Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
330/23.3T8VNF.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
INTERPRETAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- De acordo com o art. 236/1 do Código Civil, o sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.
II- Quando estejam em causa cláusulas contratuais gerais (CCG), a diretriz exposta deve ser conjugada com o art. 10.º do DL n.º 446/85, de 25.10, donde resulta que as CCG devem ser sempre interpretadas dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam. Consagra-se, assim, uma interpretação individualizada e concreta, em contraposição a uma interpretação que vise fixar um sentido geral e abstrato das CCG.
III- Quando o resultado do processo interpretativo se apresente como ambíguo, deve recorrer-se, no âmbito das CCJ, ao disposto no art. 11 do DL n.º 446/85, onde se diz, no n.º 1, que “[a]s cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real” e acrescenta, no n.º 2, que “[n]a dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.”
IV- O preceito estabelece uma hierarquia entre as duas normas que consagra: a do n.º 2 só tem aplicação quando a do n.º 1 não permita eleger um dos possíveis sentidos como o sentido que à CCG daria o dito contratante indeterminado normal.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) AA e  BB intentaram a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra EMP01... – Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação desta no pagamento de: (i) uma Indemnização correspondente a todos os danos patrimoniais que sofreram, em montante nunca inferior a €9 630,80; (ii) juros de mora vencidos e vincendos, a incidir sobre a referida indemnização, calculados à taxa legal anual, a contar desde ../../2021 ou de 9 de novembro de 2021 ou da data da citação da Ré e até integral e efetivo pagamento.
           
Alegaram, em síntese, que: celebraram com a Ré um contrato de seguro que tinha por objeto, entre outros, a cobertura contra danos provocados por queda de neve e gelo em edifício que identificaram e do qual são proprietários; por força de sinistro ocorrido, do género dos cobertos pelo contrato, tal edifício sofreu danos no telhado, o que foi participado à Ré; a data acordada entre Autores e Ré, para a conclusão e regularização do processo de sinistro participado, foi 14 de agosto de 2021; os  Autores, por diversas vezes, pessoalmente e através do seu mandatário, designadamente em 09 de novembro de 2021, interpelaram a Ré por escrito, para que a mesma lhes liquidasse a aludida quantia, o que esta recusou.
Na contestação, a Ré disse, também em síntese, que: o evento que deu causa aos danos não corresponde a um sinistro enquadrável na apólice; os danos ocorreram antes de celebrado o contrato e foram provocados pela falta de manutenção do telhado. No mais, impugnou especificamente os factos alegados pelos Autores, designadamente os danos e valores reclamados.
Dispensada a audiência prévia, foram proferidos: despacho saneador, em que se afirmou, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais e se fixou o valor processual; despacho a delimitar o objeto do litígio; despacho a enunciar os temas da prova.
Realizou-se audiência final e, na sequência, foi proferida sentença, datada de 2 de novembro de 2023, a julgar a ação improcedente e a absolver a Ré dos pedidos formulados pelos Autores.
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2) Inconformados com a sentença, os Autores (daqui em diante, Recorrentes) interpuseram o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):

“1) Os Autores/Recorrentes, salvo o devido respeito e melhor opinião em contrário, discordam da Douta Sentença ora recorrida, a qual deverá ser substituída por Douto Acórdão que julgue a presente ação procedente, e condene a Ré a pagar aos Autores uma Indemnização correspondente a todos os danos patrimoniais pelos mesmos sofridos no montante de €9.630,80, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal anual, a contar desde ../../2021 e/ou 09/11/2021 e/ou da data da citação da Ré e até integral e efetivo pagamento.
2) A Ré é uma sociedade comercial anónima, que com carácter de regularidade e escopo lucrativo, se dedica ao seguinte objeto social: “O exercício de atividades de seguro direto do ramo Não Vida, com a amplitude consentida pela lei.
Acessoriamente, a sociedade pode exercer atividades conexas ou complementares das de seguro a que exclusivamente se dedica e todas as atividades reservadas e permitidas por lei a uma companhia de seguros não vida”.
3) Consta registado a favor dos autores um prédio urbano, destinado à sua habitação própria e permanente, composto por uma moradia, composta por casa de habitação de cave e ... e logradouro, sita na Avenida ..., ... ..., concelho e comarca de ..., inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ...51º da união de freguesias ... (... e ...) e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...12.
4) Os autores, por si e seus antepossuidores, e anteriores proprietários, desde há mais de 5, 10, 15 e 20 anos que estão na posse do referido prédio, venerando construções, pagando as respetivas contribuições, sempre à vista de toda a gente, nomeadamente vizinhos, sem oposição ou embaraço de quem quer que seja, e na convicção de exercer um direito próprio, sem prejudicar ninguém e em tudo se comportando como donos e por todos como tal sendo considerados.
5) Autores e ré celebraram acordo escrito, que denominaram de seguro multirriscos habitação (proteção lar), por meio da apólice n.º ...60, com início em 02/07/2019, pelo prazo de um ano e seguintes, com as coberturas, entre outras, de Fenómenos da Natureza, que inclui “os prejuízos resultantes de tempestades, peso da neve sobre os telhados, granizo, inundações e aluimentos de terras”, tendo por objeto e local de risco a habitação dos autores melhor descrita em 2), apólice essa válida e em vigor, no período de tempo compreendido de 01/01/2121 a 31/12/2021, constante de fls. 21v a 41v dos presentes autos e cujo teor e cláusulas integralmente se reproduzem.
6) No dia 26 de julho de 2021, os autores aperceberam-se de que o telhado do edifício referido em 2) mostrava-se danificado, nomeadamente mostrando-se as telhas quebradas e lascadas, bem como os respetivos cumes e tamancos.
7) Tais estragos foram consequência de um ciclo de gelo e degelo, que provocou a fissuração e quebra de telhas.
8) Os autores participaram o sinistro à ré e forneceram toda a documentação e informação possível, tendo sido agendada visita do perito contratado pela ré e elaborado o relatório junto a fls. 41-43, cujo teor integralmente se reproduz.
9) A Ré recusou-se a assumir a responsabilidade derivada dos estragos.
10) Para reparação dos estragos referidos em 5), mostra-se necessário retirar/substituir toda a telha danificada, levar a mesma telha danificada para um vazadouro, fazer novos ripes para a colocação de telha nova, colocar telha nova, e rematar todo o telhado com cumes e tamancos novos.
11) Tais trabalhos terão um custo de €7.830,00, a que acresce o IVA à taxa legal, totalizando €9.630,80.
12) Os autores, por diversas vezes, pessoalmente e através do seu mandatário, designadamente em 09-11-2021, interpelaram a ré por escrito, para que a mesma lhes liquidasse a quantia referida em 10).
13) O sentido das cláusulas do contrato de seguro é determinado em função de um aderente (tomador de seguro) normal colocado na posição do aderente real, sendo que, em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalecerá o sentido mais favorável ao aderente.
14) Estando em causa no presente recurso o apuramento do conceito “Peso da neve sobre os telhados” para o homem médio e comum, nos termos dos art.º 236.ºss do CC, deverá atender-se a um padrão menos exigente do que o relativo aos critérios científicos.
15) Deverá atender-se a um conceito no qual se incluem Danos provocados aos bens seguros em consequência direta do peso de neve ou de gelo acumulados sobre telhados ou coberturas.
16) Aquando da outorga do contrato de seguro multirriscos habitação (proteção lar) titulada pela apólice n.º ...60, com início em 02/07/2019, foi entendimento dos Autores que o conceito ou noção de Peso da neve sobre os telhados” estava associada a “Danos provocados aos bens seguros em consequência direta do peso de neve ou de gelo acumulados sobre telhados ou coberturas”, conforme, sucede nos presentes autos.
17) Na realidade da vida e à luz do art.º 236.º do CC. não se pode dissociar o conceito de “Peso da neve sobre os telhados” dos “Danos provocados aos bens seguros em consequência direta do peso de neve ou de gelo acumulados sobre telhados ou coberturas.”
18) Assim sendo, o conceito de “Peso da neve sobre os telhados”, à luz dos critérios que decorrem do art.º 236.º do CC e para o cidadão comum, deverá assim ser determinado e entendido como estando associado a “Danos provocados aos bens seguros em consequência direta do peso de neve ou de gelo acumulados sobre telhados ou coberturas.”
19) Tratando-se de um “declaratário normal” o conceito de Peso da neve sobre os telhados deve ser entendido pela definição vulgar e comum, incluindo-se Danos provocados aos bens seguros em consequência direta do peso de neve ou de gelo acumulados sobre telhados ou coberturas.
20) Na verdade, considerando, como deveremos considerar, os Autores como declaratários normais, temos como adequado que, na outorga do presente contrato de seguro, o termo "Peso da neve sobre os telhados” foi querido no seu sentido corrente e comum, incluindo-se “Danos provocados aos bens seguros em consequência direta do peso de neve ou de gelo acumulados sobre telhados ou coberturas.”
21) Pelo supra exposto, os danos sofridos pelos Autores e constantes dos itens n.º 5 e 6 dos factos dados dados como provados na Douta Sentença, devem ser considerados como cobertos pelo contrato de seguro multirriscos habitação (proteção lar), por meio da apólice n.º ...60, com início em 02/07/2019, mencionado no item n.º 4 dos factos dados como provados na Douta Sentença, mais concretamente na cobertura de Fenómenos da Natureza, que inclui “os prejuízos resultantes de tempestades, peso da neve sobre os telhados, granizo, inundações e aluimentos de terras”.
22) Por consequência a Douta Sentença ora recorrida, deverá ser substituída por Douto Acórdão que julgue a presente ação procedente, e condene a Ré a pagar aos Autores uma Indemnização correspondente a todos os danos patrimoniais pelos mesmos sofridos no montante de €9.630,80, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal anual, a contar desde ../../2021 e/ou 09/11/2021 e/ou da data da citação da Ré e até integral e efetivo pagamento.
23) A Douta Sentença recorrida violou as seguintes disposições legais: a) artigo 236.º Código Civil; b) artigos 483º, 496º, 562º, 563º, 564º, nº1 n.º 2, 566.º, n. ºs1, 2, 3 todos Código Civil.”
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3) A Ré (daqui em diante, Recorrida) respondeu pugnando pela improcedência do recurso ....
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3) O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeitos meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
Foram colhidos os vistos das Exmas. Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.

Tendo isto presente, as questões que se colocam no presente recurso podem ser enunciadas nos seguintes termos:

1.ª: A sentença recorrida incorreu em erro na interpretação das normas jurídicas indicadas pelos Recorrentes, devendo concluir-se, em sentido contrário ao decidido, que o sinistro descrito está coberto pela apólice de seguro, com a consequente obrigação da Recorrida indemnizar os Recorrentes;
2.ª: Em caso de resposta afirmativa à 1.ª questão, com a consequente revogação da sentença recorrida, por que critérios deve ser calculada a indemnização.
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III.
1) Os factos a considerar na resposta às questões enunciadas são os que foram considerados como provados na sentença recorrida em termos que as partes não colocaram em causa. Aqui se reproduzem:
“1) A ré é uma sociedade comercial anónima, que com carácter de regularidade e escopo lucrativo, se dedica ao seguinte objeto social: “O exercício de atividades de seguro direto do ramo Não Vida, com a amplitude consentida pela lei. Acessoriamente, a sociedade pode exercer atividades conexas ou complementares das de seguro a que exclusivamente se dedica e todas as atividades reservadas e permitidas por lei a uma companhia de seguros não vida”.
2) Consta registado a favor dos autores um prédio urbano, destinado à sua habitação própria e permanente, composto por uma moradia, composta por casa de habitação de cave e ... e logradouro, sita na Avenida ..., ... ..., concelho e comarca de ..., inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ...51º da união de freguesias ... (... e ...) e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...12.
3) Os autores, por si e seus antepossuidores, e anteriores proprietários, desde há mais de 5, 10, 15 e 20 anos que estão na posse do referido prédio, venerando construções, pagando as respetivas contribuições, sempre à vista de toda a gente, nomeadamente vizinhos, sem oposição ou embaraço de quem quer que seja, e na convicção de exercer um direito próprio, sem prejudicar ninguém e em tudo se comportando como donos e por todos como tal sendo considerados.
4) Autores e ré celebraram acordo escrito, que denominaram de seguro multirriscos habitação (proteção lar), por meio da apólice n.º ...60, com início em 02/07/2019, pelo prazo de um ano e seguintes, com as coberturas, entre outras, de Fenómenos da Natureza, que inclui “os prejuízos resultantes de tempestades, peso da neve sobre os telhados, granizo, inundações e aluimentos de terras”, tendo por objeto e local de risco a habitação dos autores melhor descrita em 2), apólice essa válida e em vigor, no período de tempo compreendido de 01/01/2121 a 31/12/2021, constante de fls. 21v a 41v dos presentes autos e cujo teor e cláusulas integralmente se reproduzem.
5) No dia 26 de julho de 2021, os autores aperceberam-se de que o telhado do edifício referido em 2) mostrava-se danificado, nomeadamente mostrando-se as telhas quebradas e lascadas, bem como os respetivos cumes e tamancos.
6) Tais estragos foram consequência de um ciclo de gelo e degelo, que provocou a fissuração e quebra de telhas.
7) Os autores participaram o sinistro à ré e forneceram toda a documentação e informação possível, tendo sido agendada visita do perito contratado pela ré e elaborado o relatório junto a fls. 41-43, cujo teor integralmente se reproduz.
8) A ré recusou-se a assumir a responsabilidade derivada dos estragos.
9) Para reparação dos estragos referidos em 5), mostra-se necessário retirar/substituir toda a telha danificada, levar a mesma telha danificada para um vazadouro, fazer novos ripes para a colocação de telha nova, colocar telha nova, e rematar todo o telhado com cumes e tamancos novos.
10) Tais trabalhos terão um custo de €7.830,00, a que acresce o IVA à taxa legal, totalizando €9.630,80.
11) Os autores, por diversas vezes, pessoalmente e através do seu mandatário, designadamente em 09-11-2021, interpelaram a ré por escrito, para que a mesma lhes liquidasse a quantia referida em 10).”
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2) Na sentença recorrida foram ainda consideradas como não provadas as seguintes afirmações de facto:
“a) Os estragos ocorridos em 5) derivaram de queda e peso de neve sobre o telhado.
b) Os estragos ocorridos em 5) derivaram da falta de manutenção ou conservação do telhado do edifício.”
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3).1. Isto dito, vejamos a resposta à 1.ª questão enunciada, começando por dizer que não suscita dúvida que entre os Recorrentes e a Recorrida foi celebrado um contrato de seguro de danos.
O legislador português não definia, antes da entrada em vigor, no dia 1 de janeiro de 2009, do Regime do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16.04, o contrato de seguro, deixando ao intérprete a tarefa de deduzir esse conceito a partir dos seus elementos integradores. A propósito, recordamos aqui a definição de Moitinho de Almeida (O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Lisboa, 1971, pp. 23-24), segundo a qual o seguro é o “contrato em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada, a, no caso de realização do risco, indemnizar o segurado pe­los prejuízos sofridos, ou tratando-se de evento relativo à vida humana, entregar um capi­tal ou renda, ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites convencionalmente estabeleci­dos, ou a dispensar o pagamento dos prémios tratando-se de prestação a realizar em data determinada”. No sentido exposto por Moitinho de Almeida, vide José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra: Coimbra Edi­tora, 1999, pp. 89-90; Pedro Romano Martinez, Direito dos Seguros, Cascais: principia, 2006, pp. 51-52; António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, I, Coimbra: Almedina, 2001, p. 544.
No contrato de seguro, as partes são o tomador do seguro e a seguradora. Além das partes, pode haver um outro sujeito protegido pelo contrato de seguro, que será o se­gurado ou beneficiário, determinado ou indeterminado no contrato, com particular relevân­cia em sede de responsabilidade civil.
Quanto à terminologia, o facto baseado no risco e suscetível de acionar o segu­ro, assim como, por vezes, o dano dele resultante denominam-se sinistro e a remunera­ção devida pelo tomador à seguradora é designada por “prémio.”
O seguro é o protótipo dos contratos aleatórios (Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 194), na medida em que o tomador rea­liza uma prestação, o pagamento do prémio, e em troca dela pode não receber uma contraprestação material (se não ocorrer o sinistro segurado); ou, em qualquer caso, se recebe a contraprestação, pode acontecer que tenha satisfeito por ela muito mais ou mui­to menos que o seu valor. Podemos dizer, em tese, que sempre recebe uma contra­prestação que é a segurança, tranquilidade ou garantia de que vai ser indemnizado se ocorrer um facto danoso pactuado. Mas, para além disso, a receção ou não de uma contraprestação concreta, ou a proporcionalidade entre ela e o prémio pago, é totalmente alea­tório. É certo que, como já resulta da definição de Moitinho de Almeida que transcre­vemos, o cálculo de probabilidades e estatístico faz com que as entidades seguradoras nunca corram um risco excessivo. Nessa medida, o seguro não é uma simples aposta destinada a ver quem ganha ou perde dinheiro (a atividade da seguradora não é aleatória, ainda que cada contrato concreto o seja). Mas, ao contrário do que sucede nos contratos comutativos, em que ambas as partes satisfazem prestações subjetivamente de igual va­lor, no seguro não existe essa correlação ideal.
Tradicionalmente, distinguem-se no contrato de seguro quatro elementos funda­mentais: o risco, o interesse, o sinistro e a soma assegurada.
O risco é a possibilidade de que aconteça o evento danoso assegurado. É funda­mental para a existência do contrato (José Vasques, Contrato…, p. 105), tanto assim que “o seguro é nulo, se, quando se concluiu o contrato, o segurador tinha conhecimento de haver cessado o risco” (art. 436 do Código Comercial) e “o seguro fica sem efeito se a cousa segura não chegar a correr risco” (art. 437/1 do Código Comercial). Se não houver risco, sendo o dado certo, a seguradora tem de indemnizar sem o benefício da lei das pro­babilidades, passando o seguro a ser uma espécie de jogo de azar (Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial Português, II, Lisboa, 1916, p. 529).
O risco deve determinar-se e delimitar-se, pois não é concebível um seguro que faça frente a todo o tipo de riscos. O legislador estabelece, assim, uma série de modalida­des de seguro, ou de riscos asseguráveis. Neste particular, a distinção fundamental con­trapõe o ramo “não vida” ao ramo “vida”. Este último tem a ver com riscos que se pren­dem com a vida, a incapacidade ou outras eventualidades ligadas a uma pessoa singular; os primeiros com os demais riscos. Nos termos do RJCS, os contratos de seguro agrupam-se em dois grandes tipos: seguro de pessoas e seguro de danos (por referência, em certa medida, aos ramos vida e não vida, respetivamente). O seguro de pessoas compreende a cobertura de riscos relativos à vida, à saúde e à integridade física de uma pessoa ou de um grupo de pessoas nele identificadas. Já o seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais (arts. 123 e 175).
O interesse é definido, normalmente, como a relação de carácter económico exis­tente entre o bem ou o valor assegurado e o seu titular.
No seguro, não há risco sem interesse ou interesse sem risco. Por um lado, porque a cessação do risco elimina a necessidade de o cobrir, não podendo dizer-se que o segurado tenha interesse na sua cobertura pelo segurador. Por outro lado, porque a cessação do interesse elimina a possibilidade de a ocorrência do sinistro vir a dar azo ao surgimento de uma necessidade do segurado – com o desaparecimento do interesse vem a faltar o terreno sobre o qual o risco pode verificar-se, não se concebendo um risco sem um bem ameaçado.
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3).2. No regime anterior à entrada em vigor do RJCS, o seguro era um contrato formal, pois a sua validade dependia de o respetivo conteúdo ser consubstanciado num documento escrito, denominado apólice, da qual deviam constar, além do mais, o nome do segurador, do tomador e do beneficiário do seguro, o respetivo objeto e a natureza e o valor e os riscos cobertos (art. 426, § único, do Código Comercial). Efetivamente, a lei impunha para o contrato de seguro a forma escrita – devia inserir-se num documento, que constituía a apólice (proémio do citado art. 426 do Código Comercial). Na falta de apólice, o contrato de seguro era formalmente nulo, equivalendo, todavia, à apólice a minuta do contrato, desde que dela constasse a assinatura do segurador, demonstrativa da sua aceitação (José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 106). O assento do STJ de 22.01.1929, segundo o qual “a minuta do contrato de seguro equivale para todos os efeitos à apólice”, não significava que, antes da aceitação da seguradora, a minuta constituía o contrato de seguro (Ac. do STJ de 15.07.1986, BMJ, 359, p. 731). Para a perfeição do contrato de seguro era, pois, necessária a receção e a aceitação da proposta do segurando por parte da seguradora. Por outro lado, o contrato de seguro regulava-se, desde logo, pelas condições gerais, especiais e particulares da apólice, não proibidas por lei, e, na sua falta ou insuficiência, pelo disposto nos arts. 425 e ss. do Código Comercial e nos arts. 443 e ss. do Código Civil.
Com a entrada em vigor do RJCS, deixou de ser exigida a forma escrita para a celebração – e, portanto, para a validade – do contrato de seguro; continuou a exigir-se a redução a escrito da apólice, mas apenas para efeitos de prova, não de validade, do contrato. É o que resulta das normas dos nºs 1 e 2 do art. 32 da Lei do Contrato de Seguro, especialmente conjugados com as normas dos artigos subsequentes. Neste sentido, vide o STJ 4.12.2014, processo n.º 23/12.7TBESP.
Este especto assume relevância, pois aos contratos formais aplicam-se, no que à respetiva interpretação concerne, as regras definidas pelo art. 238 do Código Civil, sem prejuízo do disposto nos arts. 10 e 11 do DL n.º 446/85, de 25.10 (Regime Jurídico das Cláusulas contratuais Gerais), o que já não sucede com os contratos consensuais, muito embora para estes continuem a valer as especialidades referidas para as cláusulas contratuais gerais.
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3).3. Com isto entramos no cerne da questão decidenda: como deve ser interpretada a cláusula que prevê, no âmbito dos “fenómenos da natureza”, a cobertura nos casos de queda de neve, assim delimitando o risco segurado.
Tal cláusula é do seguinte teor: “Peso da neve sobre os telhados: Danos provocados aos bens seguros em consequência direta do peso de neve ou de gelo acumulados sobre telhados ou coberturas. A acumulação de neve ou de gelo deverá ter uma intensidade excecional que destrua ou danifique vários edifícios de boa construção num raio de 5 Km envolventes das instalações do Segurado.”
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3).3.1. O método geral de interpretação não recorre à categoria do negócio (ou do contrato) para proceder à tarefa da interpretação. Recorre, sim, à declaração negocial – mais concretamente, no caso do contrato, às declarações negociais.
Como se sabe, a interpretação da declaração negocial visa captar o seu sentido, o seu conteúdo. De acordo com o art. 236/1 do Código Civil, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”, de um lado e, de outro (art. 236/2), “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante é de acordo com ela que vale a declaração emitida.” O sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.
A interpretação da declaração negocial deve procurar uma conciliação dos interesses do declarante e do declaratário dentro do sistema legislativo respeitante ao negócio jurídico. É evidente que o declarante tem interesse em ver relevante apenas a sua vontade, ao contrário do declaratário que pretende poder confiar naquilo que ele próprio entendeu. Mas a vontade é um elemento interno, puramente do foro psicológico e, como tal, insuscetível de conhecimento. Passível de conhecimento é unicamente a manifestação externa, a qual permite retirar as conclusões quanto à vontade real, subjacente como elemento psicológico. Consequentemente, objeto da interpretação é a manifestação da vontade, o elemento externo, a própria declaração negocial. O fim da interpretação é o sentido da mesma. O sentido a que se refere o n.º 1 do art. 236 é o sentido pretendido pelo declarante.
Deste modo, a interpretação deve partir de elementos objetivos para obter, através deles, na medida do possível, o elemento subjetivo. O declaratário padronizado encontra-se em função das circunstâncias concretas que envolverem a proposta negocial e dos traços tipo lógicos que o aceitante apresenta: competência linguística, profissão e localização de atividade, nível cultural, conhecimentos técnicos relacionados com o contrato, etc.. Decisiva é a vontade do declarante, se ao declaratário for possível conhecê-la. Quando o declarante não pode contar razoavelmente com o sentido deduzido pelo declaratário normal do seu comportamento, o risco linguístico ou o risco do entendimento é imputado ao declaratário (art. 236/1, 2.ª parte).
A declaração de aceitação vale como aceitação da proposta com esse sentido. O consenso corresponde à intenção do proponente que, por hipótese, o aceitante conhece; o contrato é, portanto, interpretado de harmonia com a real intenção do proponente, que o aceitante efetivamente compreendeu. Essa falsa demonstratio pode resultar de ignorância (as partes recorrem a termos não adequados por não saberem melhor), de negligência (as partes recorrem a uma linguagem descuidada), de o declaratário ter tido notícia de qualquer circunstância decisiva que não era obrigado a conhecer, ou até da própria vontade real do declarante, de equívoco do declaratário, numa perspetiva objetiva, quanto à interpretação da declaração, chegando, porém, ao resultado desejado pelo seu autor.
A interpretação do negócio jurídico repercute-se na determinação lato sensu da factispecie contratual, que compreende a sua qualificação jurídica e a consequente construção do material de facto de que o intérprete deve retirar os intentos prosseguidos pelas partes. A declaração não se encontra apenas vertida nas palavras adotadas, mas em tudo o que carreia a expressão da vontade. Trata-se, pois, de determinar o valor da declaração, o sentido relevante para o ordenamento jurídico da manifestação de vontade contratual. O intérprete deve indagar, através da declaração, a vontade real das partes contraentes, sendo as diversas cláusulas entendidas umas mediante as outras, e atribuindo a cada uma delas o sentido que resulta do contexto global, precisamente porque se trata de um pensamento unitário.
Nesta medida, o intérprete deve determinar o alcance global do ato negocial praticado, considerado na sua unidade. Apresentando-se a iniciativa negocial como que funcionalizada à obtenção de uma determinada modificação da esfera económica (e, evidentemente, também da jurídica) daqueles que a empreendem, deve presumir-se que todos os componentes do regulamento negocial se encontram numa relação de coerência com o resultado pretendido e podem ser reconstruídos no seu alcance à luz daquele resultado.
Quanto aos negócios formais, em princípio, a declaração negociar não pode valer com um sentido que não tenham um mínimo de ressonância no texto do documento respetivo (art. 238/1). Contudo, um sentido desprovido desta correspondência sempre pode valer se se revelar conforme à vontade real das partes do negócio e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade (art. 238/2).  Uma análise rigorosa impõe que se continuem a observar as regras do art. 236, ainda que adaptadas à unicidade textual e frequentemente circunscritas pelos limites do art. 238. A dupla tarefa da interpretação de cada uma das declarações em separado pode ser simplificada, porque não há necessidade de proceder ao controlo de imputabilidade ao declarante. Na verdade, à coincidência entre declaratário de uma das declarações e declarante da outra, que é comum a todos os contratos com duas partes, junta-se a coincidência do texto em que se baseia a interpretação. Se o resultado da interpretação das declarações conjuntas for idêntico, em função da compreensão pelo declaratário, assegurado está que esse sentido é comum e imputável às mesmas pessoas, agora vistas como declarantes.
A tarefa não se esgota na interpretação de cada uma das declarações por que se forma o contrato. Inclui um segundo momento lógico para a verificação do consenso, resultado de um processo hermenêutico que consiste na comparação entre os sentidos juridicamente relevantes de cada uma das declarações contratuais e na averiguação acerca da sua concordância. Além disso, em conformidade com a lei (art. 236, na alusão ao comportamento do declarante), o teor da declaração, a fórmula escrita de que o declarante se serviu para exprimir o seu pensamento, deve ser integrada pelo conjunto das circunstâncias de facto, quer anteriores à emissão da declaração de vontade, quer concomitantes dela, que sejam de molde a fazer luz sobre as verdadeiras intenções do autor. De facto, interpretar implica também esclarecer o sentido dos sinais utilizados através do recurso a critérios de significado linguístico. Permite-se um recurso amplo ao material interpretativo e às circunstâncias. Por conseguinte, admite-se levar em linha de conta elementos extrínsecos tais como o comportamento das partes, anterior, contemporâneo ou posterior à conclusão do contrato.
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3).3.2. Quando estejam em causa, como sucede no caso, cláusulas contratuais gerais (CCG), as diretrizes expostas devem ser conjugadas com o art. 10.º do DL n.º 446/85, de 25.10, onde se diz que “[a]s cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam.”
Resulta daqui que as CCG devem ser sempre interpretadas dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam. Consagra-se, assim, uma interpretação individualizada e concreta, em contraposição a uma interpretação que vise fixar um sentido geral e abstrato das CCG.
Há, porém, que ter em atenção o seguinte aspeto referido por Maria Raquel Rei (Da Interpretação da Declaração Negocial do Direito Civil Português, Lisboa, 2011, pp. 359-360): “nos negócios celebrados com recurso a cláusulas contratuais gerais, o proponente pode não ser o utilizador das cláusulas contratuais gerais (cf. art. 1.º, n.º 1, da LCCG). Aplicando o disposto no art. 236.º, em tais casos, o negócio valeria com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do utilizador das cláusulas contratuais gerais, pudesse deduzir do comportamento do proponente-aderente (a menos que este não pudesse razoavelmente contar com ele). Esta solução não seria harmoniosa com o remanescente da LCCG. Em todo o diploma se pretende proteger o aderente, impondo ao utilizador das cláusulas contratuais gerais os riscos inerentes a essa utilização – designadamente os riscos de significados ambíguos (art. 11.º, n.º 2, da LCCG).
A interpretação, não do contrato resultante da aceitação das cláusulas contratuais gerais (rectius, das declarações em que esse contrato se consubstancia), mas, sim, das próprias cláusulas contratuais gerais, permite considerar sempre o aderente como o declaratário. Com efeito, determinando-se a submissão da sua interpretação ao disposto no art. 236.º, resulta que as cláusulas contratuais gerais valem com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. Sendo as cláusulas contratuais gerais elaboradas pelo utilizador (ou por terceiro mas assumidas pelo utilizador como suas) e destinadas a ser apresentadas a proponentes ou destinatários indeterminados que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las, o declaratário normal corresponde a esse proponente ou destinatário indeterminado, verdadeiro destinatário das cláusulas contratuais gerais, ainda que (eventualmente) com o objetivo, por parte do utilizador, de que o destinatário faça suas as cláusulas contratuais gerais e, usando-as, proponha um negócio ao utilizador.”
Deste modo, o modelo do declaratário normal será colocado na posição do concreto aderente do negócio em que se integram as cláusulas contratuais gerais, objeto de exame. Dito de outra forma, “a interpretação das cláusulas contratuais gerais não se fica pelo declaratário indeterminado, destinatário (abstrato) das cláusulas contratuais gerais. A interpretação é realizada, por aplicação do disposto no art. 236.º (ex vi art. 10.º da LCCG) através da colocação do declaratário normal na posição do real declaratário” (Maria Raquel Rei, Da Interpretação cit., p. 360). Daqui resulta, conforme salienta a autora, que, por aplicação do método de interpretação, a aparente uniformidade (resultante da identidade de “texto contratual”) dos negócios celebrados pelo utilizador de cláusulas contratuais gerais pode, afinal (e sobretudo perante textos pouco claros), dar lugar à multiplicidade.
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3).3.3. O resultado da tarefa interpretativa pode, no entanto, levar a que prevaleçam como possíveis dois ou mais sentidos da declaração, “baseados em razões de igual força”, na expressão de Pires de Lima / Antunes Varela (Código de Processo Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 225), o que pode resultar tanto da utilização de palavras com mais que um sentido, como da articulação do segmento em questão com outros do mesmo texto. A declaração é, então, ambígua.
No regime do Código Civil, tem aplicação o disposto no art. 237, nos termos do qual “[e]m caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.”
Como se percebe, os critérios estabelecidos na norma têm intervenção subsidiária. Destinam-se a resolver o non liquet que resulte da aplicação do art. 236/1. Assim, Miguel Teixeira de Sousa, “Apontamento sobre a decisão de um non liquet na interpretação dos negócios jurídicos”, O Direito, ano 122, 1990, II, pp. 281-290; Heinrich Ewald Höerster / Eva Moreira da Silva, A Parte Geral do Código Civil Português, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2020, p. 558. Dito de outra forma, o disposto no art. 237 apenas se aplica depois de esgotada a via do art. 236 sem que o intérprete tenha consigo alcançar “um resultado seguro, permanecendo, portanto, duvidoso o sentido da declaração” (Vaz Serra, RLJ, ano 110, 1977/78, p. 42).
Já no regime específico das CCJ a função da norma do art. 237 é desempenhada pelas que constam do art. 11 do DL n.º 446/85, onde se diz, no n.º 1, que “[a]s cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real” e acrescenta, no n.º 2, que “[n]a dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.”
Confirma-se aqui a intenção de proteção do aderente que já resulta do art. 10.º, manifestada, a um tempo, pela inexistência de uma cláusula de salvaguarda do utilizador das cláusulas, semelhante à prevista na parte final do n.º 1 do art. 236, e, a outro, pela consagração da regra ambiguitas contra stipulatorum. Sem prejuízo, a eliminação da cláusula de salvaguarda vale apenas perante cláusulas ambíguas e não perante quaisquer cláusulas contratuais gerais. Neste sentido, Maria Raquel Rei, Da Interpretação cit., p. 365.
Por outro lado, o termo dúvida utilizado no n.º 2 do preceito não é sinónimo de ambiguidade (de que fala o n.º 1). Caso contrário, as duas normas seriam contraditórias. À mesma previsão corresponderiam duas estatuições. As mesmas cláusulas contratuais gerais teriam o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real e, simultaneamente, o sentido mais favorável ao aderente. A dúvida tem de corresponder, necessariamente, a uma situação em que não foi possível ultrapassar a ambiguidade. No dizer de Maria Raquel Rei (Da interpretação cit., p. 367), “[d]epois de aplicada a regra revelada pelo art. 11.º, n.º 1, da LCCG, o sentido da cláusula contratual geral continua incerto. Nestes casos, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.” Há, assim, uma hierarquia entre as duas normas. A do n.º 2 só tem aplicação quando a do n.º 1 não permita eleger um dos possíveis sentidos como o sentido da CCG.
Centrando a atenção na norma do n.º 2, questiona-se se “o sentido mais favorável ao aderente” é o sentido objetivamente mais favorável ao aderente, ou o sentido escolhido pelo aderente de acordo com o que, em seu juízo, mais lhe convenha. E, ainda, em qualquer destes dois casos, se “o sentido mais favorável ao aderente” se pode identificar com o pior sentido, pois isso permitirá ao aderente (nos casos em que esse sentido dá lugar a uma cláusula proibida), através da nulidade dessa cláusula, beneficiar do regime supletivo (art. 12.º e seguintes da LCCG).
A expressão “o sentido mais favorável ao aderente” aponta para o sentido objetivamente mais favorável ao aderente. Na verdade, se o legislador pretendesse conceder ao aderente a possibilidade de escolher o sentido que concretamente mais lhe conviesse ter, em vez de lhe impor o sentido objetivamente mais favorável, teria estabelecido que, na dúvida, o aderente poderia optar por esse mesmo sentido, adotando uma fórmula verbal semelhante à do art. 13.
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3).3.4. Isto dito, retomemos a concreta cláusula em questão. Adiantamos, desde já, que, ressalvado o devido respeito pelo esforço argumentativo dos Recorrentes, o seu conteúdo não é ambíguo.
Com efeito, o fenómeno natural descrito na previsão da cláusula está devidamente circunscrito. Trata-se da acumulação da neve e gelo sobre os telhados e coberturas e do efeito que daí pode resultar para os materiais. Isto permite concluir que o dano coberto é o que resulte do peso provocado pela neve e pelo gelo em excesso sobre os materiais que compõem os telhados e coberturas e não qualquer outro, como seja, por exemplo, o que eventualmente resulte das alterações súbitas de temperatura que provoquem fenómenos como a simples formação de gelo e o respetivo derretimento.
Neste sentido, entendemos que o Tribunal a quo analisou corretamente a cláusula em questão e que não merece qualquer censura a conclusão a que chegou quando escreveu, na fundamentação da sentença, que “[l]ida a cláusula, é expressamente referido que os danos nos bens seguros devem derivar diretamente do peso da neve ou do gelo; afigura-se que o significado a extrair de tal cláusula não pode ser outro que não o de se referir à ação da gravidade, por força de acumulação excessiva de neve/gelo, sobre a estrutura do telhado ou da cobertura.
Refere aliás a cláusula a necessidade de intensidade excecional de tal acumulação (este vocábulo sendo também chave no caso), a tal ponto que danifique ou destrua edifícios de boa construção num raio de cinco quilómetros envolvente do edifício segurado – circunstâncias que não foram, sequer, alegadas pelos autores, e de todo o modo não se demonstraram em audiência.
Em bom rigor, os autores não alegam (e nem se demonstrou, mesmo em eventual sede de aquisição processual para efeitos do artigo 5.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), que tenha existido sequer queda de neve na altura, ou quando haja a mesma ocorrido – apenas se poderá concluir, da matéria de facto alegada e provada, que terá eventualmente tido lugar um congelamento ou formação de gelo derivado de frio intenso, e não qualquer queda de granizo ou neve, e eventual derretimento; estes sendo a causa compaginável com os danos dados como provados.
Ou seja, não se prova que a fissuração/estalagem e destruição das telhas no edifício coberto pelo contrato de seguro tenha derivado da gravidade e do peso da neve ou gelo, mas antes e somente que decorreu por efeito da ação de gelo e degelo.
E tal ação não encontra cobertura na cláusula em questão, que antes aparenta relacionar-se com o efeito da gravidade ou da massa de neve/gelo contra a cobertura do edifício.”
Deste modo, não havendo dúvida quanto ao sentido que um declaratário normal colocado na posição dos Recorrentes daria à CCJ em questão, tem de concluir-se que improcedem as conclusões do recurso, devendo confirmar-se o decido pela 1.ª instância, com o que fica prejudicado o conhecimento da 2.ª questão enunciada.
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4) Vencidos, os Recorrentes devem suportar as custas: art. 527/1 e 2 do CPC.
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:

- Julgar o presente recurso de apelação improcedente e confirmar a sentença recorrida;
- Condenar os Recorrentes no pagamento das custas do recurso.
Notifique.
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Guimarães, 4 de abril de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.ª Adjunta: Rosália Cunha
2.ª Adjunta: Alexandra Maria Viana Parente Lopes