Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1502/22.3T8VCT-A.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO
UTILIZAÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ARTIGO 931º DO CPC
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO DA REQUERENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação.
- A utilidade de um procedimento não equivale à sua procedência.
- O direito de usar provisoriamente a casa de morada de família, previsto no art. 931º, nº 9, do Código de Processo Civil, não está dependente da titularidade de um específico contrato de arrendamento ou de comodato.
Decisão Texto Integral:
Rel. – Des. José Manuel Flores
1º Adj. - Des. Sandra Melo
2º - Adj. - Des. Conceição Sampaio

Recorrente(s): AA.

Recorrido(s): BB;           
*
Acordam os Juízes na 3ª Secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. RELATÓRIO

No âmbito de processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, a requerente AA veio pedir contra o ainda marido, BB, nos termos do art.º 931.º, n.º 7, do C.P.C., que o imóvel sito na Quinta ... ou Travessa ... lhe seja atribuído durante a pendência da acção, como casa de morada de família.

Foi ordenado o contraditório, nos termos do art.º 990.º do C.P.C., tendo-se determinado a realização de uma tentativa de conciliação, que se gorou, e notificado o R. para deduzir, querendo, oposição, o que este fez.
O Requerido opôs-se, concluindo que deverá o pedido da Requerente ser julgado totalmente improcedente por legalmente inadmissível, ou, subsidiariamente, julgar-se procedente o peticionado pelo Requerido, por provado, atribuindo-se o direito de habitação da casa de morada de família ao mesmo.
Após, o Tribunal decidiu, anunciando que, sic: “De acordo com o art. 931.º, n.º 7, do C.P.C., entre o mais, a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode o tribunal fixar um regime provisório quanto à utilização da casa de morada da família, após ordenar a realização das diligências que considerar necessárias: o que foi feito, convocando-se uma tentativa de conciliação e dado o contraditório, como acima referido. Para tal decisão, não vê o tribunal necessidade de ouvir testemunhas, não havendo nulidades, questões prévias ou incidentais a conhecer e que obstem à prolação de decisão, nos termos do art.º 931.º n.º 7, do C.P.C.”

A final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Por tudo quanto ficou exposto julga-se o presente incidente procedente, atribuindo-se provisoriamente à requerente a utilização da casa de morada da família nos termos do art.º 931.º, n.º 7, do C.P.C. até ao divórcio das partes.
Custas do incidente pelo requerido por ter deduzido oposição e ter decaído, art.º 527.º do C.P.C..”

Inconformado com esta decisão, o Requerido recorreu, tendo sido proferido acórdão que anulou a decisão a fim de ser completada nos termos então expressos.
Após instrução e contraditório das partes, foi proferida nova sentença que julgou o “incidente improcedente”, abstendo-se de atribuir a alguma das partes o uso da casa de morada de família nos termos do art. 931º, nº 7, do C.P.C..

Descontente, a Requerente apelou, formulando as seguintes
Conclusões

A A. Durante a pendência da acção de divórcio, a Recorrente peticionou que lhe fosse atribuída provisoriamente a utilização da casa de morada de família (art.º 931.º, n.º 7 do CPC); para tanto, alegou que apesar do respectivo imóvel estar registado em nome de terceiros, o negócio que deu origem ao registo foi simulado e que pende uma acção judicial, que identificou, para a declaração de nulidade desse acto. Concluiu que o imóvel é seu bem próprio; que nele sempre residiu e reside juntamente com dois filhos, sem qualquer oposição de terceiros.
B. O Tribunal a quo indeferiu a pretensão das partes quanto à atribuição provisória da casa de morada de família – decisão de que se recorre.
C. A sentença proferida pelo Tribunal a quo é nula nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1 alíneas. b) e c) do CPC.
D. O art.º 607.º n.º 3 do CPC impõe a indicação na sentença dos factos provados, bem como das normas jurídicas aplicadas e sua interpretação, tal necessidade de fundamentação das decisões encontra-se prevista ainda no art.º 154.º do CPC, mas também no art.º 205.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
E. Tal não ocorreu na sentença: as partes têm o direito de saber as razões da decisão do Tribunal, pois só assim podem avaliar a bondade da mesma e, se for caso disso, ponderar a sua impugnação.
F. Assim, por manifesto incumprimento da sentença recorrida do disposto nos arts. 154º e 607.º, n.º 3 do CPC, a decisão proferida é nula, por não ter especificado os fundamentos de direito, de acordo com o art. 615º, n.º alínea a) do CPC, o que expressamente aqui se argui.
Acresce ainda,
G. A Mme. Juiz a quo entendeu que embora tenha sido decretado o divórcio entre Recorrente e Recorrido, com trânsito em julgado, o presente incidente de atribuição provisória da casa de morada de família não se mostra supervenientemente inútil, mas, de modo inesperado, decidiu não atribuir a casa de morada de família a nenhum dos cônjuges.
H. É manifesta a existência de oposição entre os fundamentos e a decisão, a que corresponde um vício lógico desta: na fundamentação da sentença a Mme. Juiz a quo seguiu uma linha de raciocínio, devidamente motivada que apontava para determinada conclusão (a atribuição da casa de morada de família a um dos ex-cônjuges),mas, a final, decidiu em sentido diverso (a não atribuição da casa a nenhum dos ex-cônjuges).
I. O que afecta irremediavelmente a sentença com o vício de nulidade, nos termos do disposto no art. 615º, n.º 1 alínea c) do CPC, que aqui se argui.
J. A sentença viola o disposto no art. 931º do CPC.
K. A Recorrente alegou que reside, desde sempre, na casa de morada de família, que nunca residiu noutro imóvel e que nele vive (até hoje) com dois filhos menores, sem qualquer oposição de terceiros. Mais alegou que, apesar do aludido imóvel estar registado em nome de terceiros, o negócio que deu origem ao registo foi simulado e que pende uma acção para a declaração de nulidade desse acto, considerando, por isso, o imóvel um bem próprio seu - tais factos foram dados como provados nos pontos 1, 6 e 9 da matéria de facto provada.
L. O Tribunal a quo indeferiu a atribuição da casa de morada de família (a qualquer um dos ex-cônjuges) por não ter sido alegado que o imóvel haja sido arrendado, comodato ou objecto de qualquer direito real! Erradamente.
M. É falso que não foi alegado por qualquer das partes que o imóvel objecto de qualquer direito real! A Recorrente alegou, como se referiu, que corre termos o processo n.º 1684/21...., onde peticiona a declaração de nulidade, por simulação dos negócios de compra e venda celebrados a 13.08.2011 e 30.10.2019, o que sendo procedente, redundará no reconhecimento judicial de que a casa de morada de família sub iudice pertence à Recorrente, é um bem próprio da Recorrente!
N. Os alegados “proprietários” da casa de morada de família - uns meros terceiros, beneficiários da presunção derivada do registo predial - nunca colocaram em causa a utilização da casa de morada de família, que se mantém, como sempre, atribuída à família (leia-se à Recorrente e aos filhos do extinto casal).
O. Pelo que não se pode aceitar, por um lado, que não tenha sido alegado por qualquer uma das partes que o imóvel seja objecto de qualquer direito real e, por outro, sem conceder, que essa (eventual) falta de alegação seja motivo impeditivo de atribuição da casa de morada de família, porque não é!
P. Acresce ainda referir que, por nada impedia, in casu, a utilização, no incidente previsto no artigo 931.º do CPC, dos critérios enunciados no artigo 1793.º do Código Civil, que deveriam ter presidido à escolha do cônjuge a quem deverá ser atribuída a casa de morada de família - o que o Tribunal a quo erradamente não fez!
Q. Se a Primeira Instância entendeu que não opera a ineficácia ou caducidade automática do regime provisório anteriormente peticionado com o trânsito em julgado da decisão de divórcio e ainda que exista uma presunção de registo predial do imóvel a favor de terceiros, por ter sido dado como provado que a Recorrente ali vive e sempre viveu desde há 20 anos a esta parte e ali continua a viver, sem qualquer oposição de terceiros (porque o imóvel é, como todos sabem e se provará no aludido processo judicial pendente, um bem próprio da Recorrente), deveria, com o devido respeito, ter atribuída a utilização da casa de morada de família à Recorrente.

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, V. EXAS., REVOGANDO A SENTENÇA PROFERIDA POR OUTRA DECISÃO QUE ATRIBUA A UTILIZAÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMILIA À RECORRENTE, FARÃO NECESSÁRIA JUSTIÇA!

Em resposta, o Recorrido alega, em suma, que o recurso deve ser julgado improcedente.

Ainda no tocante às invocadas nulidades, o Tribunal a quo diz que “não foi cometida nenhuma”.

2. QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas[2] que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[3]
As questões enunciadas pelo/a(s) recorrente(s) podem sintetizar-se da seguinte forma:
- Nulidade da decisão;
- Violação do art. 931º, do Código de Processo Civil.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1.  Nulidade da decisão
Conclui a Apelante que a sentença recorrida é nula nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, als. b) e c), do Código de Processo Civil.
Alega-se, para o efeito, que a sentença não especificou os fundamentos de direito, de acordo com o art. 615º, n.º alínea a) do C.P.C., e é manifesta a oposição entre os seus fundamentos e a respectiva decisão.
O Recorrido opõe-se.

Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do Artigo 615º, nº1, alínea b), do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de actividade que afecta a validade da sentença.
Ensinava a este propósito ALBERTO DOS REIS que[4]
«Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto[5]
Nas palavras precisas de Tomé Gomes[6], «Assim, a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adoptada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.»
Conforme se refere de forma lapidar no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.4.95, Raul Mateus, [7]“ (...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância.” O mesmo Tribunal precisou que a nulidade da sentença por falta de fundamentação não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação deficiente ou pouco persuasiva, antes se impondo, para a verificação da nulidade, a ausência de motivação que impossibilite o anúncio das razões que conduziram à decisão proferida a final (Acórdão de 15.12.2011, Pereira Rodrigues, 2/08). Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade, ou erroneidade – integra a previsão da alínea b) do nº1 do Artigo 615º, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.6.2016, Fernanda Isabel Pereira, 781/11.[8] «O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade[9]
Por sua vez, na alínea c), do nº 1, desse art. 615º, estipula-se que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição[10].
Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos[11]. Por outras palavras, se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma[12].
Mais se adianta que a não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença[13].
Posto isto, começando pelo vício da citada al. b), não podemos concordar com as conclusões da Apelante, dado que é patente que, de uma forma minimamente fundada e estruturada, a sentença em crise cumpriu o dever de fundamentação de facto e de direito cuja falta lhe é imputada.
O mesmo sucede no que diz respeito ao alegado vício da al. c), dado que a consequência lógica da conclusão da sentença acerca da manutenção da utilidade do incidente é tão-somente a de se impor a apreciação do seu mérito e não que o pedido da Apelante seja automaticamente reconhecido.
Em suma, com o devido respeito, as nulidades arguidas cabem no rol daquelas que se vão tornando comuns nas apelações para estes Tribunais mas que carecem de substância e traduzem apenas um descontentamento com o sentido da decisão, que carece de sentido útil e não substitui a devida argumentação jurídica sobre os supostos erros de julgamento da mesma.
Improcedem, portanto, as nulidades invocadas.

3.4. FACTOS CONSIDERADOS

 Factos provados. 
1 – A A. reside no imóvel em questão, sito na Quinta ..., ..., ..., Guimarães.
2 – O R. reside na Urbanização ..., ..., Guimarães.
3 – As referidas residências são as que constam dos autos de divórcio, destes, bem como das procurações outorgadas por ambos aos seus mandatários.
4 – Quer o A. quer o R. admitem que vivem em residências separadas desde o dia .../.../2017, defendendo o R. na sua contestação do processo de divórcio que o divórcio deve ser decretado com efeito a tal data.
5 – As partes têm três filhos: CC, nascida aos .../.../......, DD, nascido aos .../.../......, e EE, nascida aos .../.../.......
6 – Até ao dia .../.../2017 a requerente, requerido e filhos residiam no imóvel referido em 1.
7 – Por sentença homologatória de acordo de exercício das responsabilidades parentais, de 11/12/2017, os três filhos do casal ficaram a residir com a mãe.
8 – Por sentença homologatória de acordo de alteração do exercício das responsabilidades parentais, de 31/01/2019, a filha CC ficou a viver com o pai, situação que se mantém.
9 – O filho maior de idade e a filha menor de idade vivem com a mãe.
10- Mediante Ap. Nº ...00 de 16/08/2011, foi registada a aquisição do prédio a favor de FF e GG.
11- No dia 13 de Agosto foi celebrado contrato de compra e venda por via do qual a autora declarou vender a FF e GG, tios do Requerido, que declararam comprar o imóvel cuja atribuição provisória cuja atribuição provisória cada um dos ex-conjuges requer.
14- No dia 30 de Outubro de 2019, FF e GG, tios do Requerido, declararam vender a HH e mulher II, pais do Requerido, FF e GG, tios do Requerido, que declararam comprar, o imóvel cuja atribuição provisória cada um dos ex-cônjuges requer.
15- A requerente, profissionalmente activa, trabalha como operadora de cal center, no domicilio, para a empresa: “EMP01..., Lda” com a remuneração base de 696, 35 Euros, exercendo ainda actividade como arbitra de voleibol, auferindo cerca de 400,00 Euros/ano; o filho DD frequenta o 1º ano do curso de contabilidade e gestão e a filha, EE frequenta o 7º ano na escola das ....
16- Os rendimentos mensais do agregado são na ordem de 1 030,35 Euros, suportando despesas mensais na ordem dos 300,00 euros.
17- O requerido vive com os pais e filha mais velha, trabalha como “acabador de tecidos” na empresa EMP02..., S.A., auferindo um total de 1 246,00 Euros. O agregado familiar do requerido, contando com os salários dos progenitores e da filha, aufere um rendimento mensal de 5 856, 65 Euros e despesas mensais fixas de 462,00 Euros.

3.5. DO DIREITO APLICÁVEL
Dita o art. 931º, nº 9, do Código de Processo Civil, que em qualquer altura do processo, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto a alimentos, quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos e quanto à utilização da casa de morada da família; (…).
Este procedimento, importa desde já salientar, não é confundível com o distinto processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada de família, regulado no art. 990º, do C.P.C..
O que está em causa no incidente que aqui nos trás, previsto no citado art. 931º, nº 9, é a apenas a atribuição provisória ao requerente do direito de utilizar, com exclusão do outro, a casa de morada da família, quer se verifique ou não simultâneo ou sucessivo pedido de “atribuição da casa” (arts. 1105.º e 1793.º CC e art. 990.º CPC).[14]
Acresce, em complemento desta afirmação, que aquele normativo inserto no art. 931º não alude a qualquer circunstância que importe ou condicione o mérito desse atribuição provisória à natureza da titularidade da propriedade ou posse do imóvel que constitui essa morada (art. 9º[15], do Código Civil).
Posto isto, positivamente, que critérios devemos atender para enquadrar esse pedido incidental?
Com se afirma a propósito em Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 17.2.2022[16], que por economia e em respeito do disposto no art. 8º, nº 3, do Código Civil, aqui citamos: “Neste “quadro” doutrinário e jurisprudencial, no incidente de atribuição provisória da casa de morada de família previsto no nº7 do art. 931º do C.P.Civil de 2013, afigura-se-nos ser de seguir o seguinte entendimento: o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, mas sim a critérios de conveniência e oportunidade, mas deve considerar os critérios orientadores que estão fixados para o regime definitivo no art. 1793º do C.Civil, sendo a necessidade/premência da casa o factor principal a atender (revelando aqui a situação patrimonial de cada um dos cônjuges), acompanhado do factor relativo ao interesse dos filhos (revelando aqui o interesse destes em viverem na casa que foi a morada de família), mas também pode e deve considerar outras razões atendíveis (o referido art. 1973º utiliza a expressão «considerando, nomeadamente), que devem ser ponderadas casuisticamente, como é o caso da idade, do estado de saúde dos cônjuges, da localização da casa relativamente ao local de trabalho da cada um, da circunstância de algum deles ter outra casa em que pode estabelecer a sua residência, etc.”
De acordo com esse art. 1793º, nº 1, do Código Civil: Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
Neste conspecto e descendo ao caso, urge esclarecer previamente que damos por adquirido que se impõe a apreciação do mérito deste incidente, uma vez que a primeira instância o decidiu definitivamente (cf. art. 635º, nº 5, do Código de Processo Civil).
Mais se acrescenta que, diversamente do que entendeu a decisão recorrida, pelas razões acima adiantadas, estamos perante uma providência em que o legislador em lado algum exige que a morada a atribuir seja objecto de alguma contrato típico algum dos referidos pela sentença para que se possa discutir a mera atribuição do seu uso provisório entre os cônjuges desavindos.
Aliás, carece de razão argumentar a decisão recorrida com a falta de alegação das partes nessa matéria, não só por isso mas também porque cabia-lhe oficiosamente procurar esclarecer devidamente essa questão, como foi salientado no nosso último acórdão.
O que está em causa neste caso, repete-se, é apenas o uso, entre cônjuges, de um imóvel que ambos consideram ter sido aquele em que estabeleceram a morada da família em apreço.
Como afirma Nuno Salter[17]: Durante o casamento, não tendo havido separação de pessoas e bens (art. 1795.º-A CC), ambos os cônjuges têm o dever e o direito de adoptar a residência da família (arts. 1672.º e 1673.º CC). Podem existir motivos ponderosos para assim não ser, motivos que tornem inevitável, necessário ou justificável um deles não a adoptar, mas a regra é aquela; uma regra naturalmente válida no tocante à casa de morada da família, mesmo quando apenas um dos cônjuges é titular de direito sobre esta. Com a fixação do regime provisório relativo à utilização da casa na pendência do processo de divórcio, salvo em casos verdadeiramente excepcionais, pretende-se justamente alterar a regra.
O eventual direito de terceiros sobre o imóvel não é aqui definido ou afectado e, neste caso, em face do ficou provado, não vemos que possa constituir, por si só, qualquer obstáculo ao pedido formulado.
De resto, o que ficou apurado, maxime em 6. dos factos julgados provados, permite presumir (art. 349º, do Código Civil) que o Requerido e a Requerente mantinham nessa morada a sua família, o que, em nosso entender, basta para que se conclua pela fundamental existência dessa morada e se passe a discutir o seu destino.
 Com esse propósito, ponderando o que ficou apurado quanto à actual situação socioeconómica dos progenitores/ex-cônjuges e dos filhos, julgamos que deve ser deferida a pretensão cautelar da Requerente, que aufere rendimentos muito inferiores àqueles de que beneficia o Requerido.
Nesse sentido, consideramos ainda que a filha menor continua a residir com a mãe na morada em causa, com um filho maior relativamente ao qual não são conhecidos rendimentos e que ainda estará na sua dependência pois é estudante (art. 349º, do Código Civil).
Tudo isto revela a conveniência e/ou necessidade acrescida da Requerente em continuar a beneficiar, em exclusivo e com benefício dos filhos que consigo ainda coabitam, do uso daquela que foi a morada da família, razão pela qual se julga procedente a apelação.

4. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e, em sua substituição, atribuindo provisoriamente a casa de morada de família, mencionada em 1. dos factos provados, à Requerente.
Custas do incidente pelo Requerido (cf. art. 527º, do Código de Processo Civil).

Custas da apelação pelo Recorrido (cf. arts. 527º do Código de Processo Civil).   
*
Sumário [18]:

- Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação.
- A utilidade de um procedimento não equivale à sua procedência.
- O direito de usar provisoriamente a casa de morada de família, previsto no art. 931º, nº 9, do Código de Processo Civil, não está dependente da titularidade de um específico contrato de arrendamento ou de comodato.
 
*
Guimarães, 15-02-2024


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
[2] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
[4] In Código de Processo Civil  Anotado, V Volume, p. 140
[5] No mesmo sentido, vejam-se Acórdão da Relação de Coimbra de 14.4.93, Ruy Varela, BMJ nº 426, p. 541, Acórdão da Relação do Porto de 6.1.94, António Velho, CJ 1994- I, p. 197, Acórdão da Relação de Évora de 22.5.97, Laura Leonardo, CJ 1997-II, p. 266, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2004, Oliveira Barros, acessível em www.dgsi.pt/jstj, RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, III Vol., LEBRE DE FREITAS e OUTROS, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2001, p. 669.
[6] In Da Sentença Cível, p. 39
[7] In CJ 1995 – II, p. 58
[8] No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28.5.2015, Granja da Fonseca, 460/11, de 10.5.2016, João Camilo, 852/13.
[9] Luís Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, p. 116.
[10] cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 11.1.94, Cardoso Albuquerque, BMJ nº 433, p. 633, do STJ de 13.2.97, Nascimento Costa, BMJ nº 464, p. 524 e de 22.6.99, Ferreira Ramos, CJ 1999 – II, p. 160
[11] cfr. LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum, 2000, pg. 298
[12] cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.3.2001, Ferreira Ramos, acessível em www.dgsi.jstj/pt
[13] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.5.2012, Gilberto Jorge, 91/09
[14] Cf. Nuno de Salter, in Cid SOBRE A ATRIBUIÇÃO JUDICIAL PROVISÓRIA DO DIREITO DE UTILIZAR A CASA DE MORADA DA FAMÍLIA, Revista Julgar, 40, p. 61 - https://julgar.pt/sobre-a-atribuicao-judicial-provisoria-do-direito-de-utilizar-a-casa-de-morada-da-familia/
[15] 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
[16] In https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/48fb4344d03471bc80258800003cfd10?OpenDocument   
[17] Nuno de Salter, ob. cit., p. 60/61 
[18] Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.