Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3335/22.8T9BRG.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: FALSO TESTEMUNHO
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
EFEITO EROSIVO DO TEMPO NA MEMÓRIA HUMANA
HÁBITOS DA JUVENTUDE
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - É por demais conhecido o efeito erosivo do tempo na memória humana. Com o passar dos meses e anos todas as pessoas vão esquecendo pormenores, conversas e acontecimentos a que assistiram, e, cada um de nós, tem necessariamente múltiplos exemplos dessas situações na sua própria vida.
II - Visto o caso em apreço por este prisma, não pode estranhar-se que alguém não consiga reproduzir escassos pormenores que apreendeu em conversa a que assistiu oito anos antes, a qual não lhe dizia respeito e em absolutamente nada influenciou a sua vida.
III- Não pode, também, estranhar-se que um rapaz de 22 anos, durante a tarde, circule no carro de um amigo e o acompanhe, sem questionar, a uma bomba de gasolina, a um local próximo do Estádio ... e depois a um Talho, para que ele trate de uns assuntos com uns «senhores» que só o amigo conhece.
A grande maioria dos jovens de 22 anos gosta de andar de carro com amigos, mesmo que seja apenas para dar «umas voltas» enquanto o amigo/condutor vai tratar de assuntos dele.
Sendo o ora arguido então o jovem de 22 anos a andar no carro do amigo, nas descritas circunstâncias, não é de modo algum «totalmente inverosímil» que ele tenha acompanhado o amigo sem o questionar sobre os assuntos que tratava.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO

No processo comum singular nº 3335/22.8T9BRG.G1, do Juízo Local Criminal ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., foi submetido a julgamento o arguido AA, com os demais sinais dos autos.
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A sentença, proferida e depositada em 20 de junho de 2023, tem o seguinte dispositivo:
«a) Condena-se o arguido AA pela prática, como autor material, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de 8 (oito) euros, o que perfaz a quantia total de 1040 (mil e quarenta) euros.
b) Condena-se o arguido no pagamento das custas do processo (art.º 513.º, n.º 1 do C.P P.), fixando-se a taxa de justiça em 2 unidades de conta (artº 8º, nº 9, do R.C.P e tabela III).
Após trânsito, remeta Boletim à D.S.I.C
Notifique e proceda a depósito.»
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Inconformado, o arguido AA interpôs recurso, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:

«1. O presente Recurso tem por objeto a matéria de facto e de Direito da douta Sentença proferida nos presentes autos em 20.06.2023 (ref.ª ...56), que decidiu condenar o arguido pela prática, como autor material, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º n.ºs 1 e 3 do Código Penal, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de 8 (oito) euros, o que perfaz a quantia total de 1040 (mil e quarenta) euros.
2. Considera o Recorrente, com o devido respeito, que existe erro notório na apreciação da prova, quanto aos pontos 4) e 5) dos Factos Provados na douta Sentença recorrida - de onde resulta que o arguido prestou depoimento falso e que o fez em audiência de julgamento, agindo de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida por lei - porquanto o Tribunal a quo, perante a remessa ao silêncio do arguido, alicerçou o seu entendimento, tão só, em função de regras de experiência comum, não consentâneas, contudo, com a demais prova produzida nos autos, mormente documental, mais efetuando uma ponderação probatória não assente em critérios lógicos, sólidos e sem suscitar dúvidas, violando, desse modo, o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
3. Não é consentânea com a prova documental constante dos autos, nem se revela lógica e racional e de acordo com as regras da experiência, a fundamentação do Tribunal a quo de que o arguido sempre perguntaria a BB o que andaria a fazer, nos termos relatados em sede de inquérito, quando do auto de inquérito de fls. 5 resulta precisamente o oposto, isto é, que o arguido nunca perguntou ao aludido BB o que este estava a fazer e/ou para onde iam e que aquilo que soube foi tão só o que ouviu falar.
4. Do confronto dos dois depoimentos prestados, na qualidade de testemunha, no Processo Comum Coletivo n.º 43/14.7PBBRG, que correu termos no Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., resulta claro que o arguido não mentiu em audiência de julgamento quando afirmou que não perguntou a BB o que estava a fazer ou a tratar, pelo que não encontra apoio nas provas consideradas a conclusão do Tribunal a quo de que se afigura inverosímil que o arguido se tenha limitado a acompanhar o amigo BB sem nada questionar.
5. A conclusão de que o depoimento prestado pelo arguido em audiência de julgamento, ao contrário do do inquérito, foi pensado com o propósito claro de favorecer o arguido BB, com quem o aqui arguido manteria relações de amizade e “dado o tempo de preparação das declarações que iria prestar” parece assentar, com o devido respeito, numa regra que não é de experiência comum, mas numa presunção sem suporte objetivo e racional.
6. Não se revela lógico e coerente que o lapso temporal decorrido entre o depoimento prestado na fase de inquérito, em 17.01.2014, e as declarações prestadas em audiência de julgamento, em 23.03.2022, isto é, oito anos, possa ser utilizado para equacionar um propósito do arguido em beneficiar o amigo, mas já não como o longo período em que as memórias se vão esvanecendo, sendo perfeitamente plausível que determinados pormenores se percam, sem que isso signifique que o depoimento prestado em sede de julgamento seja falso.
7. Não se pode ignorar os efeitos que o decurso de oito anos pode provocar, e provoca, na memória de qualquer pessoa, pelo exigir que a testemunha se recorde, ipsis verbis, de tudo o que relatou há 8 anos, ou de todos os pormenores do que presenciou, parece excessivo, e não é permitido pela lógica.
8. Tal como resulta exposto na fundamentação da decisão da matéria de facto, quanto à matéria dos pontos 4) e 5) dos Factos Provados, o juízo que o Tribunal a quo formulou sobre a prova produzida não assenta, como se lhe impunha, em critérios lógicos e racionais, nem tão pouco o seu exame crítico é efetuado dentro de critérios de normalidade e razoabilidade, motivo pelo qual se considera existir erro na ponderação probatória efetuada, quanto àquela matéria de facto assente.
9. Acresce que, não existe nos presentes autos, nem foi produzida qualquer prova em audiência de julgamento que permita conhecer a verdade histórica, isto é, aquilo que veio a provar-se e acabou por ficar plasmado na Sentença proferida naquele Processo Comum Coletivo n.º 43/14.7PBBRG, pelo que sem se saber qual é essa verdade, não se pode afirmar, como fez o Tribunal a quo, que o depoimento prestado pelo Recorrente na audiência de julgamento realizada no dia 23.03.2022 é falso, pois não há como aferir se foi prestado em conformidade, ou em desconformidade com o acontecimento real a que se reportou.
10. Não seguindo um percurso decisório que se apresenta conforme com os princípios e regras fundamentais em matéria da prova e não tendo sido produzida qualquer prova de que o arguido prestou depoimento falso e que o fez em audiência de julgamento, nem existindo no processo prova que leve a concluir que o arguido faltou à verdade em sede de inquérito, existe erro notório na apreciação da prova, quanto aos pontos 4) e 5) dos Factos Provados, pelo que, com o devido respeito, a Sentença recorrida padece do vício previsto na al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
11. A prova indicada e examinada na douta Decisão recorrida não os suporta de forma sólida e sem suscitar dúvidas, pelo que os pontos 4) e 5) dos Factos Provados encontram-se incorretamente julgados e, nesse sentido, é mister que se declaram como não provados, atenta a total ausência de prova da sua verificação, o que se requer.
12. Sem prescindir, caso V.ªs Ex.ªs considerem que os pontos 1) e 2) dos Factos Provados na douta Sentença recorrida são suficientes para demonstrar que o arguido prestou depoimento falso (por resultar demonstrado que, em dois momentos processuais distintos, prestou depoimentos contraditórios sobre a mesma realidade, não importando a prova de deles é verdadeiro), entende o Recorrente que também nesta hipótese (que se admite apenas por mera cautela de patrocínio), atento o invocado erro notório na apreciação da prova, nenhuma prova foi produzida no sentido de se poder concluir, sem qualquer dúvida, que o arguido faltou à verdade em audiência de julgamento ou tão pouco em sede de inquérito;
13. Na hipótese de ser acolhido este entendimento, o ponto 4) dos Factos Provados encontra-se incorretamente julgado, ainda que parcialmente, impondo-se que se declare como não provado que o arguido faltou à verdade em sede de audiência de julgamento e depois de ter sido ajuramentado, dada a total ausência de prova a esse respeito.
14. Impugna-se, com o devido respeito, a fundamentação acolhida pelo Tribunal a quo quanto à matéria de Direito, considerando o Recorrente que não se encontram preenchidos os elementos típicos do crime de falsidade de testemunho, pelo que, ao decidir como decidiu, a Sentença recorrida violou o disposto no artigo 360.º n.ºs 1 e 3 do Código Penal, devendo, por esse motivo, ser revogada e o Recorrente absolvido do crime pelo qual foi condenado, o que se requer.
15. O núcleo essencial do ilícito coloca-se na prestação da declaração falsa, desde que feita perante entidade competente e que o agente esteja sujeito a um dever processual de verdade e de completude, contudo, a propósito do que se deve considerar como falsidade da declaração, desenvolveram-se três teorias: a teoria objetiva; a teoria subjetiva; e as teorias ditas intermédias.
16. A questão é controvertida na doutrina e na jurisprudência, dividindo-se, essencialmente, em duas posições: uma no sentido de que comete o crime a testemunha que, em dois momentos distintos, presta depoimentos contraditórios sobre a mesma realidade, não se provando qual deles é verdadeiro, e outra no sentido de que, não se provando qual dos depoimentos é falso não se pode afirmar que se encontra preenchido o elemento objetivo do tipo, ou seja, que o arguido, com referência ao dia, hora e local em que prestou determinado depoimento, mentiu, prestou depoimento que não corresponde à verdade.
17. Acolhe o Recorrente o entendimento vertido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05.07.2006, Processo n.º 0546988, Relator José Piedade, disponível in www.dgsi.pt, de que “só estando fixada a verdade objetiva é que se pode saber se o depoimento é falso”, pelo que, no caso sub iudice, sendo inquestionável que nos factos provados não se encontra fixada a verdade objetiva, não podia o Tribunal a quo afirmar que o Recorrente prestou depoimento falso em audiência de julgamento, pois não resulta provado qual o facto verdadeiro em relação ao qual o arguido faltou à verdade e teve intenção de alterar.
18. Os factos provados, com o expurgo feito, não têm aptidão para preencher o crime de falsidade de testemunho, tipificado nos n.ºs 1 e 3 do artigo 360.º do Código Penal, pelo que se impõe revogar a decisão recorrida e absolver o arguido da prática do aludido crime, o que se requer.
19. Sem prescindir, caso V.ªs Ex.ªs acolham o entendimento de que a matéria constante dos pontos 1) e 2) dos Factos Provados na douta Decisão recorrida é bastante para concluir que o arguido prestou depoimento falso e, como tal, consubstanciar uma conduta que preenche os elementos objetivos do crime de falsidade de testemunho, previsto no artigo 360.º do Código Penal, o que se admite por cautela de patrocínio, deverá, então, nesta hipótese, atender-se à circunstância de que, não tendo sido possível apurar com certeza nos presentes autos, por total  ausência de prova a esse respeito, em qual dos dois momentos processuais o arguido faltou à verdade, a incerteza sobre a data de consumação do crime sempre relevará para efeitos de consideração da prescrição do procedimento criminal contra o Recorrente, que, a existir, como existe, não pode deixar de ser valorada a seu favor.
20. Não tendo sido possível apurar qual dos dois depoimentos do arguido é o falso, a incerteza a este respeito tem de ser resolvida a favor do Recorrente, através da consideração do primeiro depoimento como falso, e da data em que foi prestado como sendo o da consumação do crime para efeitos de contagem do prazo prescricional, por tal lhe ser mais favorável.
21. Sendo o prazo de prescrição do procedimento criminal de 5 anos (artigo 118.º n.º 1 al. c) ex vi artigo 360.º n.º 1 ambos do Código Penal) e correndo tal prazo desde a data da consumação do crime, in casu, desde 17 de janeiro de 2014 (artigo 119.º n.º 1 do Código Penal), não se tendo verificado qualquer causa de interrupção ou de suspensão da prescrição do procedimento criminal entre 17 de janeiro de 2014 e 23 de março de 2022, o procedimento criminal prescreveu no dia 17 de janeiro de 2019, isto é, antes de o Recorrente ter sido constituído como arguido nos presentes autos em 02.11.2022.
22. Na eventualidade de o depoimento falso ser aquele que o Recorrente prestou durante o inquérito, o procedimento criminal prescreveu, pelo que terá de ser declarado extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra o Recorrente, quanto ao crime de falsidade de testemunho pelo qual foi condenado, não podendo manter-se a douta Sentença recorrida, a qual, por conseguinte, deverá ser revogada e o arguido absolvido da prática do aludido crime, o que se requer.
23. Ainda que não se verificasse nos presentes autos a invocada prescrição do procedimento criminal, o que apenas se admite por mero raciocínio académico e cautela de patrocínio, subsistindo dúvida sobre o exato momento em que o arguido faltou à verdade e tendo essa dúvida relevo penal, como seja para efeitos da agravação prevista no n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal, tal dúvida não poderia deixar de ser valorada a favor do arguido em obediência ao princípio in dubio pro reo,
24. O que, no caso sub iudice, imporia que o arguido fosse condenado pela prática do crime de falsidade de testemunho, previsto no artigo 360.º n.º 1 do Código Penal, por referência ao depoimento não ajuramentado prestado em sede de inquérito, na Polícia Judiciária, em 17.01.2014, e, assim, sem a agravação do n.º 3, o que não deixaria  de ter relevo e implicações na medida da pena aplicada ao arguido, em face das diferenças na moldura abstrata da pena, impondo-se, por conseguinte, a sua diminuição e adequação à moldura fixada no n.º 1.
25. Sem prescindir de tudo quanto alegado supra, caso V.ªs Ex.ªs entendam, contudo, não assistir razão ao Recorrente e decidam ser de manter a douta Sentença recorrida quanto à condenação do arguido (seja nos termos do n.º 3 ou do n.º 1 do artigo 360.º do Código Penal), o que se admite por mera cautela de patrocínio, a medida da pena aplicada ao Recorrente deve ser diminuída, por manifesto desequilíbrio e desproporcionalidade, bem como a taxa diária da multa, por inadequada e desproporcional, revelando-se excessivas as punições impostas ao Recorrente.
26. A considerar que o Recorrente praticou os factos pelos quais foi condenado, as circunstâncias concretas que levaram à prática dos factos consubstanciam um diminuto grau de ilicitude, pois oito anos separam os dois depoimentos e, com o devido respeito, não se pode ignorar os efeitos que tal lapso temporal provoca na memória de qualquer pessoa, nomeadamente do Recorrente, revelando-se lógico e plausível que determinados pormenores se percam, sem que isso signifique, contudo, que o depoimento mais recente seja propositadamente falso; acresce que, o Recorrente não apresenta antecedentes criminais e encontra-se total e familiarmente inserido, pelo deve a prevenção especial assumir uma dimensão diminuta.
27. Quanto às necessidades de prevenção geral, deve entender-se que as mesmas se situam num nível mediano.
28. Com o devido respeito, a determinação do quantum da pena efetuada pelo Tribunal recorrido viola os princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação, face às circunstâncias concretas do caso e, consequentemente viola o disposto nos artigos 40.º e 71.º ambos do Código Penal.
29. Quanto à taxa diária da multa, conforme o disposto no n.º 2 do artigo 47.º do Código Penal, deve atender-se à situação económica e financeira do arguido e aos seus encargos pessoais, designadamente aos que resultam dos pontos 6) a 12) dos Factos Provados, pois apesar de consubstanciar um sacrifício real para o Recorrente, impõe deixar asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das suas necessidades e do respetivo agregado familiar.
30. Ponderados todos aqueles fatores e atendendo às necessidades de prevenção geral e especial existentes no caso sub Iudice, é entendimento do Recorrente que a pena mais justa, proporcional e adequada é uma pena de multa inferior àquela em que o Recorrente foi condenado, devendo ser diminuída a medida da pena e a taxa diária da multa, por manifesto desequilíbrio e desproporcionalidade, o que se requer.
31. Procedendo o recurso interposto pelo Recorrente no segmento da medida da pena, e decidindo V.ªs Ex.ªs a redução da pena de multa fixada ao arguido para montante igual ou inferior a 120 dias de multa, deverá considerar-se nos presentes autos o perdão da pena de multa aplicada ao Recorrente, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º n.º 1 e 3.º n.º 2 al. a) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
32. O Recorrente praticou os factos em 23 de março de 2022, isto é, antes de 19 de junho de 2023; nasceu no dia .../.../1991, pelo que, à data da prática dos factos tinha 30 anos de idade; não se verifica nenhuma das exceções previstas no artigo 7.º; e procedendo o recurso, no segmento da medida da pena, sendo reduzida a pena de multa para montante igual ou inferior a 120 dias de multa, encontram-se, pois, verificados todos os requisitos para o arguido beneficiar do perdão da pena de multa.
33. Deve, assim, ser declarado o perdão da pena de multa aplicada ao Recorrente, extinguindo-se, em consequência, a pena perdoada, nos termos do artigo 128.º n.º 3 do Código Penal, o que se requer, ainda que sob condição resolutiva de o arguido não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da mencionada Lei, nos termos do artigo 8.º n.º 1 ex vi artigo 15.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
Nestes termos, nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de V.ªs Ex.ªs, por todas as conclusões aduzidas, deve ser dado provimento ao presente Recurso e, por via dele, revogada a douta Sentença recorrida e, consequentemente, deve o arguido ser absolvido da prática de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º n.ºs 1 e 3 do Código Penal, na pena de cento e trinta dias de multa, à taxa diária de oito euros, por não se encontrarem preenchidos os seus elementos objetivos e subjetivos;
Caso assim não se entenda, o que se admite por mera cautela de patrocínio, sempre deverá ser declarado extinto, por prescrição, o procedimento criminal instaurado contra o Recorrente, quanto ao crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º n.ºs 1 e 3 do Código Penal e, em consequência, deverá ser revogada a douta Sentença recorrida e o arguido absolvido da prática do crime pelo qual foi condenado;
Caso assim também não se entenda, o que se concebe por mera cautela de patrocínio, deve ser reduzida a medida da pena aplicada ao Recorrente, bem ainda como o valor da taxa diária, atendendo a parâmetros que se coadunem com a sua situação económica e financeira do Recorrente, substituindo-se a douta Sentença recorrida, nesta parte;
Procedendo o recurso interposto pelo Recorrente, no segmento da medida da pena, e decidindo V.ªs Ex.ªs a redução da pena de multa fixada ao arguido para montante igual ou inferior a 120 dias de multa, deverá ser declarado o perdão da pena de multa aplicada ao Recorrente, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º n.º 1 e 3.º n.º 2 al. a) da  Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, por se encontrarem reunidas todas as condições para o efeito, extinguindo-se, em consequência, a pena perdoada, nos termos do artigo 128.º n.º 3 do Código Penal, o que se  requer, ainda que sob condição resolutiva de o arguido não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da mencionada Lei, nos termos do artigo 8.º n.º 1 ex vi artigo 15.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães com o regime e efeito adequados.

A senhora Procuradora da República que representou o Ministério Público na 1ª instância respondeu, concluindo da seguinte forma:

«1. No âmbito dos presentes autos foi o arguido AA condenado pela prática, como autor material, de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punido pelo artigo 360.º, nºs 1 e 3, do Código Penal, na pena de 130 (cento e trinta) dias de multa, à taxa diária de 8 (oito) euros, o que perfaz a quantia total de € 1040,00 (mil e quarenta) euros.
2. A sentença recorrida não padece do vício constante na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.
3. Pois o Tribunal a quo indicou as provas que serviram para formar a sua convicção, todas elas sujeitas à livre apreciação do julgador, e decidiu segundo a sua prudente convicção, pelo que a prova produzida na audiência de julgamento não impõe modificação, consistente e atendível, da decisão da matéria de facto.
4. O que acontece no caso vertente é que o recorrente não concorda que determinados factos tenham sido dados como provados, pretendendo impor a sua própria convicção, leitura e análise da prova produzida em sede de audiência.
5. Atenta a factualidade dada como provada, mostram-se preenchidos os elementos do tipo legal de crime de falsidade de testemunho pelo qual o arguido foi condenado.
6. Uma vez que ficou demonstrada de forma evidente a desconformidade entre a declaração emitida pelo agente e a realidade por ele apreendida, pois existem declarações contraditórias entre si (aquelas que foram prestadas em sede de inquérito e aquelas que o arguido produziu em sede de audiência de discussão e julgamento) e uma delas exclui necessariamente a outra, tornando-se inequívoco que o arguido declarou com falsidade.
7. O Tribunal a quo não teve dúvidas de que o arguido prestou falsas declarações em sede de audiência de discussão e julgamento que teve lugar no dia 23 de Março de 2022 no âmbito do Processo Comum Colectivo com o nº 43/14.7PBBRG, que correu termos no Juízo Central Criminal ...-Juiz (e não em sede de inquérito), e após ter prestado juramento e ser advertido das consequências para quem faltar à verdade, encontrando-se, assim, preenchido, o tipo objetivo do crime previsto no artigo 360º, nºs 1 e 3, do Código Penal.
8. Pelo que o prazo de prescrição do procedimento criminal é de 10 anos (e não de 5 anos como refere o recorrente), em face da moldura penal abstracta aplicável (pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias) e ao disposto no artigo 118º, nº 1, alínea b), do Código Penal.
9. O Tribunal recorrido fez uma correcta interpretação dos artigos 40º, 70º e 71º, todos do Código Penal na determinação da medida concreta do número de dias de multa em que condenou o arguido e da taxa diária aplicada.
10. Uma vez que o arguido foi condenado na pena de 130 dias de multa e que esta penas se revela adequada e proporcional às finalidades da punição não deve a mesma ser alterada e, a ser assim, não estão preenchidos os pressupostos para aplicação do regime de perdão de penas previsto na Lei nº38-A/2023, de 2 de Agosto, uma vez que nos termos do disposto no artigo 3º, nº 2, alínea a), apenas são perdoadas “as penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão”.»
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Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral adjunta emitiu parecer, no sentido de que recurso deverá ser julgado improcedente em todas as suas vertentes, com exceção da medida concreta da pena de multa e respetivo quantum diário, que «deverá corresponder a 1/5 do limite máximo e, se fora caso disso, caberá ao tribunal da 1ª instancia aplicar o perdão previsto nas disposições conjugadas dos arts. 2º, nº1, 3º, nº 2, al. a), 14º todos da Lei 38- A/2023, de 2 de Agosto.»
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer[1].
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1. Questões a decidir:

- Impugnação da matéria de facto por via do vício do erro notório na apreciação da prova, do artigo 412.º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal;
- Subsunção dos factos ao crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo artigo 360.º, nºs 1 e 3 o Código Penal;
- Prescrição do procedimento criminal;
- Medida concreta da pena e respetivo quantitativo diário;
- Aplicação do perdão da pena de multa, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 2.º n.º 1 e 3.º n.º 2 al. a) da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
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2. Segue-se a enumeração dos Factos Provados, Não Provados e respetiva Motivação, constantes da sentença recorrida.
«1) No dia 23 de março de 2022, na audiência de discussão e julgamento Processo Comum (Tribunal Singular) realizada no âmbito no processo Comum Coletivo no 43/14.7PBBRG, que correu termos no Juízo Central Criminal ..., J..., o arguido, que ali depôs como testemunha e após ter prestado juramento e ser advertido de que a falsidade do seu depoimento o faria incorrer em sanções criminais, disse que acompanhou o seu amigo BB na entrega de um carro, mas que antes disso aquele parou numa bomba de gasolina para falar com dois senhores, posteriormente, encontrou-se novamente com as mesmas pessoas junto ao Estádio .... Disse não saber o que eles queriam apenas tendo ouvido que eles queriam ir ao casino não sabendo para o quê, pois não perguntou. Declarou, ainda, que depois foram à beira de um talho, tendo ficado no carro, não sabendo o que foram lá fazer.
2) Na fase de inquérito daquele mesmo processo, o arguido, no dia 17 de janeiro de 2014, ouvido enquanto testemunha, referindo-se à situação descrita em 1), em que acompanhou BB, seu amigo, disse que "Sensivelmente por volta das 14h00, este seu amigo recebeu algumas chamadas telefónicas, sendo que em ato seguido se fizeram dirigir para junto do Estádio .... Ali encontraram-se com dois indivíduos seu amigo conversou com ambos, sendo que o teor da conversa versava sobre levantamentos ou pagamentos de dinheiro, tendo (...) ouvido de um dos suspeitos que se poderiam dirigir ao Casino da ..., onde podiam efetuar os levantamentos que pretendiam. Seguidamente o seu amigo disse-lhes que não podia ir à ..., uma vez que tinha trabalho para fazer, pelo que os suspeitos atrás referidos lhes disseram para os seguirem, pois conheciam um talho, onde poderiam efetuar os referidos levantamentos ou pagamentos. Assim, seguiram-nos pela estrada que liga ... a ..., vindo a imobilizar-se junto a uns prédios com entrada em forma de "U", perto de um talho designado ..., que ali se situa.
Em ato seguido (...) BB dirigiu-se juntamente com o suprarreferido individuo de raça branca, para o interior desse talho, onde demoraram cerca de meia hora, ficando o depoente no carro à espera deste seu amigo. Volvidos cerca de 30 minutos, os mesmos saíram do referido estabelecimento O seu amigo regressou à viatura onde o depoente o aguardava, tendo em ato seguido abandonado o local, sendo que o seu amigo referiu que naquele local havia efetuado alguns pagamentos, mas depois em conversa disse-lhe que no âmbito daquela situação ainda se ia lixar".
3) O arguido sabia que estava obrigado ao dever de prestar declarações e com verdade e que, mentindo, incorria em responsabilidade criminal.
4) Não obstante o mencionado em 3), o arguido, em sede de julgamento, prestou depoimento falso, tendo perfeita consciência da falsidade do que declarava quanto ao que lhe foi perguntado, e que com isto defraudava o interesse do estado na boa administração da justiça
5) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida por lei.
6) É ajudante de pintor de automóveis, auferindo, mensalmente, o salário mínimo nacional.
7) Vive com a companheira e dois filhos, de 5 anos e três meses de idade. 8) A companheira tem um salão de cabeleireiro e obtém mensalmente, dessa atividade, €900/€1000
9) Vivem em casa pertença dos pais da companheira do arguido.
10) O arguido tem um empréstimo bancário contraído para aquisição de um aspirador, liquidando, mensalmente, a esse titulo, o valor de €84.
11) Paga, mensalmente, o valor de €62 a título de dois seguros automóveis de veículos que utiliza
12) Tem o 9.º ano de escolaridade.
13) Nunca sofreu qualquer condenação criminal.
Inexistem factos não provados.
O Tribunal não se pronuncia quanto à demais matéria alegada na acusação e na contestação, porquanto se afigura irrelevante, conclusiva ou de direito
Todos os elementos probatórios constantes dos autos foram analisados de uma forma critica e com recurso a juízos de experiência comum, tendo sido todos articulados e concatenados entre si.
Quanto aos factos dados como provados, perante a remessa ao silêncio do arguido, no que concerne aos factos 1) e 2), o Tribunal alicerçou-se nos documentos de fls. 5, ata de audiência de discussão e julgamento constante de fls.14, CD de fls. 79 e transcrição de fls. 80 a 101
Relativamente aos factos 3) a 5), resulta das regras da experiência comum que, agindo como agiu, o arguido revelou ter intenção direta de praticar os factos, como efetivamente, o fez. Como se refere no AC. da R.P. de 23/02/93, B.M.J 324/620, "dado que 0 dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao principio da normalidade ou das regras da experiência". No mesmo sentido vide AC. da R.P. 0140379, 03/10/2001, AC. R.G. 1559/05.1, de 14/12/2005, ambos em wvftv.iurisprudencia.vlex.pt
Assim, alicerçado nas regras da experiência, o Tribunal conclui pela Processo Comum (Tribunal Singular) ocorrência da mentira na audiência de julgamento, tendo plena consciência o arguido de que estava obrigado ao dever de prestar declarações com verdade e que, mentindo, incorria em responsabilidade criminal, dado que tal advertência lhe foi feita pelo Exmo. Sr. Juiz que presidiu ao coletivo. O confronto das declarações do arguido prestadas em sede de inquérito, a fls. 5, afigura-se lógico e coerente com o conteúdo comunicacional e incompatível com a falsidade à boca da inquirição, ao contrário do depoimento prestado em sede de julgamento, revelando-se o mesmo claramente ilógico, já que o arguido declara que foi, juntamente com o ali arguido, BB, seu amigo, ter com outros dois indivíduos a uma bomba de gasolina e depois ao Estádio ...; depois eram para ir ao Casino mas depois acabaram por ir ao talho e que ficou à espera no carro que BB voltasse do talho, após lá ter ido ter com os dois indivíduos mas nunca lhe perguntou o que estava a fazer ou a tratar. Dirão as regras da experiência que, perante tão estranha sucessão de deslocações e acontecimentos, sempre o arguido perguntaria a BB o que andaria a fazer, nos termos por si relatados em sede de inquérito, tanto mais que eram amigos. Limitar-se a acompanhá-lo sem nada questionar é que se afigura totalmente inverosímil.
Infere-se, assim, como acontece em muitas destas situações, que o depoimento prestado em audiência, ao contrário do inquérito ("a quente"), foi pensado num propósito claro de favorecer o arguido BB, com quem o aqui arguido manteria relações de amizade, como descreveu nas suas declarações prestadas em inquérito/ julgamento e dado o tempo de preparação das declarações que iria prestar.
Os factos 6) a 12) foram dados como provados tendo em conta as declarações do arguido em audiência, que se afiguraram credíveis.
Para dar como provado o facto 13), o Tribunal alicerçou-se no C.R.C. junto a fls. 129.»

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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
O recorrente começa por impugnar a matéria de facto descrita nos pontos 4 e 5 dos Factos Provados, argumentando que perante o silêncio do arguido, o Tribunal a quo «alicerçou o seu entendimento, tão só, em função de regras de experiência comum, não consentâneas, contudo, com a demais prova produzida nos autos, mormente documental, mais efetuando uma ponderação probatória não assente em critérios lógicos, sólidos e sem suscitar dúvidas». Num claro apelo à ocorrência de vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, cuja apreciação é, aliás, oficiosa[2].
Tais vícios são os que resultam do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum. São «vícios ao nível da lógica jurídica da matéria de facto, da confeção técnica do decidido, apreensíveis a partir do seu texto, a denunciar incoerência interna com os termos da decisão»[3].
Entre tais vícios está o erro notório na apreciação da prova – previsto na al. c) do n.º 2 do citado artigo 410.º – que é precisamente aquele que consiste numa «falha grosseira e ostensiva na análise da prova» que leva a que «um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou que se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das legis artis»[4].
Vejamos agora nessa perspetiva a sentença em recurso, designadamente os impugnados pontos 4 e 5 dos Factos Provados, dos quais decorre que o arguido prestou um depoimento falso e que o fez em audiência de julgamento, agindo de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta não era permitida por lei.
Como se alcança da própria fundamentação factual da sentença, tendo o arguido usado do direito ao silêncio, o Tribunal a quo alicerçou a sua convicção exclusivamente no teor dos documentos de fls. 5, ata de audiência de discussão e julgamento constante de fls. 14, CD de fls. 79 e transcrição de fls. 80 a 101 e sua conjugação com as regras da experiência, dada a inexistência de qualquer outra prova.
Tais documentos mais não são do que a reprodução do conteúdo dos dois depoimentos que o ora arguido, então na qualidade de testemunha, prestou em dois momentos distintos, no âmbito do mesmo processo crime nº 43/14.... primeiro, na fase de inquérito, em 17 de janeiro de 2014; e o segundo depoimento na audiência de julgamento, que decorreu perante tribunal coletivo, no Juízo Central Criminal ..., em 23 de março de 2022.
Tais depoimentos encontram-se reproduzidos nos pontos 2 e 3 dos Factos Provados, que não foram sequer impugnados.
Da análise comparativa desses dois depoimentos logo ressalta um primeiro dado essencial: os depoimentos não são contraditórios entre si, apenas o prestado no inquérito contém mais pormenores do que aquele que foi prestado em audiência.
Em ambos os depoimentos o ora arguido (então na qualidade de testemunha), narra um episódio ocorrido em 14 de setembro de 2013, da parte da tarde, afirmando sempre que ia no carro do seu amigo BB, e o acompanhou a um local junto do Estádio ..., onde ele falou com «uns senhores», tendo ouvido que eles queriam ir ao casino, após o que se deslocaram a um talho, onde entraram, tendo o ora arguido ficado no carro.
Em ambos os depoimentos resulta também evidente que o ora arguido não conhecia os tais «senhores» com quem o seu amigo se encontrou e que era absolutamente alheio aos assuntos que eles trataram.
O que se verifica é que quando prestou declarações no inquérito o ora arguido forneceu alguns pormenores sobre o teor da conversa entre o seu amigo e aqueles dois «senhores», referindo genericamente que ela versava sobre levantamentos ou pagamentos de dinheiro e que ouviu um dos senhores dizer que podiam ir ao casino da ..., mas como seu amigo dissesse que não podia ir lá, os senhores disseram então que conheciam um talho, onde se poderiam efetuar os levantamentos ou pagamentos; e depois de terem ido ao tal talho o seu amigo lhe disse que havia efetuado alguns pagamentos e, posteriormente, que no âmbito daquela situação ainda se ia «lixar».
Pormenores estes que quando prestou depoimento em audiência de julgamento já não mencionou.
Acontece que entre os dois depoimentos em causa medeiam nada mais nada menos do que oito anos.
Quando o ora arguido prestou depoimento no âmbito do inquérito tinha 22 anos de idade e, quando prestou depoimento em audiência, tinha 30 anos.
Por sua vez, o episódio sobre que versam os depoimentos respeitava à relação de um amigo seu com dois indivíduos que o ora arguido nem sequer conhecia e a um assunto a que ele era (e continuou a ser) absolutamente alheio; tendo sido meramente acidental o seu conhecimento desse episódio, do qual, mesmo no depoimento prestado do inquérito, revelou uma muita escassa compreensão, já que o que então afirmou ouvir, só por si, nada de concreto permite concluir.
Ora, é por demais conhecido o efeito erosivo do tempo na memória humana.
Com o passar dos meses e anos todas as pessoas vão esquecendo pormenores, conversas e acontecimentos a que assistiram, e, cada um de nós, tem necessariamente múltiplos exemplos dessas situações na sua própria vida.
Visto o caso em apreço por este prisma, quem pode estranhar que alguém não consiga reproduzir escassos pormenores que apreendeu em conversa a que assistiu oito anos antes, a qual não lhe dizia respeito e em absolutamente nada influenciou a sua vida?
E quem pode estranhar que um rapaz de 22 anos, durante a tarde, circule no carro de um amigo e o acompanhe, sem questionar, a uma bomba de gasolina, a um local próximo do Estádio ... e depois a um Talho, para que ele trate de uns assuntos com uns «senhores» que só o amigo conhece?
Quem não sabe que a grande maioria dos jovens de 22 anos gosta de andar de carro com amigos, mesmo que seja apenas para dar «umas voltas» enquanto o amigo/condutor vai tratar de assuntos dele?
Pelo que, sendo o ora arguido então o jovem de 22 anos a andar no carro do amigo, nas descritas circunstâncias, contrariamente ao sustentado pelo Tribunal a quo na motivação, não é de modo algum «totalmente inverosímil» que ele tenha acompanhado o amigo sem o questionar sobre os assuntos que tratava.
De tudo ressaltando à evidência que o conteúdo dos dois depoimentos prestados pelo ora arguido no âmbito do processo crime nº 43/14.7PBBRG, não permite, sem mais, concluir que o arguido prestou deliberadamente um depoimento falso e que o fez em audiência de julgamento.
Pelo que a conclusão inversa a que chegou o Tribunal a quo revela uma falha grosseira na análise da prova, patente para qualquer homem médio que leia a sentença recorrida, que nela deteta logo a violação de regras elementares da experiência, relacionadas com o efeito do tempo na memória, tendo em conta as concretas circunstâncias do caso, já aludidas.
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Assim sendo, a prova produzida é incompatível com a inclusão nos Factos Provados da factualidade descrita nos pontos 4 e 5, que constitui um erro notório na apreciação da prova, que emerge por si só e de forma evidente do texto da sentença recorrida, afetando-a na sua própria estrutura e propagando-se à decisão de mérito, integrando o vício da al. c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
A reparação deste vício pode ser feita nesta instância, como permite o artigo 431.º, al. a) do Código de Processo Penal, uma vez que os autos dispõem de todos os elementos probatórios que sustentaram a decisão recorrida. Levando a que se retire dos factos provados a factualidade descrita nos pontos 4 e 5, que passa para os não provados.
Com a consequente absolvição do arguido do crime de falsidade de testemunho pelo qual havia sido condenado e revogação em conformidade da sentença recorrida.
Ficando prejudicado o conhecimento de todas as demais questões suscitadas no recurso.
***
III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA, revogando a sentença recorrida e decidindo, em substituição, absolvê-lo da prática do crime de falsidade de testemunho, previsto e punível pelo artigo 360.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal.
Sem tributação.
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Guimarães, 23 de janeiro de 2024
(Elaborado e revisto pela relatora)

Fátima Furtado (Relatora)
Paulo Almeida Cunha (1º Adjunto)
Armando Azevedo (2º Adjunto)
 

[1] Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Cf. acórdão do STJ nº 7/95, in DR Iª série, de 28.12.1995, que fixou jurisprudência obrigatória nesse sentido e ainda hoje mantém toda a atualidade.
[3]  In acórdão do STJ de 07.12.2005, CJ-STJ, tomo III, 2005, p. 224.
[4] Cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, Editora Rei dos Livros, 8ª ed. Lisboa, 2012, p. 80.