõe-se que o Tribunal conceda ao requerido o prazo tabelarmente previsto para o seu contraditório, previsto no art. 149º, do Código de Processo Civil;
- Por isso, viola o disposto no art. 3º, do Código de Processo Civil, o Tribunal que decide proferir sentença anulando ou limitando esse prazo, ao proferir decisão de mérito sobre esse incidente sem o respeito por esse prazo ou sem que tenha havido renúncia clara do requerido ao mesmo.
*
Guimarães, 15-02-2024


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
[2] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efectivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
[4] Cf. José Lebre de Freitas e outros, in Código de Processo Civil
Anotado, vol. 1º, 1999, p. 8

[5] In http://www.dgsi.pt/JTRG.NSF/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/9c9b68362e36005280258286003c9906?OpenDocument
[6] Cf. v.g., Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, in https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/eb09659f85d8ad34802581bf0034975f?OpenDocument 2. - O art.º 444.º, n.º 1, do NCPCiv. prevê um prazo processual de impugnação, quanto a prova documental, de 10 (dez) dias, contados da data em que se considera ocorrida a notificação da junção, prazo legal esse, estabelecido em benefício da parte, para exercício do contraditório, que, a não ser prescindido pelo beneficiário, não pode ser impedido/inviabilizado, mormente tratando-se de documentos relevantes para o desfecho da acção, sob pena de violação do princípio do contraditório (art.º 3.º, n.º 3, do NCPCiv.). 3. - Ocorrendo tal violação, verifica-se nulidade processual, que, tempestivamente invocada, determina também a anulação da sentença, onde essa prova foi valorada, obrigando à reabertura da audiência final, para que o contraditório preterido seja exercido.
Ac. do  Tribunal da Relação de Lisboa, in https://www.dgsi.pt/Jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/6f51adb698403e998025742b00534a52?OpenDocument 3. Concedendo a lei, ao arguido, um prazo de 10 dias para ele se pronunciar sobre a excepcional complexidade do processo, só o arguido - pessoa em benefício da qual o prazo foi estabelecido - podia renunciar ao decurso do prazo ou praticar o acto processual antes de o mesmo se esgotar. 4. Não se extrai do Código de Processo Penal qualquer norma ou princípio que atribuam ao juiz o poder de reduzir, unilateralmente e contra a vontade expressa do arguido, um prazo fixado na lei para ele exercer os seus direitos de defesa.
[7] In http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/98ce9149fb316f8e80257e84004c2c5a?OpenDocument
[8] Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.