Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
488/19.6T8BCL.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: SERVIDÃO LEGAL DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/16/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
.1- As servidões de passagem legais podem ser constituídas por usucapião: a tanto leva a interpretação do nº 2 do artigo 1547º do Código Civil; que pretende, tão só, acrescentar duas fontes de constituição do direito às demais (a sentença judicial e a decisão administrativa).
2- Por seu turno, mesmo que a servidão legal de passagem esteja constituída por usucapião, o titular do prédio serviente pode preferir na venda do prédio dominante; necessário é que a servidão legal esteja já constituída.
3- Não obstante, caso se verifiquem os requisitos do abuso do direito, o titular do direito de preferência pode não ser admitido a exercê-lo.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I- Relatório

Identificação do processo:
--- Autores:
Fisio..., Lda., H. P., M. C., J. B. e T. P.

--- Intervenientes principais ativos e reconvindos:
--- F. R., C. F., R. M. e mulher R. O., M. F., J. C. e mulher M. M., M. E., S. F. e mulher M. V., M. G., M. R., M. B., P. C. – Imobiliária, S.A.
Autos de: apelação em ação declarativa com processo comum

Petição inicial
Os Autores, na petição inicial, pediram a condenação da Ré a reconhecer o direito de servidão de passagem sobre a parcela de terreno identificada em 8.º desse articulado e a abstrair-se de praticar qualquer ato que impeça ou obstrua a sua utilização.
Subsidiariamente peticionaram que se reconheça como caminho público a parcela de terreno identificada em 8.º da petição e se condene a ré abster-se de praticar qualquer ato que impeça ou obstrua a sua utilização.
Alegaram, em síntese, que existe um caminho que constitui o único meio de acesso à via pública dos prédios que agora são dos Autores, há bem mais de 70 anos, o qual foi sempre utilizado pelos anteriores proprietários dos prédios “encravados” como forma de acesso aos mesmos e foi usado pelo público que ali pretendia passar desde tempos imemoriais, mas que a Ré afirma que é sua propriedade, ali mantendo ramadas que impedem a sua franca utilização.

Contestação
A Ré apresentou contestação, na qual deduziu reconvenção e incidente de intervenção principal provocada, peticionando o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio serviente, a declaração da constituição de servidão de passagem que onera tal prédio a favor dos prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos ..03, ..04, ..05, ..06 e ..07, o reconhecimento do direito de preferência na aquisição dos prédios dominantes e o consequente cancelamento dos registos de aquisição dos mesmos prédios a favor dos adquirentes.

réplica
Os Autores defenderam que a reconvenção era inadmissível, negando a propriedade da ré sobre o dito caminho, mais afirmando que a servidão de passagem constituída por usucapião não constitui uma servidão legal e, consequentemente, não confere ao proprietário do prédio onerado o direito de preferência da venda dos prédios encravados. A final, pugnaram pela improcedência do pedido reconvencional, bem como do pedido de intervenção principal provocada deduzido pela ré.

Sentença
Após despacho de aperfeiçoamento, saneamento dos autos, com a admissão da reconvenção e da realização de audiência final, veio a ser proferida sentença com a seguinte decisão:
“Julga-se a presente ação totalmente procedente por provada e, em consequência:
a) condena-se a ré M. D. a reconhecer o direito de servidão de passagem sobre a parcela de terreno identificada no ponto 8. dos factos provados;
b) condena-se a ré M. D. a abster-se de praticar quaisquer atos que impeça ou obstrua a utilização do caminho identificado em 8.º dos factos provados.
2. Pelo exposto, julga-se ainda parcialmente procedente a reconvenção formulada pela ré e, consequentemente, condenam-se os autores a reconhecerem que a ré é dona e possuidora do prédio identificado no ponto 7.º dos factos provados e que o mencionado caminho se situa na estrema norte do referido prédio da ré.
Mais absolvem-se os autores do restante peticionado pela ré.”
recurso

É desta decisão que a Ré apela, formulando, para tanto, as seguintes
conclusões:
1- A.- A Recorrente entende que a decisão da matéria de facto é incorrecta quanto aos pontos: 13 uma vez que apenas foi provado que actualmente o acesso é feito por veículos ligeiros, para uso do parque de estacionamento existente num dos prédios, tratores e alfais agrícolas, 14 e 18 da matéria de facto provada; que deverão ser NÃO PROVADOS.
B.- É também incorrecta a decisão do Ponto b) da matéria de facto não provada; que deverá ser PROVADO Que em Agosto de 2011, a Ré/ Reconvinte mandou colocar calceta no início deste caminho, junto à Estrada Nacional..
C.- Esta alteração deverá ser feita com base nos depoimentos das testemunhas transcritos no corpo das alegações e de acordo com o disposto no art. 607º nº 4 do Código de Processo Civil e no art. 347º do Código Civil “à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torna-los duvidosos: se o conseguir, é a questão decidida contra a parte onerada com a prova.”
D.- A Ré, ora Recorrente, tem direito de preferir na compra e venda efetuada entre os autores e os intervenientes, nos termos do disposto no artigo 1555.,º, n.º 1 do C.C. Quer a jurisprudência, quer a doutrina largamente dominantes não colocam presentemente qualquer dificuldade ou objecção a tal respeito.
E.- De acordo com o disposto no art. 1555º do C. Civil o proprietário do prédio onerado com a servidão legal de passagem tem direito de preferência na venda do prédio dominante:
F.- São pressupostos essenciais:
1) que o prédio do proprietário preferente esteja onerado com servidão legal de passagem, ou seja, sujeito ao regime de servidão imposta por lei, ao abrigo do regime do art.º 1550.º do Cód. Civil; e
2) que a servidão de passagem esteja constituída, isto é, não bastará a situação de encrave e a possibilidade de exercício do direito de exigir a passagem; tem de haver já um título que legitima a passagem sobre o prédio do preferente para acesso ao prédio alienado.
G.- Quando a Ré, ora Recorrente, e seus antecessores, proprietários do prédio serviente, não se oposeram a que se constituísse a favor dos prédios confrontantes, que não tinham comunicação com a via pública, uma servidão de passagem a pé, permitiram que a servidão legal de passagem se constituísse por usucapião (nos termos descritos nos pontos provados da matéria de facto, tal como a douta sentença veio a reconhecer o direito de servidão de passagem).
H.- Na previsão do art. 1555º/1 cabe, como título constitutivo, a usucapião.
I.- Pelo que o pedido de reconhecimento de tal direito e os demais consequentes devem proceder.”

Os Autores responderam, apresentando as seguintes
conclusões:

a) - De todos os elementos constantes dos autos resulta claro que se trata de um caminho carral e não apenas pedonal.
b) - A A. T. P. e as testemunhas M. T., A. F., Manuel, B. B. e M. B. demonstraram ter um conhecimento aprofundado do local e das características do mesmo, explicando de forma detalhada e coerente que o uso do caminho era feito por carros de animais, tratores e reboques, precisamente para aceder a terras agrícolas.
c) - Em função das regras da experiência comum e da evolução dos meios de transporte, o uso do caminho antes seria feito apenas a pé, depois apenas de máquinas agrícolas e mais recentemente de veículos automóveis.
d) - Para que se considere que a servidão é carral não é necessário ser maioritário o trânsito de veículos.
e) - Do depoimento da testemunha J. S., analisadas como um todo, permitem facilmente concluir pela impossibilidade de aparcamento do autocarro. f) - A testemunha A. S. demonstrou uma total falta de conhecimento da matéria referente ao ponto b) dos factos não provados, não sabendo localizar temporalmente a colocação da calceta nem sequer o responsável por tal colocação.
g) - A factura junta pela Recorrente foi impugnada pelos Recorridos, não constituindo tal documento prova legal plena.
h) - No que respeita à matéria de direito, a interpretação que a Recorrente faz do artigo 1555° do Código Civil não deve colher e não é a que melhor se adequa ao caso presente.
i) - Conjugando o disposto nos artigos 1547° e 1555°, n.º 1 do Código Civil, deve concluir-se que a servidão de passagem adquirida por usucapião não tem a natureza de servidão legal, pelo que, em caso de compra e venda do prédio dominante, os proprietários do prédio serviente não são titulares de direito de preferência.
j) - O facto de a servidão de passagem beneficiar um prédio encravado não tem a virtualidade de lhe atribuir natureza legal.
k) - Na servidão de passagem adquirida por usucapião, a passagem faz-se através da faixa de terreno possuída e que é revelada por sinais visíveis e permanentes e não pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados, como sucede na servidão legal.
1) - As servidões constituídas por usucapião criam um direito de passagem ex novo por ser a usucapião um modo de aquisição originária, nada tendo a ver com o exercício do direito potestativo conferido pelo artigo 1550º do Código Civil.
m) - A constituição da servidão legal prevista nos artigos 15500 a 15560 do Código Civil está sujeita a um conjunto específico de regras, tais como as decorrentes do artigo 13530, as quais não são aplicáveis às servidões constituídas por usucapião.
n) - Não está demonstrado nos autos que os AA. tivessem o direito potestativo de exigir a constituição daquela servidão em concreto.
o) - Não ficou demonstrado que o prédio da R. é aquele que sofre menos prejuízo com a constituição da passagem, nem que aquele local em concreto seja o menos inconveniente para o prédio onerado.
p) - Os princípios gerais, tais como o da livre disponibilidade dos bens e o da igualdade, com expressão constitucional, são contrários à proliferação de direitos de preferência legais; as competentes normas devem, assim, ser interpretadas de modo não extensivo, nunca se alargando por analogia.
q) - A preferência legal visa pôr cobro a situações em que, potestivamente, se constituem servidões contra a vontade alheia ou em que, sob a iminência do recurso a Tribunal, se alcance o acordo alheio.
r) - Tal 'ratio' não opera por natureza perante servidões constituídas por usucapião.
s) - A interpretação das normas aplicáveis por parte do Tribunal a quo mostra-se correcta e a mais adequada ao caso concreto e tem sustentação jurisprudencial e doutrinária.
t) - Resulta dos pontos 10 a 12 dos factos provados que em mais de 70 anos a passagem foi utilizada diariamente de forma totalmente pacífica.
u) - Estamos perante uma servidão que desde tempos imemoriais foi aceite voluntariamente pelos sucessivos proprietários do prédio serviente.
v) - Ao vir defender que lhe assiste um direito de preferência na compra dos prédios dominantes, utilizando para tal o argumento de que a servidão existente lhe poderia ser judicialmente imposta, a Recorrente excede manifestamente os limites da boa-fé.
w) - Vir alegar que aquela servidão podia ser constituída contra a sua vontade, quando a postura assumida pela própria R. e pelos seus antecessores durante mais de 70 anos foi de livre aceitação da servidão, configura uma situação de venire contra factum proprium.
x) - O caminho objecto dos autos encontra-se totalmente delimitado em relação ao prédio da R., o que se verifica há mais de 70 anos, conforme resulta do ponto 10 dos factos provados.
y) - Numa planta topográfica elaborada a pedido da própria R., a passagem objecto dos autos é identificada como caminho de consortes e mostra-se perfeitamente delimitada em relação ao prédio da R, ou seja esta última não considera a passagem objecto dos autos parte integrante do seu prédio - doc. 1.
z) - Ou seja, a passagem nunca foi inconveniente ou incómoda para a R. e antepossuidores.
aa) - Ao invocar o direito de preferência, a R. pretende, à custa do direito de propriedade dos AA. sobre os seus prédios, livrar-se de um ónus que nunca lhe causou transtorno ou prejuízo, excedendo assim manifestamente o fim económico do direito por si invocado.
ab) - Ainda que prevalecesse a interpretação defendida pela Recorrente, o que não se concebe, deveria em todo o caso ser julgada improcedente a sua pretensão, com fundamento em abuso de direito, nos termos do artigo 334º do Código Civil, o que expressamente se invoca”.

II - Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas forem de conhecimento oficioso ou se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Face ao teor das alegações e contra-alegações, são as seguintes as questões que importa apreciar:
-A- Se deve ser alterada a matéria de facto e por via disso considerar-se que a servidão é apenas de pé posto;
-B- Se se pode considerar que existe direito legal de preferência do titular do prédio serviente em relação à venda do prédio dominante, no caso em que a servidão de passagem se mostra constituída por usucapião e se mostram verificados os requisitos da constituição de uma servidão legal de passagem.
-C- Se se verificam abuso de direito por parte da titular do direito de preferência

III - Fundamentação de Facto

Factos provados:

É a seguinte a matéria que se deu como provada na sentença em recurso:
1. O 1.º Autor é dono e legitimo possuidor do prédio rústico sito no Lugar ..., da freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º ....
2. O 2.º Autor é dono e legitimo possuidor do prédio rústico sito no Lugar ..., da freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º ....
3. O 3.º Autor é dono e legitimo possuidor do prédio rústico sito no Lugar ..., da freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na matriz sob o artigo ... e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º ....
4. O 2.º e 3.º Autores são ainda co-donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito na Rua ... ..., n.º …, da freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º ….
5. O 4.º e 5.º Autores são donos e legítimos possuidores do prédio rústico, sito no Lugar ..., da freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.os ….
6. Ainda, são os 4.º e 5.º Autores donos e legítimos possuidores do prédio rústico, sito no Lugar ..., da freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na matriz sob o artigo ….
7. Já a Ré é dono e legitima possuidora do prédio misto sito na Rua ... ..., da freguesia de ..., concelho de Barcelos, inscrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos, sob o n.º …, composto por casa de 2 pisos com logradouro e cultura, ramada e fruteiras, com natureza urbana e rústica, e inscrito na matriz predial sob os n.º … (natureza urbana) e .. (natureza rustica, correspondente à descrição “cultura, ramada e fruteiras).
8. É parte integrante do referido prédio da ré um caminho, em terra batida, coberto com ramada e que constitui o único meio de acesso dos identificados prédios dos Autores à via pública – à exceção do prédio onde se encontra construído o ginásio, que tem ligação direta com a Estrada Nacional.
9. Tal caminho em questão situa-se a Norte do prédio da Ré, e tem as dimensões de cerca de 20 metros de comprimento, 3,50 metros de largura e 2,40 metros de altura.
10. O referido caminho já existe há bem mais de 70 anos e sempre foi utilizado pelos anteriores proprietários dos identificados prédios dos autores (com exceção do ginásio) como forma de acesso aos mesmos.
11. Durante tal decurso do tempo, tanto os autores como os anteriores proprietários dos terrenos em causa sempre utilizaram o referido caminho para aceder aos seus prédios, de forma diária, procedendo com intenção de atuar sobre o caminho como titulares de um direito de passagem que lhes assiste.
12. Os autores e os seus antecessores sempre passaram no referido caminho à vista de toda a gente, sem oposição, e convencidos de não estarem a prejudicar alguém.
13. Acesso esse que, desde 2011 é feito, maioritariamente, por veículos ligeiros, para uso do parque de estacionamento existente num dos prédios, sendo que, antes dessa data – e mesmo até na atualidade – o caminho era usado, maioritariamente, por tratores e alfaias agrícolas, para cultivo dos terrenos encravados.
14. Sendo que as dimensões atuais do caminho de servidão dificultam a passagem de todos estes veículos, uma vez que o caminho tem pouca altura – devido à ramada existente – e existe uma estrutura de granito colocada no caminho que diminui a largura do mesmo.
15. No prédio melhor identificado em 4. encontra-se, construído um ginásio, ginásio esse que é frequentado pelo mais variado tipo de utentes, incluindo utentes com mobilidade reduzida, como é o caso dos utentes do Lar e Centro de Dia da Casa do Povo de ... que são transportados para o ginásio através de autocarro (Minibus).
16. O ginásio apenas tem lugar de estacionamento para cerca de 4 veículos ligeiros o que, para além de não ser suficiente para a quantidade de utentes que frequentam o ginásio, não permite, atenta a sua configuração o aparcamento do autocarro que transporta os utentes do Lar e Centro de Dia da Casa do Povo de ....
17. Razão que levou os proprietários do ginásio a adquirir, igualmente, os prédios rústicos a ele adjacentes – prédios identificados nos pontos 1.º, 2.º e 3.º da presente petição inicial – de forma a servirem os mesmos como local de aparcamento para os utentes do ginásio.
18. Uma vez que o caminho de acesso a tais prédios, propriedade da Ré, se encontra coberto com ramada, cuja altura impede que os autocarros que transportam os utentes consigam passar para poder estacionar nos mencionados terrenos propriedade dos 1.º, 2.º e 3.º Autores.
19. O referido caminho termina no último daqueles prédios, no artigo ....
20. As videiras que cobrem este caminho já existem há mais de 70 anos.
21. Antes de ser construído o ginásio existia entre este prédio e o caminho um muro, que foi demolido no decurso das obras de construção do ginásio. Tendo depois a Ré colocado uma rede para dividir os dois prédios.
22. O identificado prédio da ré tem as seguintes confrontações: Norte - H. P. e M. C.; Sul - com caminho de ferro; Nascente - Herdeiros de A. B.; Poente - R. João ... (EN 204).
23. Prédio esse que lhe foi dado pelos seus pais C. A. e D. J., por escritura datada de 26 de janeiro de 1978 e que se encontra registado a seu favor.
24. Este prédio foi sempre cultivado pela Ré/Reconvinte, com produtos agrícolas, limpando-o e pagando impostos sobre o mesmo.
25. A Ré tratava, cultivava, limpava, construía e vigiava este terreno, à vista de toda a gente, de forma continuada, sem oposição de ninguém com a convicção de que estes lhe pertenciam e que não prejudicava ninguém.
26. No dia 21/3/2013, foi celebrado um acordo de compra e venda entre M. B. (como primeira interveniente) e o 4º Autor J. B. (como segundo interveniente) e pela Primeira interveniente foi vendido ao Segundo interveniente, pelo preço de cinquenta euros (50€), que aquela declarou ter recebido, o prédio rústico composto de cultura e videiras em ramada, com a área de 400 m2, descrito sob o nº 111/... da Conservatória do Registo Predial de Barcelos, inscrito no art. ….
27. No dia 26/8/2011 foi celebrado um acordo de compra e venda entre a M. V. (como primeira interveniente) e a 3ª autora M. C. (como segunda interveniente) e pela Primeira interveniente foi vendido à Segunda, pelo preço de seis mil e quinhentos euros (6.500€), que aquela declarou já ter recebido, o prédio rústico, de cultura e ramada, com a área de 971m2, descrito sob o nº .../... da Conservatória do Registo Predial de Barcelos, inscrito no art. ....
28. No dia 26/12/2017, foi celebrada escritura pública de compra e venda em que se apresentaram como primeiros outorgantes os 2ª, 3ºs, 4ª, 5ºs, 6ª, 7ºs e 8ª intervenientes e como segundo outorgante o 2º Autor H. P. e pelos primeiros outorgantes C. F., R. M., M. F., José, M. E., S. F. e Maria declararam que vendiam ao segundo outorgante, tendo este declarado que aceitava a compra, pelo preço de dois mil e quinhentos euros (2.500€), que aqueles declararam já terem recebido, o prédio rústico, de cultura e ramada, com a área de 500m2, descrito sob o nº .../... da Conservatória do Registo Predial de Barcelos, inscrito no art. ....
29. No dia 24/4/2014 foi celebrada escritura de compra e venda em que se apresentou como primeira outorgante, a 11ª interveniente C. Imobiliária, e como segunda outorgante a 1ª Autora e a primeira outorgante C. – Imobiliária, S.A. declarou que vende à segunda, tendo esta declarado que aceita a compra, pelo preço de três mil quinhentos euros (3.500€). recebido, o prédio rústico de lavradio, com a área de 450 m2, descrito sob o nº .../... da Conservatória do Registo Predial de Barcelos, inscrito no art. ....
*
Factos não provados

a). Que o referido caminho em causa desde tempos imemoriais sempre foi usado pelo público que ali pretendia passar.
b) Que em Agosto de 2008, a Ré/ Reconvinte tenha mandado colocar calceta no início deste caminho, junto à Estrada Nacional.

IV - Fundamentação de Facto e de Direito

A- Da impugnação da matéria de facto

--- A.1 Da Impugnação da matéria de facto com fundamento em diferente juízo das provas sujeitas à livre apreciação

Para que possa ser apreciada a razão do Recorrente quanto à decisão tomada na sentença sobre a matéria de facto com fundamento em diferente juízo das provas sujeitas à livre apreciação (1), porque aqui vigora de forma premente o princípio do dispositivo, importa que sejam cumpridos os ónus previsto no artigo 640º do Código de Processo Civil, que os factos impugnados pelo Recorrente tenham alguma relevância na apreciação da causa e ainda que não seja evidente que da total procedência da pretensão do impugnante não resultarão contradições dentro da fundamentação de facto.
Estes requisitos são de conhecimento oficioso.
Visto que foram suficientemente cumpridos os ónus supra aludidos, por parte da Recorrente, importa salientar, porque tem relevo para este caso, que os factos irrelevantes para a decisão da causa não devem ser reanalisados em sede de recurso.

A.1.a) Do não conhecimento da impugnação de factos irrelevantes para a decisão da causa

Encontra-se prevista no artigo 130º do Código de Processo Civil a proibição da prática de atos inúteis e nos termos do artigo 7º nº 1 deste diploma, “na condução e intervenção no processo, devem os magistrados”.., concorrer “para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”. Mesmo que se entenda (como se entende) que se deve dar prevalência à justiça material sobre uma mera justiça formal (sem esquecer que para tanto importa respeitar as regras processuais, ainda que lidas com flexibilidade, porque sem respeito pelas mesmas tal não será possível), há sempre que ter em conta que importa obter uma tempestiva aplicação da justiça, sob pena da mesma não ter eficácia razoável. Ora, só a aplicação racional dos meios e esforços de todos os intervenientes processuais permite essa eficiência.
Assim, é mister não desperdiçar tempo e meios na apreciação de factos que não importam para a solução justa do litígio ou que por si só, são insuscetíveis de alterar a decisão dada pela 1ª instância.
Neste sentido já se encontra muita jurisprudência, citando-se, por muito expressivo e com enunciação de muitos arestos, o Acórdão desta Relação de 06/28/2018, no processo 2476/16.5T8BRG.G1, em que consta sumariado: “Por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil (arts. 2º, n.º 1 e 130º, ambos do C.P.C.).”
Entre estes casos, logo saltam à vista aqueles que consistem na impugnação de factos que são totalmente irrelevantes para a decisão da causa ou o aditamento de outros que também nada interessam para tal efeito.
Não se diga que a manutenção de factos provados numa sentença que não correspondem à verdade sempre poderia prejudicar a parte em processos posteriores. Não é assim, porquanto “Os fundamentos de facto não assumem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado”, como se menciona no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de 10/11/2016, no processo 2560/10.9TBPBL.C1, na esteira da melhor doutrina e ampla jurisprudência. (2)

A.1.b) Critérios da apreciação

Ainda antes de se poder passar de imediato à analise das questões de facto em debate, há que mencionar os critérios a atender para a apreciação da impugnação da matéria de facto, dado que a Recorrente foca a sua atenção nesta questão com particular acuidade.
Na reapreciação dos meios de prova deve-se assegurar o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância -, efetuando-se uma análise crítica das provas produzidas.
É à luz desta ideia que deve ser lido o disposto no artigo 662º nº 1 do Código de Processo Civil, o qual exige que a Relação faça nova apreciação da matéria de facto impugnada.
É patente que a falta da imediação de que padece o tribunal de recurso pode limitar o acesso a uma mais profunda apreciação da convicção com que são proferidas as declarações dos intervenientes processuais (veja-se que a comunicação humana não é apenas verbal, exigindo a sua correta interpretação que as palavras e inflexões da voz sejam contextualizados com os gestos, a postura corporal, os olhares, todos estes demais elementos, consistentes na comunicação não verbal e tantas vezes afastadas da possibilidade de controlo do declarante e por isso mais fidedignas). O mesmo pode acontecer quando ocorre uma inspeção ao local, como a que teve lugar nestes autos.
No entanto, como explanado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-10-2012, no processo 649/04.2TBPDL.L1.S1, (sendo este e todos os acórdãos citados sem menção de fonte consultados no portal www.dgsi.pt) “A reapreciação das provas que a lei impõe ao Tribunal da Relação no art. 712.º, n.º 2, do CPC, quando haja impugnação da matéria de facto que haja sido registada, implica que o tribunal de recurso, ponderando as razões de facto expostas pelos recorrentes em confronto com as razões de facto consideradas na decisão, forme a sua prudente convicção que pode coincidir ou não com a convicção do tribunal recorrido (art. 655.º, n.º 1, do CPC).
A reapreciação da prova não se reduz a um controlo formal sobre a forma como o Tribunal de 1.ª instância justificou a sua convicção sobre as provas que livremente apreciou, evidenciada pelos termos em que está elaborada a motivação das respostas sobre a matéria de facto.”
Visto que vigora também neste tribunal o princípio da livre apreciação da prova, há que mencionar que esta não se confunde com a íntima convicção do julgador.
A mesma impõe uma análise racional e fundamentada dos elementos probatórios produzidos, que estes sejam valorados tendo em conta critérios de bom senso, razoabilidade e sensatez, recorrendo às regras da experiência e aos parâmetros do homem médio.
A formação da convicção não se funda na certeza absoluta quanto à ocorrência ou não ocorrência de um facto, em regra impossível de alcançar, por ser sempre possível equacionar acontecimento, mesmo que muito improvável, que ponha em causa tal asserção, havendo sempre a possibilidade de duvidar de qualquer facto.
“Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz – meio da apreensão e não critério da apreensão – a ideia de que mais do que ser possível (pois não é por haver a possibilidade de um facto ter ocorrido que se segue que ele ocorreu necessariamente) e verosímil (porque podem sempre ocorrer factos inverosímeis), o facto possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.” cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-06-2014 no processo 1040/12.2TBLSD-C.P1.
A convicção do julgador é obtida em concreto, face a toda a prova produzida, com recurso ao bom senso, às regras da experiência, quer da vida real, quer da vida judiciária, à diferente credibilidade de cada elemento de prova, à procura das razões que conduziram à omissão de apresentação de determinados elementos que a parte poderia apresentar com facilidade, a dificuldade na apreciação da prova por declarações e a fragilidade deste meio de prova.
Igualmente importa a “acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.” (mesmo Acórdão).
A.1.c) Concretização

Tudo isto dito, podemos apreciar em concreto a impugnação da matéria de facto objeto destes autos.
Pretende a Ré que de alterem os pontos 13, 14 e 18 da matéria de facto não provada (que deverão ser não provados) e a alínea b) da matéria de facto não provada (que pretende que se dê como não provada).
Quanto ao ponto 13 (“Acesso esse que, desde 2011 é feito, maioritariamente, por veículos ligeiros, para uso do parque de estacionamento existente num dos prédios, sendo que, antes dessa data – e mesmo até na atualidade – o caminho era usado, maioritariamente, por tratores e alfaias agrícolas, para cultivo dos terrenos encravados”), após reproduzir a sentença, critica o relevo dado à largura do caminho como indício da circulação de carros, por a mesma depender da largura da ramada. Não conseguimos concordar com esta afirmação: a largura de um caminho é sempre significativa para se determinar se o mesmo é apenas de pé ou também para veículos de quatro rodas, existam ou não ramadas, já que os pés das mesmas não têm obrigatoriamente que coincidir com as margens do caminho, por nada impedir que os respetivos pés estejam bem para além dele.

Por outro lado, é a própria Ré que salienta nas alegações as testemunhas que referem que por ali também se transitava com veículos:
- a testemunha T. P. coloca a par as duas formas de circulação “Entravamos com o trator, a pé, saímos para..”, referindo também a circulação com carros de animais, no tempo em que não tinham tratores.
- a testemunha M. T., que passa lá todos os anos com trator e reboque.

Assim, embora se tenha provado que atualmente o acesso é feito por veículos ligeiros, para uso do parque de estacionamento existente num dos prédios, tratores e alfaias agrícolas, não se provou que há 70 anos o caminho era apenas feito a pé, antes pelo contrário, o que decorre também da sua largura, que não se terá alterado com o tempo, como salientou a testemunha T. P.. Também o relatório pericial, com a junção de fotografias do Google Earth de 2003 a 2019 salienta como o mesmo se manteve sempre inalterado nesse período. Assim, há que se considerar que a passagem no local de carro era possível e ocorria.
O ponto 14 (“Sendo que as dimensões atuais do caminho de servidão dificultam a passagem de todos estes veículos, uma vez que o caminho tem pouca altura – devido à ramada existente – e existe uma estrutura de granito colocada no caminho que diminui a largura do mesmo”) tem o seu sustento nas fotografias retiradas no local, juntas à ata de audiência final e bem assim com o relatório pericial, onde se vê a sua estrutura; a dificuldade que a mesma causa ao acesso foi explicada pela Autora de forma credível. Assim, também este facto se mantém como provado.
Por fim, pretende a Ré que se dê como provado que mandou colocar a calceta no início do caminho. Tal foi alegado para a prova do seu direito de propriedade, o qual foi reconhecido e não tem qualquer outro interesse nos autos. Mostra-se, assim, despiciendo discutir se este facto se devia ou não dar como provado, atenta a sua total falta de interesse para a descoberta da solução a dar aos autos, pelo que se rejeita a impugnação da matéria de facto, quanto a esta alínea.
De qualquer modo, o facto em causa foi impugnado (artigo 20º da réplica) e o documento que a Recorrente entende que se não deve considerar impugnado e que o demonstraria não se coaduna com o mesmo: foi invocado que “em agosto de 2008, a Ré/ Reconvinte mandou colocar calceta no início deste caminho, junto à Estrada Nacional”, mas o documento data de 2011 e foi emitido a favor de A. L., cuja relação com os autos não se consegue descortinar.
A única testemunha invocada pela Recorrente que referiu algum aspeto que poderia eventualmente relacionar-se com esta matéria fê-lo de um modo tão abstrato que não é possível com um mínimo de segurança saber, sequer, se se refere à colocação de calceta: A. S.. A referência que este faz a pequenas pedras não coincide com a fotografia da entrada, em que se observam colocadas pedras muito maiores que as da calçada portuguesa, em granito. Por outro lado, a fatura junta, atenta a sua falta de coordenação com o invocado quanto à data e a pessoa a quem foi emitida, não permite que, com alguma segurança, se possa dar este facto como seguro: sempre improcederia, também, nesta parte, a impugnação.
De todo o exposto resulta que improcede a impugnação da matéria de facto apresentada pela Recorrente e em consequência a alteração do tipo de circulação que nele se pode fazer.

Aplicação do Direito aos factos apurados

-B- Se se pode considerar que existe direito legal de preferência do titular do prédio serviente em relação à venda do prédio dominante, no caso em que a servidão de passagem se mostra constituída por usucapião e se mostram verificados os requisitos da constituição de um serviço legal de passagem.

B.1- Do direito de preferência

Diz-se preferência real (ou direito de preferência com eficácia real) a afetação jurídica de uma coisa em termos de, sendo um direito a ela relativo transmitido a título oneroso, poder ser adquirido, em detrimento do projetado adquirente, pelo preço com este ajustado, por uma pessoa individualmente considerada. (3)
Ao titular do direito de preferência caberá, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 342º do Código Civil, enquanto autor de uma ação de preferência, fazer prova dos factos dos quais dependa a existência do seu direito. Igualmente lhe incumbe fazer o depósito do preço, condição também sine qua non para a procedência do pedido (artigo 1410º, n.º 1, parte final, do Código Civil).
(Resulta do disposto no nº 2 do citado artigo 342º do Código Civil que não impende sobre o preferente o ónus de provar a falta de comunicação a que se reporta o nº 1 do artigo 416º do Código Civil. Cabe sim, à parte contrária o dever de provar que cumpriu tal obrigação e que, portanto, se extinguiu o direito do preferente, nos termos do nº 2 da agora citada norma - o não exercício do respetivo direito nos oito dias subsequentes á comunicação para preferir, a que se reporta o citado artigo 1410º n.º 1 do Código Civil, constitui facto extintivo do direito. Também o ónus da prova dos factos que fundamentariam a caducidade da ação, por ter sido instaurada depois do decurso do prazo de seis meses, sobre o conhecimento os elementos essenciais da aquisição, cabe ao adquirente.)
São várias as situações que dão origem ao direito de preferência.
Importa aqui a invocada pela Ré, ora Recorrente: a existência de uma servidão legal de passagem imposta num seu prédio a favor dos prédios onerosamente transmitidos aos Autores.
A atribuição do direito de preferência nestes casos encontra-se prevista no artigo 1555º n.º 1 do Código Civil: “O titular do prédio onerado com a servidão legal de passagem, qualquer que tenha sido o título constitutivo, tem direito de preferência no caso de venda, dação em cumprimento ou aforamento do prédio dominante”.
Vejamos a questão após análise do que se pode entender como uma servidão legal e o que se visa salvaguardar com as servidões a favor de prédios encravados, o que nos permitirá, depois, perceber o direito de preferência de que beneficia o titular do prédio serviente.

B.2- Da servidão de passagem do prédio encravado.

"Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia", dispõe o artigo 1543º do Código Civil.
Tem sido salientado, face a esta noção, que a servidão é um encargo, o qual recai sobre um prédio; aproveita exclusivamente a outro prédio; os prédios têm de pertencer a donos diferentes (Pires de Lima e Antunes Varela, "CC Anotado", vol. III, 2ª ed. Ver, p. 613).
O titular de um prédio encravado tem o direito potestativo de exigir a constituição uma servidão de passagem sobre um prédio vizinho, de forma a obter o acesso à via pública, caso não tenha qualquer acesso (encrave absoluto) ou não tenha um acesso suficiente (encrave relativo, tendo em atenção as necessidade da exploração do prédio dominante), ou, ainda, não tenha condições que permitam estabelecer esse acesso sem excessivo incómodo ou dispêndio (quando o estabelecimento de uma passagem é materialmente possível, mas o seu custo ou o prejuízo que causa é exorbitante face aos rendimento ou benefícios que é possível retirar do prédio), diz-nos o artigo 1550º, nºs 1 e 2 do Código Civil.
Embora o nº 1 deste artigo pareça sujeitar à constituição da servidão de passagem apenas os prédios rústicos, há que ler esta norma em conjunto com o nº 1 do artigo 1551º do Código Civil que impõe tal encargo de ceder passagem também para as quintas muradas, quintais, jardins e terreiros adjacentes aos “prédios urbanos”.
Pretende-se, com a constituição de servidão legal de passagem, que não exista nenhum prédio que não seja acessível, de forma a que o seu proprietário possa usufruir das suas naturais vantagens, porquanto importa ao Direito que não exista o desperdício de bens e utilidades.
No entanto, tendo em conta que tal acesso se faz com detrimento do proprietário do prédio serviente, esta restrição tem que estar limitada ao estritamente necessário para a satisfação das “necessidades normais e previsíveis do prédio dominante, com o menor prejuízo para o prédio serviente” (artigo 1565º nº 2 do Código Civil). Por outro lado, podendo estabelecer-se o acesso do prédio encravado à via pública por mais do que um dos prédios vizinhos, apenas deve ser onerado o que sofrer menor prejuízo, bem como pelo modo e lugar que cause menor inconveniente ao prédio serviente (artigo 1553º do Código Civil). Pela constituição da servidão de passagem é devida a indemnização correspondente ao prejuízo sofrido (artigo 1554º do Código Civil).
O artigo 1547º, nº 1 Código Civil explana que as servidões podem ser estabelecidas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família e lei prevê, quanto às servidões legais, no nº 2, que “na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos”.
Assim, visto que a lei admite expressamente a constituição voluntária de servidões legais, tem-se entendido que “A servidão legal é a faculdade (direito potestativo) de, verificados certos requisitos objetivos, constituir coercivamente uma servidão e de, posteriormente, manter esse encargo, não perdendo a natureza legal pelo facto de poder ser constituída voluntariamente, mas assistindo sempre ao respetivo sujeito ativo a faculdade de, coercivamente, impor a constituição da servidão”. (4)
"A constituição coativa ou coerciva das servidões é própria das servidões legais, o que não significa, como logo se deixa ver da simples leitura do nº 2 do artigo 1547º, a exclusão da possibilidade de, em relação a elas, se verificar a constituição voluntária" (5)
Admite-se que a referência no nº 2 da citada norma à constituição voluntária das servidões não foi efetuada em sentido rigoroso, visto que abarca toda e qualquer das formas de constituição das demais servidões, previstas no nº 1 deste preceito. (6)
Desta forma, defende-se que “o decisivo critério diferenciador entre servidões legais e voluntárias reside exclusivamente na circunstância de as primeiras, ao invés do que acontece com as últimas, poderem ser impostas coativamente, sendo que a circunstância destas não terem sido impostas coercivamente, por terem os donos dos prédios servientes aceite voluntariamente a inerente sujeição, não perdem essa natureza.” (7)
Podem, pois, constituir-se servidões legais por usucapião, tanto mais que fundamento natural destas é a não oposição do titular do prédio serviente à sua constituição por saber que o proprietário do prédio encravado poderia obter por via litigiosa o mesmo efeito, embora, fazendo-o, esteja, por natureza, a prescindir da correspondente indemnização.
Esta posição, embora maioritária na doutrina (8) e na jurisprudência, não é pacífica e não foi a seguida na sentença em recurso. Na doutrina, encontramos António Menezes Cordeiro ("Servidão legal de passagem e direito de preferência", na Revista da Ordem dos Advogados, 50º, 1990, III, pp. 574 e ss., e Parecer de 8.8.88, na CJ, 1992, 1º-63), defendendo posição contrária, fundando-se na natureza não consensual da usucapião, mas, como vimos, entende-se que a referência às servidões voluntárias efetuada no nº 2 do artigo 1547º do Código Civil, que dispõe sobre o modo como se podem constituir as servidões legais, se deve efetuar numa perspetiva histórica, significando, como significava no anterior código, que tinham como fonte ato humano. Com efeito, dizia o artigo 2271º do Código Civil de 1867 “As servidões podem ser constituídas por facto do homem, ou pela natureza das cousas, ou pela lei”, que a doutrina classificava como servidões voluntárias ("por facto do homem"), naturais ("pela natureza das coisas") e legais ("pela lei"). (9)
É certo que, como fundamenta a sentença, as servidões constituídas por usucapião criam um direito de passagem ex novo por ser a usucapião um modo de aquisição originária, mas tal não significa que não possam também ser consideradas legais, exista o necessário encrave que justifica a sua criação. Com efeito, também nas servidões de passagem constituídas por contrato, em caso de prédio encravado, a passagem pode não ser concedida pelo modo e lugar menos inconveniente para os prédios onerados (nomeadamente por ser mais conveniente para o dono do prédio dominante que o reflete no preço), não deixando por isso, face ao artigo 1457º nº 2 do Código Civil, de ser considerada legal, por se verificarem os pressupostos que permitem impor uma servidão legal.

B.3- Do direito de preferência de que beneficia o titular do prédio serviente.

Visto que a servidão de passagem é um ónus que incide sobre um prédio impedindo que deste se retirem todas as suas vantagens, obrigando-se o caminho a ficar livre, de modo a permitir que por ele se aceda a outros prédios, entende a lei que há toda a utilidade em terminar-se com tal situação, acabando com a situação de encrave com a reunião nos prédios dominantes ao serviente, mediante a possibilidade de se conceder ao titular deste último a possibilidade de preferir aquando da venda, dação em cumprimento ou aforamento dos prédios privados do necessário acesso.
No entanto, é pacífico entre a doutrina e a jurisprudência, até porque tal decorre límpido do artigo 1555º n.º 1 do Código Civil, que o direito de preferência só opera se a servidão estiver já constituída, porquanto esta norma pressupõe que já exista um título constitutivo – “qualquer que tenha sido o título constitutivo” - não bastando que se verifiquem os pressupostos da servidão legal de passagem.
“O art. 1555.º do CC faz depender o direito de preferência na alienação do prédio encravado de dois pressupostos essenciais: a) que o prédio do proprietário preferente esteja onerado com servidão legal de passagem, ou seja, sujeito ao regime de servidão imposta por lei, ao abrigo do regime do artigo 1550.º do CC; e, b) que a servidão de passagem esteja constituída, isto é, não bastará a situação de encrave e a possibilidade de exercício do direito de exigir a passagem; tem de haver já um título que legitime a passagem sobre o prédio do preferente para acesso ao prédio alienado.” (10)
A tanto conduz a interpretação semântica (veja-se a letra da lei que se refere á prévia constituição da servidão “qualquer que tenha sido o título constitutivo”), pragmática (o direito que permite preferir numa venda tem que já estar constituído á data dessa venda, não podendo atribuir-se esse direito retroativamente) e sistemática (só desta forma se podem proteger as legítimas expetativas, quer do comprador, que não pode ser confrontado com um direito que não existia á data da compra, quer do vendedor, que tem que ter um titular do direito constituído para poder saber a quem deve conceder a possibilidade de exercer a preferência).
Assim, as razões que justificam a existência do direito de preferência levam a que se considere que o titular do prédio serviente goza do direito de preferência na transmissão por venda ou dação em pagamento do prédio dominante mesmo no caso em que a servidão de passagem de que beneficia o prédio encravado tenha sido constituída por usucapião.
Sendo certo que esta limitação ao direito de propriedade é muito pesada a jurisprudência tem encontrado formas de a aligeirar, apenas admitindo o exercício do direito de preferência quando, através dele, se extingue totalmente o encargo que onera o prédio serviente. (11)
Tem sido quase unânime (retirando dois acórdãos mais antigos) a posição do Supremo Tribunal de Justiça sobre a constituição do direito de preferência a favor do proprietário do prédio sujeito ao regime de servidão imposta por lei, mas constituído por usucapião, ao abrigo do regime do artigo 1550.º do Código Civil.
E fundam-se para tanto na letra da lei, visto que na norma que fixa o direito de preferência na alienação do prédio encravado se estipula que lhe dá origem a servidão legal de passagem qualquer que seja o título constitutivo.
Esta posição, embora maioritária no Supremo Tribunal de Justiça e unânime se olharmos para as últimas duas décadas (12), bem como na doutrina, não é totalmente pacífica, como vimos, quanto à constituição das servidões legais (que já discutimos supra), quer quanto ao âmbito do direito legal de preferência. Veja-se que este afeta significativamente o poder de disposição que integra o direito de propriedade do prédio dominante, já que retira ao proprietário o direito de escolha do outro contraente.
São razões de interesse público que se sobrepõem a essa liberdade de escolha, com vista à melhor utilização da propriedade e que “A verdade, todavia, é que essas razões de interesse público acabam, em regra, por se reconduzir à proteção da mesma plenitude do direito de propriedade, considerada, agora, do ponto de vista da situação resultante do ato de alienação” (13) ou, como sintetiza o mesmo tribunal no acórdão que cita “No caso de um prédio encravado, é pois a sua situação de encrave que justifica, primeiro, que se conceda ao seu proprietário o direito de constituir uma servidão de passagem sobre os prédios vizinhos e, depois, caso a servidão se constitua, que se compense os proprietários dos prédios onerados com a possibilidade de provocarem a extinção dessa oneração preferindo na venda do prédio dominante (mas já não na hipótese inversa). Mas é indiferente, neste quadro, o título constitutivo do direito de servidão”.
Entende a sentença, baseando-se na posição de Agostinho Cardoso Gudes (in O exercício do direito de Preferência, publicações Universidade Católica, páginas 152 a 154) que não basta a prova do encrave à data do início da posse do beneficiário, pois é necessário provar também que o proprietário do prédio serviente consentiu na posse para evitar o recurso à constituição coativa da servidão, mas nada na lei nos leva a essa conclusão: basta que o prédio dominante necessite do serviente para poder acesso suficiente à via pública para se considerar que se está perante servidão legal, já constituída e que, em abstrato, se constituiu o poder potestativo de exigir a constituição de uma servidão legal, limitativa da normal utilização do prédio serviente, que justifica o direito de preferir concedido ao titular deste último.

.C- Do abuso de direito

Invocam agora os autores, nas suas contra-alegações, a questão do abuso de direito.
É jurisprudência maioritária que o abuso de direito pode ser objeto de conhecimento oficioso, pelo que a questão ainda deve ser apreciada, apesar de só ter sido agora invocada. (14)
Decorre do artigo 334º do Código Civil a sujeição do exercício de um direito aos “limites impostos pela boa-fé, pelos bons costume ou pelo fim social ou económico desse direito”, exigindo-se, em regra, que o abuso seja manifesto, “clamorosamente ofensivo da justiça”.
Pretende-se evitar que o titular do direito exceda manifestamente as fronteiras que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder, mesmo que o seu comportamento as respeite formalmente.

É também norma chamar á colação o Prof. Baptista Machado, in “Obra dispersa”, vol I, págs. 415 a 418, “o efeito jurídico próprio do instituto só se desencadeia quando se verificam três pressupostos:
1. Uma situação objetiva de confiança; uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura;
2. Um Investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, tome disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos se a confiança legítima vier a ser frustrada;
3. Boa-fé da contraparte que confiou: a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá proteção jurídica quando de boa-fé e tenha agido com cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico”.

Em termos genéricos pode dizer-se que existe abuso do direito sempre que o seu exercício se revela injusto num determinado caso concreto, atentas as circunstâncias ou particularidades da situação. Mas este instituto só opera em casos excecionais, visto que ocorre aquando do exercício de um direito.
Dentro das classificações que a doutrina tem procedido relativamente aos tipos de comportamentos em que se revela esta figura do abuso do direito, realça-se nesta sede, por mais pertinentes, o exceptio doli, em que se encontra um comportamento fraudulento do titular do direito como fonte do mesmo; o venire contra factum proprium, em que, através da prática de atos contraditórios, se frustam as expectativas da contraparte, a qual legitimamente e razoavelmente confiou em comportamentos do titular do direito; a inalegabilidade, que consiste em impedir que uma pessoa se prevaleça da nulidade de um negócio jurídico causada por vício de forma, a supressio que se traduz no não exercício do direito durante um lapso de tempo de tal forma longo e em tais circunstâncias que crie na contraparte a representação de que esse direito não mais será exercido e o exercício em desequilíbrio, quando a vantagem dele resultante para o titular é mínima e desproporcionada face ao sacrifício de outrem.
Tem sido aceite que o abuso do direito na vertente do “venire contra factum proprium” apenas opera se se descobrir que a pessoa impedida de exercer o seu direito teve um comportamento ofensivo do nosso sentido ético-jurídico, clamorosamente oposto aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações entre as partes e que o lesado efetuou, por causa dessa manifestação, um investimento de confiança, fundado na expectativa lícita ou legítima, de que tal exercício não ocorreria.
O abuso de direito na sua vertente de “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole, com a sua conduta, os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio.”, como tão explicitamente se disse escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/19/2017, no processo 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1.
Da mesma forma exige-se também como regra “um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma conduta na base ao factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara”. (15)

C.1-Concretização

Dúvidas não há que se constitui uma servidão de passagem por usucapião: todas as partes estão de acordo sobre isto.
Da mesma forma, face à improcedência da impugnação da matéria de facto provada e não provada, dúvidas não há que a mesma abarca o transito de veículos automóveis, face à manutenção do seu ponto 13.
Igualmente estão as partes de acordo quanto à situação de encrave dos prédios e como esta servidão o resolveu.
Decidida a questão teórica da possibilidade, em abstrato, de se verificar uma servidão legal de passagem constituída por usucapião e sobre ele incidir o inerente direito de preferência, dado que as partes aceitam a necessidade da constituição de uma servidão de passagem caso a mesma não estivesse já constituída por usucapião, apenas importa decidir se no caso concreto se verificam os pressupostos do abuso de direito que afastam, em concreto, o seu exercício pela Ré.
Isto posto, vejamos os elementos de facto que decorrem da sentença que podem inculcar um abuso no exercício do direito por parte da Ré e um investimento de confiança dos recorridos que mereça tutela.

Está assente que:
-- A servidão de passagem concretiza-se num caminho, que é parte do terreno da Ré, mas já existe há 70 anos, em terra batida, coberto por ramada.
-- Foi sempre utilizado pelos anteriores proprietários, como forma de acesso, sem oposição de ninguém e na convicção de não prejudicarem ninguém, existindo já quando a Ré adquiriu o seu prédio, em 1978, por doação.
-- Pelo menos um dos prédios que dele beneficia é utilizado como parque de estacionamento do ginásio, desde 2011, e os restantes prédios foram adquiridos para o mesmo fim, visto que o ginásio apenas tem lugar de estacionamento para cerca de 4 veículos ligeiros, o que, para além de não ser suficiente para a quantidade de utentes que frequentam o ginásio, não permite, atenta a sua configuração, o aparcamento do autocarro que transporta os utentes do Lar e Centro de Dia da Casa do Povo de ....
-- Antes de ser construído o ginásio existia entre este prédio e o caminho um muro, o qual foi demolido no decurso das obras de construção daquele, tendo depois a Ré colocado uma rede para dividir os dois prédios.
É impressivo o período de vida do caminho em causa, de forma estável, delimitado por ramada e que se encontrava separado do restante prédio da Ré por uma parede, a qual, demolida que foi no decurso de obras de construção do ginásio, foi substituído por uma rede.
Ora, este 70 anos de existência de uma caminho de acesso aos prédios, utilizados como estacionamento do ginásio (há cerca de dez anos pelo menos quanto a um deles) delimitado por parede e rede do restante prédio da Ré, colocada por esta, aliás, aquando da construção do ginásio, sem oposição de ninguém, tudo como decorre da matéria de facto provada, são de tal modo longos e demonstram tal estabilidade na sua autonomização em relação ao restante prédio que justificam a crença, também levantada no articulado inicial que o mesmo seria já de domínio público.
Da mesma forma, o longo tempo já decorrido entre a aquisição de alguns dos prédios (2011, 2013, 2014 os três primeiros, sendo só o último em 2017), sem que se tenha sabido de qualquer tentativa de utilizar esta prerrogativa, também é o suficientemente demonstrativo de uma inação que, atentas as especiais circunstâncias do caminho face à sua idade e ao prédio, faz honestamente crer na aceitação da existência da passagem no local para tal delimitado, sem pretensões de lhe pôr fim mediante o exercício do direito de preferir.
O investimento de confiança decorre da própria aquisição dos imóveis para servirem de local de aparcamento para os utentes do ginásio.
Mostra-se, assim, ofensivo do sentimento de justiça que uma situação que dura há mais de 70 anos, aceite pacificamente por todos, traduzido num caminho delimitado, separado por parede e rede do prédio serviente, e com base na qual se fundou a compra de prédios para a criação de um estacionamento para um ginásio, necessário para os seus clientes e aparcamento do autocarro que transporta os utentes do Lar e Centro de Dia da Casa do Povo de ..., seja passível de, de repente, sofrer esta repentina mudança, imprevisível, porque nada no comportamento da Ré o fazia esperar.
Verifica-se, pois, em concreto, a exceção perentória do abuso de direito que impede que possa por esta via exercer o direito de preferência.
Mantém-se, pois, embora com diferente fundamento, a decisão recorrida.

V- Decisão

Por todo o exposto, julga-se a presente apelação improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes (artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil)
Guimarães,

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves


1. Embora o tribunal tenha a obrigação de oficiosamente decidir sobre aspetos da matéria de facto: quando estão em causa “determinadas patologias que afetam a decisão da matéria de facto” (António Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, p. 273), as quais, por isso, escapam a estes requisitos, como infra se aprofundará.
2. Com efeito, nesse sentido se pronunciam ANTUNES VARELA, in Manual de Processo Civil, 1984, p. 697, TEIXEIRA DE SOUSA, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 577, e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2/03/2010,no proc. n.º 690/09.9 (“Os fundamentos de facto, nunca por nunca, formam, por si só, caso julgado, de molde a poderem impor-se extraprocessualmente”) e de 5/5/2005 no processo nº 05B69 (“1. O princípio da eficácia extraprocessual das provas, consagrado no art. 522º, nº 1, do Código de Processo Civil, significa que a prova produzida (depoimentos e arbitramentos) num processo pode ser utilizada contra a mesma pessoa num outro processo, para fundamentar uma nova pretensão, seja da pessoa que requereu a prova, seja de pessoa diferente, mas apoiada no mesmo facto.2. Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objeto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial.3. Transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui.”)
3. António Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Reprint, Lex, Lisboa, 1979, pág. 776
4. Cf Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 12/17/2019, no processo 797/17.9T8OLH.E1.S1
5. Como escreveu Luís A. Carvalho Fernandes a fls. 430-431 das suas "Lições de Direitos Reais", 2ª ed., 1997
6. “Ficam, por conseguinte, como objeto do nº 1 deste artigo 1547º as servidões que o Código de 1867 dizia constituídas por facto do homem e a que alguns autores, sem grande rigor (por causa das servidões nascidas da usucapião), mas por contraste com as servidões legais, chamam servidões voluntárias”, explicam Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, III, 2ª ed rev, p.627.
7. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/02/2012 no processo 1241/07.5TBFIG.C1.S1
8. Entre outros, cf Manuel Henrique Mesquita in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 129º, pág, 187 e segs., Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. III, 2ªed., Coimbra, 1984, pág. 644 e segs.,
9. http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/56e6a79d8275e97180256985002cae5e?OpenDocument (acórdão já cit)
10. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/02/2012, no processo 1241/07.5TBFIG.C1.S1,
11. Cf, entre outros, acórdão de 09/16/2021 no processo de 02/07/2017 no processo 315/19.4T8BGC.G1 e de 02/07/2017 no processo 894/05.3TBCS.L1-1.
12. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/12/1998 no processo 98A1016, (“As servidões legais podem ser constituídas por sentença judicial, por decisão administrativa e voluntariamente, sendo possível, neste caso, a constituição por contrato, por testamento, por usucapião e por destinação do pai de família….III - O direito de preferência concedido no artigo 1555º do C. Civil existe qualquer que tenha sido o título constitutivo da servidão legal de passagem em causa.” citando, no mesmo sentido e época “Supremo Tribunal de Justiça de 15.12.72, BMJ, nº 222-402, de 20.12.74, BMJ, nº 242-294, de 3.12.92, Proc. nº 81543, de 17.11.94, Proc. nº 85789, de 1.2.95, CJSTJ, III, tomo I, p. 60, de 16.1.96, Proc. nº 87824, e de 26.2.98, Proc. nº 780/97 (cfr., também, o acórdão de 2.10.97, Proc. nº 708/97” e contra “os acórdãos do Supremo de 1.2.94, CJ, 1994, tomo I, p. 78, e de 21.2.95, Proc. nº 86291, 1ª secção (também o acórdão da RL de 3.5.74, BMJ, nº 237-300”. Atualmente, no sentido da posiçao ora tomada cf, do Supremo Tribunal de Justiça, acórdãos de 06/24/2010 no processo 2370/04.2.TNVFR.S1, 05/02/2012 no processo 1241/07.5TBFIG.C1.S1, 10/27/2015, no processo 125/04.3TBSAT..C1.S1.
13. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/27/2015 no processo 125/04.3TBSAT..C1.S1. citando entre outros no mesmo sentido o acórdão proferido também pelo Supremo Tribunal de Justiça no processo 1241/07.5TBFIG.C1.S1
14. Na recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça explana-se, no que se segue, que “Sendo a questão do abuso de direito sido inserida nas contra-alegações do recorrido, em diversas passagens da alegação, peça que foi notificada ao recorrente, não foi este surpreendido com qualquer alteração decisória com a qual não podia contar, não havendo decisão-surpresa.”
15. Embora Menezes Cordeiro in Ordem dos Advogados - Artigos Doutrinais - António Menezes Cordeiro - Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, p. 11, ainda esclareça que “que os requisitos descritos se articulam entre si nos termos de um sistema móvel, ou seja, não há entre eles uma hierarquia rígida e sendo a falta de algum deles suprível pela intensidade especial que assumam os restantes”