Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
888/17.6PCBRG.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: DECLARAÇÕES GRAVADAS EM AUDIÊNCIA
DEFICIÊNCIAS DO REGISTO AUDIOFÓNICO
REGIME LEGAL
AUJ DO STJ N.º 13/2014
DE 3-07-2014 (IN DR
I
Nº 183
DE 23-09-2014)
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/29/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A documentação na acta de todas as declarações prestadas oralmente na audiência é obrigatória, sem excepção, não dependendo da concordância dos sujeitos processuais, nem podendo ser por eles prescindida, sob pena de nulidade (art. 363º do CPP).

II - E a documentação de tal forma deficiente que impeça a captação do sentido das declarações gravadas deve ser equiparada à sua total omissão, mas vale aqui a tradicional máxima “das nulidades reclama-se e dos despachos recorre-se”: o deficiente registo audiofónico de declarações redunda num vício procedimental cometido durante a audiência que, embora previsto no citado art. 363º, não faz parte da enumeração taxativa das nulidades insanáveis constante do artigo 119º nem como tal é cominado em qualquer outra disposição legal, consubstanciando tal irregularidade, por isso, uma nulidade processual sanável – não qualquer das nulidades de sentença cominadas no art. 379º –, sujeita ao regime previsto do art. 120º, sendo, pois, dependente de arguição, que, incontornavelmente, só pode ser deduzida no prazo de 10 dias e perante o tribunal em que a mesma teve lugar, cabendo ao tribunal superior apenas a eventual reponderação da decisão – se impugnada em recurso – que, em 1ª instância, tenha recaído sobre a sua arguição oportunamente deduzida.

III - Essa interpretação foi fixada pelo AUJ do STJ n.º 13/2014, de 3-07-2014 (in DR, I, nº 183, de 23-09-2014), é inteiramente conforme ao entendimento solidamente uniforme da jurisprudência sobre as regras do processamento das impugnações das decisões, por um lado, e da tramitação da arguição de nulidades, por outro, e não enferma de inconstitucionalidade, designadamente porque não elimina o direito dos sujeitos processuais a reclamar do cometimento de uma invalidade advinda do desvio ao ritualismo processual imposto, apenas obriga ao exercício do direito no tempo e na forma estritamente decorrentes da tipicidade processual, sob pena de sanação do vício, como decorrência do princípio da auto responsabilidade dos interessados, que também orienta o nosso processo penal.

IV - Ora, repousa, sobretudo, na exigência do estrito acatamento do princípio da tipicidade, inerente ao princípio da legalidade da tramitação processual, tal como esta é prevista para a realização de cada direito, a salvaguarda de valores tutelados constitucionalmente, como são a certeza e a segurança jurídicas, base da confiança ínsita ao estado de direito, sendo inconcebível que o propalado direito de defesa ou, mesmo, o direito ao processo equitativo (consagrado no art. 20º da CRP) se pudessem conciliar com a negação prática de tais valores fundamentais.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

No âmbito do referenciado processo comum singular do Juízo Local Criminal de Braga, do Tribunal Judicial da mesma Comarca, por decisão proferida e depositada em 7/11/2018 foi a arguida Maria condenada como autora material de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 65 (sessenta e cinco) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), perfazendo a multa de € 325 (trezentos e vinte cinco euros), e ainda, a pagar à demandante cível a quantia de € 300 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais.

Inconformada, a arguida interpôs recurso, cujo objecto delimitou com as seguintes conclusões (sic):

« - Da prova produzida em audiência de Julgamento, conforme decorre da audição da gravação em suporte digital - sistema de gravação Habilus Media Studio, onde está gravada a prova produzida e da acta do dia 24.09.2018, constata-se que as declarações da arguida (Conf. gravação em suporte digital com o seu início pelas 15:49:56 horas e o seu termo pelas 16:12:13 horas), estão inaudíveis, não se conseguindo decifrar muitas das palavras do que declarou em julgamento.
- Estando também parcialmente inaudíveis as declarações da assistente, T. L., conforme decorre da audição da gravação em suporte digital - sistema de gravação Habilus Media Studio, onde está gravada a prova produzida e da acta do dia 24.09.2018, conforme gravação em suporte digital com o seu início pelas 16:13:17 horas e o seu termo pelas 16:34:42 horas e principalmente durante os cinco primeiros minutos da gravação.
- Assim como está irremediavelmente imperceptível o que depôs a testemunha S. M., acerca da matéria dos autos, conforme gravação em suporte digital - sistema de gravação Habilus Media Studio, com o seu início pelas 16:56:15 horas e o seu termo pelas 17:12:58 horas e acta do dia 24.09.2018.
- Pelo que, fica assim irremediavelmente coarctado o direito de defesa da arguida, que, pretendendo impugnar a matéria de facto dada como provada, não poderá a mesma ser reapreciada, pelo menos no que toca a estes depoimentos,
- Encontrando-se coarctado o direito de defesa da arguida bem como o de recurso, uma vez que a prova gravada é parcialmente inaudível no que toca aqueles depoimentos supra referidos e nos quais assentam a acusação da arguida.
- Sendo certo, que os depoimentos supra referidos, importantíssimos para a descoberta da verdade, para além de nada se apreender, diga-se, nem sequer é possível compreender o que deles decorre com razoável segurança, o que consubstancia nulidade processual - vide entre muitos outros - Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, processo 1159/04.3TBACB.C1, de 02-02-2010, acessível em - www.dgsi.pt e Ac. da Relação de Guimarães, processo n.º 327/07.0GAPTL.G1 de 03-05-2010, acessível em www.dgsi.pt.
- Razão pela qual deverá ser considerada nula a produção de prova e a prova gravada dos autos em epígrafe, e produzida em audiência de julgamento, devendo em consequência ser ordenada a repetição do julgamento.
- Ou se assim não se entender, tem de se extrair da deficiência da gravação o efeito próprio de uma nulidade processual: o de anulação e repetição do acto viciado e dos actos posteriores que dele dependam,
- Por outro lado, foi efectuada uma incorrecta apreciação da prova testemunhal e que resulta de alguns excertos que se conseguem perceber.
- O depoimento da testemunha S. M. e o depoimento da assistente, nos moldes em que foram prestados (e do pouco que se consegue perceber) não deveriam ser suficientes para sustentar a condenação da arguida,
10º - Devendo a arguida ser absolvida do crime de que vem acusada».

O recurso foi regularmente admitido por despacho proferido a fls. 113.

O Ministério Público respondeu ao recurso, sustentando que deve considerar-se sanada a nulidade suscitada por não ter sido atempadamente invocada e considerar-se igualmente improcedente o recurso quanto ao mérito da decisão.
Também a assistente respondeu ao recurso dizendo, em suma, que a nulidade invocada deve considerar-se sanada por não ter sido arguida no prazo de 10 dias contado da audiência de julgamento em que em que ocorreu a deficiente gravação e, quanto à matéria de facto, asseverou perfilhar na íntegra o plasmado na decisão do Tribunal a quo, não existindo qualquer erro de julgamento e espelhando o recurso apresentado apenas a visão e convicção pessoal da arguida.

E, neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o art. 416º do CPP, emitiu douto parecer, defendendo a improcedência do recurso com pertinentes considerações.
Cumprido o art. 417º, n.º 2, do CPP, a arguida respondeu ao parecer do Ministério Público, dizendo entender que a aplicação ao caso concreto do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 13/2014, nos termos propugnados, violaria o seu direito de defesa, pelo que o Aresto é inconstitucional.

Efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.
*
II – Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo de questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, neste recurso suscitam-se as seguintes questões:

- a nulidade processual decorrente das deficiências da gravação;
- a impugnação da matéria de facto.

Importa apreciar e decidir, para o que deve considerar-se como pertinentes os factos considerados provados e não provados, bem como a motivação da respectiva decisão (sic):

«1. A assistente T. L. e a arguida Maria são vizinhas entre si, residindo ambas na Rua …, em Braga, encontrando-se desavindas.
2. No dia 4 de Setembro de 2017, cerca das 19H30, quando a assistente se encontrava na companhia de S. M., no interior do veículo desta, na sequência de um desentendimento de estacionamento, a arguida ao constatar que nessa viatura se encontrava a assistente, em voz alta e agressiva, olhando para a assistente, dirigiu-lhe a seguinte expressão: “sua cabra”.
3. Tais palavras foram proferidas de forma a poderem ser ouvidas por quem estivesse próximo da assistente e nas proximidades do prédio onde ambas residem.
4. Ao apodar a assistente de “sua cabra”, a arguida pretendeu atingir a assistente na honra e consideração que lhe são devidas, tendo perfeita consciência que tal expressão era susceptível de ofender o bom nome, a honra e consideração pessoal da assistente, como conseguiu.
5. Apesar disso, actuou da forma descrita, livre, consciente e voluntariamente, dirigindo à assistente tais expressões, com o propósito de a ofender, como ofendeu, na sua honra e consideração pessoal.
6. A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
7. A assistente é professora de português, educada e respeitada por aqueles que com ela privam.
8. Em consequência da conduta da arguida, a demandante sentiu vergonha e humilhação.
9. A arguida trabalha como empregada doméstica, auferindo €5,00/hora.
10. Vive com o marido, reformado e uma filha de maior idade, habitando em casa própria.
11. Como habilitações possui o 6º ano de escolaridade.
12. A arguida não possui antecedentes criminais.

Factos não provados (com relevo para a decisão):

- Os factos apurados ocorreram às 21H44M.
- No contexto de tempo e lugar constante dos factos apurados, quer ainda pelas 21H44M, quando a assistente se cruzou com a arguida no prédio em que ambas habitam, a arguida dirigiu à assistente, em voz alta: “qualquer dia, vou-te partir a cara.
- A arguida quis intimidar a assistente e provocar-lhe medo, bem sabendo que esse anúncio era idóneo e apropriado a provocar nesta, pelo seu tom sério e agressivo, ficando a assistente com receio que a arguida atentasse contra a sua integridade física.
- Agiu a arguida de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de convencer a assistente que viria a efectivar os males prometidos, perturbando-a assim no seu sossego e tranquilidade, a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação e deixou-a com um sentimento de insegurança, com receio de levar a cabo o mal anunciado, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
- No apurado circunstancialismo de tempo e de lugar, quer ainda pelas 21H44M, a arguida, depois de sair do seu veículo automóvel e enquanto descarregava as compras que trazia no carro e após a chegada ao local da filha da arguida e de outra pessoa, a arguida dirigiu à assistente, para além da expressão constante do ponto 2 dos factos provados, a expressão: “Tu vais ver onde vais parar!”.
- Tal expressão foi proferida de modo a poder ser ouvida pelos moradores do prédio onde a assistente habita e por demais pessoas que habitam em prédios vizinhos que conhecem a assistente.
- Em consequência da conduta da arguida/demandada:
- A assistente temeu e continua a temer pela sua integridade física, sentindo insegurança e medo.
- A demandante ficou durante as semanas que se seguiram em permanente estado de ansiedade e teve insónias, tendo de retomar a medicação (Triticum), cuja toma já havia suspendido, para conseguir dormir e acalmar a ansiedade.
- E deslocou-se ao médico de família no dia 27/09/2017 para prescrição da referida medicação.
- Passou a ficar apreensiva sempre que entrava e saía do prédio, o que ainda sucede, com receio que a arguida venha a concretizar o mal anunciado, vendo assim limitada a sua liberdade de determinação.
- Teve de ficar acompanhada da amiga S. M. e contactou a amiga Maria e estiveram a aguardar por um momento tardio da noite para a assistente estrar em casa.
- Nas semanas seguintes, sempre que entrou em casa, fê-lo acompanhada por amigos ou por familiares.».

Motivação:

«O Tribunal baseou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência, à luz do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º do Código de Processo Penal e na estrita observância do princípio da legalidade (artº 125º), do princípio da presunção de inocência e do princípio in dubio pro reo que vigora em direito penal, com acolhimento na Lei Fundamental (artº 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa), designadamente:

- Auto de denúncia de fls 30 e vº, apresentada pela assistente em 05/09/2017 junto da PSP de Braga, acusando a arguida de, no dia em apreço nos autos, a ter injuriado e ameaçado, com seguinte expressão: “cabra, tu vais ver onde vais parar”.
- Participação da PSP (de patrulha) de fls 35, elaborada em 04/09/2017, pelas 21H44M, referente a desentendimentos entre vizinhos, ocorrido pelas 19H30M (“és uma cabra”).
- Registo fotográfico de fls 91;
- Certificado de registo criminal de fls 88.
- Declarações prestadas pela arguida, quanto à sua situação socioeconómica, que não foram contrariadas por qualquer meio de prova.
- No mais, a arguida prestou declarações em audiência, negando a totalidade dos factos que lhe vêm imputados. Admite contudo o contexto dos factos, independentemente da hora a que o incidente ocorreu (tornando desnecessária qualquer comunicação quanto à hora dos factos apurada, nos termos do artº 358º, nº 2 do CPP, hora que de resto ficou cabalmente esclarecida pelo teor da participação de fls 35), mais aludindo aos conflitos de vizinhança existentes, há cerca de 8 anos, de que se sustenta mártir.
- A assistente T. L., refere que os factos terão ocorrido pelas 19H30M/20H00M, afirmando que a arguida, no exterior, junto ao carro, lhe dirigiu a expressão “sua cabra, tu vais ver onde vais parar, um dia ainda te parto a cara”.
- A testemunha P. F., actualmente fortemente zangado com a arguida e já anteriormente de “pé atrás”, sustentou que a arguida insultou a ofendida “do piorio”, “encheu-a de nomes”, “minha cabra, qualquer dia vou partir-te a cara e que ninguém buzinou.
- A testemunha S. M., amiga da assistente, referiu que depois da declarante buzinar e depois da arguida ver a assistente dentro do carro, lhe dirigiu as expressões “sua cabra, parto-te a cara”, ficando ambas a tremer; e que, depois de entrar em casa, já da janela, a arguida continuou a ofender a declarante (“onde é que tinha tirado a carta”, “que não sabia conduzir”). Diz que foram depois ao encontro de um polícia e no dia seguinte foram à esquadra.
- A testemunha A. F., amiga da assistente, não presenciou os factos, apenas sabe que a assistente estava sozinha em casa nesse dia, que esta lhe telefonou antes do jantar, cerca das 19H30, dizendo que tinha sido insultada e ameaçada, oferecendo-lhe apoio e convidando-a para pernoitar em sua casa, porque sabia que ela estava sozinha e tinha medo, o que a assistente não aceitou.
- A testemunha A. J., amigo da assistente e marido da testemunha A. F., não presenciou os factos, apenas sabe que a assistente, ligou lá para casa, por ter acontecido uma situação desagradável, estando stressada, manifestando receios, até a convidando para ela ir lá dormir em casa, o que não quis.
- A testemunha M. G., moradora em outro prédio perto do local, não presenciou os factos, apenas sabe que a assistente lhe ligou, muito alterada, afirmando ter sido insultada e ameaçada, tentando acalmá-la, até a convidando para ficar em sua casa, o que ela não quis. Ligou-lhe nos dias seguintes, continuando a manifestar receios; sabe que tomou medicação e foi ao Centro de Saúde porque andava muito nervosa, mais abonando a personalidade da assistente (educada, dá-se bem com toda a gente, para além dos conflitos que tem com a vizinha).
- A testemunha A. P., filha da arguida, presente no local, referiu que a arguida, na sequência da apitadela (buzinão), apenas foi questionar a condutora do veículo por causa disso, referindo-lhe que não tinha nada que estar ali estacionada, não recordando o que a mãe disse à assistente, pessoa que, segundo afirma, “tem feito a vida negra” à mãe, mas não acredita que a tivesse insultado ou ameaçado.
- A testemunha F. J., vizinho e morador no prédio, diz que na sequência do buzinão, veio à janela retratada nos registos fotográficos, apercebendo-se de algum atrito entre a senhora com as sacas na mão (arguida) e as pessoas que estavam no carro, entrando depois a arguida no prédio, acompanhada pela filha e outra rapariga.
- A testemunha R. L., amiga da filha da arguida, condutora do Smart, diz que houve de facto uma ligeira confusão, depois do buzinão, mas não sabe o que a arguida disse.
- A testemunha A. M., namorado de uma outra filha da arguida, estava em casa da arguida, nesse dia, veio à janela e ainda viu a manobra de marcha atrás e as buzinadelas, ouviu a arguida falar qualquer coisa, que não sabe concretizar, nem deu para perceber.
- Apreciando criticamente os meios de prova acima mencionados, entendemos que, dado o contexto de animosidade pessoal entre as partes, a crispação estabelecida na sequência das buzinadelas, a personalidade da arguida evidenciada em audiência e as regras da experiência comum, fácil se torna acreditar, como acreditamos, que a arguida dirigiu à assistente, no apurado contexto, a expressão insultuosa que lhe vem imputada na acusação particular (“sua cabra”), expressão que foi sustentada de forma plausível pela assistente, corroborada pelo depoimento da testemunha S. M., não contrariada por qualquer meio de prova firme e seguro. As próprias testemunhas de defesa – A. P., F. J., R. L. e A. M., se limitaram a dizer que não se lembram ou não conseguiram ouvir as palavras proferidas pela arguida, dirigidas à assistente.

Já no mais, quanto à imputada verbalização ameaçadora, entendemos que a prova é assaz inconsistente, não permitindo firmar convicção segura, quanto a esta factualidade, de molde a vencer a força probatória do princípio do in dubio pro reo.

Com efeito, a prova da acusação é assinalavelmente contraditória nesta parte, começando desde logo pelas menções constante da participação da PSP de fls 35, com base no contacto estabelecido pela assistente junto da PSP (patrulha) no calor dos acontecimentos, nela não se consignando qualquer ameaça; o auto de denúncia apresentado no dia seguinte (fls 30 e vº), apenas se mencionando a expressão “tu vais ver onde vais parar”, expressão que aliás se imputa na douta acusação particular, divergente pois da própria expressão que consta da acusação pública, aliás em local e momento totalmente infirmados por toda a prova produzida em audiência (nada se provou que a imputada verbalização tenha ocorrido no átrio do prédio, ou que arguida e assistente ali se tenham cruzado, após os factos).

Acresce que o depoimento da testemunha P. F. foi marcado por fortes contradições, sendo a única pessoa que sustentou não ter existido qualquer buzinadela, resultando pois muito duvidosa sequer a sua presença no momento da prática dos factos, para além das fortes hostilidades e ressabiamento que revelou em relação à arguida.

Assim, pese embora o grande esforço da assistente em sustentar em audiência que, afinal, a arguida lhe dirigiu em simultâneo as duas expressões, tal não se afigura sequer verosímil (se assim fosse certamente teria a assistente logo referido tal facto à PSP a quem recorreu momentos após os factos; e teria sido esta a expressão que a assistente teria indicado na queixa apresentada e não outra.
- De resto o estado emocional da assistente é também inverosímil, afirmando-se de tal forma assustada, a ponto de se dar ao trabalho de telefonar para diversas pessoas (A. F., A. J., M. G.), apesar de estar acompanhada pela amiga e testemunha S. M., numa postura de exacerbada vitimização, susceptível de manipular opiniões, no destilar de ódios de estimação antigos e por todos reconhecidos, postura que não impressionou o tribunal.

Neste contexto, deu o tribunal como não provados, os factos respeitantes ao pedido cível, nesta parte alegados, por incompatíveis com os factos que se deram como provados e por falta de nexo causal com a factualidade apurada. O estado emocional e eventual necessidade de tratamento invocados, apenas poderão ser resultantes de um quadro clínico preexistente ou ainda pouco consolidado, não sendo directamente imputável à conduta da arguida, que resultou provada.
*
III - O Direito.

1. As deficiências da gravação.

Mediante as conclusões 1ª a 7ª, a recorrente invoca a nulidade processual a que alude o art. 363º do C. Processo Penal (1), alegando, em suma, o deficiente registo audiofónico de declarações produzidas oralmente na audiência de julgamento do dia 24-09-2018, porque as prestadas por ela própria e pela assistente (T. L.) têm muitos trechos indecifráveis e é totalmente imperceptível o depoimento da testemunha S. M..

Com esse fundamento, a recorrente sustenta que, pretendendo impugnar a matéria de facto tida por provada e não podendo esta ser reapreciada porque a audição de tais declarações não é permitida pela sua deficiente gravação, deverá ser considerada nula a respectiva produção e, em consequência, ser ordenada a sua repetição, sob pena de ficar irremediavelmente coarctado o seu direito de defesa.

Vejamos.

Com a redacção conferida ao citado art. 363º pela Lei 48/2007, de 29/8, passou a ser obrigatória a documentação na acta de todas as declarações prestadas oralmente na audiência, «sob pena de nulidade» (2).

A documentação é, pois, obrigatória, sem excepção, não dependendo da concordância dos sujeitos processuais, nem podendo ser por eles prescindida. Passou a haver um regime único de documentação de declarações orais na audiência de julgamento, sem qualquer distinção, quer se trate de julgamento perante tribunal singular, quer se trate de julgamento perante tribunal colectivo, quer se trate de julgamento de arguido ausente. E toda a prova produzida oralmente na audiência de julgamento é documentada por meio de registo em suporte técnico idóneo a assegurar a reprodução integral (3).

Por seu turno, o n.º 6 do subsequente art. 364º (4) estipula que é correspondentemente aplicável o disposto no art. 101º, cujo n.º 4 dispõe que «[s]empre que for utilizado registo áudio ou audiovisual não há lugar a transcrição e o funcionário, sem prejuízo do disposto relativamente ao segredo de justiça, entrega, no prazo máximo de 48 horas, uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira, bem como, em caso de recurso, procede ao envio de cópia ao tribunal superior».

É pacífico o entendimento de que à total omissão da documentação em acta das declarações oralmente prestadas em audiência deve ser equiparada a documentação de tal forma deficiente que impeça a captação do sentido das declarações gravadas, pois, em tal caso, é como se não tivesse havido registo das mesmas. Com efeito, a documentação será deficiente quando não permita ou impossibilite a captação do sentido das palavras dos declarantes.

Mas, por outro lado, trata-se de um vício procedimental cometido durante a audiência que, embora previsto no citado art. 363º, não faz parte da enumeração taxativa das nulidades insanáveis constante do artigo 119º nem como tal é cominado em qualquer outra disposição legal. Por isso, consubstancia uma nulidade sanável, sujeita ao regime previsto do art. 120º, sendo, pois, dependente de arguição.

Todavia, manifestaram-se divergências na jurisprudência quanto à arguição dessa nulidade: entendia uma parte que devia ser arguida no prazo geral de 10 dias e perante o tribunal de primeira instância, sob pena de ser considerada sanada, e outra que o vício ainda poderia ser arguido em recurso, quando o recorrente pretendesse impugnar a matéria de facto nos termos do art. 412º, n.º 2 e 3.

E de entre os que perfilhavam o primeiro entendimento ainda não havia total consenso quanto ao momento em que se iniciava a contagem do prazo de arguição de tal nulidade (perante o tribunal de primeira instância).

Entretanto, o Supremo Tribunal de Justiça pôs termo a essas divergências com o Acórdão de Uniformização n.º 13/2014, de 3-07-2014 (in DR, I, nº 183, de 23-09-2014), fixando a seguinte jurisprudência: «A nulidade prevista no artigo 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.»

Uma vez fixada por tal modo a interpretação do art. 363º, é incontornável que a nulidade nele prevista só pode ser arguida no prazo de 10 dias e perante o tribunal em que a respectiva irregularidade teve lugar, cabendo ao tribunal de recurso apenas a eventual reponderação da decisão – se impugnada em recurso – que, em 1ª instância, tenha recaído sobre a sua arguição oportunamente deduzida.

Assim, no caso de a audiência se prolongar por várias sessões, deverão os sujeitos processuais interessados, logo após cada uma delas, pedir as cópias da documentação das declarações orais nela prestadas, que lhes devem ser facultadas dentro do prazo de 48 horas, contado da apresentação do requerimento, acompanhado do suporte técnico.

Por sua vez, o prazo para arguir a nulidade decorrente da omissão ou deficiência dessa documentação conta-se a partir da data de cada uma das sessões da audiência em que tiver ocorrido a irregularidade, descontando o período de tempo que decorrer entre o pedido da cópia, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação do pedido pelo funcionário.

Na sequência, caberá ao tribunal de primeira instância suprir o vício que acarrete tal nulidade, se reconhecer a sua verificação, renovando os depoimentos que se mostrem por ele afectados (art. 122º, n.º 2), após o que, sanada a irregularidade, o processo retomará a sua normal tramitação. Se o tribunal não reconhecer a nulidade, restará ao sujeito processual que a arguiu impugnar a decisão perante o tribunal de recurso.

Na verdade, a inobservância da formalidade decorrente da dita documentação, uma vez invocada e demonstrada a sua influência no exame ou na decisão da causa – por essencial para a descoberta da verdade –, importaria, realmente, uma nulidade processual – como, aliás, a recorrente reconhece – e não qualquer das nulidades de sentença, cominadas no art. 379º.

Contudo, no caso concreto, a nulidade advinda do desvio ao ritualismo processual imposto ficou sanada por não ter sido reclamada oportunamente, uma vez que foi arguida apenas em sede de recurso e depois de esgotado o prazo de que a recorrente dispunha para tal: as declarações e depoimentos testemunhais em apreço, foram prestados na sessão da audiência de julgamento que teve lugar no dia 24-09-2018, não constando dos autos que a recorrente tivesse requerido cópia da respectiva gravação ou arguido a apontada nulidade perante o Tribunal a quo.

Como a recorrente apenas veio arguir a nulidade na motivação do recurso, claramente fora de prazo, a ocorrerem as deficiências de gravação de tais declarações, sempre se imporia concluir pela sanação da correspondente nulidade e pela consequente impossibilidade de impugnação da matéria de facto através do meio facultado pelo artigo 412º, n.ºs 2 e 3.

Como já se disse, quando tal vício ocorrer, a parte interessada na observância da formalidade deve arguir o referido vício perante o tribunal junto do qual foi cometida e que seria o competente para o suprir, sendo extemporânea a sua arguição apenas em alegações de recurso.

Em princípio, só as nulidades de sentença previstas no referido art. 379º podem servir de fundamento ao recurso, não podendo aqueles outros vícios formais servir de fundamento para recurso da decisão final. Ora, a nulidade arguida apenas nas alegações do recurso não respeitaria a vício da sentença ou de qualquer acto processual sobre o qual a recorrente tivesse reclamado e tivesse visto indeferida a sua reclamação.

Efectivamente, é pacificamente entendido que a verificação da omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, tal como a da generalidade das nulidades processuais, deve ser objecto de arguição perante o tribunal onde é cometida, reservando-se o recurso para o despacho que sobre a mesma incidir. Vale aqui a tradicional máxima “das nulidades reclama-se e dos despachos recorre-se” (5).

Como é sabido, os recursos são meios de obter a reforma de decisões dos tribunais inferiores e não de alcançar decisões novas, só assim não acontecendo nos casos em que a lei determina o contrário, ou relativos a matéria indisponível, sujeita por isso a conhecimento oficioso (6). E não ocorrendo em relação à particular questão suscitada neste recurso, qualquer destas condições de excepção, tal vício, a existir, não poderia ser conhecido nem conduziria ao resultado sugerido, porque o mesmo sempre teria de considerar-se sanado, conforme o exposto.

Ora, a interpretação fixada pelo mencionado AUJ do STJ é inteiramente conforme ao entendimento solidamente uniforme da jurisprudência sobre as regras do processamento das impugnações das decisões.

É certo que, nos termos do art. 445º, n.º 3, «a decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão».

O Conselheiro Abrantes Geraldes ponderou (7): «É claro que, ao invés do que ocorria com os Assentos que o art. 2º do CC de 1966 integrava nas fontes normativas, os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência (AcUJ) não gozam de força vinculativa a não ser no âmbito do processo em que são proferidos (art. 4º, nº 1, da LOSJ). Ainda assim, o sistema tem convivido de forma salutar com a força persuasiva de tais arestos que é projectada pela conjugação de diversos factores: a solenidade do julgamento (…), a qualidade dos seus protagonistas e a valia da fundamentação, o que é demonstrado pelo generalizado respeito que as instâncias vêm demonstrando pelas soluções uniformizadoras que acabam por impor-se às polémicas jurisprudenciais que as precedem ou que procuram prevenir.

Daí que só se deva materializar uma divergência que seja substancial e a sua explanação sempre imporá, não uma genérica fundamentação, mas o cumprimento de «um dever especial de fundamentação destinado a explicitar e explicar as razões de divergência em relação à jurisprudência fixada» (8). Com efeito, «os tribunais só podem divergir da jurisprudência uniformizada do STJ quando tenham argumentos nela não debatidos, ou seja, a divergência tem de se fundamentar em argumentos novos que não aqueles constantes da tese que ficou vencida no acórdão para fixação de jurisprudência, sob pena de a uniformização não ter qualquer efeito e os tribunais continuarem com base nos mesmos argumentos a produzirem decisões desencontradas» (9).

Ou seja, um tribunal só pode afastar-se de jurisprudência fixada quando houver «razões para crer que uma jurisprudência fixada está ultrapassada», o que sucederá, por exemplo, quando «o tribunal judicial em causa tiver desenvolvido um argumento novo e de grande valor, não ponderado no acórdão uniformizador (no seu texto ou em eventuais votos de vencido), susceptível de desequilibrar os termos da discussão jurídica contra a solução anteriormente perfilhada», ou «se tornar patente que a evolução doutrinal e jurisprudencial alterou significativamente o peso relativo dos argumentos então utilizados, por forma a que, na actualidade, a sua ponderação conduziria a resultado diverso», ou ainda «a alteração da composição do Supremo Tribunal de Justiça torne claro que a maioria dos juízes das Secções Criminais deixaram de partilhar fundadamente da posição fixada». O que não sucede quando o tribunal judicial se limita a não acatar «a jurisprudência uniformizada, sem adiantar qualquer argumento novo, sem percepção da alteração das concepções ou da composição do Supremo Tribunal de Justiça, baseado somente na sua convicção de que aquela não é a melhor solução ou a solução legal» (10).

Porém, perfilhamos a interpretação jurisprudencial fixada no citado AUJ de 2014 e nem vemos como, actualmente, se poderiam alvitrar argumentos novos, que não tenham já sido nele ponderados, e que a permitissem afastar (11).

Não olvidamos que, na resposta ao parecer do Ministério Público, a recorrente disse entender que o aludido AUJ é «inconstitucional e a sua aplicação ao caso concreto violador do seu direito fundamental e constitucionalmente consagrado, de defesa» (art. 32º nº 1 da CRP) porque «encurta, injustificada e ilegalmente, o prazo de recurso que é concedido à arguida, fixado em 30 dias, pelo artigo 411º nº 1 do C. P. Penal».

É de supor que a recorrente pretenderia sustentar uma putativa inconstitucionalidade, não do citado Acórdão, mas da interpretação do complexo normativo acima referenciado e atinente ao regime da arguição de nulidades, no confronto com o regime do processamento das impugnações das decisões judiciais. Sendo esse o desígnio da recorrente, lembramos que a mesma não suscitou, efectivamente, qualquer questão de inconstitucionalidade pelo modo processualmente adequado a que o respectivo conhecimento se nos impusesse, porquanto as conclusões do seu recurso são completamente omissão a esse respeito (cf. art. 72º, nº 2, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15/11).

Ainda assim, sempre diremos, muito brevemente, que a recorrente lavra em patente confusão ao alvitrar que a interpretação acima exposta e, afinal, também perfilhada pelo visado AUJ sobre o conjunto de regras atinentes à arguição de nulidades também teria incidência no prazo de interposição dos recursos, encurtando-o.

Realmente, as regras da tramitação da arguição de nulidades – designadamente a da sua eventual sanação – não são confundíveis e, por isso, em nada contendem com o bem diverso regime do processamento das impugnações das decisões judiciais, nele incluído o que do mesmo se retira quanto ao respectivo prazo.

Como no caso se conclui, se a recorrente, tivesse atentado a que estavam em causa as regras da tramitação da arguição de nulidades e, por isso, diligenciado nos termos prescritos no citado artigo 101º, n.º 4, teria obtido, no prazo máximo de 48 horas, a contar de referida sessão de produção de prova, cópia da gravação das declarações orais nelas produzidas. Não o tendo feito e sendo consolidado o entendimento da jurisprudência sobre essa matéria, sibi imputet, si, quod saepius cogitare poterat et evitare, non fecit (12), pelo que não procede a invocação da injustificada limitação do seu direito de defesa.

Ademais, a imposição pelo legislador de regras para a tramitação da arguição de nulidades, interpretadas no sentido acima exposto, não elimina o direito dos sujeitos processuais a reclamar do cometimento de uma invalidade advinda do desvio ao ritualismo processual imposto, apenas obriga ao exercício do direito no tempo e na forma estritamente decorrentes da tipicidade processual, sob pena de sanação do vício, como decorrência do princípio da auto-responsabilidade dos interessados, que também orienta o nosso processo penal.

Ora, repousa, sobretudo, na exigência do estrito acatamento do princípio da tipicidade, inerente ao princípio da legalidade da tramitação processual, tal como esta é prevista para a realização de cada direito, a salvaguarda de valores tutelados constitucionalmente, como são a certeza e a segurança jurídicas, base da confiança ínsita ao estado de direito. Seria inconcebível que o propalado direito de defesa ou, mesmo, o direito ao processo equitativo (consagrado no art. 20º da CRP) se pudessem conciliar com a negação prática de tais valores fundamentais.

Improcede, pois, este segmento do recurso.

2. A impugnação da matéria de facto.

A recorrente nas conclusões 8ª e 9ª afirma que foi efectuada uma incorrecta apreciação da prova, o que se constataria por alguns excertos perceptíveis do depoimento da testemunha S. M. e das declarações da assistente, que não deveriam ser suficientes para sustentar a condenação daquela.

Vejamos.

Para correctamente se impugnar a decisão com fundamento em erro de julgamento, é preciso que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.

O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como tendo sido incorrectamente julgados, na sua perspectiva, a fim de poder obviar a eventuais erros ou incorrecções na forma como foi apreciada a prova.

Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objecto do recurso, cabendo ao tribunal da relação confrontar o juízo que sobre eles foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.

Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.

Sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (impugnação ampla), o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.

Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do n.º 3 do citado artigo 412º. A referida especificação dos concretos pontos factuais traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. E a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.

Note-se que o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afecta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law.

Daí a necessidade e importância da impugnação especificada, por permitir a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, devendo tais especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3). Face ao nosso regime processual quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, actualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do n.º 4 do citado artigo 412º.

É também por isso que se reconhece não existir fundamento bastante para rejeitar a impugnação da decisão numa situação em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do recurso, tenha sido devidamente cumprido o ónus primário ou fundamental, identificando os concretos pontos de facto impugnados e as propostas de decisão alternativa sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal alternativa, já podendo – e até devendo – o cumprimento do ónus secundário ser satisfeito na motivação (corpo das alegações), para aí sendo relegadas a valoração dos concretos meios de prova indicados nas conclusões e a determinação da sua relevância para a distinta decisão proposta, bem como a indicação concreta das passagens da gravação (13).

E, nessa senda, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução de facto e entende que devia ser provada.

À luz do que acima expendido e uma vez tida por sanada a eventual irregularidade decorrente da falada deficiência do registo da prova, a recorrente não cumpriu, sequer por aproximação, o apontado ónus de especificação legalmente exigido para o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto que formulara. Basta atentar em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do respectivo recurso, a arguida nem sequer identifica os concretos pontos de facto impugnados, nem os concretos meios de prova que imporiam tal alternativa. Acresce que, tendo sido gravados os meios de prova produzidos, a recorrente teria de indicar as concretas passagens em que se funda a impugnação.

Perante a falta de específica indicação, comprometida fica a possibilidade de este Tribunal de recurso sindicar a matéria de facto fixada na sentença recorrida.

Ou seja, o não acatamento do ónus de impugnação especificada leva a que não se verifique o circunstancialismo referido na citada al. b) do artigo 431º, tornando inviável a modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto.

Acrescente-se que, não contendo também o corpo das motivações a especificação em apreço exigida por lei, não estamos somente perante uma situação de insuficiência das conclusões, mas sim de deficiência substancial da própria motivação ou de insuficiência do próprio recurso, insusceptível de aperfeiçoamento, com a consequência de o mesmo, nessa parte assim afectada, não poder ser conhecido.

Sobre este particular ponto se tem pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça (14) no sentido de que o convite ao aperfeiçoamento conhece limites, pois que se o recorrente, no corpo da motivação do recurso, se absteve do cumprimento do ónus de especificação, que não é meramente formal, antes tendo implicações gravosas ao nível substantivo, não enunciando as especificações, então o convite à correcção não comporta sentido porque a harmonização das conclusões ao corpo da motivação demandaria a sua reformulação, com novas conclusões e inovação da motivação, precludindo a peremptoriedade do prazo de apresentação do recurso.

No mesmo sentido se vem pronunciado também o Tribunal Constitucional, ao entender não haver lugar ao convite ao aperfeiçoamento quando estejam em causa omissões que afectem a motivação do recurso e não apenas as conclusões (15).

Por outro lado, não poderemos deixar de assinalar que a recorrente apenas coloca em causa a convicção levada a cabo pelo tribunal de 1ª Instância.

Ora, a crítica à convicção do tribunal a quo, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência, não pode ter sucesso se alicerçada apenas na diferente convicção da recorrente sobre a prova produzida e avaliada de modo parcial e descontextualizado.

Na verdade, a recorrente apenas esteia a sua discordância na leitura que ela própria faz das declarações da assistente e da testemunha S. M. produzidas em audiência, concluindo que os factos não poderiam ter sido considerados provados. Tal discordância prende-se unicamente com as razões da convicção formada pela julgadora.

Como tem vindo a referir o Tribunal Constitucional (16), «a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.

Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão».

Improcede, igualmente, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e, por consequência, o recurso in totum.

Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e manter a decisão recorrida.

Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UC´s.


Guimarães, 29/04/2019

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado
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1 Diploma a que pertencem todas as disposições que vierem a ser citadas sem outra menção.
2 Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 109/X que esteve na origem da referida alteração, é, aliás, explicitado que «a audiência de julgamento passa a ser sempre documentada, não se admitindo que os sujeitos processuais prescindam de tal documentação, seja qual for o tribunal materialmente competente (artigos 363.º e 364.º)».
3 Quanto à forma da documentação, preceitua o n.º 1 do artigo 364º que «[a] documentação das declarações prestadas oralmente na audiência é efetuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, quando aqueles meios não estiverem disponíveis» e, de acordo com o disposto no n.º 3, quando houve lugar a registo áudio ou audiovisual, devem ser consignados na acta o início e o termo das declarações oralmente prestadas em audiência.
4 Na redacção actualmente vigente e conferida pela Lei 27/2015, de 14/04.
5 Alberto do Reis, “Comentário”, II, pag. 507.
6 Tratando-se «de irregularidade respeitante a actos ocorridos enquanto o processo se encontrava ainda na 1ª instância … era no Tribunal a quo que a questão deveria ter sido enfrentada e decidida» (Cf. Ac. do STJ de 9-7-2002).
7 V. texto que serviu de base à sua intervenção “Uniformização de Jurisprudência” no Colóquio realizado no Supremo Tribunal de Justiça, no dia 25-6-2015 (acessível na página do Tribunal na internet.).
8 Sumário do Ac. do STJ de 27/02/2003 (P. 625/03-5.ª), em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/criminal/criminal2003.pdf).
9 Ac. desta Relação de 07/02/2011, publicado em www.dgsi.pt/jtrg, com o nº de proc. 48/08.7JABRG.G1.
10 idem, seguindo o sumário do já citado Ac. do S.T.J. de 27/02/2003.
11 Sobre o assunto, podem ver-se ainda os Acs. da R.E. de 31/05/2011, com o nº de proc. 35/10.5PESTB.E1, e de 25/10/2011, com o nº de proc. 369/10.9GDSTB.E1, ambos publicados em www.dgsi.pt/jtre.
12 Que se culpe a si mesmo, se não fez o que poderia prever e evitar – máxima latina já plasmada in Codex Iustiniani 4.29.22.1.
13 É, aliás, no cumprimento deste último requisito que, segundo parece ser consensual, se deve estabelecer alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão, uma vez que se considere que a insuficiência de tal indicação não dificulta de forma substancial e relevante o exercício do contraditório, nem o exame pelo Tribunal.
14 Acórdão do STJ de 31-10-2007 (processo n.º 07P3218), disponível em http://www.dgsi.pt, bem como, em sentido coincidente, os acórdãos do mesmo Tribunal de 03-12-2009 (processo n.º 760/04.0TAEVR.E1.S1), de 28-10-2009 (processo n.º 121/07.9PBPTM.E1.S1), de 10-01-2007 (processo n.º 3518/06), de 04-01-2007 (processo n.º 4093/06) e de 04-10-2006 (processo n.º 812/06), disponíveis em http://www.dgsi.pt.
15 V. Acórdão n.º 140/2004, disponível em http://www.tribunalconstitcional.pt.
16 Designadamente no acórdão n.º 198/2004, de 24-03-2004, in DR, II Série, n.º 129, de 02-06-2004.