Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
746/22.2T9PTL.G1
Relator: JÚLIO PINTO
Descritores: CASSAÇÃO DA LICENÇA DE CONDUÇÃO
PROCESSO ADMINISTRATIVO
DECISÃO ADMINISTRATIVA
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IRRECORRIBILIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL (DECISÃO SUMÁRIA)
Decisão: REJEITADO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- Com a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, foi introduzido no Código da Estrada o sistema de pontos na cassação do título de condução, à semelhança do que vigora em diversos países europeus. Nos termos do n.º 4 do artigo 148.º do Código da Estrada subtracção de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos: “ c) A cassação do título de condução do infractor, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
A competência da autoridade administrativa para ordenar a cassação do título de condução é hoje do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária – ANSR (artigo 169.º, n.º 4 – presentemente n.º3) e o seu decretamento depende da verificação, em processo autónomo, da perda total dos pontos atribuídos ao título habilitante.
II- A cassação do título de condução, ao abrigo do artigo 148.º do Código da Estrada, não é uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes uma consequência, legalmente prevista, da condenação por contraordenações graves e muito graves e/ou da aplicação de pena acessória de proibição de conduzir em razão da prática de crime rodoviário. A cassação tem por base um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o termo da concessão da autorização administrativa para conduzir, mas tal juízo está associado à condenação por ilícitos contraordenacionais ou criminais relativos à condução, determinantes da aplicação de sanção acessória de inibição de conduzir ou de pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.
É em função dessa relação com a condenação por infração rodoviária, de natureza contraordenacional ou criminal, que o legislador estabeleceu que a decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações, ou seja, como um recurso de “impugnação judicial”, como tal definido por lei – artigo 59.º, n.º 1 do RGCO -, em processo contraordenacional.
III- No que se reporta à viabilidade de recurso das decisões judiciais proferidas em primeira instância para o Tribunal da Relação, o mesmo só é admissível nos expressos casos previstos na lei, isto é, no art. 73º do RGCO.
IV- A decisão administrativa aplicada pela ANSR ao arguido, não se enquadra em qualquer das situações prevenidas nas alíneas a) a e) do art. 73º, nº 1, do RGCO.
Não estamos perante o que possa ser considerado uma sanção contraordenacional, uma vez que na decisão administrativa impugnada judicialmente não se procede à aplicação de qualquer coima, nos termos do previstos no art.º 1º do RGCO (Constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.), nem pode ser considerada uma sanção acessória de uma coima.
V- Por outro lado, revestindo o recurso ao abrigo do art.º 73.º n.º 2 natureza extraordinária, apenas pode/deve ser admitido quando se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade de jurisprudência, ou seja, quando a questão colocada, necessite de ser esclarecida e seja passível de abstração, podendo contribuir para a solução de casos idênticos, além de que deve limitar-se a situações que afetem os direitos do recorrente de forma grave.
Não obstante o recorrente apresentar argumentos porque considera encontrar-se, no caso, prescrito o procedimento da decisão de cassação, não indica, sequer, que decisões dos nossos tribunais superiores têm tratado a questão concreta de forma diferente, “… impondo-se, por isso, a uniformização...”.
Não constitui afectação grave de qualquer direito legítimo do recorrente a cassação da carta decorrente da perda das condições exigíveis e indispensáveis para a concessão do título de condução, quando foi o seu próprio comportamento que conduziu ao termo da concessão da autorização administrativa para conduzir. Aliás, a cassação não representa a perda de um direito adquirido, mas de verificação de uma condição negativa de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito.
VI - Assim sendo a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que conheceu da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação da carta de condução de que era titular o recorrente não é passível de ser impugnada por via recursiva para este Tribunal da Relação, por não estarmos face a qualquer uma das situações taxativamente previstas nos nºs 1 e 2 do art. 73º, do RGCO.
Decisão Texto Integral:
Nos termos do art. 417º/6/b) do Cód. de Processo Penal, vamos proferir decisão sumária.

I. RELATÓRIO

1. No processo de cassação com o n.º 719/2020, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), determinou a cassação do título de condução n.º ...39, de que é titular o arguido AA.
2. Não se conformando com essa decisão, o arguido impugnou-a judicialmente, dando origem aos autos com o NUIPC 746/22...., a correr termos no Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., em cujo âmbito foi proferida sentença, em 10-10-2023, a julgar improcedente, na totalidade, o recurso, confirmando integralmente a decisão administrativa.
*
3. Mais uma vez inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, concluindo assim a respetiva motivação (transcrição):
« CONCLUSÕES:

1. Vem o presente recurso da decisão que “julga improcedente o recurso apresentado por AA, e em consequência mantem a decisão recorrida que determinou a cassação do título de condução ...39”.
2. A última condenação do arguido definitiva deu-se, conforme os factos provados a 06-09-2019.
3. Nos termos do artigo 189º do código da estrada, as coimas e as sanções acessórias prescrevem no prazo de dois anos contados a partir do carácter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença.
4. Nunca poderá deixar de se considerar que também a cassação da carta de condução por perda de pontos, dada a sua natureza sancionatória, terá de estar sujeita a um prazo prescricional.
5. Tal princípio consagrado na constituição no que tange ao processo penal não pode deixar de se aplicar às contraordenações, até por efeito, do disposto no art. artigo 32ª do RGCO que escolheu as normas do Código Penal como direito subsidiário à fixação do regime substantivo das contraordenações.
6. Também porque os princípios consagrados no artigo 29º da Constituição da República Portuguesa, são de aplicação analógica a outros ramos de direito sancionatório, nos quais se integra direito contraordenacional.
7. O procedimento da cassação terá de estar também sujeito ao prazo prescricional de dois anos, imposto pelo art. 188º do Código da Estrada e às causas de suspensão e interrupção ali também previstas, sob pena de violação do número 1 do artigo 30º da CRP, nos mesmos moldes que a cassação em si sujeita ao 189º do Código da Estrada.
8. Não faria qualquer sentido que as penas e as medidas de segurança aplicadas pela prática de crimes estejam sujeitas a prazos de prescrição e sanções aplicadas administrativamente e em resultado de ilícitos de mera ordenação social, que são infracções por regra menos graves, não o estivessem, introduzindo um factor de indefesa e arbitrariedade, atentado ao princípio da proporcionalidade na vertente de proibição do excesso.
9. Admitir que não existe prescrição nos termos do 188º e 189º Código da Estrada no que tange à cassação da carta revela-se como uma manifesta violação do nº 1 do artigo 30º da Constituição da República portuguesa.
10. Por outro lado, em 02 de agosto de 2023 foi publicada em Diário da República 149/2023 a Lei 38-A/2023.
11. Ora, prescreve o artigo 5º da referida lei que são perdoadas as sanções acessórias relativas a contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 1000 (euro).
12. Por maioria de razão e em a referida lei aplica-se à cassação da carta. Exige- se no âmbito de aplicação da norma, “a ideia de igualdade, com efeito, só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis” (Ac. TC n.º 42/95, rel. Messias Bento), devendo também por essa via ser extinto o procedimento.
13. Por outro lado, os pressupostos da cassação da carta de condução previstos na alínea c) do n.º 4 do art.º 148º do Código da Estrada não pode nunca ser automática, como se decidiu no Ac. TC n.º 362/92, pelo que entendemos violam as normas citadas o n.º4 do art.º 30º da CRP, ao estipularem a aplicação obrigatória da medida da cassação da carta de condução por via da condenação transitada em julgado das decisões que servem de fundamento à sentença.
14. Foi totalmente ignorada a argumentação do arguido que as coimas foram pagas e que a condutora habitual é a cônjuge do arguido.
15. Nesta perspetiva de automatização do procedimento não se atende à verdade dos factos, mas puramente à verdade administrativa, não se dando como não provado que “não foi o arguido quem conduzia o veículo” mas, “que o mesmo não identificou condutor”.
16. É inconstitucional a norma da alínea c) do número 4 do artigo 148º CE ao consagrar o carácter automático da cassação do título de condução «definitivo», isto é, a condutores que já tenham ultrapassado o regime probatório.
17. A proibição de obter novo título de condução tem uma duração fixa de 2 anos o que igualmente contradiz um dos basilares princípios do direito assente no facto de a pena dever ser graduada em função da culpa do infrator.
18. Assim, este automatismo da alínea c) do número 4 do artigo 148º do código da estrada enferma de inconstitucionalidade por violação do disposto no n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.
19. Mais se firma que, do princípio do ne bis in idem (patente no nº 5 do artigo 29º da CRP) resulta que o mesmo facto não pode ser valorado por duas vezes, isto é, a mesma conduta ilícita não pode ser apreciada com vista à aplicação de sanção por mais do que uma vez.
20. O instituto de subtração de pontos aplica-se de forma automática, não se ponderando a necessidade pratica de aplicação ao arguido, ou seja, não há valoração de qualquer elemento ligado à prevenção especial, nem tão pouco uma graduação da culpa.
21. Viola-se nessa medida o princípio da necessidade, subprincípio do princípio da proibição do excesso.
22. Nestas situações, qualquer condenação posterior numa pena representaria, outrossim, uma violação do princípio da necessidade, consagrado no artigo 18.°, n.° 2, da CRP.
23. Salvo mais douta opinião, a cumulação da pena de cassação do título de condução com a proibição de obtenção de novo título antes que decorridos dois anos da cassação, é inconstitucional, por violar o princípio "ne bis in idem", consubstanciado uma dupla penalização do arguido pelo mesmo facto.
24. Por último cumpre ainda destacar que no caso concreto foi preterido o procedimento previsto no artigo 148º número 4 do código da Estrada.
25. Determina o número 4 “A subtração de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos”: Obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes; b) Obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos; c) A cassação do título de condução do infrator, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
26. Tal procedimento vem precisamente no sentido de sensibilizar o condutor, criando medidas gradualmente mais penosas de modo a evitar a aplicação da cassação do título de condução.
27. As contraordenações foram praticadas, tendo as notificações das sanções acessórias chegado todas num período compreendido em cerca de três meses.
28. O artigo é taxativo e determina as exigências que vão sendo aplicadas à medida que os pontos são perdidos, no entanto, em momento algum foi determinada a obrigação de o infrator frequentar uma ação de formação de segurança rodoviária, ou a obrigação de o infrator realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos.
29. O cumprimento discricionário dos pressupostos do número 4 do artigo 148º do código da estrada, mais não pode levar que a uma nulidade, nulidade essa que se argui, tendo a autoridade administrativa violado imposição legal com repercussão da decisão e sem justificação para o efeito.
Termos pelos quais:
f) Deverá ser a decisão a quo revogada entendendo-se por prescrito o procedimento da cassação e a própria cassação ao abrigo do artigo 188º e 189º do código da estrada, sob pena de violação do artigo 30º da CRP;
g) Assim não se entendendo deverá ser aplicado o artigo 5º da Lei 38- A/2023, vendo-se perdoada a cassação em cumprimento do princípio da igualdade.
h) Por outro lado, deverá ter-se por inconstitucional a interpretação que a alínea c) do n.º 4 do art.º 148º do Código da Estrada é de aplicação automática não se valorando as circunstâncias concretas por violação do nº 4 do artigo 30º da CRP.
i) Assim não se entendendo, deverá ser decidido que a alínea c) do número 4 do artigo 148º do código viola o princípio princípio do ne bis in idem.
j) Por último, deverá ser declarada a nulidade do procedimento por violação dos pressupostos previstos e taxativos do nº 4 do artigo 148º do código da Estrada,
Assim, sendo o arguido absolvido far-se-á a já
acostumada JUSTIÇA!!!»
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4. O Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância pugnou pela improcedência do recurso, com base na seguinte síntese conclusiva (transcrição):
«Conclusões

I. A douta sentença não merece qualquer reparo ou censura, porquanto o seu percurso decisório é lógico e adequado, ancorando-se na prova carreada e nos normativos em vigor no ordenamento jurídico nacional, culminando numa resolução irrepreensível.
II. Mirando a sentença proferida pelo Tribunal a quo, o Arguido/Recorrente insurge-se contra a mesma, invocando os seguintes fundamentos:
a. Prescrição do procedimento e da própria cassação, nos termos do disposto pelos artigos 188.º e 189.º, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03.05, sob pena de violação do consagrado pelo artigo 30.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;
b. Aplicação do perdão concedido pelo artigo 5.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, em cumprimento do princípio da igualdade;
c. Inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual o artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03.05, é de aplicação automática, sem valoração das circunstâncias do caso em concreto, por violação do consagrado pelo artigo 30.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, sob pena de, caso assim não se entenda, se violar o princípio do ne bis idem;
d. Nulidade do procedimento de cassação, por violação dos pressupostos taxativamente previstos no artigo 148.º, n.º 4, do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03.05.
III. Acontece, porém, que a decisão do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que determinou a cassação do título de condução n.º ...39, de que o Arguido/Recorrente é titular, é uma decisão administrativa que não conhece, no seu mérito, da prática de qualquer infração contraordenacional rodoviária por este, não lhe aplicando uma coima e uma sanção acessória.
IV. Portanto, a cassação da carta de condução é, ao abrigo do artigo 148.º, n.º 1, do Código da Estrada, um efeito automático, legalmente previsto e consagrado, decorrente da condenação anterior pela prática de infrações contraordenacionais rodoviárias e resultante da perda total de pontos atribuídos a um condutor, no caso ao Arguido/Recorrente, tendo natureza administrativa e não sancionatória.
V. A sentença proferida pelo Tribunal a quo que incidiu sobre a decisão que determinou a cassação do título de condução n.º ...39, de que é o Arguido/Recorrente titular, não se enquadra nas decisões passíveis de recurso consagradas no artigo 73.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10, nem em quaisquer outras consagradas nas demais alíneas do n.º 1, desse normativo, nem tão pouco no artigo 73.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10, porquanto, o Arguido/Recorrente, no requerimento de interposição de recurso, limitou a admissibilidade do recurso com base deste normativo à questão da prescrição do procedimento e da cassação, por entender que o conhecimento apenas desta questão específica afigura-se necessário à melhoria de aplicação do direito.
VI. Ademais, o Arguido/Recorrente invoca ex novo as questões identificadas como fundamentos de recurso, o que não é legalmente admissível, porquanto o recurso configura a impugnação da decisão, havendo de se debruçar apenas e tão só sobre as questões que foram objeto do julgamento e da consequente decisão.
VII. Pelo que, salvo melhor entendimento, com a exceção da invocada prescrição do procedimento e da cassação, o recurso interposto pelo Arguido/Recorrente, na parte referente a todos os demais fundamentos invocados, não é legalmente admissível e, portanto, não deverá ser, nessa parte, admitido.
VIII. À data da instauração do procedimento de cassação, o Arguido/Recorrente não tinha qualquer ponto atribuído, conforme resulta do seu registo individual de condutor, uma vez que tinha sido condenado pela prática de 9 (nove) infrações contraordenacionais rodoviárias, que se tornaram definitivas no espaço temporal de 45 (quarenta e cinco) dias.
IX. No que diz respeito à prescrição do procedimento e da própria cassação, ao abrigo dos artigos 188.º e 189.º, do Código da Estrada, uma vez que a cassação do título de condução não tem caráter de sanção acessória das contraordenações rodoviárias praticadas, tendo o respetivo procedimento natureza administrativa, tal procedimento não se encontra sujeito ao prazo de prescrição de 2 (dois) anos, consagrado no artigo 188.º, n.º 1, do Código da Estrada, e, em consequência, a cassação não se encontra sujeita ao prazo de prescrição da coima e da sanção acessória consagrado no artigo 189.º, do Código da Estrada.
X. Tal posição não viola, ao contrário do alegado, o artigo 30.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, porquanto a cassação da carta de condução do Arguido/Recorrente constitui um efeito legalmente previsto e automático da perda total de pontos atribuídos a um condutor, determinando o terminus da concessão administrativa para o exercício da atividade de condução, e não uma pena, ou medida de segurança aplicada ao Arguido/Recorrente.
Sem menoscabar a sustentada inadmissibilidade dos demais fundamentos de recurso, convirá ter presente que, em qualquer caso:
XI. O perdão consagrado pelo artigo 5.º, da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, ao contrário do invocado pelo Arguido/Recorrente, não é de aplicar, por não se verificarem os seus pressupostos, porquanto a cassação não se traduz numa sanção acessória, nem a decisão proferida pelo Tribunal a quo condenou o Arguido/Recorrente em qualquer sanção acessória, nem confirmou uma decisão administrativa que o condenasse nesses moldes.
XII. Não se verifica a invocada inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual o artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada, é de aplicação automática, sem prévia valoração das circunstâncias do caso concreto, porquanto a decisão que determinou a cassação do título de condução não implica a perda definitiva dafaculdade de conduzir, mas sim e tão só o impedimento do condutor, in casu, o Arguido/Recorrente, obter novo título de condução durante o período de 2 anos, (cfr. artigo 148.º, n.º 1, do Código da Estrada), em consequência de este se ter colocado numa situação em que perdeu as condições cumulativas que lhe permitiam o exercício da condução, fruto das infrações contraordenacionais rodoviárias praticadas e que determinaram a subtração da totalidade de pontos que lhe tinham sido atribuídos.
XIII. Este entendimento em nada viola não viola o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, nos seus três subprincípios, idoneidade, exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito, nem tão pouco o princípio do ne bis idem, consagrado no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, porquanto a sentença objeto de recurso não julgou, nem sequer condenou, o Arguido/Recorrente, pela prática das concretas infrações contraordenacionais rodoviárias que já tinham sido objeto de decisão administrativa e levaram à subtração de todos os pontos atribuídos.
XIV. Por fim, inexiste a invocada nulidade do procedimento de cassação, por violação do que entende serem pressupostos taxativamente previstos no artigo 148.º, n.º 4, do Código da Estrada, porquanto, no normativo em mérito o legislador prevê consequências distintas para situações diversas, não impondo qualquer percurso gradativo, conforme aparenta sugerir o Arguido/Recorrente com a utilização do vocábulo “taxativo”.
XV. No caso em apreço, entre o momento em que se tornou definitiva a primeira e a última contraordenações rodoviárias pelas quais foi condenado o Arguido/Recorrente, decorreram 45 (quarenta e cinco) dias, o que determinou que lhe fossem subtraídos todos os pontos, com a consequente cassação do título de condução do qual era titular, tal qual prevê o artigo 148.º, n.º 4, alínea c), do Código da Estrada.
Nestes termos e nos por V. Ex.as doutamente supridos, deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida na íntegra e nos seus termos, assim se fazendo  INTEIRA E SÃ JUSTIÇA!»
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5. Nesta instância, a Exma. Procuradora Geral Adjunta, pronunciando-se ao abrigo do disposto no art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, emitiu parecer no sentido de: /transcrição)

“(…)
II- O nosso parecer:
1- Questão prévia: rejeição do recurso por inadmissibilidade legal ( art.º 73.º n.º 1 al b) DL 433/82, de 27 de Outubro):
Por despacho proferido em 5 de Dezembro de 2023, o presente recurso foi admitido.
Porém, em nosso entender, a sentença em escrutínio é irrecorrível.
As regras relativas ao recurso em matéria de processo de contraordenação, estão previstas nas normas especiais dos artigos 73º a 75º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro – Regime Geral das Contraordenações (RGC).

De acordo com o artigo 73.º deste diploma:
Decisões judiciais que admitem recurso
1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
 
Na situação dos autos, a decisão do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que determinou a cassação do título de condução n.º ...39, de que o arguido recorrente é titular, é uma decisão administrativa que não conhece, no seu mérito, da prática de qualquer infração contraordenacional rodoviária pelo Arguido/Recorrente, não o condenando por tal infração e não lhe aplicando, em consequência, uma coima e uma sanção acessória.
A cassação da carta de condução constitui, ao abrigo do artigo 148.º, n.º 1, do Código da Estrada, um efeito automático, legalmente previsto, decorrente da condenação anterior pela prática de infrações contraordenacionais rodoviárias e resultante da perda total dos pontos atribuídos a um condutor, no caso ao Arguido/Recorrente, tendo, assim, natureza administrativa e não sancionatória.
Por conseguinte, não representando a cassação da carta de condução, uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes uma consequência, legalmente prevista, da aplicação de penas de inibição de conduzir, tal como sustentado na resposta ao recurso pela Exmª Sr.ª Procuradora da República, com citação de jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Tribunal da Relação do Porto, o presente recurso não deve ser admitido por não se enquadrar em qualquer das previsões do art-º 73.ºn.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10.

Com interesse, vide, no mesmo sentido, os Acordãos do Tribunal da Relação do Porto de 28/4/2021, no Processo n.º 194/20.9T9ALB.P1, de 17/5/2023 no Processo n.º 1159/22.1T9VCD.P1 e de 25/10/2023, no Processo n.º 406/22.4T9FLG.P1 e as Decisões Sumárias de 23/3/2023, no Processo n.º 2728/22.5T9AVR.P1, de 4/5/2023 no Processo n.º 2885/22.0T8VFR.P1 e de 29/6/2023 no Processo n.º 188/21.7T9FLG.P1, assim como o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7 de Novembro de 2023, no Processo nº 124/22.3T8SSB.E1, no qual se sumariou:
I – No procedimento administrativo autónomo previsto no § 10.º do artigo 148.º do Código da Estrada, que é aberto só após o trânsito das decisões judiciais ou administrativas das quais resulta a perda de pontos na carta de condução, visa-se apenas confirmar a perda total de pontos atribuídos ao respetivo titular.
II – O titular da carta de condução cassada tem o direito de impugnar judicialmente aquela decisão administrativa.
III. Mas a decisão do tribunal de primeira instância sobre o mérito dessa impugnação judicial será irrecorrível se o recurso tiver por base o disposto nas als. a) a c) do § 1.º do artigo 73.º do RGC ex vi artigo 186.º do Código da Estrada, porquanto nestas se pressupõe que esteja em causa a aplicação de uma coima ou de uma coima e uma sanção acessória, não se incluindo a decisão de cassação nas respetivas previsões normativas. Só sendo admissível o recurso nos casos previstos nas als. d) e e) do § 1.º ou no § 2.º do mesmo retábulo normativo.
IV. A garantia do acesso ao direito e aos tribunais, não significa a imposição constitucional da generalização do duplo grau de jurisdição.
Não obstante a admissão do recurso no mencionado despacho de 5 de Dezembro de 2023, tal despacho não vincula este Tribunal superior ( art.º 414.º n.º 3 do CPP), pelo que, salvo melhor opinião, deve o recurso interposto ao abrigo do art.º 73.º n.º 1 b) do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10, ser rejeitado.
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2- Da rejeição do recurso extraordinário ao abrigo do art.º 73.º n.º 2 Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10:
Alega, por outro lado, o recorrente, no requerimento de interposição de recurso, que não há uniformidade da jurisprudência no que tange à prescrição do procedimento e decisão de cassação, e que a questão “ …figura-se necessária à melhoria de aplicação do direito…”, pretendendo, dessa forma, ver o recurso apreciado ao abrigo do art.º 73.º n.º 2 Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10.
Como é sabido, revestindo o recurso previsto nesta norma natureza extraordinária, apenas pode/deve ser admitido quando se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade de jurisprudência, ou seja, quando a questão colocada, necessite de ser esclarecida e seja passível de abstração, podendo contribuir para a solução de casos idênticos, além de que deve limitar-se a situações que afetem os direitos do recorrente de forma grave ( cfr. neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa de 27 de Junho de 2023, no Processo n.º 865/22.5Y5LSB.L1-9).
Como se decidiu no Ac. da Relação de 22/1/2013, no Processo n.º 1100/09.7EAFAR.E1
“O recurso para a melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência, previsto no n.º2 do art. 73.º do RGCC, está vocacionado para situações em que se afectem direitos do acoimado de forma grave ou para aquelas em que ostensivamente a justiça que mereçam fique fortemente perturbada. Visam-se aqui, predominantemente, interesses de ordem pública para obviar a erros manifestos na interpretação e na aplicação do direito“.
E no mesmo sentido, o Ac. da Rel de Lisboa, de 24/9/97, in CJ 1997, IV, pág 142 segundo o qual “O recurso previsto no n.º 2 do art.º 73.º…por visar, predominantemente, interesses de ordem pública, apenas é admissível quando tem por finalidade alcançar uma maior estabilidade na aplicação do direito, um maior prestígio das instituições encarregadas da administração da Justiça e, acima de tudo, uma maior eficácia do principio da igualdade dos cidadãos quanto à lei “.
Ora, não obstante o recorrente apresentar argumentos porque considera encontrar-se, no caso, prescrito o procedimento da decisão de cassação, não indica, sequer, que decisões dos nossos tribunais superiores têm tratado a questão concreta de forma diferente, “ impondo-se, por isso, a uniformização..”
Por outro lado, não constitui afectação grave de qualquer direito legítimo do recorrente a cassação da carta decorrente da perda das condições exigíveis e indispensáveis para a concessão do título de condução, quando foi o seu próprio comportamento que conduziu ao termo da concessão da autorização administrativa para conduzir. Aliás, a cassação não representa a perda de um direito adquirido, mas de verificação de uma condição negativa de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito ( Cfr. Ac de 10/11/2021, no Processo n.º 179/21.8Y2VNG).
Donde, inexiste, na situação em apreço, qualquer direito legítimo do recorrente que tenha sido gravemente afectado com a decisão proferida.
O recorrente, aliás, foi notificado de todas as decisões administrativas que determinaram a perda de pontos proferidas em cada um dos processos da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária e que viriam a culminar com a decisão de cassação da carta.
Não assumindo a cassação do título de condução o caráter de sanção acessória das contraordenações rodoviárias praticadas e tendo o inerente procedimento natureza administrativa, este procedimento não se encontra, sequer, sujeito ao prazo de prescrição de 2 (dois) anos, consagrado no artigo 188.º, n.º 1 e 189.º, do Código da Estrada, ou seja, a prazos de prescrição de coimas e sanções acessórias aí previstos, nem faz sentido apelar ao art.º 30.º da CRP que respeita aos limites das penas e das medidas de segurança, sabido, como é, a diferente natureza e relevância dos interesses ou valores que se defendem no campo do direito penal e no do direito de mera ordenação social.
Por conseguinte, a nosso ver, não existem fundamentos para, ao abrigo do art.º 73.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10 ser o recurso extraordinário admitido.
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Caso assim se não entenda, remete-se para todos os argumentos apresentados na resposta ao recurso pelo M. P., pela sua adequação e pertinência, assim como para as considerações expostas nos arestos jurisprudenciais citados.
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Nesta conformidade, somos de parecer que o recurso do arguido deverá, ao abrigo do art.º 417.º n.º 6 a) do CPP, ser rejeitado por inadmissibilidade legal nos termos do art.º 73.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10 e pela inexistência dos pressupostos previstos no n.º 2 deste normativo.»
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6. No âmbito do disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta a esse parecer.
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7. Cumpre decidir
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II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÃO A DECIDIR

Da rejeição do recurso.
Nos termos do disposto no Artigo 417º do CPP, uma vez concluso o processo, o relator deve, no exame preliminar, além do mais, verificar se há condições para proferir decisão sumária, o que sucederá se, por exemplo, o recurso for de rejeitar – alínea b) do nº 6 do citado artigo 417º.
Conforme prescrito no artigo 420º, n. 1, al. b) do CPP, o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º do CPP.
Um dos fundamentos da não admissão do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 414.º do mesmo diploma legal, é a irrecorribilidade da decisão impugnada.
Conforme proposto pelo Ministério Público junto deste Tribunal da Relação, entende-se, salvo melhor opinião, que o recurso interposto não é legalmente admissível, devendo ser rejeitado, por se considerar que a decisão é legalmente irrecorrível, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 420º, nº 1 al. b) e nº 2, e 414º, nº  2, ambos do CPP, dos arts. 148º, nº 13 e 186º do Código da Estrada, e art. 73º do D.L. 433/82, de 27 de outubro (Regime Geral das Contraordenações – RGCO).

Vejamos.

“Artigo 420.º
Rejeição do recurso
1 - O recurso é rejeitado sempre que:
a)
b) Se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º;
c)
2 - Em caso de rejeição do recurso, a decisão limita-se a identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos e a especificar sumariamente os fundamentos da decisão.
3 –“     
A cassação do título de condução de veículo com motor não tem no nosso ordenamento jurídico uma única natureza, existindo previsões autónomas no Código Penal e no Código da Estrada.
No Código Penal, encontra-se previsto no artigo 101.º, com a epígrafe “Cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor”, que constitui uma medida de segurança não privativa da liberdade [veja-se a sua inserção sistemática no Livro I – Parte Geral / Título III – Das consequências jurídicas do facto / Secção IV – Medidas de segurança não privativas da liberdade], aplicada pela via judicial a agente imputável ou inimputável, tendo como pressuposto a sua perigosidade, revelada pela prática de certos ilícitos típicos.
Por sua vez, no Código da Estrada o regime da cassação tem sofrido variações ao longo do tempo, mas com a entrada em vigor das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de fevereiro, a cassação do título de condução, nos termos dos artigos 148.º e 169.º, n.º 4, passou a ser da exclusiva competência do Diretor-Geral de Viação.
Com a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei n.º 116/2015, de 28 de agosto, foi introduzido no Código da Estrada o sistema de pontos na cassação do título de condução, à semelhança do que vigora em diversos países europeus.
O artigo 148.º, com a epígrafe “Sistema de pontos e cassação do título de condução”, passou, então, a ter a seguinte redação [ao caso não nos importa a alteração introduzida no n.º1, al. a), pelo - DL n.º 102-B/2020, de 09/12]:
«1– A prática de contra-ordenação grave ou muito grave, prevista e punida nos termos do Código da Estrada e legislação complementar, determina a subtracção de pontos ao condutor na data do carácter definitivo da decisão condenatória ou do trânsito em julgado da sentença, nos seguintes termos:
a)- A prática de contra-ordenação grave implica a subtracção de três pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência ou ultrapassagem efectuada imediatamente antes e nas passagens assinaladas para a travessia de peões ou velocípedes, e de dois pontos nas demais contra-ordenações graves;
b)-A prática de contra-ordenação muito grave implica a subtracção de cinco pontos, se esta se referir a condução sob influência do álcool, condução sob influência de substâncias psicotrópicas ou excesso de velocidade dentro das zonas de coexistência, e de quatro pontos nas demais contra-ordenações muito graves.
2–A condenação em pena acessória de proibição de conduzir e o arquivamento do inquérito, nos termos do n.º 3 do artigo 282.º do Código de Processo Penal, quando tenha existido cumprimento da injunção a que alude o n.º 3 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, determinam a subtracção de seis pontos ao condutor.
3–Quando tiver lugar a condenação a que se refere o n.º 1, em cúmulo, por contra-ordenações graves e muito graves praticadas no mesmo dia, a subtracção a efectuar não pode ultrapassar os seis pontos, excepto quando esteja em causa condenação por contra-ordenações relativas a condução sob influência do álcool ou sob influência de substâncias psicotrópicas, cuja subtracção de pontos se verifica em qualquer circunstância.
4–A subtracção de pontos ao condutor tem os seguintes efeitos:
a)- Obrigação de o infractor frequentar uma acção de formação de segurança rodoviária, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha cinco ou menos pontos, sem prejuízo do disposto nas alíneas seguintes;
b)- Obrigação de o infractor realizar a prova teórica do exame de condução, de acordo com as regras fixadas em regulamento, quando o condutor tenha três ou menos pontos;
c)- A cassação do título de condução do infractor, sempre que se encontrem subtraídos todos os pontos ao condutor.
5–No final de cada período de três anos, sem que exista registo de contra-ordenações graves ou muito graves ou crimes de natureza rodoviária no registo de infracções, são atribuídos três pontos ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de quinze pontos, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º-A.
6–Para efeitos do número anterior, o período temporal de referência sem registo de contra-ordenações graves ou muito graves no registo de infracções é de dois anos para as contra-ordenações cometidas por condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes colectivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, no exercício das suas funções profissionais.
7–A cada período correspondente à revalidação da carta de condução, sem que exista registo de crimes de natureza rodoviária, é atribuído um ponto ao condutor, não podendo ser ultrapassado o limite máximo de dezasseis pontos, sempre que o condutor de forma voluntária proceda à frequência de acção de formação, de acordo com as regras fixadas em regulamento.
8–A falta não justificada à acção de formação de segurança rodoviária ou à prova teórica do exame de condução, bem como a sua reprovação, de acordo com as regras fixadas em regulamento, tem como efeito necessário a cassação do título de condução do condutor.
9–Os encargos decorrentes da frequência de acções de formação e da submissão às provas teóricas do exame de condução são suportados pelo infractor.
10–A cassação do título de condução a que se refere a alínea c) do n.º 4 é ordenada em processo autónomo, iniciado após a ocorrência da perda total de pontos atribuídos ao título de condução.
11–A quem tenha sido cassado o título de condução não é concedido novo título de condução de veículos a motor de qualquer categoria antes de decorridos dois anos sobre a efectivação da cassação.
12–A efectivação da cassação do título de condução ocorre com a notificação da cassação.
13–A decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contra-ordenações.»
De acordo com o disposto no artigo 121º-A, n.º 1, do Código da Estrada, a cada condutor são atribuídos 12 pontos.
Nos sucessivos regimes legais manteve-se a competência da autoridade administrativa para ordenar a cassação do título de condução – competência que passou para o Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária – ANSR (artigo 169.º, n.º 4 – presentemente n.º3) - , dependendo o seu decretamento da verificação, em processo autónomo, da perda total dos pontos atribuídos ao título habilitante. A cada uma das infrações contraordenacionais ou penais previamente verificadas, corresponde a subtração de um determinado número de pontos, mas a cassação só é legalmente admissível com o esgotamento do crédito concedido, correspondente ao esvaziamento da pressuposta – com a concessão do título – aptidão para conduzir veículos com motor.
Quer isto dizer que a cassação do título de condução, ao abrigo do artigo 148.º do Código da Estrada, não é uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes uma consequência, legalmente prevista, da condenação por contraordenações graves e muito graves e/ou da aplicação de pena acessória de proibição de conduzir em razão da prática de crime rodoviário. A cassação tem por base um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o termo da concessão da autorização administrativa para conduzir, mas tal juízo está associado à condenação por ilícitos contraordenacionais ou criminais relativos à condução, determinantes da aplicação de sanção acessória de inibição de conduzir ou de pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.
É em função dessa relação com a condenação por infração rodoviária, de natureza contraordenacional ou criminal, que o legislador estabeleceu que a decisão de cassação do título de condução é impugnável para os tribunais judiciais nos termos do regime geral das contraordenações, ou seja, como um recurso de “impugnação judicial”, como tal definido por lei – artigo 59.º, n.º 1 do RGCO -, em processo contraordenacional.
Mas, em sede de direito das contraordenações, como refere Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do RGCO à luz da CRP e da CEDH” ed. 2011, pág. 298, «no direito das contra–ordenações vigora o princípio da irrecorribilidade das decisões, só sendo recorríveis as decisões cuja impugnação esteja expressamente prevista» – o que significa, no que se reporta à viabilidade de recurso das decisões judiciais proferidas em primeira instância para o Tribunal da Relação, que o mesmo só é admissível nos expressos casos previstos na lei, isto é, no art. 73º do RGCO.
«Estamos, pois, perante norma de natureza especial em relação ao regime estabelecido nos arts. 399º e 400º do Cód. de Processo Penal – e que assenta na intenção do legislador de, em processo de natureza contraordenacional, limitar o recurso para o Tribunal da Relação –, não se mostrando por isso aqui configurada qualquer situação de lacuna processual legal, pois que aquela primeira norma afasta a aplicabilidade desta segunda.
Notar-se-á que a garantia decorrente do acesso ao direito e aos tribunais, consagrada no art. 20º/1 da Constituição da República Portuguesa (onde se dispõe que «A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos»), não implica a generalização do duplo grau de jurisdição.
Tal princípio constitucional apenas garante imperativamente um grau de jurisdição, o que, no regime do processo contraordenacional está, desde logo, assegurado pela possibilidade de impugnação judicial das decisões da autoridade administrativa perante o juiz da comarca em cuja área territorial tiver sido praticada a infracção.» (cfr. Ac da RP de Porto, 29 de Junho de 2023, in www.dgsi.pt)
Sufragando esta jurisprudência, no caso vertente só seria passível de recurso da decisão que conheceu da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação do título de condução de que é titular o ora requerente, se a situação concreta fosse enquadrável em qualquer das alíneas do nº 1 do art. 73º do RGCO, ou na situação excecional prevista no nº 2 do mesmo diploma legal, em algum dos casos ali especifica e exclusivamente previstos.
Nos termos do art. 186º do Cód. da Estrada, a situação em análise, uma vez que se trata de matéria de natureza contraordenacional prevista nesse diploma que consagra o direito que rege a circulação estradal, são sempre suscetíveis de serem impugnadas por via judicial as decisões proferidas pela autoridade administrativa, com recurso de impugnação judicial, e impugnação pela mesma via da decisão proferida em 1ª instância que venha a recair sobre aquela decisão administrativa. No entanto, essa impugnação por via recursiva terá de obedecer ao regime previsto na lei geral aplicável às contraordenações, no dito RGCO.
Também a decisão administrativa de cassação da carta de condução é passível de impugnação judicial, como prevê o já citado art. 148º, nº 13, do Cód. da Estrada, nos termos do aludido regime geral das contraordenações.
No entanto, nas situações respeitantes ao recurso das decisões em 1ª instância em sede de impugnação judicial, ou seja, relativamente aos recursos para os Tribunais da Relação das sentenças aí prolatadas, tal só ocorrerá nas hipóteses previstas no predito art.º 73º do RGCO.

Prevê este preceito:
“Artigo 73.º
Decisões judiciais que admitem recurso
1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando:
a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40;
b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias;
c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público;
d) A impugnação judicial for rejeitada;
e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal.
2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites.”

“Percorridas as várias situações em que o art. 73º do RGCO tutela a viabilidade de recurso para o Tribunal da Relação, constata–se que as mesmas se reportam a critérios relativos ou à dimensão da coima aplicada, à circunstância de haver lugar à aplicação de sanções acessórias, ou a incidências processuais relacionadas como a tramitação processual ao abrigo da qual a decisão do tribunal foi proferida ; ou ainda quando essa admissibilidade seja ditada por motivos de manifesto interesse jurisprudencial. (Ibidem Ac. RP citado)
Regressando ao caso vertente, verificamos que a decisão administrativa aplicada pela ANSR ao arguido, não se enquadra em qualquer das situações prevenidas nas alíneas a) a e) do art. 73º, nº 1, do RGCO.
Sendo certo que, salvo o devido respeito por opinião diversa, não estamos perante o que possa ser considerado uma sanção contraordenacional, uma vez que na decisão administrativa impugnada judicialmente não se procede à aplicação de qualquer coima, nos termos do previstos no art.º 1º do RGCO (Constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima.), nem pode ser considerada uma sanção acessória de uma coima.
Para além disso, como bem se diz no parecer emitido pelo Ministério Público:
«2-Da rejeição do recurso extraordinário ao abrigo do art.º 73.º n.º 2 Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10:
Alega, por outro lado, o recorrente, no requerimento de interposição de recurso, que não há uniformidade da jurisprudência no que tange à prescrição do procedimento e decisão de cassação, e que a questão “ …figura-se necessária à melhoria de aplicação do direito…”, pretendendo, dessa forma, ver o recurso apreciado ao abrigo do art.º 73.º n.º 2 Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10.
Como é sabido, revestindo o recurso previsto nesta norma natureza extraordinária, apenas pode/deve ser admitido quando se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade de jurisprudência, ou seja, quando a questão colocada, necessite de ser esclarecida e seja passível de abstração, podendo contribuir para a solução de casos idênticos, além de que deve limitar-se a situações que afetem os direitos do recorrente de forma grave ( cfr. neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa de 27 de Junho de 2023, no Processo n.º 865/22.5Y5LSB.L1-9).
 (….)”
Ora, não obstante o recorrente apresentar argumentos porque considera encontrar-se, no caso, prescrito o procedimento da decisão de cassação, não indica, sequer, que decisões dos nossos tribunais superiores têm tratado a questão concreta de forma diferente, “ impondo-se, por isso, a uniformização..”
Por outro lado, não constitui afectação grave de qualquer direito legítimo do recorrente a cassação da carta decorrente da perda das condições exigíveis e indispensáveis para a concessão do título de condução, quando foi o seu próprio comportamento que conduziu ao termo da concessão da autorização administrativa para conduzir. Aliás, a cassação não representa a perda de um direito adquirido, mas de verificação de uma condição negativa de um direito que (não sendo absoluto e incondicional) a essa condição está sujeito ( Cfr. Ac de 10/11/2021, no Processo n.º 179/21.8Y2VNG).”
Pelas razões apontadas, com as quais concordamos, também temos o entendimento que a situação concreta não é enquadrável no nº 2 do art. 73º do RGCO, não obstante a posição do requerente ou do Ministério Público, no sentido de este Tribunal da Relação dever aceitar o recurso da sentença proferida, por tal se afigurar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência.
Assim sendo, face a tudo que acabou de se expor, entendemos que a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância que conheceu da impugnação judicial da decisão administrativa que ordenou a cassação da carta de condução de que era titular o recorrente não é passível de ser impugnada por via recursiva para este Tribunal da Relação, por não estarmos face a qualquer uma das situações taxativamente previstas nos nºs 1 e 2 do art. 73º, do RGCO.
Sendo certo que, nos termos do disposto no nº 3 do art. 414º, do CPP, a decisão de admissão do recurso proferida em 1ª instância não vincula este Tribunal da Relação.
Ora, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 414º, nºs 2 e 3, e 420º, nº 1 al. b) do mesmo diploma legal, o recurso deve ser rejeitado sempre que, se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão, nomeadamente quando a decisão for irrecorrível, por inadmissibilidade legal.
É o que acontece no caso vertente.
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Decisão.

Pelo exposto, nesta Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, decide-se sumariamente rejeitar o recurso apresentado pelo AA, por se considerar que a decisão impugnada é legalmente irrecorrível.
Custas a cargo do requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC,s, nos termos do art. 420º, nº 3 do CPP.
Notifique
*
Guimarães, 20 de fevereiro de 2024

Júlio Pinto