Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
90/23.8PBGMR.G1
Relator: BRÁULIO MARTINS
Descritores: PERDÃO DE PENA
MULTA
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- O perdão de penas previsto no artigo 3.º n.º 2 al. a) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, apenas é aplicável às penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão, pelo que estão excluídas da aplicação do perdão as penas de multa aplicadas em medida superior a 120 dias de multa a título principal ou em substituição de penas de prisão.
Até 120 dias a medida de graça vigora; acima desse número, o legislador entendeu que a gravidade denunciada pela medida concreta da pena não autoriza a medida de clemência.
No caso de ter sido fixada uma multa por um período superior a 120 dias não pode, por conseguinte, aplicar-se o perdão e efetuar-se o pertinente desconto.
II- Esta interpretação da norma do artigo 3.º n.º 2 al. a) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto não enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP).
Decisão Texto Integral:
I RELATÓRIO

1
No processo abreviado n.º 90/23.8PBGMR.G1, do Juízo Local Criminal ... – J ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., teve lugar a audiência de julgamento, durante a qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

a) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelos art.º 3º, n.º 1 e 2 do D. L. 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros); - - -
b) aplicar desde já o perdão, nos termos da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, perdão esse de 120 dias de multa, no que resulta na pena de 20 (vinte) dias, à taxa de 6,00€ (seis euros), o que perfaz a quantia de 120,00 euros; - - -

2
Não se tendo conformado inteiramente com o decidido, o Ministério Público interpôs o presente recurso, formulando a seguintes conclusões:

1. Por sentença proferida no dia 11.09.2023 (fls. 57 a 61), foi o arguido AA, condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelos arts. 3.º n.ºs 1 e 2 do D.L. 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 840,00 (oitocentos e quarenta euros).
2. Sucede que, ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, veio o tribunal a quo aplicar, desde logo, um perdão de 120 (cento e vinte) dias de multa, no que resulta na pena de 20 (vinte) dias, à taxa de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 120,00 (cento e vinte euros).
3. Sucede que o perdão de penas previsto no art. 3.º n.º 2 al. a) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, apenas é aplicável às penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão, pelo que estão excluídas da aplicação do perdão aqui em causa as penas de multa aplicadas em medida superior a 120 dias de multa em substituição de penas de prisão.
4. Deste modo, nunca poderia o arguido AA beneficiar do perdão da pena que lhe foi aplicada, uma vez que foi condenado numa pena de multa superior a 120 (cento e vinte) dias, mais concretamente de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 840,00 (oitocentos e quarenta euros)
5. Em conformidade com o supra exposto, foi violado o art. 3.º n.º 2 al. a) da Lei n.º 38- A/2023, de 2 de agosto.
NESTES TERMOS, e nos demais de direito aplicável, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, por conseguinte, revogar-se a decisão recorrida, por violação do art. 3.º n.º 2 al. a) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, fazendo V/Exas. inteira e sã JUSTIÇA!

3
O arguido respondeu ao recurso, propondo a sua improcedência, concluindo pelo seguinte modo:

1.º
O arguido, com a devida e justa vénia, discorda da fundamentação jurídica apresentada pelo Ministério Publico em sede de recurso.
2.º
De facto, somos do modesto entendimento, que a interpretação que o Ministério Público faz dos artigos em apreço da Lei n.º 38-A/2003 de 2 de Agosto não é conforme à constituição.
4.º
Contra a constituição e o seu artigo 13.º, n.º 1, a interpretação do Ministério aceita como constitucional a equiparação pura e dura de um perdão ou uma amnistia de 1 ano de prisão a um perdão ou a uma amnistia de 120 dias de multa (no fundo, as condenações por factos criminosos mais gravosos e com penas mais graves (365 dias de prisão) teriam um tratamento mais favorável que condutas menos graves, com penas menos graves (120 dias de multa).
5.º
Tal realidade, em quantidade e qualidade e de gravidade da pena, estabelece uma equiparação discriminatória, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional.
6.º
Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot) e é violado de forma expressa pela interpretação que o Ministério Público faz das normas em apreço.
7.º
Um ano de prisão é brutalmente superior a 120 dias de multa: a constituição não admite uma comparação direta, tendo de admitir, no mínimo, o desconto para efeito dos dias de multa como bem andou o Tribunal a quo.
8.º
Assim, só a interpretação feita pelo Tribunal a quo é conforme à constituição (ao admitir o desconto dos 120 dias legalmente fixados à pena de multa fixada que seja superior a esse limite), mormente, ao artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (aliás, o que o tribunal a quo tenta fazer é, precisamente, adotar uma interpretação minimamente conforme à constituição).
9.º
Nestes termos e nos mais de direito e sempre com o douto suprimento de VV. Exas. cumpre decretar a total improcedente do recurso em apreço.

4
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

5
Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada foi dito pelo recorrente.

6
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

II FUNDAMENTAÇÃO

1
Objeto do recurso:


A
O perdão previsto no art.º. 3.º n.º 2 al. a) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, apenas é aplicável às penas de multa até 120 dias, a título principal ou em substituição de penas de prisão, ou é também aplicável a essas penas, ainda que superiores, devendo efetuar-se o pertinente desconto?


B
A interpretação proposta pelo recorrente em relação ao artigo 3.º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 38-A/2003 de 2 de Agosto não é conforme à constituição, por violar, designadamente, o artigo 13.º, n.º 1, do diploma fundamental?

2
Decisão recorrida (excerto relevante):

Por sentença proferida no dia 11.09.2023 (fls. 57 a 61), foi o arguido AA, condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelos arts. 3.º n.ºs 1 e 2 do D.L. 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 840,00 (oitocentos e quarenta euros).
Ao abrigo da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, o tribunal aplicou um perdão de 120 (cento e vinte) dias de multa, restando assim a pena de 20 (vinte) dias de multa, à taxa de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 120,00 (cento e vinte euros).
*
3 O direito.

A
O que está primeiramente em causa nos presentes autos é decidir se o perdão previsto no art.º. 3.º n.º 2 al. a) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, apenas é aplicável às penas de multa até 120 dias, a título principal ou em substituição de penas de prisão, ou é também aplicável a essas penas, ainda que superiores, devendo efetuar-se o pertinente desconto.

Para o que aqui interessa, dispõe a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, o seguinte:

Artigo 2.º
Âmbito
1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º
2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:
a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º;
b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º

Artigo 3.º
Perdão de penas
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.
2 - São ainda perdoadas:
a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;
b) A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa;
c) A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e
d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.
3 - O perdão previsto no n.º 1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena.
4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
5 - O disposto no n.º 1 abrange a execução da pena em regime de permanência na habitação.
6 - O perdão previsto no presente artigo é materialmente adicionável a perdões anteriores.


Resulta dos autos com clareza que o recorrente nasceu em .../.../2000, que os factos que deles são objeto ocorreram em .../.../2023, e que não se encontram abrangidos pela exclusão de aplicação prevista no art.º 7.º do acima citado diploma, pelo que estão preenchidos os requisitos subjetivos e objetivos de incidência do aludido regime normativo de clemência. Diga-se, aliás, que nada disso é discutido nos autos, pelo que o referimos de modo sintético como mero passo de fundamentação.

O perdão de penas, genérico ou individual, integra, juntamente com a amnistia, as modalidades em que se materializa o direito de clemência, ou ius condonandi, manifestação da graça do poder soberano, que remonta já à antiguidade, e cujo exercício tem acompanhado as comunidades humanas, designadamente, ocidentais desde então – para uma análise compreensiva, veja-se o interessantíssimo estudo de Taipa de Carvalho, História do Direito da Clemência, in Estudos Dedicados ao Prof. Doutor Mário Júlio de Almeida Costa, UCE Editora, pag. 111 e segs.

Entre nós, e só nos últimos cinquenta anos, foram publicadas nove destas medidas de graça, a saber:

Decreto-Lei n.º 259/74, de 15/06, na sequência do 25 de Abril;
Lei n.º 3/81, de 13/07;
Lei n.º 17/82, de 02/07, aquando da primeira visita a Portugal de Sua Santidade, o Papa João Paulo II;
Lei n.º 16/86, de 11/06, aquando da eleição de Mário Soares para presidente da república;
Lei n.º 23/91, de 04/07, aquando da segunda visita a Portugal de Sua Santidade, o Papa João Paulo II;
Lei n.º 15/94, de 11/05, pelo vigésimo aniversário do 25 de Abril;
Lei n.º 9/96, de 23/03, que amnistia infrações de motivação política cometidas entre 27/07/76 e 21/06/91;
Lei n.º 29/99, de 12/05, pelo vigésimo quinto aniversário do 25 de Abril;
Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, pela realização em Portugal das Jornadas Mundiais da Juventude.
Em todos estes atos de clemência teve lugar a amnistia, em maior ou menor medida, sendo que o perdão da pena principal de multa surge, neste conjunto, pela primeira vez, apenas na Lei n.º 23/91, de 04/07, nos seguintes termos:

Artigo 14.º
1 - Relativamente a delitos cometidos até de 25 de Abril de 1991, inclusive, são perdoados:
(…)
c) As penas de multa decretadas por substituição de penas de prisão e metade do valor, mas não mais de 500 contos, das penas de multa decretadas.
2 - O disposto na alínea b) do n.º 1 é aplicável também às penas de prisão maior, de prisão militar e de presídio militar.
(…)
4 - O perdão referido no n.º 1 aplica-se às penas fixadas em sentenças a proferir ou já proferidas.

Assim sendo, o legislador clemente determinou o perdão de metade do valor, mas não mais de 500 contos, das penas de multa decretadas – em moeda atual, mas sem atualização, cerca de € 2.500,00. Ou seja, seriam perdoadas as quantias respeitantes a metade das penas principais de multa, mas, se a pena aplicada ultrapassasse os 1.000 contos (cerda de € 5.000,00), o perdão seria apenas de metade, ou seja, 500 contos, permanecendo o remanescente da condenação para cumprir.

Igual ou similar técnica seguiu a Lei n.º 15/94, de 11/05, que, a este respeito, dispôs pelo seguinte modo:

Artigo 8.º
1 - Relativamente às infracções praticadas até 16 de Março de 1994, inclusive, são perdoadas:
(…)
b) A totalidade das penas de multa aplicadas cumulativamente com pena de prisão pela prática da mesma infracção;
c) 180 dias das penas de multa aplicadas a título principal ou em substituição de penas de prisão;
(…).

O perdão da pena principal de multa apenas surge novamente com a Lei n.º 38-A/23, de 02/08, com a seguinte redação:

Artigo 3.º
Perdão de penas
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.
2 - São ainda perdoadas:
a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;
b) A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa;
c) A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e
d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.
3 - O perdão previsto no n.º 1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena.
4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.
5 - O disposto no n.º 1 abrange a execução da pena em regime de permanência na habitação.
6 - O perdão previsto no presente artigo é materialmente adicionável a perdões anteriores.

Cumpre recordar que a Proposta de Lei 97/XV/1 do Governo, que esteve na origem da lei que ora se procura interpretar, continha uma diferente redação da alínea a) do n.º 2 da norma atrás citada, uma vez que ali se encontrava escrito o seguinte:

As penas de multa fixadas em até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão – sublinhado nosso.

Ora, estes dois vocábulos (em e até) mereceram a atenção do Parecer do Conselho Superior do Ministério Público, elaborado no âmbito dos trabalhos preparatórios do diploma, no qual se pode ler o seguinte:

“O perdão previsto na alínea a) do n.º 2 –As penas de multa fixadas em até 120 dias a título principal ou em substituição das penas de prisão – suscita-nos questões quanto aos seus limites. Questiona-se se o legislador pretende perdoar a totalidade da pena de multa fixada em substituição da pena de prisão ou se só são perdoados 120 dias da multa de substituição. Questiona-se ainda se pretende aplicar o perdão em 120 dias de uma pena de multa que pode ter sido fixada por um período superior ou se apenas serão perdoadas multas fixadas até 120 dias.
Assinala-se que o legislador manteve no texto as expressões “em” e “até” o que contribui para as dúvidas enunciadas.”

Nesta sequência, e após algumas propostas de alteração, a redação final da lei quedou-se nos termos acima transcritos, eliminando-se do texto da proposta os vocábulos “fixadas” e“em”(.parlamento.pt/ActividadePArlamentar/Páginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=...95).

Ora, desde já uma conclusão é segura: o nosso ius condonandi, nos últimos cinquenta anos, não tem mostrado relevante apetência pela aplicação da graça à pecúnia. Como se viu, apenas por duas vezes, até à presente lei, tal opção teve lugar.

De qualquer modo, cumpre recordar que sobre a interpretação da lei rege, em geral, o disposto no artigo 9.º do Código Civil:

Artigo 9.º
(Interpretação da lei)
1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

É consabido que é unânime na Jurisprudência e na Doutrina que o direito de graça ou de clemência, como direito absolutamente excecional que é, deve ser interpretado de modo declarativo, ou seja, procurando descortinar o seu espírito e a harmonização deste com a sua letra; dito de outro modo, não é admissível a interpretação extensiva em a interpretação restritiva dos textos – sobre a interpretação declarativa da lei, cfr. Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, Fundação Calouste Gulbenkian, 3.ª Edição, pag. 335.

Para o que aqui interessa, o texto legal reza assim:

2 - São ainda perdoadas:
a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;

A palavra até é, morfologicamente, uma preposição.

“As preposições são palavras invariáveis que relacionam dois termos da oração, sendo o sentido do primeiro termo (antecedente) explicado ou completado pelo segundo (consequente).” – cfr. Prontuário Ortográfico, Notícias Editorial, pag. 110; no mesmo sentido, Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências, Verbo, 2947.

Assim, podemos dizer, em primeiro lugar, que comparando a redação da norma aqui em causa da Lei n.º 38-A/23, de 02/08, com as normas das acima referidas Lei n.º 23/91, de 04/07, e Lei n.º 15/94, de 11/05, é claro que nestas duas últimas o legislador pretendeu perdoar determinada parte das penas principais de multa, independentemente da sua concreta fixação - metade do valor, mas não mais de 500 contos, das penas de multa decretadas, no primeiro caso, 180 dias das penas de multa aplicadas a título principal ou em substituição de penas de prisão, no segundo -, sendo o pensamento e a letra da lei inteiramente coincidentes.

Já na norma aqui em causa da Lei n.º 38-A/23, de 02/08, a utilização da referida preposição até significa que o perdão (antecedente gramatical) só atinge as penas que se quedem pelo número de 120 dias (consequente gramatical). Até esse número, a medida de graça vigora; acima desse número, o legislador entendeu que a gravidade denunciada pela medida concreta da pena desaconselha a medida de clemência. Repare-se que 120 constitui o limite superior do primeiro terço da moldura penal abstrata máxima da pena principal de multa, nos termos do artigo 47.º, n.º 1, do Código Penal.

Ou seja, nas previsões da Lei n.º 23/91, de 04/07, e da Lei n.º 15/94, de 11/05, o legislador perdoa determinada parte da pena principal de multa, (metade, com o limite máximo de 500 contos no primeiro caso, e 180 dias no segundo), o que implica a necessidade de realizar operações aritméticas de desconto, no primeiro diploma em todos os casos e acrescendo no a limitação  dos 1.000 contos, e, no segundo, se a pena for superior a 180 dias – em ambas as situações, o condenado terá de cumprir o remanescente não abrangido pelo perdão.

Tenha-se bem presente a interrogação acima referida:

Questiona-se ainda se pretende aplicar o perdão em 120 dias de uma pena de multa que pode ter sido fixada por um período superior ou se apenas serão perdoadas multas fixadas até 120 dias.

Ora, a adoção pelo legislador da redação final da lei, em face desta observação e das aludidas propostas de alteração, só pode querer significar que foi sua intenção apenas perdoar multas concretamente determinadas até 120 dias. Caso contrário, seria expectável que a lei seguisse a formulação de leis anteriores e tivesse sido adotada para a sua redação o seguinte texto:

2 - São ainda perdoadas:
a) 120 dias das penas de multa a título principal ou em substituição de penas de prisão;
 
Veja-se que na vertente de amnistia desta medida de graça, o legislador seguiu o mesmo princípio orientador:

Artigo 4.º
Amnistia de infrações penais
São amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior (…) a 120 dias de multa.

Isto é, multa de 120 dias, como limite máximo da moldura abstrata, ou como limite máximo da pena concreta, são as balizas de gravidade eleitas pelo legislador para fazer incidir, respetivamente, a amnistia e o perdão concedidos pela lei que aqui se analisa.

Estamos, portanto, de acordo com o Ministério Público quando, no seu parecer, afirma que:

Como decorre claramente do texto legal, prevê-se um perdão da totalidade das penas de multa aplicadas em medida inferior ou igual a 120 (cento e vinte) dias, a título principal, estando, pois, excluídas da aplicação do perdão aqui em causa as penas de multa aplicadas em medida superior a 120 (cento e vinte) dias de multa a título principal.
Isto sem prejuízo do perdão da prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa, a que se reporta a alínea b), do n.º 2, do artigo 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
De todo o modo, evidente se nos antolha que o perdão da prisão subsidiária só pode ser aplicado depois de esgotados os procedimentos com vista ao cumprimento da pena de multa aplicada e depois de a multa não paga ter sido convertida em prisão subsidiária.

Tal como, consequentemente, anuímos ao que o recorrente sintetiza nas suas conclusões de recurso:

 Deste modo, nunca poderia o arguido AA beneficiar do perdão da pena que lhe foi aplicada, uma vez que foi condenado numa pena de multa superior a 120 (cento e vinte) dias, mais concretamente de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a quantia de € 840,00 (oitocentos e quarenta euros)
Em conformidade com o supra exposto, foi violado o art. 3.º n.º 2 al. a) da Lei n.º 38- A/2023, de 2 de agosto.
 
Pelo exposto, não há lugar a qualquer desconto a efetuar em relação às penas de multa aplicada a título principal ou em substituição das penas de prisão quando ultrapassem os 120 dias, devendo ser cumpridas na íntegra, sem prejuízo das demais consequências acima aludidas.

No mesmo sentido do aqui decidido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09/01/2024, proferido no processo 31/01.3PVVCT.G1, disponível em www.dgsi.pt.
*
B
A interpretação proposta pelo recorrente em relação ao artigo 3.º, n.º 2, alínea c), da Lei n.º 38-A/2003 de 2 de Agosto não é conforme à constituição, por violar, designadamente, o artigo 13.º, n.º 1, do diploma fundamental?

O recorrido suscita ainda a inconstitucionalidade da interpretação legal proposta pelo Ministério Público, e aqui acolhida, argumentando, no essencial, pelo seguinte modo:

Contra a constituição e o seu artigo 13.º, n.º 1, a interpretação do Ministério aceita como constitucional a equiparação pura e dura de um perdão ou uma amnistia de 1 ano de prisão a um perdão ou a uma amnistia de 120 dias de multa (no fundo, as condenações por factos criminosos mais gravosos e com penas mais graves (365 dias de prisão) teriam um tratamento mais favorável que condutas menos graves, com penas menos graves (120 dias de multa).
Tal realidade, em quantidade e qualidade e de gravidade da pena, estabelece uma equiparação discriminatória, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional.
Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot) e é violado de forma expressa pela interpretação que o Ministério Público faz das normas em apreço.

Segundo entendemos do raciocínio do recorrido, o seu inconformismo com a interpretação da norma que aqui se acolhe tem que ver com a circunstância de o recorrente, na sua argumentação, invocar o texto legal no que concerne ao perdão de penas de prisão para explanar a sua posição.

A este respeito consta da lei o seguinte:

Artigo 3.º
Perdão de penas
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.

Ora, dir-se-ia, então, que o recorrido invoca a inconstitucionalidade interpretativa por se considerar que a lei coloca em pé de igualdade um ano de prisão e multa de 120 dias - a equiparação pura e dura de um perdão ou uma amnistia de 1 ano de prisão a um perdão ou a uma amnistia de 120 dias de multa (no fundo, as condenações por factos criminosos mais gravosos e com penas mais graves (365 dias de prisão) teriam um tratamento mais favorável que condutas menos graves, com penas menos graves (120 dias de multa).

Esta maneira de ver viola, em seu entender, o princípio constitucional da igualdade

Tal princípio está previsto no diploma fundamental pelo seguinte modo:

Artigo 13.º
(Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

A igualdade consubstancia conceito de múltipla perspetivação, desde a que decorre da noção de pessoa e da unidade de género humano, emergente do Cristianismo, à paridade na relação com o poder do Estado Moderno, passando pela marcadamente liberal igualdade perante a lei – reconhecimento a todos dos mesmos direitos e deveres -, e ainda um rigoroso nivelamento no campo político e social. Aqui está em causa, essencialmente, a igualdade jurídica, consistente na proibição de privilégios e discriminações, e que se traduz no tratamento igual de situações iguais, tratamento desigual de situações desiguais, tratamento igual ou semelhante, das situações desiguais relativamente iguais ou semelhantes, e tratamento das situações não apenas como existem, mas como devem existir, ligando assim a igualdade jurídica à igualdade social –cfr. Jorge Miranda, in Direito Constitucional, Direitos Fundamentais, AAFDL, 1984, pag. 196 e segs.

Ora, não se vê como possa estar em causa o princípio da igualdade quando as normas em causa se aplicam de modo precisamente igual a todos os cidadãos por ela abrangidos. Em relação à presente lei de clemência discutiu-se, e muito, como é consabido, se o seu âmbito subjetivo (pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º), não implicaria desrespeito por aquele pilar fundamental do Estado de Direito, por a graça concedida se destinar apenas a um determinado extrato etário da população. Mas não há dúvida que, dentro deste extrato etário as normas se aplicam de modo igual a todos os que estejam nas mesmas condições.

O que talvez se possa surpreender no pensamento do recorrido neste campo tem que ver com a sua posição de que é desigual equiparar um ano de prisão a multa de 120 dias; mas essa equiparação é feita pela lei e não pelo intérprete, como se demonstrou. E, deve dizer-se, que se compreende a estrutura do pensamento legislativo, não se lobrigando aí qualquer inconstitucionalidade: elegeu-se o primeiro terço das molduras abstratas máximas legalmente admissíveis de cada espécie de pena para fazer incidir o ius condonandi – prisão de 8 anos corresponde grosso modo a um terço do limite máximo da pena de prisão de 25 anos, e 120 dias corresponde exatamente a um terço do limite máximo da pena de multa de 360 dias (artigos 41.º, n.º 2, e 47.º, n.º 1, ambos do Código Penal); depois, determinou-se o perdão de 1 ano de prisão caso a pena aplicada seja de prisão de 8 anos e até 120 dias caso esse número não seja ultrapassado pela decisão. Assim, ao contrário do que afirma o recorrido, proporcionalmente, o perdão previsto para as penas principais de multa é muito superior ao que está previsto para as penas de prisão, pois pode exaurir um terço completo da sua amplitude legal, ao passo que no que diz respeito à pena de prisão, apenas um ano desse primeiro terço completo da sua amplitude legal pode eclipsar-se por força da graça.

É verdade que o abalo provocado por um ano de prisão é certamente incomparavelmente superior ao pagamento de uma pena de 120 dias de multa, especialmente se tivermos em conta o tradicional comedimento dos tribunais portugueses na correspondência monetária diária da multa – mas uma pena de 120 dias de multa a que corresponda um montante diário de € 500,00, legalmente previsto no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, certamente para alguém com muitas posses, não deixará de causar um mal disfarçado ranger de dentes. De qualquer modo, uma pena de prisão de 8 anos referir-se-á, indubitavelmente, a um facto muito mais grave do que a um outro punido com 120 dias de multa, pelo que se compreende e não se considera desconforme à constituição, designadamente na sua vertente de consagração da igualdade, a opção legislativa.

Nesta conformidade, em nosso entender, não ocorre qualquer inconstitucionalidade nas normas em causa nem na interpretação proposta no recurso e acolhida nesta decisão.


III DISPOSITIVO.

Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o recurso procedente, revogando a decisão recorrida na parte em que procedeu ao desconto de 120 dias na pena de multa de 140 dias em que o arguido foi condenado, devendo, assim, esta condenação ser integralmente mantida.
Custas pelo recorrido, fixando a taxa de justiça em 3 Ucs.

Os Juízes Desembargadores

Bráulio Martins
Armando Azevedo
Isabel Gaio Ferreira de Castro