Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2371/21.6T8GMR-B.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO
ABERTURA OFICIOSA
LEGITIMIDADE ACTIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Não tendo o juiz declarado aberto o incidente de qualificação na sentença que declarou a insolvência, a legitimidade para esse efeito pertence exclusivamente ao administrador da insolvência e aos interessados, ut art. 188/1 do CIRE.
II – O Ministério Público apenas tem legitimidade ativa quando atue na sua qualidade de representante de credores cujos interesses lhe estejam legalmente confiados (arts. 2.º e 4.º/1, b), do Estatuto do Ministério Público), não bastando que intervenha no desempenho do seu papel de garante do interesse público na segurança e confiança do tráfego económico e comercial (arts. 1.º e 3.º/1, do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27.08).
III – O requerimento apresentado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 188/1 do CIRE está sujeito a despacho liminar, devendo ser indeferido liminarmente quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis de que o juiz deva conhecer oficiosamente.
IV – O despacho liminar de abertura do incidente, até pela sua natureza meramente tabular, não forma caso julgado, pelo que é possível conhecer, em momento ulterior de exceções dilatórias.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.
No dia 3 de maio de 2021, a sociedade comercial EMP01..., Unipessoal, Lda., apresentou-se à insolvência alegando, em síntese, encontrar-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas e não ter acesso ao crédito.
Na sequência, a insolvência foi decretada, por sentença proferida no dia 2 de junho de 2021, na qual foi dispensada a realização da reunião da assembleia de apreciação de relatório do administrador da insolvência previsto no art. 155 do CIRE. Não foi declarada a abertura do incidente de qualificação.
No dia 4 de agosto de 2021, o administrador da insolvência nomeado apresentou o relatório, o qual foi notificado aos credores que haviam sido indicados no requerimento inicial por termo eletrónico de 31 de agosto de 2021.
No dia 17 de agosto de 2021, a denominada Herança de Joaquim da Silva Tomé (Requerente), na qualidade de credora da insolvente, pediu, por apenso aos autos de insolvência, a qualificação desta como culposa. Identificou como sujeito a afetar por tal qualificação o gerente da insolvente, AA.
Alegou, em síntese, que: a situação de insolvência remonta a abril de 2020, tendo assim ocorrido uma apresentação tardia à insolvência; o gerente da insolvente continuou a exercer a atividade comercial que antes exercia através desta; aquando da declaração de insolvência, havia um saldo em caixa de € 21 793,16, o que indicia que a insolvente realizou negócios não faturados; não existe qualquer prova de que esse valor tenha sido utilizado para pagar a credores.
Concluiu que a situação de facto é enquadrável nas alíneas a), d), e), f) e g) do n.º 2 e na alínea a) do n.º 3 do art. 186 do CIRE, com a consequente qualificação da insolvência como culposa, declarando-se como sujeito afetado o gerente da insolvente.
Por despacho de 20 de agosto de 2021, foi declarada a abertura do incidente de qualificação e, na sequência, o administrador da insolvência emitiu parecer no sentido da qualificação da insolvência como fortuita. O Ministério Pública, em vista de 19 de outubro de 2021, pugnou pela qualificação da insolvência como culposa, pelas razões de facto indicadas pela Requerente, que concluiu serem enquadráveis na previsão das alíneas a), e h) do n.º 2 e na alínea a) do n.º 3 do art. 186 do CIRE.
Os demais credores, citados, nada alegaram.
O gerente da insolvente (Requerido), também citado, deduziu oposição, na qual impugnou os factos alegados pela Requerente, concluindo que a insolvência foi fortuita.
A Requerente respondeu à oposição, mantendo o alegado no requerimento inicial.
No dia 29 de abril de 2022, foi proferido: despacho saneador, a afirmar, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais e a fixar o valor processual; e despacho a identificar o objeto do litígio e enunciar os temas da prova.
Decidida a reclamação apresentada, foi agendada a audiência final e, no início desta, o gerente da insolvente (Requerido) apresentou o seguinte requerimento:
“Nos presentes autos verifica-se que figura como requerente a herança de BB. Ora, a herança ainda que indivisa mas já aceite pelos herdeiros, não goza de personalidade judiciária, ou seja, não dispõe de tal prorrogativa processual, pelo que não poderá em seu próprio nome desempenhar o papel de parte processual na lide forense demandar e ser demandado. Pelo que se verifica existir uma excepção dilatória de falta de personalidade judiciária da herança aqui requerente e que faça tal excepção, que não consente suprimento deverão ser absolvidos os requeridos da instância. O que se requer.”
Suspensa a audiência, a Requerente pronunciou-se no sentido do indeferimento do requerido e, após, foi proferido, no dia 26 de outubro de 2022, despacho do seguinte teor:
“Da excepção dilatória:
Em audiência vieram os requeridos suscitar a seguinte excepção dilatória:
“(…)
Cumpre decidir:
Dispõe o artigo 11.º, nº 1 do Código de Processo Civil (adiante designado apenas por CPC), que a personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de ser parte, sendo que, quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária – cfr. nº 2 do citado preceito.
Ora, a personalidade judiciária acha-se normalmente associada à personalidade jurídica, consistente na suscetibilidade de ser titular de direitos e obrigações, como resulta inequivocamente do citado n.º 2 do artigo 11º. Acontece que, esta regra de correspondência, ou seja, da coincidência ou da equiparação, entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária, não se verifica na situação inversa, pois que, em certas situações a lei confere personalidade judiciária a determinadas entidades carecidas de personalidade jurídica, como é o caso da herança jacente (cfr. artigos 12º a 14.º do CPC.).
Têm ainda personalidade judiciária: A herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado. [corresponde, sem alterações, ao anterior art. 6º, al. a)- do Código de Processo Civil, na redação introduzida pelo DL n.º 180/96 de 25.09.]
Este citado art. 6º tinha na redação anterior à revisão processual operada pelo DL n.º 329-A/95 de 12.12. e DL n.º 180/96 de 25.9, a seguinte formulação: “A herança cujo titular ainda não esteja determinado e os patrimónios autónomos semelhantes, mesmo que destituídos de personalidade jurídica, têm personalidade judiciária.”
Portanto, no domínio do Código do Processo Civil anterior aos citados diplomas legais, a herança em relação à qual se verificasse a indeterminabilidade do respetivo titular gozava de personalidade judiciária.
Evidentemente que, sendo a herança um património autónomo, cumpre salientar que somente na primeira parte do citado preceito - “ herança cujo titular ainda não esteja determinado ”- se pretendia abranger aquela realidade constituída pelo conjunto de relações jurídicas, inseridas na esfera jurídica do de cujus, que são transmissíveis e que constituem precisamente a herança de uma pessoa falecida.
Resulta, assim do exposto que a lei só atribui personalidade judiciária à herança jacente que, como se referiu, não se confunde com herança por partilhar ou indivisa, pelo que, no caso que nos ocupa, só se a herança aberta por óbito de BB, puder ser considerada como herança jacente pode ela ser parte na presente ação por gozar então de personalidade judiciária.
Nos termos do artigo 2046.º do Cód. Civil “ Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado.”
Ora, permanecendo sem aceitação ou declaração de vacatura a favor do Estado (artigo 2132.º do Cód. Civil), a herança assume nesta situação transitória o lugar do de cujus sendo, pois, titular dos direitos e obrigações. Todavia, esta personificação judiciária pode não a acompanhar até à partilha, cessando, como se referiu, com a aceitação por parte dos sucessores, efectuada nos termos previstos nos artigos 2050.º e segs. Do Cód. Civil.
Claro que sempre se poderia questionar se apenas nestas situações, de jacência da herança, esta goza de personalidade judiciária, isto é, se não assistirá àquela, na fase de indivisão até à partilha, em que a mesma permanece, distinta do património dos herdeiros, e afecta a um fim próprio, a personificação judiciária que dispunha antes da respectiva aceitação por aqueles e, portanto, a possibilidade de ser parte processual activa e passiva em processo civil.
Nesse sentido se pronunciava A. VARELA, defendendo, por aplicação analógica do disposto art. 6º, a persistência da personalidade judiciária da herança indivisa, estando em curso inventário judicial, com a consequência de as acções tendentes a defender/ atingir interesses do património hereditário terem de ser intentadas em nome ou contra a herança. Vide, neste sentido, AC RP de 20.02.1995, CJ, tomo 1, pág. 222.
Aliás, isso mesmo resulta do artigo 2091,º, nº 1, do Cód. Civil, no qual se estatui que : “Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art. 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.”
Ou seja, fora dos casos excecionais em que se poderá verificar a intervenção do cabeça de casal, ou de qualquer herdeiro ou mesmo terceiro, casos esses previstos nos artigos 2075.º, 2078.º e 2087.º a 2089.º do mesmo diploma (e que no caso se não aplicam, pois que nenhum deles é a parte nos presentes autos), as ações com interesses respeitantes ao acervo hereditário ainda por partilhar terão de ser intentadas por ou contra a totalidade dos herdeiros, actuando estes em litisconsórcio necessário, activo ou passivo – cfr. art. 33º, n.º 1 do CPC.
Destarte, estando os herdeiros já determinados e tendo os mesmos aceite a herança – e tocado, assim, o período de pendência da herança, portanto, o termo da herança jacente –, tornando-se inviável a essa massa patrimonial por si demandar ou contradizer, por falta de personalidade judiciária, necessário se torna que no lugar dela intervenham os respectivos titulares em bloco, seja, os ditos herdeiros que, mediante o competente acto de aceitação, nela se viram encabeçados.
Decorre, assim, do exposto, que o relevante, para efeitos de aferição da personalidade judiciária da Herança requerente, é saber, por um lado, se os seus herdeiros se encontram determinados e, ainda, se aceitaram eles a herança, pois que, assim sucedendo, será, a nosso ver, manifesto que a dita Herança (não sendo jacente) não dispõe de personalidade judiciária.
Vejamos.
Que os herdeiros se encontram determinados não existem quaisquer dúvidas pois que assim se intitulam e arrogam (como únicos e universais herdeiros), o que, ainda, se mostra confirmado pela escritura de habilitação de herdeiros junta aos autos. É patente, assim, que os mesmos herdeiros aceitaram a dita herança.
A aceitação da herança pode ser expressa ou tácita – art. 2056º, n.º 1 do Cód. Civil.
A aceitação, como manifestação de vontade positiva, pode ser feita expressa ou tacitamente, é irrevogável e, na modalidade de expressa, não está sujeita à forma […]exigida para a alienação da herança – cfr. arts. 2056º e 2063º, «a contrario sensu», e 2061º, todos do Cód. Civil.
A distinção entre a declaração expressa ou tácita tem a ver com a natureza directa ou indirecta da declaração. Em função deste critério, ensinava MANUEL de ANDRADE, “ Teoria Geral da Relação Jurídica ”, 1987, II volume, pág. 129-134, que “ ser expressa a declaração que se destina unicamente ou em primeira linha a exteriorizar certa vontade negocial (declaração directa ou imediata); e tácita a que se destina unicamente ou em via principal a outro fim, mas «a latere» permite concluir com bastante segurança uma dada vontade negocial (declaração indirecta ou mediata).”
E, ainda, “ na declaração tácita o comportamento declarativo não aparece como visando directamente a exteriorização da vontade que se considera declarada por essa forma…
O art. 2056º, n.º 2 do Cód. Civil define apenas a aceitação expressa. Já quanto à aceitação tácita deixa o nosso Código ao intérprete a integração do conceito.
No entanto, conforme resulta da explicação antes exposta, será de considerar aceitação tácita da herança aquela que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelem ou que não poderiam ser praticados senão nesse pressuposto (a aceitação), embora se excluam os actos de administração praticados pelo sucessível (art. 2056º, n.º 3 do Cód. Civil), na medida em que estes podem traduzir o cuidado em acautelar ou defender os bens da herança, sem significarem a defesa de um direito próprio.
Desta forma, dúvidas não existem, a nosso ver, que a HERANÇA requerente não é jacente e, em razão disso, face ao antes exposto, não dispõe de personalidade judiciária.
Contudo, o requerimento para o presente incidente de qualificação da insolvência data de 17.8.2021 e a habilitação de herdeiros ocorreu em 16 de Novembro de 2020.
Temos assim que à data da propositura da acção, já tinha ocorrido a aceitação da herança. Neste sentido o Acórdão da Relação de Guimarães de 24.10.2019, disponível in www.dgsi.pt com uma ressalva: “Contudo importa que à data da propositura da ação existam tais elementos seguros.
Não pode a herança (e seus titulares) pretender retirar vantagens de uma ocorrência superveniente não imputável ao autor.
Na prática nem sempre é possível aquilatar com segurança da existência ou não da aceitação da herança à data da propositura da ação. E que fazer quando os atos tácitos de pode concluir-se pela aceitação ocorre na pendencia da ação? Situação que como veremos ocorre no presente caso.
As dificuldades práticas que a questão da personalidade judiciária da herança indivisa levanta (jacente ou não), tem levado os tribunais, apesar da afirmação da impossibilidade de sanação do vício de falta de personalidade judiciária, a decisões no sentido de permitir o prosseguimento das ações, recorrendo a uma interpretação bondosa dos termos em que a ação é proposta (dos termos em que é indicado o autor ou réu herança).
Assim, afirma-se a conveniência de interpretar a petição inicial de modo a que a ação possa ser aproveitada, dentro do espírito e filosofia subjacentes ao CPC, “evitando a absolvição da instância por razões meramente formais e sem que tal justificação se vislumbre como efetivamente necessária” – Ac. Rc de 24/2/2015, processo nº 1530/12.7TBPBL.C1. No caso a ação fora intentada pelo cabeça de casal, identificando-se como tal. Considerou-se que a exigência de intervenção dos demais herdeiros se volvia em legitimidade podendo ser corrigida. Certo que o Autor poderia ter deduzido a ação não apenas contra a herança mas também e subsidiariamente contra os herdeiros, nos termos do artigo 39º do CPC. Refere o normativo que é admitida a dedução subsidiária do mesmo pedido, ou a dedução de pedido subsidiário, por autor ou contra réu diverso do que demanda ou é demandado a título principal, no caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação controvertida. Mas tal prerrogativa não pode ser imposta.
Ora na situação em apreço não foram invocadas circunstâncias que tornem claro que à data da propositura da ação a herança não se encontrava jacente. E não pode imputar-se ao autor tal falta de clareza.
A capacidade judiciária deve ser algo de fácil constatação, e a falta de personalidade (e capacidade) judiciária numa situação como a apresentada, impõe uma abordagem cuidadosa e equilibrada.
Não se trata de uma normal falta de personalidade e capacidade judiciária. Trata-se de uma entidade que deteve personalidade judiciária, e deixa de a ter, para passarem os direitos e ela relativos a ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos estes, salva a capacidade do cabeça de casal ou dos herdeiros individualmente considerados previstas na lei.
No caso nada nos diz que à data da propositura da ação a herança havia já sido aceite. A atestar esta circunstância está o facto de os recorrentes invocarem atos praticados já no decurso da ação intentada para justificar a aceitação tácita. Referem estes a “ apresentação do articulado motivador do despedimento, da resposta à contestação/reconvenção e, bem assim, a intervenção noutros atos processuais na qualidade de representantes da herança R. traduz para qualquer declaratário normal e de boa-fé a firme convição de que os sucessíveis CC … e C. F. aceitaram a herança”. Pode aceitar-se a conclusão, só que tais atos são posteriores à data da propositura da ação.”
Conforme refere o sumário de tal relevante Acórdão, para a procedência da excepção importa que à data da acção existam elementos seguros no sentido de que a herança já foi aceite. A aceitação posterior da herança não pode ter como consequência a absolvição da instância, pois tal implicaria fazer retroagir a perda superveniente de personalidade judiciária à data da dedução da acção. Em tal situação deve fazer-se intervir na acção quem passou a deter a personalidade judiciária.
Contudo tal não se verifica no caso em análise pois como acima assinalamos, a aceitação da herança ocorre antes da assinatura da procuração e antes de ser intentado o presente incidente, pelo que mesmo se constatando pela procedência da excepção, a conclusão é, neste caso concreto e atentas as especificidades do incidente, um pouco inócua.
Sendo certo que a excepção não é suprível, apenas deixaremos de atender ao articulado que a credora requerente, enquanto herança de BB apresentou, ficando igualmente precludido o seu direito a intervir nestes autos.
Mas, não foi apenas este credor requerente a impulsionar os autos, uma vez que tendo sido aberto o incidente e publicitado, por despacho nosso irrecorrível, veio o Ministério Público apresentar parecer, no mesmo sentido da qualificação da insolvência como culposa, sugerindo diligências, arrolando testemunhas.
Como tal e atento o principio do inquisitório, previsto no art. 11º do CIRE, relativamente aos presentes autos, cumprirá ao Tribunal averiguar e decidir os factos que foram alegados, ou os que vier a apurar durante o decurso do incidente.
Assim, declarando-se procedente a excepção dilatória de falta de personalidade jurídica da credora requerente, determina-se o prosseguimento dos autos com a ressalva acima assinalada, designando-se o dia 19 de Dezembro de 2022, para a realização do julgamento (…)”
Inconformado, com a decisão de prosseguimento do incidente, o Requerido interpôs recurso do despacho acabado de citar, o qual, tendo sido admitido em 1.ª instância, veio a ser rejeitado nesta Relação, por decisão singular da Exma. Sra. Juíza Desembargadora Relatora, por “o segmento que determinou o prosseguimento dos autos não admitir apelação autónoma (…), mas, tão-somente, apelação diferida nos termos do nº 3 do mesmo normativo.”
Realizada a audiência final, foi proferida sentença, no dia 27 de novembro de 2023, na qual foi decidido:
“a) Qualificar a presente insolvência onde é insolvente a sociedade “EMP02..., Unipessoal, Lda., como culposa.
b) Considerar afectado por essa declaração o gerente da devedora, AA.
c) Decretar a inibição AA para o exercício do comércio, ocupação de qualquer cargo de titular de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de 3 anos.
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo identificado AA.
e) Condenar o afectado a indemnizar os credores da devedora declarada insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património.”
Inconformado, o requerido interpôs o presente recurso, em que formulou as seguintes conclusões (transcrição):
“1 – Da Questão Prévia: No despacho saneador de 26/10/2022, considerou a Mma. Juiz “a quo” a credora requerente do incidente de qualificação de insolvência como destituída de personalidade jurídica, considerando precludido o seu direito a intervir naquele incidente, contudo, ordenou o prosseguimento dos Autos contra o aqui/requerido por entender que “não foi apenas este credor requerente a impulsionar os autos, uma vez que tendo sido aberto o incidente e publicitado, por despacho nosso irrecorrível, veio o Ministério Público apresentar parecer, no mesmo sentido da qualificação da insolvência como culposa, sugerindo diligências, arrolando testemunhas.
Como tal e atento o princípio do inquisitório, previsto no art. 11º do CIRE, relativamente aos presentes autos, cumprirá ao Tribunal averiguar e decidir os factos que foram alegados, ou os que vier a apurar durante o decurso do incidente. Assim, declarando-se procedente a excepção dilatória de falta de personalidade jurídica da credora requerente, determina-se o prosseguimento dos autos com a ressalva acima assinalada (…).”
2 – Ora, a decisão proferida é errada, carecendo de fundamento legal, porquanto, não atendeu às consequências legais da declaração de falta de personalidade jurídica da requerente no incidente de qualificação de insolvência, com a inerente falta de legitimidade para intervir na ação;
3- Pois que uma vez determinada a falta de personalidade jurídica da requerente “herança de BB” e, consequentemente, a sua ilegitimidade nos autos, tal implica, necessariamente, que aquela deixou de poder intervir nos autos e tudo quanto havia sido processado deva ser declarado inexistente e mais determinada extinção da instância.
4 – Na verdade, declarando-se que a “herança de BB” não tem personalidade judiciária, tal implica a sua falta de legitimidade para intervir nos Autos e requerer o que quer que fosse, implicando, necessariamente, a inexistência de qualquer requerimento por aquela deduzido nos Autos;
5 – Pelo que, inexistindo o requerimento inicial de pedido de qualificação da insolvência é necessário concluir que todos os actos subsequentes, dependentes de tal requerimento, também não são de admitir, não sendo sequer de admitir a pronúncia do Ministério Público, já que não é admissível a pronúncia sobre o que não existe;
6 – Além disso, é manifesto nos Autos que o Ministério Público, no prazo peremptório fixado pelo nº1, do art. 188º do CIRE, não requereu a qualificação da insolvência, antes se limitando ao exercício legal da obrigação de emitir parecer do requerimento apresentado pelo credor “herança de BB”, requerimento esse que, como se deixou claro, deixou de existir nos Autos;
7 – Ora, atendendo às consequências legais previstas para a falta de personalidade jurídica e falta de legitimidade processual do requerente da qualificação da insolvência, outro desfecho não merecerão os presentes Autos que não seja a absolvição da instância do requerido, já que não se mostra possível concluir-se pela ilegitimidade da parte e validar o por esta alegado no processo e até suprir o não exercício, pelo Ministério Público, do pedido de qualificação da insolvência, nos termos do art. 188º, nº1 do CIRE;
8 – Ademais, sem prescindir do exposto, o artigo 188º do CIRE estabelece a tramitação legal do incidente de qualificação de insolvência, sendo que as alegações a que se refere o citado artigo integrarão necessariamente matéria de facto, assim apresentadas, o requerente passa a ser considerado parte processual e, como tal, deve ter personalidade judiciária, capacidade judiciária, legitimidade e deve fazer-se representar por advogado. Ou seja, devem estar preenchidos os pressupostos processuais relativamente às partes, tal e qual qualquer parte civil em processo declarativo civil (conforme o disposto nos artigos 17º do CIRE, 5º a 13º e 21 º a 26º do CPC).
9 – Sucede que, ao contrário do que se refere no despacho recorrido, o Ministério Público não requereu a abertura do incidente de qualificação de insolvência nos termos do nº1, do art. 188º do CIRE, sendo tal facto incontestável face à cronologia dos Autos, em que o que se verifica é que a 24/10/2021, o MP responde à vista que lhe foi aberta dizendo: “Foi – nos aberta vista, para elaboração do parecer a que se refere o artigo 188º, nº4, do CIRE.
(…) Em face do requerimento apresentado pela credora Herança de Joaquim da Silva Tomé, a Mmª Juiz considerando oportuno, declarou a abertura do presente incidente de qualificado”.
10 - Donde resulta inequívoco que o Ministério Público, no presente incidente de qualificação de insolvência, não assume a posição de requerente do incidente nos termos do nº1, do art. 188º do CIRE, mas apenas cumpre a obrigação legal de vista prevista no nº7 do referido artigo, aliás como expressamente refere, dizendo que o incidente foi aberto na sequência do requerimento da credora e não do Ministério Público.
11 - Ora, no actual quadro legal – após as alterações introduzidas pela Lei nº 16/2012 de 20/04 –o incidente de qualificação da insolvência deixou de ser obrigatório, sendo que a lei apenas prevê a sua abertura em duas situações e momentos: na sentença em que se declara a insolvência (situação em que é aberto oficiosamente pelo juiz, caso disponha, nesse momento, de elementos que o justifiquem) ou num momento posterior, se o juiz o considerar oportuno em face das alegações que, a propósito dessa matéria, sejam efectuadas pelo administrador da insolvência ou por qualquer interessado nos quinze dias subsequentes à realização da assembleia de apreciação do relatório (ou, tendo em conta o disposto no art. 36º, nº 4, nos quinze dias subsequentes ao 45.º dia subsequente à data da prolação da sentença de declaração da insolvência, caso não haja lugar à aludida assembleia).
12 – Uma vez aberto o incidente, o parecer e as alegações vão com vista ao Ministério Público, para que este se pronuncie, no prazo de 10 dias, como decorre do disposto no nº 7 do citado art. 188º, sendo a aludida pronúncia (a que alude o citado nº 7) um acto obrigatório e corresponde ao cumprimento do dever funcional do Ministério Público.
13 – Sucede que o mesmo não acontece com as alegações previstas no actual nº 1 do art. 188º, já que o que está aí em causa não é a prática de um acto que seja obrigatório por fazer parte de um procedimento ou incidente já em curso, mas sim a iniciativa processual – que pode ou não ser exercida – tendo em vista a eventual abertura do incidente de qualificação da insolvência.
14 - Com efeito, ao contrário do que acontece com a pronúncia prevista no actual nº 7, do art. 188º do CIRE – que, estando já inserida num incidente em curso, tem que ser obrigatoriamente apresentada, a iniciativa a que alude o nº 1 pode ou não ser exercida e, tendo decorrido o prazo ali estabelecido, o juiz não pode concluir, como in casu concluiu, que o Ministério Público impulsionou os autos.
15 – A iniciativa prevista no nº 1, do art. 188º do CIRE não é um acto obrigatório que esteja inserido no âmbito de um incidente já em curso, mas sim um acto que, podendo ou não ser praticado, apenas tem em vista facultar ao juiz elementos que se entendam ser relevantes e que lhe permita declarar aberto o incidente, sendo que a admitir-se que o Ministério Público pudesse tomar aquela iniciativa fora do prazo previsto no nº1, do art. 188º do CIRE, também teria que ser admitida a iniciativa que nas mesmas circunstâncias fosse tomada por qualquer outro interessado, já que não existem razões para tratar de forma diversa as duas situações.
16 – Com efeito, perante o regime legal actualmente vigente, não obstante estar consagrado, no processo de insolvência, o princípio do inquisitório (cfr. art. 11º), importa referir que apenas acontece relativamente aos factos que fundam a decisão (podendo o juiz investigar e considerar factos que não foram alegados), sem que esteja aí abrangida a possibilidade de o juiz também poder actuar oficiosamente ao nível da abertura de um incidente e de decretar providências sem que lhe tenha sido pedido.
17 - Pelo que, e ao contrário do decidido no despacho recorrido, diferentemente do que acontece com o prazo fixado no nº 7 do art. 188º para a apresentação da pronúncia, o prazo fixado no nº 1 da norma citada não é um prazo meramente regulador ou ordenador; o que aí se prevê é uma iniciativa processual, no sentido de desencadear a possível abertura do incidente de qualificação da insolvência e que apenas poderá ser admitida se for apresentada por quem legitimidade, o que se veio a apurar in casu não suceder, e dentro do prazo que está fixado na lei.
18 - Assim, tendo deixando de existir no processo o requerimento de abertura do incidente de qualificação de insolvência nos termos do nº1, do art. 188º do CIRE, deve o recorrente ser absolvido da instância.
Sem prescindir,
20 - O presente recurso estende-se quer à decisão de facto, quer à decisão de direito, e observado que se mostra o exigido pelo artigo 640º, do CPC, pode-se afirmar que o Tribunal “a quo” fez errada apreciação e valoração dos depoimentos prestados, em audiência de julgamento pelas testemunhas cujos passos mais significativos se transcreveram, o que acarreta o errado enquadramento jurídico a protestar após a produção da prova;
21 – O facto 16 dos factos provados deve ser eliminado.
22 - Com efeito, temos desde logo, o parecer do Sr. Administrador de Insolvência no sentido da qualificação da insolvência como fortuita, dizendo no ponto 2 daquele seu parecer que “Foi possível efetuar a análise às contas da empresa Insolvente, tendo sido enviadas as análises no relatório do art. 155º não tendo existido qualquer outra informação que possa ter relevo para a qualificação da insolvência”, donde se conclui que a ser real a existência do saldo de caixa e não, meramente, um registo contabilístico, por certo o Sr. Administrador de Insolvência teria chamado a atenção para esse facto e colhido as informações necessárias ao seu esclarecimento.
23 – Também, a este propósito, foi ouvido o sócio – gerente da insolvente que explicou os parcos conhecimentos de contabilidade, admitindo que muitas vezes pagava a fornecedores de gado, farinhas e outros sem recibos, pelo que o saldo de caixa era um saldo meramente contabilístico.
24 - O ponto 17 dos factos provados, também, deverá ser eliminado.
25 – Com efeito, também foi dado como provado sob o ponto 17 que: “Após a declaração de Insolvência da EMP02..., Unipessoal, Lda., em 2/06/2021, o seu sócio gerente continuou a realizar transferências de animais vivos e a transporta-los para o matadouro” e como justificação deste concreto ponto da matéria de factos provados indicou a Mma. Juiz “a quo”: “Finalmente, o facto provado n.º 17 resultou das guias de transporte juntas aos presentes autos de qualificação da Insolvência pela Direcção Geral de Alimentação e Veterinária, em resposta ao ofício do tribunal a solicitar tais informações.”
26 - Contudo, não se poderá considerar este ponto como corretamente motivado, ou sequer motivado, afinal estamos a falar de que ofício do tribunal? De que data? E qual foi a resposta a esse concreto ofício? Em que datas, após a declaração de insolvência o sócio – gerente da insolvente continuou a realizar a transferência de animais vivos e a transportá-los para o matadouro? Eram transportados em nome dele ou de outrem?
27 - Os factos provados devem ser claros e objetivos de modo a poderem extrair-se conclusões dos mesmos, de molde, a atingir-se a boa decisão da causa, ora, no presente caso, o facto provado é vago e conclusivo, pelo que deve ser eliminado.
28 – Apresenta a Mma. Juiz “a quo” como fundamento jurídico para a qualificação da insolvência factos que enquadrou nas als. a) e h), do nº2 do art. 186º do CIRE.
29 - Começando pela análise do primeiro dos fundamentos para a qualificação da insolvência, o art. 186º nº 2, al.a), neste preceito alude-se a “ocultação” ou a “ter feito desaparecer”, no todo ou em parte considerável, o património do devedor.
30 - Pelo que, para a verificação desta presunção importa previamente apurar qual o património do devedor e depois se o mesmo património desapareceu no todo ou em parte considerável. E para a concretização deste conceito indeterminado importa analisar a importância dos bens em questão no contexto do património do devedor.
31 - Ora, a inexistência da quantia correspondente a este saldo é justificada pelo gerente da insolvente por ter ao longo dos anos as quantias que adiantara do seu património pessoal para pagamento de fornecedores de gado, farinhas e outros encargos da actividade.
32 - E se é certo que esta versão não está comprovada, também não está demonstrado o contrário, ou seja, que se trata de alegação falsa e que o gerente tenha realmente dado descaminho a tais valores.
33 - Pelo que, não tendo sido apurada a existência efectiva de determinado património da titularidade da insolvente e a prática de actos concretos dos quais terá resultado a sua perda ou subtracção, não se poderão considerar preenchidos tais conceitos e, como tal, verificada tal previsão.
34 - Aliás, a este propósito, relembra-se o que foi dito no parecer de qualificação da insolvência pelo Sr. Administrador de Insolvência, que a considerou fortuita e que concluiu no ponto 3º daquele seu parecer “Foi possível efetuar a análise às contas da empresa Insolvente, tendo sido enviadas as análises no relatório do art. 155º não tendo existido qualquer outra informação que possa ter relevo para a qualificação da insolvência”.
35 - Pelo que, salvo o devido respeito por opinião em contrário não está, assim, demonstrada a previsão da alínea a), do art. 186.º, n.º 2.
36 – Passando à análise do fundamento da al.h), do nº2, do art. 186º do CIRE,a Mma. Juiz “a quo” parte de uma realidade que como supra se alegou, não se encontra provada, para com base na mesma concluir “Por outro lado, tendo em conta esta factualidade vinda de descrever, e o facto do gerente da sociedade Insolvente continuar com as transacções de gado, em nome individual, mesmo após a declaração de Insolvência da sociedade EMP02..., Unipessoal, Lda., demostra que a mesma incumpriu, em termos substanciais, a obrigação de manter contabilidade organizada, tendo igualmente praticado irregularidade, com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, pelo que se encontra igualmente preenchida a alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.”
37 - Ora, o espírito subjacente à alínea h) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE é o de que os comerciantes (e uma sociedade por quotas é comerciante – cfr. art. 13.º/2 do C. Comercial) estão, desde “sempre”, atenta a especificidade da sua actividade e do seu regime legal, sujeitos a um conjunto de obrigações; designadamente, estão obrigados a ter escrituração comercial, balanço e a prestar contas (cfr. art. 18.º do C. Comercial).
38 – Porém, esta alínea, – dentro da ideia de exigência e densidade factual no seu preenchimento, decorrente da presunção inilidível (iuris et de iure) de insolvência culposa que estabelece – não se basta com todo e qualquer incumprimento, com toda e qualquer irregularidade contabilística, pressupondo o incumprimento “em termos substanciais” da obrigação de manter uma contabilidade organizada e fiel da situação patrimonial e financeira da empresa.
39 - Ou seja, para tal alínea estar preenchida, tem que se estar perante uma irregularidade contabilística com algum relevo, segundo as boas regras e práticas contabilísticas, e tem, simultaneamente, que ser uma irregularidade contabilística com influência na percepção que uma contabilidade transmite sobre a situação patrimonial e financeira do contabilizado.
40 - Ora, não se tendo provado a existência de negócios realizados após a declaração de insolvência, não se poderá concluir pela existência de qualquer irregularidade, relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor, tanto mais que, a terem existido, seriam negócios posteriores à declaração da insolvência, não se diz que tenham sido usados bens da insolvente e, portanto, não se vê como poderiam constar dos registos contabilísticos da insolvente.
Ainda, sem prescindir, por mera cautela de patrocínio,
41 - A Lei n.º 16/2012, de 20 de abril, deu nova redação ao art.º 189.º, introduzindo-lhe a al. e), por cujos termos deverá o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, “condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados”.
42 - Pese embora a aparente rigidez da norma da al. e) do art.º 189º, tem sido entendido na jurisprudência e na doutrina, designadamente na sequência do acórdão do Tribunal Constitucional nº 280/2015 (DR 115/2015, Série-II) dever fazer-se uma interpretação que salvaguarde precisamente o princípio da proporcionalidade. Conjugando o teor das al.s a) e e) do n.º 2 e o n.º 4 do art.º 189º, deve considerar-se acolhido no texto legal o entendimento de que na fixação do montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afetado, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao ato ou atos determinantes dessa culpa.
43 - Extrai-se daquele acórdão do TC: “Esses efeitos jurídicos são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do n.º 2 do artigo 189.º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar todas essas medidas. Não obstante, a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189.º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas colectivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal”
44 - Este entendimento não passou despercebido ao legislador que, pela Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro, alterou aquela norma da al. e) dando-lhe a seguinte redação: “e) Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados. (redação dada pela Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro.”
45 - Na sentença recorrida, o tribunal condenou o afetado AA a pagar aos credores o montante correspondente aos créditos não satisfeitos, até às forças do respectivo património.
46- Porém, a discrepância encontrada pela análise do balancete da empresa no saldo de Caixa foi de € 21.793,16, só este possível de ser imputável à gerência, pelo que, não obstante, e ainda que a norma da al. e) do art.º 189º tenha também um pendor sancionatório, temos como adequado e proporcional à ilicitude e à culpa dos gerentes afetados a fixação de um limite indemnizatório pelo referido montante de € 21.793,16.
47 - Ao decidir como decidiu, fez a Mma. Juiz “a quo” errada interpretação e aplicação, entre outros, do disposto nos arts. 186º, nº2, als. a) e h), 188º e 189º, nº1, al.e), todos do CIRE.
Termos em que deve o a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que determine a absolvição da instância do apelante/recorrido;
Caso assim não se entenda, deve a apelação ser julgada procedente e, em consequência, ser revogada a douta sentença apelada, substituindo-se por outra que alterando a matéria de facto e procedendo ao correcto enquadramento jurídico desta, considere a insolvência da EMP02... Unipessoal, Lda. como fortuita;
Ainda, no caso de assim não se entender, deve ser fixado como limite indemnizatório, nos termos do art. 189º, nº1, al.e) do CIRE montante de € 21.793,16.”
Não foi apresentada resposta.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Isto dito, no caso vertente, são impugnadas duas decisões: a constante do despacho de 26 de outubro de 2022, na parte em que determinou o prosseguimento do incidente de qualificação, com fundamento no facto de a sua abertura ter resultado de um anterior despacho irrecorrível e de o Ministério Público ter emitido parecer favorável à qualificação da insolvência como culposa(Conclusões a 18); a constante da sentença de 27 de novembro de 2023, que qualificou a insolvência como culposa, considerando como afetado por essa qualificação o Recorrente com as consequências adrede enunciadas (Conclusões 19 a 47).
A decisão constante do despacho de 26 de outubro de 2022 que considerou que a Requerente carece de personalidade judiciária não foi impugnada, estando já protegida pelo caso julgado.

Isto permite-nos elencar, como questões a apreciar, as seguintes:

1.ª Saber se o despacho de 26 de outubro de 2022, no indicado segmento, padece de erro na subsunção jurídica da situação de facto;

Em caso de resposta negativa,
2.ª saber se as afirmações dos pontos 16 e 17 da fundamentação de facto da sentença foram incorretamente consideradas como provadas;
3.ª Saber se a sentença recorrida padece de erro no enquadramento da situação de facto na previsão das alíneas a) e h) do n.º 1 do art. 186 do CIRE;
4.ª Saber se a sentença recorrida padece de erro na interpretação do disposto no art. 189/1, e), do CIRE.
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III.
1).1. Na resposta à 1.ª questão vamos considerar os factos relativos ao iter processual anterior ao despacho de 26 de outubro de 2022 que foram discriminados no relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão.
***
2).1.1. Como resulta do disposto no art. 185 do CIRE, a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita.
A qualificação como culposa pressupõe a abertura de um incidente a isso destinado.
O art. 36/1, i), do CIRE, na redação anterior à que lhe foi dada pela Lei n.º 16/2012, de 20.04, impunha ao juiz a obrigação de, na sentença de declaração de insolvência, declarar aberto esse incidente com caráter pleno ou limitado, sem prejuízo do regime previsto no art. 187. Na redação introduzida pela referida Lei, a abertura do incidente deixou de ser obrigatória. O juiz só a determina se dispuser dos “elementos necessários” para o efeito.  Nesta hipótese, o juiz deve apresentar os fundamentos em que se baseia. Deve dizer quais são os elementos existentes e a razão por que, perante eles, entende que se justifica a abertura. Neste sentido, Alexandre de Soveral Martins (Um curso cit., p. 546). Como nota Rui Estrela de Oliveira (“Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência”, Julgar, n.º 11, mai./ago. 2010, pp. 199-249), verifica-se, neste caso, uma exceção ao princípio do dispositivo, já que o incidente de qualificação da insolvência é desencadeado por iniciativa oficiosa do juiz, não sendo precedido de qualquer requerimento nesse sentido.
O art. 188/1 prevê, no entanto, a possibilidade de o administrador da insolvência ou qualquer interessado alegar, “fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.”
Resulta, assim, que se o juiz não declarar aberto o incidente de qualificação na sentença de insolvência, pode fazê-lo mais tarde, nos termos do art. 188/1 – ou seja, depois de apresentado requerimento nesse sentido pelo administrador da insolvência ou por “qualquer interessado.”
***
2).1.2. A abertura do incidente, quando não ocorra por determinação oficiosa do juiz na sentença em que é declarada a insolvência, assenta, portanto, num requerimento do administrador da insolvência ou de qualquer interessado no sentido da qualificação da insolvência como culposa.
Esse requerimento está sujeito a despacho liminar (art. 188/1, parte final), pelo que tem aplicação o disposto no art. 590/1 do CPC, podendo, assim, o juiz indeferir liminarmente o requerimento quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente.
Está-se aí perante uma manifestação do princípio da economia processual (Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 258; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra: Coimbra Editora, reimpressão, 1993, p. 117), cuja concretização pressupõe, a um tempo, que o juiz apure da verificação dos pressupostos processuais e, a outro, que efetue um julgamento preliminar, evitando a abertura injustificada do incidente.
Se o requerimento passar esse crivo, o juiz deve proferir despacho de abertura do incidente, despacho esse que é irrecorrível (art. 188/5). Como se nota em RG 16.02.2023 (2489/22.8T8GMR-E.G1), “compreende-se que assim seja, já que (como decisão meramente interlocutória) não afetando a abertura do incidente, nesse momento e por si só, a esfera jurídica de quem quer seja, partes ou terceiros (reservada para o requerimento de qualificação da insolvência que venha a ser apresentado, consoante o seu posterior processamento), não se justifica que seja recorrível (reservando-se essa possibilidade para a decisão final).”
A solução não é sequer inédita entre nós: corresponde à consagrada para a generalidade das decisões de admissão liminar de autos, de que é exemplo paradigmático a oposição à execução mediante embargos de executado (art. 732 do CPC), em que, na ausência de prévia sindicância da parte contrária ao requerimento inicial respetivo, o tribunal profere um juízo meramente perfunctório dos requisitos processuais exigidos para o efeito. Esse despacho, até pela sua natureza tabular, não é suscetível de produzir efeitos de caso julgado formal quanto à não verificação dos motivos que poderiam ter conduzido ao indeferimento liminar (a propósito, STJ 10.07.2008, 08B794). Assim, fora do referido momento processual – o da decisão de abertura do incidente – poderão vir a ser objeto de impugnação, não só os fundamentos da qualificação da insolvência como culposa aduzidos, como os demais requisitos e pressupostos processuais que a dedução do incidente pressupõe (v.g. legitimidade do requerente e tempestividade do seu requerimento).
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2).1.3. Foi o que sucedeu no caso vertente: tendo sido proferido despacho liminar de abertura do incidente, veio a concluir-se, pelo despacho de 26 de outubro de 2022, proferido depois da oposição do Requerido, que a Requerente da abertura do incidente carecia de personalidade judiciária, sendo este vício insuprível.
O conhecimento desta exceção dilatória (arts. 278/1, c), e 577, c), do CPC) não estava prejudicado pelo facto de anteriormente ter sido proferido despacho saneador em que se afirmara, em termos meramente tabulares, que a Requerente era dotada de personalidade judiciária. É a solução que resulta do disposto no art. 595/3, 1.ª parte, do CPC a propósito do despacho saneador que conheça de exceções dilatórias ou nulidades processuais. Diz a norma que tal despacho “constitui, logo que transite em julgado, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas”, o que significa, a contrario, que não produz esse efeito quanto às questões que não tenham sido concretamente apreciadas.
Questões concretamente apreciadas são aquelas sobre as quais o tribunal se pronunciou especificamente.
Esta solução é facilmente compreendida se atentarmos na história da norma. Não havendo norma semelhante no CPC de 1961, suscitou-se a discussão sobre se o despacho saneador meramente tabular produzia caso julgado formal quanto à ocorrência dos pressupostos processuais e à inexistência de nulidades, fora do caso da competência em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia, em que a lei expressamente consagrava uma resposta negativa (art. 104-2 do CPC de 1961). Relativamente ao pressuposto da legitimidade processual, o STJ, através do Assento de 1.02.1962 (DR de 21.02.1963) resolveu a questão em sentido afirmativo. Quanto aos demais pressupostos processuais, doutrina e jurisprudência dividiam-se, como dá nota Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 156. Com o DL n.º 329-A-95, de 12.12, o legislador processual resolveu a questão em sentido contrário ao propugnado pelo STJ quanto ao pressuposto da legitimidade processual ao introduzir no art.  510 do CPC um número (3) contendo uma redação semelhante à do citado art. 595/3 do CPC de 2013, atualmente em vigor.
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2).1.4. No momento processual em que foi proferido o referido despacho já não era adequado falar-se em indeferimento liminar do requerimento de abertura da insolvência. A consequência lógica da falta de personalidade judiciária não suprível nele verificada seria antes a absolvição dos Requeridos no incidente da instância (arts. 278/1, c), e 576/1 do CPC). Notamos que apenas por força do princípio da autossuficiência ou da tutela provisória da aparência é possível falar de uma absolvição da instância que teve início por iniciativa de um qualquer substrato a que a lei não atribui personalidade judiciária e mesmo de uma parte sem personalidade judiciária: sem a consideração desse princípio, apenas seria possível falar de uma absolvição de uma aparência de instância (João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 299-300).
De modo a obstar a este resultado, o Tribunal  a quo aduziu, conforme vimos, dois argumentos: a possibilidade de o incidente de qualificação ser espoletado, em momento ulterior ao da prolação da sentença de insolvência,  ex officio; a intervenção do Ministério Público, que sempre equivaleria a uma iniciativa processual.

Quid inde?
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2).1.4.1. Vejamos a validade do primeiro argumento.
Conforme escrevemos, se o juiz não declarar aberto o incidente de qualificação na sentença de insolvência, pode fazê-lo mais tarde, nos termos do art. 188/1 – ou seja, depois de apresentado requerimento nesse sentido pelo administrador da insolvência ou por “qualquer interessado.”
Como salienta Catarina Serra (“O incidente de qualificação da insolvência depois da Lei n.º 9/2022 – algumas observações ao regime com ilustrações de jurisprudência”, Julgar, n.º 48, set./dez. 2022, pp. 11-38), este regime deixa questões por resolver, a primeira e mais fundamental das quais consiste em saber se o juiz pode abrir oficiosamente o incidente de qualificação em momento ulterior ao da sentença.
Para Alexandre de Soveral Martins (Um Curso cit., p. 553), “[a]pesar de nada o indicar no art. 188/1, não parece estar afastada a possibilidade de o juiz, oficiosamente, abrir o incidente de qualificação se não o fez na sentença de declaração da insolvência. Com efeito, se o podia abrir naquela fase mais precoce, por maioria de razão deve poder fazê-lo se o processo, numa fase mais avançada, apresenta elementos que o justifiquem.” No mesmo sentido, Luís Carvalho Fernandes / João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª ed., Lisboa: Quid Juris, 2015, p. 687) e Marco Carvalho Gonçalves, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Coimbra: Almedina, 2023, p. 591. Na jurisprudência, RG 13.05.2018 (253/16.2T8VNF-D.G1), RG 30.05.2018 (616/16.3T8VNF-E.G1) e RG de 10.07.2019 (10464/15.2T8VNF-E.G1).
Afigura-se-nos que se fosse essa a intenção do legislador, a letra do n.º 1 do art. 188 não deixaria de o refletir, em lugar de condicionar, como faz, a abertura do incidente à iniciativa do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, ainda para mais sujeitando-a a um prazo perentório, como resulta, expressamente, da atual redação da norma, introduzida pela Lei n.º 9/2022, que assim colocou definitivamente termo a anterior querela jurisprudencial (discutia-se, de facto, se este prazo tinha natureza perentória ou ordenadora, inclinando-se a jurisprudência maioritária para esta segunda solução, como se pode constatar, inter alia, dos seguintes arestos: STJ 13,07.2017, 2037/14.3T8VNG-E.P1.S2, RP 14.03.2017, 2037/14.3T8VNG-E.P1, RP de 7.05.2019, 521/18.9T8AMT-C.P1, e RP 10.07.2019,4680/18.2T8OAZ-B.P1). O prazo perentório é aquele cujo decurso – ressalvadas as exceções previstas na lei, em que se permite a prática do ato após o termo do prazo (arts. 139/5, e 140) – implica a extinção, por caducidade, do direito de praticar o ato.
Seguindo Catarina Serra (loc. cit.), diremos que a questão não pode ser apreciada à margem dos termos em que se encontra regulada a matéria depois da alteração legislativa de 2012, obrigando a refletir sobre a razão da alteração que, de forma sintética, a autora diz ter sido a de “concentrar ou circunscrever o alcance do incidente tendo em conta a sua utilidade, alegadamente diminuta.” Em conformidade, a abertura passou a ser limitada a dois momentos: o da declaração de insolvência, com o que se visou abranger os casos em que a conveniência da abertura é manifesta logo de início; o posterior à junção e eventual apreciação do relatório a que se refere o art. 155, com o que visou abranger os casos em que a conveniência da abertura apenas se evidencia mais tarde.
Partindo daqui, é de concluir que “a possibilidade de abertura (ex officio) na primeira fase permitiria cobrir a maioria dos casos que a lei pretendia que fossem cobertos – aqueles em que (…) a conveniência da abertura do incidente é patente ou manifesta. A possibilidade de abertura do incidente na segunda fase parece ser subsidiária ou residual relativamente àquela.” Conforme a autora que vimos seguindo acrescenta, “[é] razoável entender que a letra da lei, colocando a abertura do incidente nesta segunda fase na dependência da iniciativa dos interessados, reflete a intenção do legislador de limitar, em geral, a abertura do incidente: a abertura ulterior justificar-se-ia na estrita medida em que os interessados se movessem.”
Entendimento semelhante ao exposto e por nós perfilhado é defendido por Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2022, p. 177, nota 538) e Adelaide Menezes Leitão (“Insolvência culposa e responsabilidade dos administradores na Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, AAVV, I Congresso do Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2013, p. 272). Na jurisprudência, podem citar-se os Acórdãos desta Secção de 30.05.2018 (1193/13.2TBBGC-A.G1), relatado pelo Juiz Desembargador José Amaral, 16.02.2023 (2489/22.8T8GMR-E.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Maria João Matos e 25.05.2023 (4010/21.6T8VNF-G.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Alexandra Viana Lopes, bem como os Acórdãos da RC de 10.03.2015 (631/13.9-L.C1), relatado pela Juíza Desembargadora Catarina Gonçalves, e 15.01.2022 (632/21.3T8LRA-C.C1), relatado pelo Juiz Desembargador Arlindo Oliveira.
A recente Lei n.º 9/2022, de 11.01, que introduziu alterações na redação do art. 188, com o objetivo de clarificar alguns aspetos controvertidos, designadamente no que tange à natureza do prazo de quinze dias previsto no n.º 1, confere arrimo à interpretação que entendemos ser a correspondente à mens legislatoris (art. 9.º/1 do Código Civil). Com efeito, o legislador, sabendo da controvérsia doutrinal e jurisprudência existente, manteve inalterado o texto do art. 36/1, i), e não acrescentou ao do n.º 1 do art. 188 um segmento a conferir ao juiz a possibilidade de declarar aberto o incidente oficiosamente em fase ulterior à da sentença de insolvência.
Podemos questionar se a opção legislativa é a correta uma vez que privatiza um incidente em que pontuam significativos interesses públicos. Afigura-se, no entanto, que não é possível fugir-lhe, pois corresponde, de acordo com a leitura feita, à que foi adotada pelo legislador. Ignorar isto seria incorrer no erro que é realçado por Lon Fuller, “Case of the Speluncean Explorers”, Harvard Law Review, Vol. 62, n.º 4, fevereiro de 1949.
***
2).1.4.2. Quanto ao segundo argumento, afigura-se-nos que o mesmo enferma, desde logo, de uma petição de princípio: a de que o Ministério Público tomou a iniciativa de requerer a abertura do incidente, quando o que sucedeu foi – e foi apenas – que o Ministério Público, já depois da abertura do incidente, emitiu parecer no sentido da qualificação da insolvência como culposa, assim dando cumprimento ao disposto no art. 188/7 do CPC.
Ainda que se pudesse ver na emissão desse parecer um requerimento relevante para efeitos que fosse dado início ao incidente, sempre teríamos de contrapor que a sua formulação ocorreu depois de esgotado o prazo – de natureza perentória, percute-se – previsto no n.º 1 do art. 188, o que sempre o tornaria extemporâneo.
Afigura-se-nos, porém, que o Ministério Público apenas interveio no desempenho do seu papel de garante do interesse público na segurança e confiança do tráfego económico e comercial (arts. 1.º e 3.º/1, do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27.08). O desempenho desse papel fica exaurido, no que tange à qualificação da insolvência, com a emissão do referido parecer, não conferindo legitimidade ao Ministério Público requerer “alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação.”
Com efeito, essa legitimidade está reservada ao administrador da insolvência e a qualquer interessado, o que restringe a legitimidade ativa a quem seja titular de uma relação cuja consistência, tanto jurídica, como prática, seja afetada pela qualificação. Neste sentido, reconhece-se legitimidade ativa a qualquer sujeito com legitimidade para requerer a declaração de insolvência, ut art. 20 do CIRE (Carvalho Fernandes, “A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor”, Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL, Edição Especial – Novo Direito da Insolvência, 2005, p. 88), bem como a todos aqueles que demonstrem, designadamente sob o ponto de vista patrimonial, um interesse atendível, como sucede, por exemplo, com o sócio de uma sociedade comercial que pretenda imputar a insolvência à atuação de determinado administrador, de direito ou de facto (José Manuel Branco, “Qualificação da insolvência. Evolução da figura”, Revista de Direito da Insolvência”, n.º 0, 2016, pp. 16 e 17, nota 13). Nesta medida, o Ministério Público apenas tem legitimidade ativa quando atue na sua qualidade de representante de credores cujos interesses lhe estejam legalmente confiados (arts. 2.º e 4.º/1, b), do Estatuto do Ministério Público). A propósito desta dupla faceta da intervenção do Ministério Público nos processos de insolvência, vide RG 3.12.2020 (2429/20.9T8VNF-B.G1) e Jaime Manuel Olivença, “A (i)legitimidade do Ministério Público para instaurar insolvências por falta de pagamento de créditos de custas”, Revista do Ministério Público, n.º 160, out. / dez. de 2019, pp. 263-269.
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2).1.5. Perante o exposto, concluímos pela insubsistência dos dois argumentos invocados no despacho de 26 de outubro de 2022 para, não obstante a procedência da exceção dilatória da falta de personalidade judiciária da Requerente reconhecida e declarada, justificar o prosseguimento do incidente.
Resta acrescentar que esse resultado também não pode ser alcançado com arrimo no princípio do inquisitório que, nos termos do disposto no art. 11 do CIRE, enforma o processo de insolvência e, por decorrência, os seus incidentes. É que este princípio apenas permite que o juiz investigue livremente os factos, colija as provas, ordenar os inquéritos e recolha as informações convenientes em ordem à descoberta da verdade e justa composição do litígio; não lhe permite que, a montante, dê início à instância nos casos em que tal poder não lhe está especificamente atribuído (art. 3.º/1 do CPC).
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3).1. Procede, assim, o recurso que tem como objeto o despacho de 26 de outubro de 2022 na parte em que determinou o prosseguimento do incidente de qualificação.
O recurso aproveita à Requerida insolvente, que não recorreu (art. 634/1 do CPC). A decisão recorrida deve, assim, ser substituída por outra a absolver os Requeridos da instância, em resultado da procedência da exceção dilatória da falta de personalidade judiciária que ali foi julgada procedente.
Em consequência, fica prejudicado o conhecimento do recurso na parte que tem como objeto a sentença proferida no sentido da qualificação da insolvência como culposa.
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3).2. Sob a epígrafe, “Base de Tributação”, dispõe o artigo 303, do CIRE, o seguinte: “Para efeitos de tributação, o processo de insolvência abrange o processo principal, a apreensão dos bens, os embargos do insolvente, ou do seu cônjuge, descendentes, herdeiros, legatários ou representantes, a liquidação do ativo, a verificação do passivo, o pagamento aos credores, as contas de administração, os incidentes do plano de pagamentos, da exoneração do passivo restante, de qualificação da insolvência e quaisquer outros incidentes cujas custas hajam de ficar a cargo da massa, ainda que processados em separado”. Sobre a responsabilidade pelas custas do processo, acrescenta o art. 304 do mesmo Código, que “[a]s custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado.”
Estas normas tratam, pois, de realidades diversas. No primeiro caso, da base da tributação; no segundo, da responsabilidade pelas custas do processo. Do processo – leia-se- de insolvência, pois, como nele se prescreve, essa responsabilidade é determinada em função da circunstância da insolvência ser ou não decretada. Assim, não há sobreposição de previsões. Nem se pode concluir que o artigo 304 do CIRE prevê a regra da responsabilidade das custas para o processo de insolvência e todos os seus apensos. Pelo contrário, a regra que deve prevalecer nesses apensos deve ser a prevista no art. 527/1 e 2, do CPC – ou seja, a responsabilidade das custas é daquele que foi vencido na causa, ou, não havendo vencimento, daquele que tirou proveito do processo.
Quando a falta de personalidade judiciária atinge o lado ativo da relação processual, a responsabilidade pelas custas deve ser suportada por quem formou e deu forma à vontade daquele quid, assim impulsionando efetivamente o processo judicial (art. 527/1 do CPC). Neste sentido, António Abrantes Geraldes, Personalidade Judiciária, CEJ, 1998, p. 33. No caso, as custas do incidente e dos recursos devem ser suportadas pela representante da identificada Herança de Joaquim da Silva Tomé.
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:
Julgar procedente o recurso de apelação no que tange à decisão, constante do despacho de 26 de outubro de 2022, de determinar o prosseguimento do incidente de qualificação da insolvência;
Revogar esse segmento decisório, substituindo-o por outro a declarar a absolvição dos os Requeridos da instância;
Considerar prejudicado o conhecimento do recurso que na parte que tem como objeto a sentença de 27 de novembro de 2023;
Condenar as representantes da Herança de Joaquim da Silva Tomé no pagamento das custas devidas quer pelo incidente, quer pelo recurso.
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Guimarães, 15 de fevereiro de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Gonçalo Oliveira Magalhães (Relator)
Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício (1.º Adjunto)
Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais (2.ª Adjunta)