Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
47892/23.1YIPRT.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – O procedimento de injunção pode ter por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato de valor não superior a € 15.000,00 – a que se refere o artigo 1º do Decreto-Lei nº 269/98, de 01/09 – ou, independentemente do valor da dívida, de obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei nº 62/2013, de 10/05.
2 - A determinação do âmbito de aplicação do procedimento de injunção e da conexa ação declarativa, em que aquele se transmuta em resultado de oposição deduzida, faz-se em função da aferição de pressupostos objetivos e subjetivos definidos nos mencionados diplomas.
3 – A maior ou menor complexidade das questões controvertidas, emergentes da oposição deduzida, não configura um pressuposto autónomo da aplicabilidade das referidas formas processuais.
4 – Não há fundamento legal para limitar o procedimento de injunção aos casos que se entendam ser simples ou excluí-lo perante litígios que se tenham por complexos.
5 – Se o requerimento de injunção se destinar a exigir o cumprimento de obrigação pecuniária decorrente de contrato de valor não superior a € 15.000,00, não se verifica a exceção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. EMP01..., SA, intentou procedimento de injunção contra AA, solicitando a atribuição de força executiva ao requerimento de injunção, no qual peticionou a quantia global de € 12.998,63, sendo € 11.469,75 a título de “capital”, € 79,91 de juros de mora vencidos, € 102,00 de taxa de justiça paga e € 1.346,97 a título de “outras quantias”, alegando, no campo intitulado “exposição dos factos que fundamentam a pretensão”, o seguinte[1]:

«1 - A Requerente é uma sociedade anónima, que tem como objeto a “Importação, exportação, distribuição e representação de produtos, equipamentos e bens de consumo para a indústria e comércio; consultoria e assessoria de empresas, formação profissional, estudos de mercado, serviços de gestão económico-financeira de empresas, exploração de marcas, patentes e desenhos de invenção; prestação de serviços de assistência, reparação, planeamento industrial, controle de qualidade e formação técnica, análise e projetos de viabilidade industrial, e aluguer de máquinas e equipamentos; Atividade de projetos e desenvolvimento de soluções em engenharia civil, eletrotécnica, telecomunicações, som e imagem, ar condicionado e ventilação; Segurança passiva, mecânica, informática; energias alternativas e ambiente. Furos para captação de águas, montagem de bombas. Promoção, gestão e execução de empreendimentos e investimentos industriais, imobiliários e de construção civil e obras públicas, compra e venda de imóveis para revenda e seu arrendamento, administração de imóveis por conta de outrem. Comércio e reparação de veículos automóveis.”.
2 – A Requerente no exercício da sua atividade, forneceu e prestou ao Requerido os bens e serviços melhor descriminados nas faturas seguintes e já na posse do Requerido, concretamente:
2.1. Fatura ...7 de 28/02/2023, no valor de € 5.842,50 (cinco mil oitocentos e quarenta e dois euros e cinquenta cêntimos) com data de vencimento no próprio dia;
2.1. Fatura ...7 de 09/03/2023, no valor de € 5.627,25 (cinco mil seiscentos e vinte e sete euros e vinte e cinco cêntimos) com data de vencimento no próprio dia;
3 – Os produtos fornecidos e serviços prestados estão devidamente descriminados nas respetivas faturas.
4 – Ficou acordado como condição de pagamento: Pronto Pagamento;
5 – Contudo até à presente data, o Requerido não logrou pagar a quantia devida de € 11.469,75 (onze mil quatrocentos e sessenta e nove euros e setenta e cinco cêntimos), apesar de interpelado diversas vezes para o fazer, quer pelo vendedor/funcionário da Requerente, quer por mandatário desta.
6 – Assim, na presente data, o Requerido deve à Requerente a quantia de falta € 11.469,75 (onze mil quatrocentos e sessenta e nove euros e setenta e cinco cêntimos).
7 – Os bens e serviços, constantes e detalhados nas faturas supra referidas, foram recebidos, aceites e feitos seus pelo Requerido, no seu terreno na morada indicada.
8 – Acontece que, até à presente data estas faturas, como já se disse supra, não obstante as várias interpelações, o Requerido ainda não logrou pagar a quantia falta € 11.469,75 (onze mil quatrocentos e sessenta e nove euros e setenta e cinco cêntimos).
9 – À supra mencionada quantia deve ainda acrescer o pagamento dos juros de mora comerciais até efetivo e integral pagamento, somando os vencidos nesta data, a quantia de € 79,91 (setenta e nove euros e noventa e um cêntimos), bem como a quantia de € 1.146,97 mil cento e quarenta e seis euros e noventa e sete cêntimos) a título de penalidade penal, previsto pelas partes no ponto 10.º do contrato de empreitada assinado pelas partes.
10 – Acresce ainda a quantia de € 200,00 (duzentos euros) de despesas de cobrança conforme preceitua o disposto no artigo 7.º do DL 62/2013, bem como o valor de € 102,00 (cento e dois euros) referente à taxa de justiça.
11 – Pelo exposto, nesta data é a Requerente credora do Requerido pela quantia de (€ 11.469,75 + € 79,91 + € 1.146,97 + € 200,00 + € 102,00): € 12.998,63 (doze mil novecentos e noventa e oito euros e sessenta e três cêntimos).
12 – As partes têm legitimidade e o tribunal é o competente, por ser esse o local de pagamento e por isso mesmo resultar do disposto no artigo 774.º do Código Civil e do artigo 71.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
13 – É assim devido à Requerente na presente data, a quantia de € 12.998,63 (doze mil novecentos e noventa e oito euros e sessenta e três cêntimos), a que deve ainda acrescer o pagamento de juros até efetivo e integral pagamento.»
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1.2. Citado, o Réu deduziu oposição, impugnando os factos alegados e alegando, em breve síntese, que a presente injunção carece de fundamento, que se estriba em duas faturas que não têm qualquer correspondência factual com os serviços prestados, que a Autora nunca lhe forneceu orçamento por escrito, que o contrato de empreitada foi celebrado sob a forma verbal, que o valor reclamado é o triplo do valor orçado para a empreitada e que o furo artesiano para captação de água não foi efetuado no local que combinou com o legal representante da demandante, nem corresponde à profundidade do furo que pretendia. Concluiu que «apenas deverá proceder o presente requerimento de injunção nos termos aqui vertidos.»
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1.3. Após exercício do contraditório pela Autora, proferiu-se decisão, que se transcreve na parte relevante:
«Conforme é sabido, a injunção é uma providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações explanadas no art. 1.º do Diploma preambular do DL n.º 269/98 de 01/09 assim como das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo DL n.º 32/2003, de 17/02 e depois DL n.º 62/2013, de 10/05 – cfr. art. 7.º do anexo do DL n.º 269/98, na redação dada pelo art. 8.º do DL n.º 32/2003.
Assim, a regra é a de que a injunção pode ser usada para:
i) exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a €15.000,00 (art. 1.º do Diploma preambular do DL n.º 269/98);
ii) exigir o pagamento efetuados como remuneração de transações comerciais independentemente do valor da divida, que não estejam excluídas legalmente – art. 2.º e 10.º, n.1 do DL n.º 62/2013, de 10/05 (antes no n.º 2 do art. 1.º do DL n.º 32/2003).
Quando, porém, nos termos do disposto no art. 10.º do DL n.º 62/2013:
a) o valor da divida for superior ao valor da metade da alçada da Relação, a dedução da oposição, assim como a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o Tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum.
b) o valor da divida emergente não seja superior ao valor da metade da alçada da Relação, seguem os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.
O DL n.º 62/2013, que transpôs para a ordem jurídica portuguesa nacional a Diretiva n.º 2011/7/EU do PE e do Conselho de 16/02, estabelece medidas contra os atrasos de pagamento nas transações comerciais (art. 1.º do DL n.º 62/2013), excluindo desde logo os contratos celebrados com consumidores, impondo tratar-se de sujeitos contraentes as empresas entre si ou as empresas e entidades públicas, conforme art. 3.º deste diploma que aliás define «transação comercial» como sendo a transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração (alínea b) do art. 3.º) e «montante devido» como sendo o montante em dívida que deveria ter sido pago no prazo indicado no contrato ou na lei, incluindo taxas, direitos ou encargos aplicáveis que constam da fatura.
No caso em apreço, verificamos que o/a requerente pretende o pagamento decorrente/s de contrato/s que identifica no seu requerimento de injunção, na/s qual/ais consta vertida uma dívida que imputa ao requerido.
Porém, o R., na sua oposição alega designadamente que a presente injunção carece de fundamento, que se estriba em duas faturas que não têm qualquer correspondência factual com os serviços prestados; que a requerente nunca lhe forneceu o orçamento por escrito, nem o contrato, que não corresponde ao realizado e fornecido o constante nas faturas, que o furo não foi efetuado no local que combinou com o legal representante da requerente, nem corresponde à profundidade do furo que pretendia.
Ora, conforme se chama a atenção no Ac. do TRL de 24/04/2019, rel. Arlindo Crua (73674/18.4YIPRT.L1-2): - a injunção traduz-se num procedimento ou mecanismo eivado de simplicidade e celeridade, tendo por desiderato subjacente a cobrança simples de dívidas, por forma a “aliviar os Tribunais da massificação decorrente de um exponencial aumento de ações de pequena cobrança de dívidas”, surgindo num quadro de evidente necessidade de melhoramento dum sistema que “estava a permitir uma instrumentalização do poder soberano dos tribunais, transformando-os em agências de cobranças de dívidas, que o legislador criou o procedimento da injunção”; - para a pertinente determinação da forma do processo a aplicar, não basta olhar e ponderar, apenas, se estamos ou não perante o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de contrato de valor não superior a 15.000 €, antes urgindo, igualmente, para além da verificação e preenchimento de tais pressupostos, indagar se o pedido formulado está em consonância com o fim para qual foi estabelecida ou criada a forma processual a que o autor recorreu, bem como ter em atenção e ponderação se o litígio subjacente e natureza do contrato/relação obrigacional em causa implica o conhecimento de questões complexas e carecidas de um desenvolvimento e trato mais exigente, de forma a acautelar os direitos das partes em litígio; - pelo que, apesar do concreto preenchimento dos pressupostos objetivos exigidos para a utilização do procedimento de injunção (…), a complexidade das questões apreciadas podem ilegitimar o uso, por parte do Requerente, do procedimento de injunção.
- a verificação de tal ocorrência configura exceção inominada, obstativa do conhecimento do mérito da causa e determinante de decisão de absolvição da instância, nos quadros dos artigos 577º e 578º, ambos do Cód. De Processo Civil;» (destacados meus).
É de sublinhar que perante escolhida a apresentação de um requerimento de injunção, o requerido vê-se com a alternativa de pagar ou se apresentar defesa no prazo reduzido a 15 dias –art. 12.º e sem qualquer dilação – art. 4.º diploma preambular ao DL n.º 269/98, ao invés do prazo de 30 dias previsto nas ações que seguem a forma de processo comum – art. 569.º do CPC, e por isso apenas sendo compatível ou compaginável com tal requerimento de injunção apresentado também ele com simplicidade prevista no art. 10 do DL 269/98, de 01/09, quando estamos perante uma situação de cobrança de uma dívida para que se criou este meio célere e simples – A. do TRL de 21/01/2016, rel. Teresa Prazeres Pais.
Daí que não baste olhar para o pedido e causa de pedir apresentado pela requerente ponderando se estamos perante o cumprimento de uma obrigação pecuniária emergente de contrato de valor não superior a €15.000,00, mas quando como é o caso a oposição traz a lume um conflito que não se resume à aparente simplicidade vertida no requerimento de injunção com o qual se visa obter pagamento duma quantia pecuniária e indagar se, conforme se chama à atenção no Ac. do TRL de 14/05/2020, rel. Gabriela Marques, «indagar se o pedido formulado está em consonância com o fim para qual foi estabelecida ou criada a forma processual a que o autor recorreu, bem como ter em atenção e ponderação se o litígio subjacente e natureza do contrato/ relação obrigacional em causa implica o conhecimento de questões complexas e carecidas de um desenvolvimento e trato mais exigente, de forma a acautelar os direitos das partes em litigio.», não esquecendo, conforme se alinha no Ac. do STJ de 14/02/2012, Salazar Casanova, que «é fruto da responsabilidade do requerente da injunção quando decide iniciar um procedimento de injunção para o qual não lhe assistia direito a obtê-la, podendo mesmo considerar-se que, a não se obviar pela assinalada absolvição da instância, se contribui para aumentar o risco de os credores procurarem obter títulos executivos por via de injunção, aproveitando-se do facto de o controlo não ser exercido jurisdicionalmente, apesar de saberem que o crédito invocado não lhes permitia o recurso à injunção.».
Em face do exposto, e considerando que com o requerimento inicial apresentado, a A. pretende o pagamento de quantia/s reclamada/s com o fundamento em contrato de empreitada, e, por outra parte visto o teor da oposição apresentada em que, é posta em crise a celebração do contrato com a requerente, que desconhece o contrato, bem como o orçamento que nunca lhe foram disponibilizados, que as faturas em causa não têm qualquer correspondência factual com os serviços prestados, que os serviços prestados não correspondem aos valores em causa, e que o furo da água nem tem a profundidade pretendida, nem a localização pretendida e solicitada pelo requerido, dúvidas não pode haver que não estamos perante uma ação simples mas, se prosseguisse, a discutir o próprio contrato e o feixe das obrigações dali decorrentes.
Permitindo que os autos prosseguissem estaria a discutir-se nos presentes autos a existência do facto jurídico contrato e não simplesmente o não pagamento do preço devido.
Aquilo que deveria ser um mecanismo simples e rápido transformar-se-ia num processo complexo e demorado, onde foi requerida a realização de perícia, porque implicaria analisar da conclusão/incumprimento de contrato em crise, não estando apenas em causa a cobrança de uma prestação pecuniária emergente de um contrato.
Nesta senda, conclui-se estarmos perante um uso indevido da injunção.

Verifica-se, pois estarmos perante uma exceção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa e determina, nesta fase processual à absolvição do R. da instância, em conformidade com o disposto nos arts. 576.º, ns. 1 e 2 e 577.º, ambos do CPC.
Trata-se de uma exceção dilatória insuprível que não legitima que os autos prossigam não obstante a oposição ter dado lugar a transmutação do procedimento de injunção, em ação declarativa para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, caso contrário estaria encontrado o meio para, com pensado propósito de, ilegitimamente, se tentar obter o titulo executivo, defraudando o próprio do regime jurídico da injunção. – Ac. do TRC de 20/05/2014, rel. Fonte Ramos.

Em face do exposto, ao abrigo do disposto no art. 578.º do CPC, julga-se verificada a exceção dilatória de uso indevido da providência de injunção, e, ao abrigo do disposto nos arts. 278.º, n.º1 a) e 576.º, n.º2 do CPC, impõe-se a absolvição do R. da instância.»
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1.4. Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:

«A. O Tribunal a quo andou mal quando julgou verificada a existência de uma exceção dilatória inominada de uso indevido do procedimento de injunção.
B. É reconhecido pelo Tribunal a quo que se encontram verificados os requisitos para o uso do procedimento de injunção no caso em apreço,
C. contudo o mesmo considera ser necessário que a complexidade da causa seja reduzida.
D. Ora, com o devido respeito, que é muito, não podia o Tribunal a quo ter decidiu como decidiu.
E. A não admissão do procedimento de injunção, decorrente da apresentação de Oposição, a contratos que originem questões eventualmente mais complexas carece de fundamento,
F. sendo certo que não existe norma legal que imponha essa interpretação.
G. A decisão recorrida viola as normas constantes dos artigos 547.º e 6.º do CPC,
H. normas essas que consagram o princípio da adequação formal e o dever de gestão processual.
I. Ora, da interpretação dessas normas deveria ter resultado a prossecução da ação,
J. porquanto ambas permitem ao julgador adequar a tramitação da causa a uma maior complexidade do litígio, na medida em que,
K. o poder-dever de gestão processual, previsto no artigo 6.º do CPC, incumbe ao juiz a direção formal do processo, devendo o mesmo providenciar o andamento regular e célere do mesmo,
L. e o poder de adequação formal, previsto no artigo 547.º do CPC, permite ao julgador edificar a tramitação processual que entenda que, perante os dados factuais alegados e os ditames de um processo equitativo, melhor se adapte à ação em concreto,
M. Ademais, a decisão do Tribunal a quo viola, também, o artigo 152.º n.º 1 / 1ª parte do CPC,
N. uma vez que não é razoável que este se escuse do seu dever de administrar a justiça,
O. o que se verificou na medida em que o Tribunal a quo dispunha dos meios que lhe permitiam envidar esforços para conhecer do mérito da causa,
P. mas, ainda assim, decidiu pela extinção da instância por razões meramente formais.
Q. Dúvidas não restam de que as normas suprarreferidas teriam sido bastantes para que ao douto Tribunal a quo se impusesse a descoberta da verdade material.
R. Assim, em face do exposto, impõe-se que a douta sentença recorrida seja substituída por outra que determine a prossecução dos autos.»
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido.
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1.5. Questão a decidir

Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os artigos 608, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, delimitam o seu objeto, importa apreciar se se verifica a exceção dilatória inominada a que se reporta a decisão recorrida, relativa ao «uso indevido da providência de injunção
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
Os factos a considerar para efeito de apreciação do objeto do presente recurso são os relativos à tramitação processual descrita no relatório que antecede.
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2.2. Do objeto do recurso

Por efeito da oposição deduzida, verificou-se a transmutação do processo injuntivo em ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (v. artigos 16º, nº 1, e 17º, nº 1, do regime anexo ao Decreto-Lei (DL) nº 269/98, de 01/09, pois, após a distribuição, seguem-se, com as necessárias adaptações, os trâmites processuais estabelecidos no nº 4 do artigo 1º e nos artigos 3º e 4º desse regime anexo, podendo até o juiz, nos termos do nº 3 do referido artigo 17º, convidar as partes a aperfeiçoar as peças processuais).
O procedimento de injunção encontra-se previsto e regulado no regime dos procedimentos para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos (RPCOPEC), aprovado pelo DL nº 269/98, de 01/09, o qual foi sucessivamente alterado pelos seguintes diplomas[2]: DL nº 383/99, de 23/09, DL nº 183/2000, de 10/08, DL nº 323/2001, de 17/12, DL nº 32/2003, de 17/02, DL nº 38/2003, de 08/03, DL nº 324/2003, de 27/12, DL nº 107/2005, de 01/07, Lei nº 14/2006, de 26/04, DL nº 303/2007, de 31/12, Lei nº 67-A/2007, de 31/12, DL 34/2008, de 26/02, DL nº 226/2008, de 20/11 e Lei nº 117/2019, de 13/09.
Inicialmente aplicava-se apenas ao cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância – v. art. 1º do DL nº 269/98, de 01/09. Posteriormente, o artigo 8º do DL nº 32/2003, de 17/02, procedeu à alteração do artigo 7º do RPCOPEC, que passou a dispor «considera-se injunção a providência que tem por fim conferir força executiva a requerimento destinado a exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1º do diploma preambular, ou das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei nº 32/2003, de 17 de fevereiro». Nos termos do artigo 3º do DL nº 32/2003, de 17/02, passou a entender-se por «transação comercial qualquer transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respetiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração».
Com a alteração introduzida pelo artigo 5º do DL nº 107/2005, de 01/07, o nº 1 do artigo 7º do DL nº 32/2003 passou a prescrever que «o atraso de pagamento em transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida», sendo que, nos termos do seu nº 2, «para valores superiores à alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum», enquanto, segundo o seu nº 4, «as ações destinadas a exigir o cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, nos termos previstos no presente diploma, de valor não superior à alçada da Relação seguem os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos».
É de notar que o artigo 6º do DL nº 303/2007, de 24/06, deu nova redação ao artigo 1º do DL nº 269/98, de 01/09, passando o valor dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias a ser «não superior a € 15.000».
Além disso, o DL nº 62/2013, de 10/05, que estabeleceu medidas contra os atrasos no pagamento de transações comerciais, e transpôs a Diretiva nº 2011/7/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de fevereiro de 2011 (v. art. 1º), aplicável a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais, com exceção dos contratos celebrados com consumidores, dos juros relativos a outros pagamentos que não os efetuados para remunerar transações comerciais e dos pagamentos de indemnizações por responsabilidade civil (art. 2º, nºs 1 e 2), conferiu ao credor o direito a recorrer à injunção independentemente do valor do crédito (art. 10º, nº 1), desde que a transação seja entre empresas ou entre empresas e entidades públicas (arts. 3º, als. b), c) e d), 4º e 5º), definindo transação comercial como sendo a transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração (alínea b) do art. 3º).
Conjugando os apontados regimes, o procedimento de injunção pode ser usado para:
a) exigir o cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 1º do DL nº 269/98, de 01/09, ou seja, o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15 000,00;
b) exigir o pagamento efetuado como remuneração de transações comerciais independentemente do valor da dívida, ou seja, as obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo DL nº 62/2013, de 10/05.
Apenas relativamente a estas últimas, o artigo 10º do DL nº 62/2013, de 10/05, estabelece:
a) para valores superiores a metade da alçada da Relação, a dedução de oposição e a frustração da notificação no procedimento de injunção determinam a remessa dos autos para o tribunal competente, aplicando-se a forma de processo comum (nº 2);
b) as ações para cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transações comerciais, nos termos previstos no DL nº 62/2013, de 10/05, seguem os termos da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos quando o valor do pedido não seja superior a metade da alçada da Relação (nº 4).
Enfatiza-se que no procedimento de injunção destinado a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior a € 15 000,00 (obrigações a que se refere o artigo 1º do DL nº 269/98, de 01/09), a dedução de oposição não determina a aplicação da forma de processo comum, nem a lei estabelece qualquer limitação ao tipo de contratos ou quanto à complexidade das questões a discutir no processo.
No caso vertente, enfatiza-se que não estão em causa obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo DL nº 62/2013, de 10/05, pelo que os pressupostos ou requisitos da aplicação do procedimento de injunção são apenas os previstos no artigo 1º do DL 269/98, de 1 de setembro, a saber:
i) o procedimento destinar-se a exigir o cumprimento de obrigação pecuniária;
ii) a obrigação emergir de um contrato;
iii) o valor do contrato não ser superior a € 15 000,00.
Em face do alegado e peticionado no requerimento de injunção, todos os apontados requisitos se encontram reunidos.

Sucede que na decisão recorrida[3] «conclui-se estarmos perante um uso indevido da injunção», uma vez que «não estamos perante uma ação simples», se «os autos prosseguissem estaria a discutir-se nos presentes autos a existência do facto jurídico contrato e não simplesmente o não pagamento do preço devido», pelo que «[a]quilo que deveria ser um mecanismo simples e rápido transformar-se-ia num processo complexo e demorado, (…) não estando apenas em causa a cobrança de uma prestação pecuniária emergente de um contrato.»
A complexidade que o Tribunal a quo atribui à ação deriva de ter sido «requerida a realização de perícia» e de ser necessário «analisar da conclusão/incumprimento de contrato em crise».
Assim sendo, importa apurar se a simplicidade das questões a apreciar constitui um pressuposto de verificação indispensável para se poder recorrer ao procedimento de injunção, o mesmo é dizer se a complexidade da causa é motivo para concluir pelo uso indevido do procedimento de injunção.
A título introdutório, é inequívoco que o recurso à injunção nos casos em que isso está legalmente vedado ab initio – falta de preenchimento de algum dos pressupostos fixados na lei – consubstancia um uso indevido do procedimento de injunção, o que configura uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso, motivadora de absolvição da instância (arts. 576º, nº 2, 578º e 278º, nº 1, alínea e), do CPC).
Porém, desde que da análise do requerimento inicial resulte o preenchimento dos pressupostos que condicionam a possibilidade de recurso à injunção, nem a eventual falta de simplicidade da causa logo detetada, por exemplo com base no tipo de contrato em causa[4], nem a complexidade das questões suscitadas na oposição do requerido, ou sequer os meios de prova propostos pelo requerido, constituem fundamento legal para concluir pelo uso indevido do procedimento de injunção.
Em primeiro lugar, a lei não limita o âmbito de aplicação da injunção com base na simplicidade do procedimento ou no tipo de contrato invocado pelo demandante. Pura e simplesmente, não particulariza nem restringe a sua aplicabilidade a um específico tipo de contratos, nem faz quaisquer exigências quanto à menor ou maior complexidade das questões que hajam de ser discutidas no processo. O entendimento de que o recurso ao procedimento de injunção está reservado para situações que não comportem relevante discussão de facto, constitui uma restrição à utilização de tal procedimento que não resulta da lei.
Em segundo lugar, a determinação sobre se a forma de processo é adequada à obrigação pecuniária invocada pelo autor ou requerente, ou se se adequa, ou não, à sua pretensão, é aferida apenas com base na análise do requerimento inicial no seu todo, e já não com a controvérsia que se venha a suscitar ao longo da tramitação do procedimento, quer com os factos trazidos pela defesa quer com outros que venham a ser adquiridos ao longo do processo por força da atividade das partes[5]. O que releva para verificar da adequação da forma do processo escolhida pelo autor é o pedido e a causa de pedir, apreciados no seu conjunto, e não os desenvolvimentos subsequentes do processo. Como bem se refere no acórdão da Relação de Lisboa de 26.04.2022 (José Capacete), proferido no processo 84273/20.0YIPRT.L1-7, «a determinação da propriedade ou impropriedade da forma do processo escolhida pressupõe uma análise prévia no sentido de se apurar se o pedido formulado se harmoniza, ou não, com o fim para o qual foi estabelecida a forma processual adotada pelo requerente».
Em terceiro lugar, à delimitação do âmbito de aplicação da injunção é inteiramente estranha a defesa apresentada em sede de oposição, ao contrário do defendido na decisão recorrida, cuja alegada complexidade ou falta de simplicidade apenas emerge da oposição apresentada pelo Réu e da circunstância de ter requerido a produção de prova pericial. As questões suscitadas na oposição não influem na determinação da forma processual adequada à tramitação da causa, pois, por um lado, inexiste norma legal que sustente um tal entendimento e, por outro, isso daria azo à possibilidade de o demandado se eximir, através da absolvição da instância, a um procedimento de injunção apenas com base na complexidade e no número das questões que é possível suscitar e dos meios probatórios suscetíveis de produção, em último caso provocando artificialmente a verificação da exceção dilatório inominada do uso indevido do processo por parte do requerente.
Em quarto lugar, a utilização do procedimento de injunção (e, em decorrência da oposição, da transmutada ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos) ficaria dependente do que cada julgador entendesse configurar uma complexidade incompatível com o objetivo pretendido pelo legislador do DL nº 269/98. Sendo certo que a complexidade da causa é um conceito indeterminado e que inexiste qualquer referencial que permita operar essa qualificação, nem sequer seria possível prever, em cada caso concreto, a medida da complexidade da oposição suscetível de ser apresentada e muito menos se poderia determinar um limite dessa complexidade a partir do qual não seria admissível o recurso a esse procedimento.

Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que o requerimento de injunção apresentado se refere a uma obrigação pecuniária emergente de contrato de valor não superior a € 15.000,00. Por isso, estão verificados os pressupostos suprarreferidos: o contrato como fonte do crédito reclamado, a natureza pecuniária da obrigação dele decorrente e o valor não superior a € 15.000,00.
Assim sendo, o recurso ao procedimento de injunção, transmutado, por efeito da oposição deduzida, em ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, deve ser considerado meio processualmente adequado para fazer valer uma pretensão desse tipo, não se verificando, pois, a exceção dilatória que o tribunal recorrido julgou procedente.
Por isso, na procedência da apelação, o despacho recorrido terá de ser revogado, ordenando-se o prosseguimento dos autos.
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento da tramitação da causa, nos termos que forem tidos por convenientes.
Custas pela parte vencida a final.
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Guimarães, 08.02.2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
Raquel Baptista Tavares



[1] Transcrevem-se os fundamentos alegados por se mostrar relevante para a apreciação do objeto do recurso.
[2] Sem contar com as retificações aos aludidos diplomas.
[3] Não constitui uma sentença, mas sim um despacho, pois não apreciou uma exceção perentória, nem decidiu do mérito da causa.
[4] Há alguns tipos contratuais que em regra geram questões que não são de resolução sumária, como sucede no contrato de empreitada, em que é habitual o demandado suscitar a inexecução ou o incumprimento do contrato imputável ao empreiteiro.
[5] Paulo Duarte Teixeira, Os pressupostos objetivos e subjetivos do procedimento de injunção, Revista Themis, VII, nº 13, págs. 169-212.