Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
830/22.2T8VRL-A.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: NULIDADE
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
MULTA
TERCEIRO
DEVER DE COOPERAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/01/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- Para a aplicação de uma multa por inobservância de uma obrigação foi imposta no próprio processo a um terceiro que não é parte, com fundamento na violação do dever do cooperação, impõe-se necessariamente a prévia audição desse terceiro sobre os fundamentos da aplicação da multa e a sua determinação, mais que não fosse, porque lhe assiste o direito básico de se defender da acusação que está implícita na aplicação da multa e porque tem o direito de trazer elementos que conformem a decisão que influencia a sua situação jurídica.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

. I - Relatório

Recorrente: Ordem dos Advogados
Apelação em ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum

Em ação intentada para condenação do Réu no pagamento de honorários devidos pela prestação de serviços próprios da profissão de Advogado que AA moveu contra Centro Social ..., Instituição de Solidariedade Social, em 7-9-2022, foi proferido despacho que determinou a solicitação de laudo de honorários ao Conselho Superior da Ordem dos Advogados.
Em 23-9-2022 este pedido foi enviado ao Ex.mo Senhor Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados de ....
Em 13 de dezembro de 2022 o Conselho Superior da Ordem dos Advogados apresentou ofício dando conhecimento que a solicitação estava devidamente instruída, pedindo o pagamento dos emolumentos devidos (Processo de Laudo nº 201/ 2022-CS/L - V/Processo nº 830/ 22.2...)
Em 12 de janeiro de 2023 o Autor veio requerer a junção do comprovativo do pagamento do emolumento, no valor de €500,00, à Ordem dos Advogados no âmbito do Processo de Laudo n.201/2022-CS/L.
Em 25 de janeiro de 2023 o Conselho Superior da Ordem dos Advogados veio comunicar: “Tomei conhecimento da elevada pendência processual de Processos de Laudo transitados do mandato do Conselho Superior 2020-2022, em que são requerentes os Tribunais, bem como dos pedidos de insistência remetidos pelos mesmos. Informem-se o Tribunais, com cópia do presente Despacho, que em presença da elevada pendência processual do Conselho Superior, quer com Processos de Laudo, quer com Processos Disciplinares de natureza complexa, não foi ainda possível proferir decisão. Acresce ainda que, como é do conhecimento público, no ano de 2022 ocorreram as Eleições dos Órgãos da Ordem dos Advogados para o Triénio 2023-2025, sendo que, para a realização das mesmas, foram reunidos esforços de recursos humanos dos órgãos da própria Ordem dos Advogados, o que conduziu a um exponencial aumento do volume de trabalho. Mais se informe que os processos se encontram a aguardar distribuição ao Relator, a designar de entre os membros do Conselho Superior recentemente eleitos para o triénio 2023-2025, o que se fará de imediato.”
Em 30-6-2023 foi proferido o seguinte despacho “Insista pelo envio do laudo, em 10 dias, com a cominação de possível condenação em multa, em caso de incumprimento”, o qual foi cumprido na mesma data, insistindo-se junto do Conselho Superior da Ordem dos Advogados.
Em 10-10-2023 foi proferido o seguinte despacho “Há mais de um ano que os presentes autos estão parados, aguardando o envio de laudo de honorários, por parte do conselho superior da OA.
 Entretanto, a OA foi notificada para juntar aos autos o laudo, em 10 dias, sob pena de não o fazendo, poder ser condenada em multa.
 Decorrido muito mais do que o referido prazo, não só a OA não juntou o laudo, como não deu qualquer satisfação para a sua não junção.
 Assim sendo, por falta de colaboração com o tribunal, condeno a OA em multa de 2 UC. Notifique a OA, inclusive para, em 10 dias, juntar aos autos o laudo de honorários, sob pena de não o fazendo, poder ser condenada em multa, que não se fixará em menos de 5 UC.”
É deste despacho que a Ordem de Advogados veio interpor a presente apelação, embora previamente tenha vindo requerer a prorrogação por 30 (trinta) dias do prazo concedido para pronúncia pelo Despacho de 11.10.2023 e que fosse “anulado tudo quanto se tenha, desde então, processado, bem como deverá ser ordenada a notificação da Reclamante dos atos processuais cujo conhecimento manifestamente não lhe foi dado até ao presente momento” e que “Assim não se entendendo, b) Sempre deverá ser reponderado o juízo condenatório em multa da ora Reclamante, à luz do circunstancialismo aduzido com a presente reclamação”.
 Na admissão do recurso o Tribunal pronunciou-se no seguinte sentido:
Não nos parece que a decisão recorrida sofra de omissão absoluta de fundamentação (sendo que só esta é causa de nulidade).
A OA também só não se pronunciou sobre a possibilidade de ser condenada em multa, porque não quis, pois no prazo de 10 dias que lhe foram concedidos para juntar o laudo, sob pena de não o fazendo poder ser condenada em multa, poderia ter dito o que entendesse.
Assim sendo, indeferimos a nulidade invocada.
As explicações agora dadas pela OA são tardias, tendo a OA sido condenada devido à falta de qualquer satisfação ao tribunal, pese embora notificada sob a cominação de poder ser condenada em multa, pelo que, não faz sentido justificar agora a falha da OA, quando ela foi condenada devido a essa mesma falha.
Atento o invocado pela OA, prorrogo, por 30 dias, o prazo para junção do laudo de honorários.”
O laudo veio a ser apresentado nos autos em 6-12-2023.

Na apelação que a Ordem de Advogados apresentou, formulou as seguintes
conclusões:
“A. No passado dia 14.10.2023, Recorrente foi notificada da decisão da sua condenação por falta de colaboração, conforme Despacho em referência, em multa de 2 (dois) UCs, bem como da possibilidade de condenação em multa de 5 (cinco) UCs em caso de verificação do facto incerto de incumprimento do que aí ficou ordenado.
B. Decisão com a qual não se conforma por, designadamente, incorrer em nulidade da própria decisão – por omissão absoluta de qualquer fundamentação de facto e de direito -, por precedida de nulidade processual com directa influência na decisão proferida – a Recorrente nunca foi notificada para se pronuncia em de exercício de direito de defesa e ao contraditório – e por, no caso concreto, se mostrar justificada à saciedade a impossibilidade de cumprimento com o prazo determinado pelo Tribunal para junção aos autos de Laudo sobre Honorários. Assim,
C. Analisando o teor do Despacho ora recorrido - Despacho de 11.10.2023 e ref.ª n.º ...52 – avulta o facto de in casu o Tribunal a quo não ter cuidado de percepcionar as circunstâncias de facto em que o pretenso dever de colaboração terá sido pretensamente violado – uma vez que a Recorrente não foi chamada a pronunciar-se sobre a hipótese de aplicação de multa e, como tal, para se defender perante o aparente juízo de censurabilidade -, designadamente, se no caso a Recorrente não estaria absolutamente impossibilitada de cumprir com o prazo fixado pelo Tribunal,
D. Carecendo o Despacho recorrido de qualquer matéria de facto de onde pudesse decorrer a imputação, à Recorrente, a título de culpa da violação do predito dever.
E. Omite, igualmente, o Despacho ora colocado em crise, qualquer fundamento legal que o substancie, não identificando qualquer norma jurídica que se mostre violada, tal como não refere qualquer fundamento legal que sustente a escolha e medida da sanção que pretende aplicar.
F. Pelo que, em qualquer caso, sempre se terá que ter o Despacho de 11.10.2023 e ref.ª n.º ...52 como violando o dever de fundamentação das decisões judiciais, nos termos em que decorre da imposição constitucional consagrada no n.º 1 do art.º 205 da CRP, e, igualmente, incorrendo em nulidade por violação do dever de especificação dos fundamentos de facto e de direito que fundamentam a decisão, nos termos em que resulta do disposto na al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, aplicável às decisões proferidas por despacho nos termos do n.º 3 do art.º 613.º do CPC, A que acresce,
G. O facto evidência de, no caso concreto, se mostrar violado o direito de defesa e ao contraditório da ora Recorrente, na medida em que a esta nunca foi concedida a possibilidade de se defender/pronunciar quanto à conduta tida por prevaricadora e consequentemente sancionada.
H. Ora, relembrando que em causa está uma decisão que aplica uma sanção (multa processual), a omissão do Tribunal a quo apresenta-se não só como violadora do direito à defesa e ao contraditório nos termos gerais em que resulta do disposto no n.º 3 do art.º 3.º do CPC, conformando-se no que a doutrina designa como uma decisão-surpresa, expressamente proibida pelo normativo referido,
I. Como periga, igualmente, os direitos de audiência e de defesa conforme constitucionalmente consagrados no n.º 10 do art.º 32.º da CRP para os processos sancionatórios.
J. Decorrerá, pois, da conduta omissiva do Tribunal a quo – ao não convocar o exercício de pronúncia da Recorrente – uma nulidade processual com fundamento na preterição de uma formalidade legal essencial que, em qualquer caso, se apresenta como influindo de forma directa e capital no sentido da decisão proferida,
K. Pelo que, sempre deverá o Tribunal de recurso da referida nulidade e, consequentemente, ordenar a anulação de todo processado em momento seguinte àquele em que a Recorrente deveria ter sido convidada a pronunciar-se, nos termos em que resulta do bloco de juridicidade composto pelo previsto no n.º 10 do art.º 32.º da CRP, n.º 3 do art.º 3, n.ºs 1 e 2 do art.º 195.º e n.º do art.º 197.º todos do CPC. Ainda assim e em qualquer caso,
L. Sempre caberá deixar claro que – nunca prescindindo do direito ao exercício perfeito e completo do seu direito de defesa e ao contraditório -, a actuação da Recorrente nos autos não é susceptível de cominação com multa,
M. Pois que, a Recorrente não juntou aos autos o Laudo sobre Honorários solicitado por se encontrar absolutamente impossibilitada de o fazer em razão de constrangimentos de serviço de diversa natureza.
N. Veja-se que, conforme é do conhecimento público, no passado dia 1 de Setembro de 2023 entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, que estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, diploma este que, contrariamente ao que era expectável, veio consagrar uma amnistia geral, de todas as infracções disciplinares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar, cfr. art.º 6.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto (recorde-se que a proposta original previa uma delimitação subjectiva da amnistia às pessoas que tivessem entre 16 e 30 anos de idade),
O. Matéria que, pela sua natureza, mereceu precedência no tratamento e, igualmente, acresceu aos constrangimentos de serviço feitos saber nos autos em 25.01.2023 um enorme volume de trabalho,
P. Pois, o Conselho Superior da Ordem dos Advogados, sendo o único órgão com competência nacional para proferir Laudo sobre Honorários, cfr. al. e) do n.º 3 do art.º 44.º do EOA, cumula tal competência com o facto de se tratar do órgão de cúpula da jurisdição disciplinar interna da Ordem dos Advogados, al. g) do n.º 3 .º do EOA e al. n.º 1 e n.º 3 do art.º 44.º do EOA.
Q. Sendo que, conforme Despacho proferido pelo Exmo. Senhor Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados em 23.01.2023, àquela data registavase uma pendência processual anormalmente alta também em razão da transição de triénio e da consequente sucessão nos titulares dos órgãos da Ordem dos Advogados - em razão das eleições realizadas -, factor que sempre implica a necessidade de redistribuição de toda a matéria que se encontrava a ser acompanhada pelos Conselheiros recém-empossados.
R. Ora, tais factos, bem como tudo o demais invocado no corpo das presentes alegações de recurso, originaram um especial contexto de crescente acumulação de serviço no que concerne à tramitação deste tipo processos, vicissitude que não permite, por vezes, dar cumprimento a todas as solicitações em tempo útil, tal como seria desejável,
S. Ao que sempre se acrescerá o facto de o procedimento de laudo se mostrar dotado de uma tramitação especialmente pesada, que importa sempre o decurso de um espaço de tempo significativo sem que haja deliberação final proferida pelo Conselho Superior da Ordem dos Advogados.
T. Ainda assim, e atentando no acréscimo das necessidades deliberatórias do Conselho Superior da Ordem dos Advogados decorrentes, nomeadamente, do acréscimo de volume de trabalho em virtude da entrada em vigor da Lei n.º 38A/2023, de 02 de Agosto – que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude – e as necessidades de agenda inerentes a tal facto, é expectável que o parecer proferido nos autos do procedimento de laudo em apreço seja submetido a deliberação da Secção do Conselho Superior da Ordem dos Advogados na primeira data prevista para o próximo mês de Novembro.
U. Pelo que, sempre haverá lugar à prolação de decisão que revogue o sentido decisório feito constar do despacho de 11.10.2023 e ref.ª n.º ...52, seja conhecendo da nulidade do próprio Despacho, seja em razão da evidente nulidade processual decorrente da violação do direito de defesa e ao contraditório da Recorrente, seja, por fim, atenta a manifesta inexistência de qualquer factualidade apurada donde se possa inferir qualquer comportamento da Recorrente que se possa ter como violando o dever de colaboração com o Tribunal a quo.
Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Ex.ªs certamente suprirão, deverá o recurso interposto ser considerado como procedente por provado, e o Despacho ora colocado em crise ser revogado nos termos e com os efeitos legais referidos.
Com o que se fará a tão costumada…. JUSTIÇA. ”

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas forem de conhecimento oficioso ou se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Atento o teor das alegações e conclusões são as seguintes as questões a resolver:
.1- se o despacho reclamado é nulo;
.2- se se verificam os pressupostos para a condenação da Recorrente em multa.

III- Fundamentação de Facto

 A matéria de facto relevante para a decisão do recurso tem natureza processual e foi já supra elencada.

IV -Fundamentação de Direito

.A-- Da nulidade por omissão absoluta de qualquer fundamentação de facto e de direito
Quer as sentenças, quer os despachos têm que ser fundamentados, divergindo, no entanto, o grau de exigência de fundamentação em função da complexidade da situação.
Este dever de fundamentação das decisões judiciais tem em vista um conjunto de objetivos que são fundamentais no nosso Estado de Direito: contribui para a eficácia das decisões, conseguindo-se o seu respeito, não pela força da autoridade, mas pela razão com que convencem; sendo, pois, um fator de legitimação do poder judicial; permite o controlo da decisão, possibilitando a sindicância do processo lógico e racional que lhe esteve na base, impedindo, desta forma, decisões arbitrárias e garantindo a transparência do processo decisório e o respeito da independência e da imparcialidade das decisões. Processualmente tem ampla utilidade, quer na fase decisória, obrigando o tribunal que a profere a verificar e controlar a sua própria decisão, quer posteriormente, permitindo a sua reapreciação através de recurso.
Assim, a fundamentação visa garantir a inexistência de decisões arbitrárias, além de garantir implicitamente o direito a um processo justo e equitativo.
É por isso que o dever de fundamentação das decisões incorpora uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático. Assim, este princípio tem tutela no artigo 6º da Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem das Liberdades Fundamentais, no artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa e é especificada no artigo 154º do Código de Processo Civil.
A omissão do dever de fundamentação é causa de nulidade da decisão nos termos da alínea b) do artigo 615º do Código de Processo Civil, que se reporta às sentenças, mas que e extensivo aos despachos nos termos do artigo 613º, nº 3, do Código de Processo Civil.
É pacífico, no entanto, citando-se Alberto dos Reis, em Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 2.º, Coimbra Editora, 1945, págs. 172-173, demonstrando a segura consolidação desta posição, que “O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”. A nulidade do despacho, por falta de fundamentação, prevista no art. 615º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil, não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação incompleta, deficiente ou pouco persuasiva, apenas tendo lugar se for a omissão de substruções for completa e total.
No presente caso é evidente que a decisão recorrida não elencou concretamente os factos em que se baseou a conclusão fáctica, nem as normas jurídicas que levaram à aplicação da sanção ou à definição da sua medida.
No entanto, na mesma indica o período tempo em que o processo esteve parado, imputando-o à omissão do envio do laudo de honorários.
Da mesma forma indica a violação de um dever e fundamenta a multa na falta de colaboração com o tribunal.
 Assim, não obstante o despacho ser muito parco na fundamentação, ainda se pode considerar que não padece de total falta de indicação dos fundamentos de facto e de direito, pelo que não padece de nulidade.

.B-- Da nulidade por preterição do contraditório
O artigo 3º nº 3 do Código de Processo Civil é impressivo ao impor a observância do princípio do contraditório ao longo de todo o processo e bem assim a salientar que o juiz não deve decidir as questões, mesmo se de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a oportunidade de se pronunciarem, “salvo caso de manifesta desnecessidade”.
No artigo 3º nº 3 do Código de Processo Civil encontra-se plasmada uma conceção abrangente deste princípio, porquanto, para além de permitir às partes apresentar as suas pretensões e defesas e respetivos meios de prova, lhes dá mais profunda e contínua intervenção no processo, de molde a poderem influenciar a decisão, “entendida como uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” cf Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2013, pp. 124-125.
O princípio do contraditório é uma das bases do Estado de Direito Democrático, como resulta dos artigos 20º da Constituição da República Portuguesa, sendo pedra mestra no acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva.
Enfim, “Do princípio do contraditório decorre a regra fundamental da proibição da indefesa, em função da qual nenhuma decisão, mesmo interlocutória, deve ser tomada, pelo tribunal, sem que, previamente, tenha sido dada às partes ampla e efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar”, como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 298/2005, de 7-6-2005.
Há que entender que também os terceiros que embora não sejam partes, tenham intervenção no processo têm que ver a sua posição garantida, não podendo ser sujeito a decisões que incidam diretamente na sua esfera jurídica sem terem tido a possibilidade de se pronunciar ou de se defender.
Sendo certo que não é qualquer situação que impõe a audição interessado, a mesma é imprescindível “quando se trate de apreciar questões jurídicas suscetíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não for exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela” cf Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, p. 33.
Para a aplicação de uma multa a um terceiro ao processo, por inobservância de uma obrigação que lhe foi imposta no próprio processo, com fundamento na violação do dever do cooperação impõe-se necessariamente a prévia audição desse terceiro sobre os fundamentos da aplicação da multa e a sua determinação, mais que não fosse, porque lhe assiste o direito básico de se defender da acusação que está implícita na aplicação da multa e porque tem o direito de trazer elementos que conformem a decisão que influencia a sua situação jurídica.

.C.-- Das consequências da violação deste princípio
Parece claro que quando o tribunal, antes de proferir decisão, não convida as partes ou terceiro a pronunciarem-se sobre uma questão determinante para eles, e o devia fazer, por estes não terem tido a oportunidade de se lhe referirem, omite um ato que a lei prescreve e que pode influir no exame da causa, contendendo com o princípio do contraditório. Enfim, comete uma nulidade processual, por não ter seguido todos os trâmites previstos para a prolação dessa decisão. Podemos considerar que estamos perante uma nulidade secundária, a qual põe em causa todos os atos que dele dependem diretamente.
No entanto, a preterição desse ato é cometida com a prolação da decisão.
Há que ter em conta, face ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa após a prolação da sentença (artigo 613º nº 1 do Código de Processo Civil, aplicável aos despachos por força do seu nº 3), princípio básico no nosso Código, que “se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do ato ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometida, não é a arguição da nulidade, mas sim a impugnação do respetivo despacho mediante a interposição do competente recurso” cf Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, II, Coimbra Editora, pag 507-508., sob pena de se permitir que o juiz se voltasse a pronunciar sobre matéria sobre a qual já se havia debruçado e decidido.
Mas há situações em que uma decisão não aprecia diretamente sobre se se verificou ou não uma nulidade, embora se possa considerar que a acoberte: aqui se tem colocado a possibilidade de reclamar da nulidade ou recorrer da decisão. Temos para nós, que as partes podem escolher qualquer das vias, quando tal pronúncia efetuada no despacho não é clara: reclamar da causa ou recorrer da decisão que (implicitamente ou por omissão) lhe deu cobertura. Admitir a arguição da nulidade processual que a decisão não aprecia, nem conhece (mas se considera que implicitamente pode acobertar) não coloca em causa o princípio do esgotamento do poder jurisdicional, visto que a decisão que será anulada por força da omissão processual cometida não decidiu sobre a existência ou não dessa nulidade; por outro lado tal decisão não transita enquanto a nulidade não for apreciada (neste sentido os acórdãos nos processos nºs 3439/09.2TBBRG-A.G1 e 216/16.8T8VNF.G2, com mais detalhe)
Mostra-se já ultrapassada a ideia, mais exigente para as partes e mais formalista, que entendia que tal nulidade, por não ser de conhecimento oficioso se tinha por sanada se não fosse invocada pelo interessado no prazo de 10 dias após o seu conhecimento: sendo a nulidade em causa criada pela própria prolação da decisão, nada obsta a que a mesma seja invocada e conhecida em sede de recurso da própria decisão, na medida em que a parte se insurge contra a mesma e a decisão acoberta, deu causa ou partilha da violação da lei (pelo menos quando devia ter conhecido da nulidade, se for de conhecimento oficioso).
É já ideia pacífica que nada obsta a parte se centre na própria decisão, recorrendo da mesma, por constituir em si um ato violador da lei.
 Esta ideia funda-se no brocardo “das nulidades reclama-se, das decisões recorre-se”, alicerçado na extinção do poder jurisdicional com a prolação da decisão.
É, assim, entendimento maioritário que no caso das decisões surpresa “a nulidade processual cometida está a coberto da decisão judicial que se lhe seguiu” pelo que esta pode ser objeto de recurso. Uns entendem que é a própria decisão que é nula, por ter sido proferida em momento em que o seu objeto ainda não podia ter sido conhecido, outros que a mesma tem que ser revogada, por violar princípios estruturantes do próprio sistema, com força constitucional e legal (3.º, n.º 3, e 4.º do CPC, e art.ºs 20.º, n.º 1 e 4, 32.º, n.ºs 5 e 10, da CRP), ambos assumindo que a decisão tem que ser extirpada da ordem jurídica.

.D- Concretização
O despacho que fixou a multa à Recorrente com base na omissão de apresentação do laudo foi precedido de um outro em que se determinou a insistência pelo envio do laudo, em 10 dias, com a cominação de possível condenação em multa, em caso de incumprimento.
Entendeu o tribunal recorrido que esta advertência era suficiente para se poder considerar que a mesma foi ouvida sobre a aplicação e multa, mas não lhe podemos dar razão. A mesma foi uma mera advertência sobre as consequências da omissão de apresentação do laudo no novo prazo para tanto concedido, não um convite para a mesma se pronunciar sobre a verificação dos pressupostos necessários para a sua condenação em multa pelo atraso já decorrido até à data da notificação, nem tão pouco para as consequências do não cumprimento do prazo prorrogado.
Atenta a gravidade da aplicação da multa não se pode entender que a simples concessão de um novo prazo para a apresentação do laudo, “com a cominação de possível condenação em multa, em caso de incumprimento” possa ser considerado como um convite ao destinatário para vir pronunciar-se sobre a violação culposa da obrigação que lhe foi imposta (a sua verificação ou as suas causas ou consequências).
Entende-se, assim, que foi claramente violado o principio do contraditório, pelo que a decisão de condenação da Recorrente em multa tem que ser revogada.
Tal determinaria, em regra, a descida dos autos para que o tribunal que proferiu a decisão cumprisse as démarches necessárias prévias à prolação da decisão (a audição do seu destinatário) de forma a que a mesma pudesse ser conhecida.
No entanto, razões de celeridade e simplicidade, por aplicação analógica do artigo 665º nº 1 do Código de Processo Civil permitem que desde já o tribunal conheça da questão de fundo, tal como requerido pelo Recorrente, visto que nas suas alegações e conclusões este já se pronunciou sobre a questão e com o conhecimento que em concreto ora se fará não se prejudicará a sua possibilidade de defesa.

.E.--  Da violação do dever de cooperação
Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, praticando os atos que forem determinados e a omissão desse dever permite que, em casos de recusa injustificada, seja sancionada com o pagamento de multa, determina o artigo 417º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis, diz-nos o seu número 2.
Por outro lado, não há dúvidas que a emissão de laudo sobre honorários é matéria da competência exclusiva do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, cabendo-lhe estatutariamente tal dever, verificadas as condições legais para o efeito.
Será que no presente caso se pode entender que a demora na apresentação do laudo se traduz na falta de cooperação com o tribunal?
Entendemos que não: em 13 de dezembro de 2022 o Conselho Superior da Ordem dos Advogados apresentou ofício dando conhecimento que a solicitação estava devidamente instruída e logo em 25 de janeiro de 2023 veio informar o Tribunal que sofria de elevada pendência de processos de Laudo apresentados pelos Tribunais e pedidos de insistência, informando que não foi possível ainda proferir decisão face a tal elevada pendencia e ao exponencial volume de trabalho que as eleições dos seus órgãos veio trazer.
 Ora, daqui resulta logo expressa a vontade de cooperação na aplicação da Justiça, com a indicação dos motivos que levariam à demora na apresentação do laudo, afastando qualquer dolo no que toca ao atraso na sua apresentação.
Por outro lado, calcula-se o elevado número de processos com pedidos de Laudos de honorários sabida a alta pendência destes nos tribunais e a tendência para na sua maioria se solicitar a apresentação de laudo à Ordem dos Advogados.
Acresce que os processos de laudo de honorários têm complexidade, o se pode traduzir na sua demora.
Por fim, cumpre dizer que o laudo já foi apresentado, satisfazendo-se a obrigação.
 Assim, as razões apresentadas pela Ordem de Advogados são de atender, considerando que afastam a culpa na demora pela apresentação do laudo.
Desta forma, mesmo que se entendesse que se podia considerar que o não envio do laudo no prazo fixado pode ser considerado como uma falta de colaboração com o Tribunal, sempre se julga que no caso concreto foi previamente justificado o atraso que se veio a verificar, com motivos que são credíveis e justificativos desse atraso, fundados no sistema instituído e de difícil superação, não se verificando por isso qualquer desrespeito para com o Tribunal nem culpa relevante para o incumprimento tempestivo da notificação para a apresentação do laudo.
Há, portanto, que revogar a decisão, sem necessidade de prolação de qualquer outra que a substitua.

V- Decisão

Pelo exposto, decide-se revogar a decisão recorrida.
Sem custas.
Guimarães, 1 de fevereiro de 2024

Sandra Melo
 Maria Amália Santos
Jorge dos Santos