Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1851/23.3T8VNF-A.G1
Relator: FERNANDO BARROSO CABANELAS
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
OMISSÃO DE CAUSA DE PEDIR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. O requerimento de oposição equivale a uma petição inicial da ação declarativa.
2. O artº 732º, nº 1, do CPC, elenca os casos de indeferimento liminar da petição de embargos, não sendo taxativa, contudo, tal enumeração: o indeferimento tem também lugar se ocorrer exceção dilatória insuprível de que o juiz deva conhecer oficiosamente, nos termos gerais do artº 590º, nº 1, do CPC.
3. Tendo-se os embargantes limitado a alegar, conclusivamente, que houve violação do pacto de preenchimento, fazendo depois novamente alegações conclusivas em 30º e 31º da sua petição de embargos, omitindo completamente a alegação de factos que concretizassem esse alegado abuso de preenchimento, há que entender que inexiste um limite fáctico mínimo, por isso constitutivo de ineptidão e, nessa medida, não suscetível de convite ao aperfeiçoamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório:

O Banco 1... S.A. instaurou a execução para pagamento da quantia de €14.089,50 (catorze mil e oitenta e nove euros e cinquenta cêntimos) contra AA e BB.
Como título executivo foi apresentada uma livrança no valor de €14.031,14 (catorze mil, trinta e um euros e catorze cêntimos), vencida em 06-02-2023 (cujo original foi junto em 24-03-2023 sob a ref.ª ...15), livrança essa subscrita pela sociedade comercial "EMP01..., LDA." e avalizada pelas Executadas.
No requerimento executivo o Exequente limita-se a remeter para a livrança.

Vêm as Executadas opor-se à execução alegando:
i. a ineptidão do requerimento executivo, por não ter sido alegada a causa de pedir;
ii. o preenchimento abusivo da livrança que foi entregue em branco, designadamente no que se refere à quantia constante da livrança que é superior ao acordado, concluindo ainda pelo preenchimento abusivo por não terem sido notificadas do preenchimento e vencimento da livrança;
iii. a inexistência de qualquer pacto válido de preenchimento.
Em 17 de outubro de 2023 foi prolatado despacho de indeferimento liminar dos embargos de executado.
Inconformados com a decisão, os embargantes apelaram, formulando as seguintes conclusões:
1.Por sentença proferida pelo Tribunal recorrido foi decidido o seguinte: Em face de tudo quanto fica sobredito, indeferem-se liminarmente os embargos de executado deduzidos pelas embargantes/executadas ao abrigo do disposto no artigo 732º, nº1, alínea c), do Código de Processo Civil.
2. Alegam as Recorrentes nos pontos 29, 30 e 31 do articulado de Embargos o seguinte:
29. Ora, no caso concreto, a livrança não foi preenchida de acordo com o pacto de preenchimento.30. Desde logo porque o valor constante da livrança é muito superior àqueles acordados anteriormente.31. E foram concomitantemente preenchidas de forma abusiva porque o Exequente não deu o devido conhecimento aos Executados do seu preenchimento e em que condições seria o mesmo realizado, não tendo as Executadas sido notificadas do preenchimento e do vencimento da livrança em apreço.
3. Desta forma, não se compreende o motivo pelo qual na sentença recorrida consta que as Recorrentes não alegaram qualquer facto que suportasse o alegado preenchimento abusivo da livrança.
4. Assim, caso a Meritíssima juiz a quo considerasse insuficiente a alegação supra, deveria sempre ter procedido ao convite ao aperfeiçoamento da peça processual em apreço.
5. Na verdade, quem dirige uma pretensão ao tribunal, está obrigado a expor a situação de facto na qual se fundamenta para reclamar a titularidade de um direito que entende ter sido violado e que pretende lhe seja reconhecido.
6. A causa de pedir consiste, em conformidade com o que resulta do artº 581º, nº 4 do CPC, nos factos concretos da vida a que se virá a reconhecer (ou não) força jurídica bastante e adequada para desencadear os efeitos pretendidos pelo autor.
7. Trata-se do conjunto de factos que integram o núcleo essencial da previsão da norma ou normas do sistema que estatuem o efeito de direito material pretendido.
8. Factos essenciais são, pois, os factos constitutivos do direito alegado que se incluem no quadro fáctico da norma legal em que se apoia a pretensão do autor e que possam servir para a fundamentar, factos estes que o A. tem o ónus de alegar (cfr. se defende no Ac do TRL de 04/02/2020, proc. 13977/17.8T8LSB.L1-7, acessível em www.dgsi.pt, sítio onde poderão ser consultados todos os acórdãos que venham a ser citados sem indicação da fonte).
9. Consequentemente, a petição será inepta por falta de causa pedir, quando ocorra uma omissão do seu núcleo essencial, ou seja, quando não tenham sido indicados os factos que constituem o núcleo essencial dos factos integrantes da previsão das normas de direito substantivo que justificam a concessão do direito em causa; haverá ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade de causa de pedir, quando a exposição dos factos é feita de modo confuso, ambíguo ou ininteligível, de tal forma que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir (cfr. se defende no Ac. do TRL de 13.07.2021, proc. 23205/20.3YIPRT.L1-7).
10. Quer a doutrina, quer a jurisprudência, têm distinguido entre a situação de uma petição inepta e a situação de uma petição irregular ou deficiente, no sentido de que só a falta ou a ininteligibilidade absoluta do pedido ou da causa de pedir geram ineptidão.
11. O convite ao aperfeiçoamento (artº 590º, nº 4 do CPC) só se justifica para completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é percetível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos.
12. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos. O despacho de aperfeiçoamento não tem como fim permitir à parte apresentar um novo quadro fáctico que não existia ou não era percetível, restrição imposta, aliás, pelo nº 6 do artº 590º do CPC (cfr. Ac. do TRL de 13.07.2021 que se tem vindo a seguir).
13. Assim, somos do entendimento que foram alegados os factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, daí que deveria ter sido proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição de embargos.
14. Nestes termos, e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, ser a sentença recorrida revogada e substituída por outra que admita liminarmente os embargos, por clara violação do artigo 590.º do CPC.
Assim farão V.Exas. inteira justiça.
Não foram apresentadas contra-alegações. 
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.

As questões a decidir são, assim, apurar se estão verificados os pressupostos do indeferimento liminar ou se, ao invés, deveriam os autos prosseguir termos, eventualmente precedidos de despacho de convite ao aperfeiçoamento.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:
Os factos provados com relevância para a decisão da causa são os constantes do relatório deste acórdão.
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B. Fundamentos de direito. 
Alegaram os recorrentes que nos seus embargos, concretamente nos pontos 29 a 31, excecionaram o preenchimento abusivo da livrança e que, se o tribunal entendia insuficiente a alegação, deveria ter convidado ao aperfeiçoamento dos embargos.
O tribunal recorrido assim não entendeu e indeferiu liminarmente os embargos.

O artº 732º, nº 1, do CPC, elenca os casos em que os embargos são liminarmente indeferidos:
Artigo 732.º
Termos da oposição à execução
1 - Os embargos, que devem ser autuados por apenso, são liminarmente indeferidos quando:
a) Tiverem sido deduzidos fora do prazo;
b) O fundamento não se ajustar ao disposto nos artigos 729.º a 731.º;
c) Forem manifestamente improcedentes.
(…)

Acompanhando Lebre de Freitas, Armando Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, vol. 3º, págs. 475 - 476, “O requerimento de oposição do executado continua assim a equivaler à petição inicial da ação declarativa”. E, “a enumeração no nº 1 não é taxativa: o indeferimento tem também lugar se ocorrer exceção dilatória insuprível de que o juiz deva conhecer oficiosamente, nos termos gerais do artº 590º, nº 1
Importa começar por referir que o indeferimento liminar só se justifica em casos muito específicos: “Os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal modo graves que permitem antever, logo nesta fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição. Assim acontece quando seja manifesto que a ação nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação que se faça dos preceitos legais aplicáveis à situação factual configurada pelo autor, ou quando seja inequívoca a caducidade reportada a direitos indisponíveis. 
Outrossim, perante a constatação de alguma exceção dilatória de conhecimento oficioso que não possa ser suprida nem por convite ou iniciativa do juiz, nem por atuação do autor” – cfr. Código de Processo Civil Anotado, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Pires de Sousa, Vol. I, pág. 674.
Na sua petição de oposição, os embargantes alegaram que, (29) no caso concreto, a livrança não foi preenchida de acordo com o pacto de preenchimento; (30) Desde logo porque o valor constante da livrança é muito superior àqueles acordados posteriormente; (31) E foram concomitantemente preenchidas de forma abusiva porque o exequente não deu o devido conhecimento aos executados do seu preenchimento e em que condições seria o mesmo realizado, não tendo as executadas sido notificadas do preenchimento e do vencimento da livrança em apreço.
 Lida a alegação, é manifesto o seu caráter lacunoso. A livrança não foi preenchida de acordo com o pacto de preenchimento, porquê? O que é que foi acordado em concreto? Porque razão o valor aposto é superior ao alegadamente acordado posteriormente? E que valor é que foi acordado? E porque razão o embargado tinha de dar conhecimento prévio do preenchimento da livrança? Foi acordado expressamente alguma coisa nesse sentido? Quando e de que forma? O que é que foi acordado quanto às condições de preenchimento? Quando e de que forma? Concretamente, em que é que o preenchimento efetuado violou os termos desse alegado acordo? Foi acordado algo relativamente à necessidade de notificação do preenchimento da livrança e respetivo vencimento? Se não foi, qual a razão pela qual os embargantes entendem que que tinha de ser dado esse conhecimento?
Nada disto foi alegado. E devia tê-lo sido.
E a questão que então se coloca é a de saber se estamos perante um caso de ineptidão, ou se deveria ter sido formulado convite ao aperfeiçoamento.

Como refere Lebre de Freitas, “o despacho de aperfeiçoamento e o subsequente articulado da parte deverão conter-se no âmbito da causa de pedir ou exceção invocadas”  –É inadmissível a sua utilização para induzir a parte a suscitar uma nova ou distinta causa de pedir ou uma nova ou diferente exceção (o réu deve confinar-se aos limites da defesa); isto é, não pode, por esta via, suprir-se uma ineptidão da petição, ainda que só a omissão do cerne ou núcleo essencial da “causa petendi” não seja suprível pela via do despacho de aperfeiçoamento. De salientar que as alterações à matéria de facto alegada previstas no nº4 do artº 590º devem cingir-se aos limites estabelecidos pelos artigos 5º e 265º (se introduzidos pelo autor) e pelos artigos 573º e 574º se introduzidos pelo réu – cfr. o nº 6 do artº 590º.
Também Paulo Pimenta, refere que Face ao teor do nº 4 do artº 590º, o convite expresso neste despacho é, então, para completar insuficiências ou corrigir imprecisões fácticas. Os articulados imperfeitos sê-lo-ão a dois títulos, isto é, por facticamente insuficientes ou por facticamente imprecisos. São articulados facticamente insuficientes (incompletos) aqueles em que a exposição fáctica, permitindo embora determinar ou descortinar a causa de pedir ou a exceção invocada, não se revela suficiente ou bastante para o preenchimento da figura em causa, isto é, não contém todos os factos necessários para que possa operar-se a subsunção na previsão da norma jurídica (ou normas jurídicas) de que a parte quer prevalecer-se. Nessa situação, o juiz profere o despacho de convite ao aperfeiçoamento, por entender que, na sua alegação, a parte omitiu factos (factos essenciais, note-se) que era suposto ter articulado, face à estratégia processual por si assumida. Teremos articulados facticamente imprecisos (inexatos) quando a narração dos pontos de facto aí vertidos suscita dúvidas, seja porque não é clara ou não é precisa, seja porque é vaga ou é obscura, seja porque é ambígua ou incoerente. O mesmo se dirá das peças cujo teor é conclusivo, quer porque se omitiram os concretos factos que sustentam as conclusões, quer porque a parte reproduziu a fórmula legal invocada. Neste âmbito, importa atentar que o convite ao aperfeiçoamento dos articulados supõe, digamos, um limite fáctico mínimo, aquém do qual não é possível diligenciar no sentido desse aperfeiçoamento. (sublinhado nosso). Com efeito, e quanto ao autor, é imprescindível que o seu articulado revele (individualize) a causa de pedir em que se baseia a sua pretensão. Se faltar a causa de pedir, a petição será inepta, o mesmo sucedendo se tal causa de pedir for ininteligível (artº 186º, 2ª), gerando até uma exceção dilatória e a consequente absolvição do réu da instância (artº 186º, 1, 577º, b), e 278º, 1, b). Num e noutro caso não será possível colmatar o vício por via do convite. É que este convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir está lá (na petição) e é percetível (inteligível) (sublinhado nosso). Apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos. Coisa diversa, e afastada do âmbito do nº 4 do artº 590º, seria permitir à parte, na sequência desse despacho, apresentar “ex novo” um quadro fáctico até então inexistente ou de todo impercetível (o que equivale aqui ao mesmo) (…).
Como tem decidido o STJ , “Acautelando, em absoluto, a equidistância e imparcialidade do julgador, o convite, não vinculado, a que se refere o nº 3 do artigo 508º, do CPC, deve destinar-se a corrigir as deficiências puramente processuais do articulado (“insuficiências ou imprecisões na exposição”, que têm a ver com a exposição em si mesma, com o mero raciocínio discursivo; ou “concretização da matéria de facto alegada”, a prender-se com um elencar de factos equívocos, difusos ou imprecisos) em termos de permitir ao juiz uma rigorosa e unívoca seleção ulterior da matéria relevante para a decisão. Não pode ser utilizada para a parte suprir aspetos substantivos ou materiais (vg ónus de alegação e prova de elementos constitutivos do seu direito) tal como – e agora por tal ser causa de ineptidão – para indicar o pedido ou concretizar a “causa petendi”.”
Aqui chegados, e face às lacunas de alegação que assinalámos, entendemos que não podia ter sido prolatado despacho de aperfeiçoamento.
Decorre do princípio do dispositivo que incumbe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas – artº 5º do CPC.
Os embargantes limitaram-se a alegar, conclusivamente, que houve violação do pacto de preenchimento, fazendo depois novamente alegações conclusivas em 30º e 31º da sua petição de embargos, omitindo a alegação de factos que consubstanciassem tal alegação, como concretamente supra assinalámos.
Entendemos, assim, que inexiste um limite fáctico mínimo, o que constitui ineptidão e, nessa medida, não era suscetível de convite ao aperfeiçoamento.
Consideramos correta, desta forma, a decisão do tribunal recorrido ao não ter prolatado despacho de convite ao aperfeiçoamento (vide AcRG de 17/12/2019, processo nº 3/19.1T8VNF-A.G1, disponível em www.dgsi.pt).
Nenhuma outra questão tendo sido levantada neste recurso, há que concluir pela improcedência do mesmo, confirmando-se o despacho recorrido.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando o despacho recorrido.
Custas pelos recorrentes – artº 527º, nº1, e 2, do CPC.
Notifique.
Guimarães, 14 de março de 2024.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte.
2º Adjunto: José Alberto Martins Moreira Dias.