Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
101/22.4T8TMC.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
FACTOS INDICIÁRIOS
ABUSO DE DIREITO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Quando os factos que se pretendem aditar aos provados não foram alegados nos articulados, e são factos indiciários, porque visam facilitar a prova de factos essenciais, não é necessário o Tribunal pronunciar-se sobre eles directamente, sendo que, caso os mesmos sejam tratados na prova produzida, serão tidos em conta na apreciação da existência dos factos essenciais, como elementos adjuvantes de um raciocínio probatório / indiciário / indutivo.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

AA, residente na Rua ..., ..., portador do número de identificação fiscal ...39 e do número de identificação civil ..., intentou acção declarativa de condenação contra EMP01... – Companhia de Seguros de ..., S.A., com sede na Rua ..., ..., ..., com o número de identificação de pessoa colectiva ...89, pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 7.652,80€ (sete mil, seiscentos e cinquenta e dois euros e oitenta cêntimos) a título de danos patrimoniais, bem como no montante de 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros) a título de danos não patrimoniais, acrescido de juros de mora, até efectivo e integral pagamento.
Alega, para o efeito e em síntese, que, no seguimento da sua actividade de exploração agrícola e em virtude de um fenómeno climático ocorrido no dia 03 de Agosto de 2018, viu destruída uma significativa proporção dos seus cultivos, num prejuízo contabilizado em 7.652,80€ (sete mil, seiscentos e cinquenta e dois euros e oitenta cêntimos).
Mais invoca que, não obstante ter participado o sinistro, a sociedade R. não diligenciou pela sua regularização, circunstância que lhe causou transtorno, insónias e ansiedade, danos que pretende ver ressarcidos.

Regularmente citada, apresentou a R. a sua contestação e, embora confirmando o vínculo contratual de que o A. é beneficiário, as respectivas cláusulas e coberturas, bem como a participação do sinistro identificado no articulado inicial, rejeitou qualquer obrigação em liquidar os montantes peticionados.
Para o efeito, alega, em suma, a circunstância de ter sido impossibilitada a averiguação do sinistro participado e, consequentemente, inviabilizado o seu possível enquadramento no âmbito da apólice contratada.
Como tal, pugna pela improcedência da acção e a sua absolvição do peticionado.

Realizou-se a audiência de julgamento, com observância de todas as formalidades legais, na qual o Autor afirmou que a Ré actuou em abuso do direito e litigou de má-fé.

A final foi proferida sentença, que julgou a acção totalmente improcedente e em consequência decidiu:

a) Absolver a Ré do peticionado.
b) Julgar totalmente improcedente o incidente de litigância de má-fé deduzido pelo Autor e, consequentemente, absolver a Ré do mesmo.
c) Condenar o Autor no pagamento das custas do processo.
d) Condenar o Autor no pagamento das custas pelo incidente de litigância de má-fé, em 1 (uma) Unidade de Conta, nos termos do artigo 7º, n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais, por referência à Tabela II em anexo ao mesmo diploma.

Inconformado com esta decisão, o autor dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (artigos 629º,1, 631º,1, 637º, 638º,1, 644º,1,a), 645º,1,a) e 647º,1 do Código de Processo Civil).

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
1. Com a excepção do nexo de causalidade, o Tribunal deu como provados todos os factos alegados pelo A. e que preenchiam os pressupostos da condenação da R. por responsabilidade civil.
2. Decisão com a qual o A. não se conforme e, por isso, a deixa aqui impugnada.
3. Andou mal o Tribunal ao absolver a R. dos pedidos formulados, estribado na falta de prova do nexo de causalidade, como se demonstrará.
4. Considera o A./Recorrente que o Tribunal incorreu em pelo menos três erros que levaram à improcedência da acção, e que aqui se descrevem: Erro na apreciação da prova, uma vez que considera o A. que da conjugação da prova produzida resulta que os prejuízos sofridos resultam do fenómeno denominado de “escaldão”; ainda que o dito “escaldão” não resultasse provado, da prova produzida em julgamento, em conjunto com prova documental existente nos autos, resultaria o nexo de causalidade que o Tribunal diz estar em falta para a obrigação da R. indemnizar; a desconsideração, pelo Tribunal da negligência (ou dolo) da R. no incumprimento das suas obrigações, nomeadamente, de proceder em tempo útil à peritagem da vinha no sentido de apurar o sinistro comunicado pelo A. /Recorrente.
5. No que concerne à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, o Tribunal atribuiu grande credibilidade ao depoimento das testemunhas, BB, CC, DD, considerando as suas versões coincidentes, credíveis, mas, porém, insuficientes para sustentar o nexo de causalidade alegado pelo A., sustentado na circunstância de muito embora as suas versões serem coincidentes, assentarem, no essencial, no estado de coisas por si percepcionado aquando da realização da vindima, no mês de Setembro de 2018.
6. O Recorrente não pode concordar com esta apreciação.
7. Desde logo, que outra apreciação faria a R. se tivesse realizado a perícia em devido tempo, senão constatar o estado das culturas à data em que se deslocasse à vinha, tal como aconteceu com as testemunhas?
8. A Testemunha, BB, prestou depoimento no dia 16.11.2022 (Gravação efectuada com início às 11:03 e fim às 11:19; e com a duração de 15 minutos e 45 segundos).
9. Destaca-se do seu depoimento do que disse a testemunha BB, a instâncias do Mandatário do A. (1:50 a 4:26, supra transcrito): de que trabalha para o A. já há 7 ou anos; que a vindima costumava durar três ou quatro dias e durou apenas um dia; que fenómeno ocorrido foi “escaldão”;
10. A mesma testemunha, a instâncias do Ilustre Mandatário da R. prestou o depoimento que aqui se destaca (6:38 a 7:32, supra transcrito), reiterando que o fenómeno ocorrido foi “escaldão”, sendo que quando confrontada sobre a sua formação, afirmou trabalhar há muitos anos na agricultura e, por via disso, saber dos diferentes fenómenos;
11. Da instância do Meritíssimo com a testemunha BB, destaca-se das suas declarações as transcritas na motivação (8:47 a 13:59), onde a testemunha reitera a sua actividade de agricultura desde há 20 anos, reiterando, ainda, que o fenómeno que ocorreu foi um escaldão, explicando ao Tribunal, porque lhe foi pedido, a razão de ser de tal afirmação: os bagos estavam secos, as folhas estavam queimadas, amareladas e secas. Explicou ainda ao Tribunal, porque lhe foi pedido, que sabia distinguir o “escaldão” de outros fenómenos, como a “podridão”.
12. A testemunha DD, prestou depoimento no dia 16/11/2022 (Gravação efectuada com início às 11:45 e fim às 11:52; e com a duração de 7 minutos e 30 segundos).
13. O seu depoimento para além de dizer que trabalha nas vinhas do A. pelo menos há 4 ou 5 anos, corroborou o testemunho prestado por BB, dizendo que o fenómeno ocorrido foi um “escaldão”, pois viu na vinha as uvas secas, bem como de que normalmente a colheita é feita em 2 ou três dias e foi feita num dia (cfr. 2:41 a 4:17, supra transcrito).
14. A testemunha, CC, prestou depoimento no dia 16/11/2022 (Gravação efectuada com início às 11:29 e fim às 11:43; e com a duração de 14 minutos e 45 segundos).
15. Do seu depoimento resultou que as uvas e os cachos, os bagos estavam completamente secos; que foi uma onda de calor e sol que queimou aquilo tudo (cfr. 2:48 a 5:20, supra transcrito); a instâncias do Ilustre Mandatário da R. reiterou o que havia dito e quando confrontado sobre o estado das folhas, disse o mesmo que as anteriores testemunhas, que estava com tom amarelado., aparentemente “chuscada”.
16. Os depoimentos das testemunhas vão de encontro ao depoimento de parte prestado pelo A. (Gravação efectuada no dia 16.11.2022, com início às 10:31 e fim às 11:01; e com a duração de 30 minutos e 21 segundos) que explicou, a instâncias do Meritíssimo Juiz, que se tratou de um fenómeno climático de “escaldão”, descrevendo, porque lhe foi solicitado pelo Tribunal, em que consistia tal fenómeno (cfr. 3:17 a 4:47, supra transcritas); reiterou as suas afirmações a instâncias do Ilustre Mandatário da R. (29:54 a 30:00, supra transcritas).
17. A testemunha arrolada pela R., EE (Gravação efectuada no dia 19.12.2022, com início às 14:29 e fim às 15:01; e com a duração de 31 minutos e 47 segundos), Engenheiro que faz as peritagens para a R., foi peremptória em afirmar, a instâncias do Ilustre Mandatário da R., que peritou, em Agosto de 2018, 14 sócios da Adega, que correspondiam a 77 parcelas, sendo que algumas das quais eram na localidade (...) onde ocorreu o sinistro participado pelo A., sendo que todas as participações o motivo era o fenómeno climatérico de “escaldão” (cfr.2:26 a 8:27, supra transcritas).
18. Referiu ainda que ficaram por fazer 10 peritagens de segurados da Adega Cooperativa de ..., onde se inclui o A., por não lhe ter sido comunicado em tempo útil (antes das vindimas), só tendo tido conhecimento em ../../2019. No entanto, nenhum sócio foi prejudicado e foi compensado (com a excepção do A.) – cfr. 23:34 a 23:52.
19. Realce-se que quando a testemunha EE, perito que trabalha em serviço externo para a R. e, por isso, com conhecimentos na matéria superior a um homem médio, foi chamado a explicar ao Ilustre Mandatário da R. sobre o estado físico das uvas, quando sofre o fenómeno de “escaldão”, referiu que uva fica queimada, dura e bloqueia (cfr. 8:16 a 8:27, supra transcrito), o que corrobora todos os testemunhos prestado pelas testemunhas do A., que falaram em bagos secos e folhas amareladas/queimadas e as suas declarações de parte do A..
20. Do depoimento prestado pela testemunha arrolada pela R., FF (Gravação efectuada no dia 19.12.2022, com início às 15:02 e fim às 15:19; e com a duração de 17 minutos e 14 segundos), resultou que as participações foram regulamente enviadas para a R., sendo que esta apenas não instruiu as 7 participações enviadas em 27/8/2020 (cfr. Doc. ... junto com a P.I. e Doc. enviado para o Tribunal pela Adega Cooperativa de ..., a pedido do Tribunal), que não obstante se desconhecer a razão de ser de não terem tido o devido encaminhamento (cfr. depoimento prestado pela testemunha e por a outra         arrolada pela R., GG, gravação do dia 16.11.2022, de 29:04 a 32:38, supra transcritas), a realidade é que reconhecido o erro, que só pode ser imputado à R. (cfr. artigo 224.º/2. do CC), certo é que todos, à excepção do A., foram ressarcidos pela R. , decorrentes do fenómeno climatérico ocorrido, cujas peritagens que se fizeram em tempo útil (Agosto de 2018 ), relativamente às outras participações consideraram ser “escaldão” (cfr. 6:56 a 16:25, supra transcritas).
21. Não obstante as participações que ficaram para tratar, só ter iniciado o seu tratamento entre ../../2018 e ../../2019, todos foram indemnizados, com a excepção do A..
22. Andou mal o Tribunal, perante a prova produzida e depois de dar como coincidentes e credíveis os depoimentos prestados pelas testemunhas BB, CC e DD, conjugados com as supra declarações de parte prestadas pelo A. e pelos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela R., EE, FF e GG, ter considerado não existir prova do nexo de causalidade que parece por demais evidente, até porque o conhecimento dos depoentes, na matéria em questão, são superiores aos conhecimentos de um homem médio.
23. O Tribunal sustenta sua fundamentação, em três pressupostos que o Recorrente considera errados.
24. Coloca em causa se foi este fenómeno climático (escaldão), ao dizer: “Foi este o único fenómeno climático ocorrido entre o dia ../../2018 e o dia ../../2018 (data em que o A. afirmou ter efectuado a participação)? É o “escaldão” o único fenómeno susceptível de causar as lesões percepcionadas, pelo A., na vinha, atenta a natureza e extensão das mesmas, encontrando-se, como tal, arredadas quaisquer outras causas climatéricas ou fisiológicas? Inexistem quaisquer circunstâncias anteriores a 03-08-2018 que possam justificar as lesões na vinha? São as respostas a tais perguntas que, assomando-se essenciais para fundar o nexo de causalidade invocado, não têm nas declarações do A. suficiente eco”; que não esteve em causa a credibilidade das declarações e depoimentos prestados pelas testemunhas, mas unicamente a sua suficiência para sustentar o nexo de causalidade alegado pelo A., uma vez que, no essencial, no estado de coisas percepcionado pelas testemunhas aquando da realização da vindima, no mês de Setembro de 2018, era uma descrição insusceptível de fundar, todavia, uma indubitável ligação de causa-efeito; e, por fim: “É, ainda, de notar que nem mesmo o recurso às regras da experiência comum constitui, aqui, um instrumento útil, já que não se pode razoavelmente considerar abrangido pelo saber e experiência de vida do homem médio, o conhecimento sobre o impacto dos diferentes fenómenos climáticos no processo de cultivo vitivinícola.”
25. Para concluir: “Assim, perante a insuficiência da prova documental e da prova produzida em audiência final para sustentar o nexo de causalidade invocado pelo A. no seu articulado inicial, atenta a inexistência de outros elementos de natureza objectiva (mormente, periciais) e considerando as regras do ónus da prova, nos termos previstos no artigo 342º do Código Civil, inevitável resultou a inclusão do facto correspectivo no elenco de factos não provados.”
26. Quanto ao primeiro argumento utilizado pelo Tribunal, das divagações que faz sobre os vários fenómenos que poderiam ter ocorrido, salvo melhor opinião, o Tribunal excedeu as suas competências, pois tal matéria tratar-se-ia de matéria de excepção que teria de ser alegada pela R., de uma maneira factual, concreta e não meramente abstracta de todas as situações possíveis e imaginárias que pudessem ocorrer.
27. Na perspectiva defendida pelo Tribunal, não só o Recorrente teria de fazer prova do “escaldão”, mas também de fazer a prova negativa de todos os outros fenómenos climáticos do universo que pudessem colocar em causa o “escaldão, que pudessem colocar em causa tal fenómeno.
28. Ora, para além de se tornar uma prova impossível de realizar, o Tribunal excedeu as suas competências, ao substituir-se à parte, à R., trazendo para os autos aquilo que não é matéria dos mesmos, constituindo uma matéria surpresa para a qual o A. não teve oportunidade de se defender.
29. Ora, fosse matéria de excepção, em concreto e não meramente em abstracto, alegada pela R., incumbia-lhe a esta fazer prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo A., conforme decorre do n.º 2 do artigo 342.º do CC.
30. Ao A. competia, como o fez, fazer prova da existência de um fenómeno climático adverso, no caso, “escaldão”.
31. As considerações/divagações feitas pelo Tribunal, salvo melhor opinião, são contrárias às regras do ónus da prova, contido no artigo 342.º do CC, bem como constituiu, salvo melhor opinião, uma clara violação do n.º 2 do artigo 608.º do CPC.
32. Esta mesma violação das regras do ónus da prova se aplica para o segundo e terceiro argumento defendido pelo Tribunal: 2.º - “Nesta matéria, é de salientar os depoimentos de BB, CC, DD, cujas versões, embora coincidentes, assentaram, no essencial, no estado de coisas por si percepcionado aquando da realização da vindima, no mês de Setembro de 2018, descrição insusceptível de fundar, todavia, uma indubitável ligação de causa-efeito. Reitere-se: em causa não se encontra a credibilidade das declarações e depoimentos prestados, mas unicamente a sua suficiência para sustentar o nexo de causalidade alegado pelo A; 3.º - é, ainda, de notar que nem mesmo o recurso às regras da experiência comum constitui, aqui, um instrumento útil, já que não se pode razoavelmente considerar abrangido pelo saber e experiência de vida do homem médio, o conhecimento sobre o impacto dos diferentes fenómenos climáticos no processo de cultivo vitivinícola.”
33. Quanto à conclusão chegada pelo Tribunal no 2.º argumento, dará para extrapolar, também, que se tivesse sido realizada uma perícia, pela R., como era o seu dever, ainda antes das vindimas, também teria constatado os prejuízos, sem ter acompanhado ao segundo o desenrolar do fenómeno climático que levou àquela situação.
34. Extrapolando, mais ainda, seguindo o raciocínio desenvolvido pelo Tribunal, se os prejuízos ocorridos resultassem de um incêndio, a prova testemunhal não seria suficiente para fazer prova do nexo de causalidade se apenas verificassem o resultado do incêndio, as vinhas queimadas, mas não tivessem as testemunhas visto as chamas.
35. Quanto ao 3.º argumento, o Tribunal escuda-se no facto de não ter conhecimentos técnicos que lhe permitam aferir sobre o impacto dos fenómenos climáticos no processo de cultivo vitivinícola.
36. Ora, o Tribunal, salvo melhor não precisava de os ter, nem tem de os ter.
37. Não obstante, os depoimentos das testemunhas que o Tribunal considerou coincidentes e credíveis, são de pessoas com larga experiência no trabalho agrícola, como é o caso e resulta dos seus depoimentos das testemunhas BB e DD.
38. Acresce que, muito embora na qualidade de testemunha, depôs um perito (EE) que foi claro ao dizer que naquela região, no mês de Agosto de 2018 peritou 14 sócios, aos quais correspondia 77 parcelas, algumas das quais na localidade das vinhas do A. (...), sendo que o motivo da participação foram todos: “escaldão”.
39. O A. teve o cuidado de no artigo 3. º da P.I. colocar a definição de escaldão, com referência para a fonte de onde obteve tal informação, conforme se transcreve: “Tal fenómeno climático traduz-se nas lesões nas folhas e nos bagos relativas à perda de água e morte dos tecidos provocadas pela insolação e elevadas temperaturas estivais, tal como consta na definição para o fenómeno, no glossário do Instituto do Vinho e da Vinha, IP, disponível na internet no endereço: https://www.ivv.gov.pt/np4/glossario.html”.
40. Porém, considerasse o Tribunal ser relevante os conhecimentos sobre o impacto dos fenómenos climáticos no processo de viticultura, o que não se vislumbra tal importância, tendo em conta a prova produzida e o que se dirá mais adiante, não deveria escudar-se nessa sua falta de conhecimento para decidir contra o autor pela falta de nexo de causalidade.
41. Pois que, de acordo com o n.º 1 artigo 601.º do CPC: “Quando a matéria de facto suscite dificuldades de natureza técnica cuja solução dependa de conhecimentos especiais que o tribunal não possua, pode o juiz designar pessoa competente que assista à audiência final e aí preste os esclarecimentos necessários, bem como, em qualquer estado da causa, requisitar os pareceres técnicos indispensáveis ao apuramento da verdade dos factos.”
42. Ao não fazê-lo, por não considerar necessário, não deveria proceder, como procedeu, em desconsiderar a prova produzida, sustentada na falta de conhecimento sobre o impacto dos diferentes fenómenos climáticos no processo de cultivo vitivinícola, que salvo melhor opinião, não tinha qualquer relevância para a dinâmica da audiência de discussão e julgamento e para a prolação da sentença.
43. Perante os testemunhos prestados pelas testemunhas arroladas pelo A., que o Tribunal considerou credíveis e coincidentes, conjugado os depoimentos das testemunhas arroladas pela R., em especial a testemunha EE, perito externo da R., assim como com o acerco da prova documental, é por demais evidente que o fenómeno ocorrido nas vinhas do A. foi de “escaldão”.
44. Parece absurdo até, por ilógico, que tendo sido peritadas 77 parcelas no mês de Agosto de 2018, entre as quais na localidade das parcelas do A. (...), sendo o motivo da participação e indemnização o fenómeno de “escaldão”, assim como as restantes 7 (ou 10 parcelas), foram objecto de indemnização, sem qualquer perícia, uma vez que os processos só tiveram o devido andamento em ../../2019, que apenas e tão só as parcelas do A. não tenham sofrido o mesmo fenómeno de “escaldão”.
45. Decorrente da prova referenciada, impugna-se o facto não provado em a), devendo tal facto elencar os factos provados:
46. Tendo em conta a mesma prova produzida, de acordo com o supra-referido, deverão ser aditados aos factos provados, os seguintes factos:
11– Em Agosto de 2018 foram feitas peritagens na região a 14 sócios da Adega Cooperativa de ..., aos quais correspondem 77 parcelas, entre as quais na localidade onde o A. tem as suas parcelas objecto dos autos (...), sendo que foram todos indemnizados e o motivo da participação foi “escaldão”;
12– No ano de 2018, ficaram por regularizar, pela R., 7 participações feitas pelos segurados da Adega Cooperativa de ..., relativas ao mês de Agosto desse ano e ao mesmo fenómeno contido em 11, onde se inclui a participação do A., conforme factos provados em 3, 4 e 5, não tendo, por isso, a R. feito as peritagens antes da vindima, tendo reiniciado o processo relativamente a tais participações em ../../2019;
13– Todos os segurados das participações referidas em 12, foram indemnizados, com a excepção do A.
47. Não obstante a discussão levada a cabo pela R. em volta da desconsideração do fenómeno climático “escaldão”, certo é que a própria R. considera ser apenas um dos fenómenos do conceito abrangente de fenómenos climatéricos extremos e adversos equiparados a catástrofes naturais que afectem vinhas seguras, conforme resulta do artigo 3.º da sua contestação, quando se refere ao doc. ... junto pelo A. com a P. I. , onde refere: O referido contrato de seguro, celebrado entre a R. e a Adega Cooperativa de ..., abrange os riscos ou danos provocados nas vinhas por fenómenos climatéricos extremos e adversos equiparados a catástrofes naturais que afectem as vinhas seguras, como seja granizo, geada, incêndio (com origem climatérica), escaldão, raio, explosão, tornado, tromba de água e queda de neve, tudo conforme as Condições Particulares juntas sob o doc. ... com a p.i., que aqui se deve considerar integralmente transcritas, para todos os efeitos legais”.
48. Ora, se pela prova produzida parece indubitável que o fenómeno climático ocorrido foi um “escaldão”, mesmo que não ficasse provado tal fenómeno, mas considerados provados os prejuízos do A. (ponto 3. dos factos provados), os mesmos não resultaram de qualquer acto de vandalismo, mas antes de fenómenos climatéricos extremos e adversos equiparados a catástrofes naturais, o que incumbia a R. na obrigação de indemnizar, não tendo a R. invocado qualquer cláusula de exclusão.
49. Por fim, e não menos importante, o Tribunal não apreciou devidamente a postura da R. no presente processo, premiando-a com o seu incumprimento das obrigações legais.
50. Com efeito, de acordo com previsto no n.º 1 do artigo 224.º do CC, “a declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada”.
51. Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo, determina que: “é também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.
52. Ora, decorrente da prova produzida, a R. não conseguiu explicar a razão de ser de não ter recebido a participação do R., enviada pela Adega Cooperativa de ..., quando foi confirmado quer pela testemunha arrolada pela R., FF, que enviou a participação para o mesmo endereço de e-mail que enviou todas as outras que foram atendidas.
53. De igual modo, a testemunha GG, não conseguiu dar uma explicação para o assunto, conforme foi supra exposto.
54. De acordo com o estipulado no n.º 1 do artigo 102.º do DL nº. 76/2008, de 16/04, “o segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências”.
55. Ora, foi a R. e não o A. que incumpriu com as suas obrigações.
56. Pois, que, incumbia à R. proceder às diligências necessárias para verificação do sinistro, fazendo as devidas peritagens, a devido tempo, antes das vindimas, como o fez nas restantes participações da mesma Adega Cooperativa, relativamente a 77 parcelas de 14 proprietários.
57. Não só não o fez a R., como ainda usa esse seu incumprimento a seu favor, conforme decorre dos artigos 9.º a 13.º da contestação, o que configura um claro abuso de direito e litigância de má-fé, conforme foi alegado pelo A. no início da audiência de discussão e julgamento, realizada em 16/11/2022 (Gravação: início 10:03:15 / fim 10:09:22).
58. É completamente absurdo o que é dito nestes artigos da contestação, mormente quando no artigo 11.º da contestação, a R. tenta responsabilizar o A. por ter procedido à vindima, quando este apenas tentou minimizar os prejuízos, aproveitando a produção restante, como se fosse possível o A. estar à espera da R. até ../../2019, altura em que foi desencadeado o processo e já não era possível fazer qualquer peritagem, como foi referido pela testemunha e perito que trabalha para a R., EE.
59. Ao não ter actuado a R. com a diligência que devia, no que concerne ao n.º 1 do artigo 102.º do DL nº. 76/2008, de 16/04, incumpriu com a sua obrigação, de acordo com o n.º 1 do artigo 762.º do CC, o qual refere:” “O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado”.
60. Refere, ainda, o nº 2 do artigo 762.º do CC que: “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé”.
61. Ora, foi tudo isto que não aconteceu, pretendendo a R. obter vantagens, o não pagamento dos prejuízos do A., motivada por só em ../../2019 estar em condições de confirmar a ocorrência do sinistro, acontecido em Agosto do ano anterior, das suas causas, circunstâncias e consequências, quando já nada havia para ver, mesmo que o A. não tivesse feito a vindima.
62. A R. faltou culposamente ao cumprimento da obrigação que estava adstrita, cabendo-lhe provar que falta de cumprimento não decorreu de culpa sua, conforme previsto nos artigos 798.º e 799.º do CC.
63. Presunção de culpa que a R. não fez por ilidir, perante a prova produzida, de que resultou os factos provados, nomeadamente, o ponto 5 dos factos provados, que para além da prova produzida, que vai de encontro ao estipulado nos números 1 e 2 do artigo 224.º do CC.
64. Antes, seguiu a R. uma actuação em claro abuso de direito, de acordo com o previsto no artigo 334.º do CC., que o Tribunal não considerou, prejudicando o A. com a decisão de improcedência do peticionado, não obstante ter dado como provado toda a matéria restante, nomeadamente, os prejuízos sofridos pelo A.
65. A ter cobro a postura da R., de ora em diante bastaria às Companhias de Seguro não procederem com a diligência que lhes é devida, para desse modo eximirem-se à responsabilidade de indemnizar.
66. Pelas razões expostas, verifica-se, também, que a R. deduziu oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, litigando assim de má-fé, de acordo com o previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 542.º do CPC, que o Tribunal também não quis reconhecer.
67. Com as decisões proferidas, o Tribunal violou várias disposições legais, nomeadamente, o artigo 334.º, 342,º, 762.º 798.º, 799.º, todos do CC; os números 4 e 5 do artigo 607.º, o n.º 2 do artigo 608.º, a alínea a) do n.º 2 do artigo 542.º, todos do CPC; artigo 102.º do DL nº. 76/2008, de 16/04; os artigos 2.º, 3.º da Constituição da República Portuguesa.

A recorrida contra-alegou, defendendo a confirmação integral da decisão recorrida.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber:
a) ocorreu erro no julgamento da matéria de facto ?
b) Verifica-se abuso de direito por parte da ré ?
c) A ré litigou de má-fé ?

III
A sentença considerou provados os seguintes factos:

1. O A. exerce a actividade de cultivo de vinha, nas parcelas de terreno agrícola designados por “... 1” e “... 2”, com 1,7209ha e 1,0467ha de vinha, respectivamente, em ..., ....
2. Por meio da apólice n.º ...16, a Adega Cooperativa de ..., na qualidade de tomador de seguro, declarou transferir para a R., que, na qualidade de segurador, declarou aceitar, mediante o pagamento de contrapartida pecuniária, os riscos inerentes à actividade de cultivo identificada em 1., em benefício do A.
3. Em 2018, o A. viu destruído:
a) 60% da produção referente ao terreno agrícola designado por ... 1;
b) 80% da produção referente ao terreno agrícola designado por ... 2.
4. O A. comunicou à Adega Cooperativa de ..., o descrito em 3.
5. A Adega Cooperativa de ... comunicou à R. o descrito em 3.
6. No ano de 2018, o preço da uva era de 0,50€/kg.
7. No ano de 2018, a produção do A. era de 8000 (oito mil) quilogramas de uva por hectare, em cada um dos terrenos agrícolas referidos em 1.
8. A R. não pagou quaisquer quantias ao A., em virtude do descrito em 3.
9. No seguimento do referido em 3., bem com pela circunstância de não ter sido reembolsado, pela R. pelos seus prejuízos, o A. ficou ansioso, transtornado e com insónias.
10. Na apólice descrita em 2., sob a designação de coberturas, para o concelho ..., consta a referência a tornado, tromba de água, geada, queda de neve, acção de queda de raio, granizo, incêndio, escaldão, bem como a franquia relativa de 20% sobre os prejuízos indemnizáveis.

E o Tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos:
a) O referido em 3 foi consequência de um “escaldão” ocorrido no dia 03-08-2018.
b) Na apólice descrita em 2., sob a designação de coberturas, para o concelho ..., consta a referência a explosão.
c) A cláusula 11º das condições gerais e especiais da apólice referida em 2., tem a seguinte redacção:
“1 - A determinação do capital seguro é da responsabilidade do Tomador do Seguro ou do Segurado, tendo em atenção o disposto nos números seguintes.
2 - Para efeitos do cálculo do valor a segurar são consideradas as produções efectivamente esperadas e os preços esperados, salvo previsão distinta em condição especial.
3 - O cálculo da produção esperada para a cultura e parcelas em causa depende da seguinte circunstância:
d) Se o agricultor tem histórico de produtividade, tem como limite máximo o valor médio de produtividade obtido nos últimos três anos ou, em alternativa, nos últimos cinco anos excluídos o valor mais elevado e o valor mais baixo;
e) Se o agricultor não tem histórico de produtividade, são considerados os valores constantes da tabela de referência fixada pelo Gabinete de Planeamento e Políticas (GPP), a qual é publicitado no seu portal e no portal do IFAP, I.P”.
f) A cláusula 24º das condições gerais e especiais da apólice referida em 2., tem a seguinte redacção:
“1- A atribuição de indemnização é condicionada à verificação, por Segurado e parcela ou conjunto de parcelas, de perdas superiores a 30% da produção anual média da cultura segura na parcela ou conjunto de parcelas, calculada nos termos das alíneas a) e b) do n.º 3 da cláusula 11.ª.
2- Em caso de sinistro, o cômputo dos danos que serve de base ao cálculo da indemnização atende às produções reais ou, caso não seja possível determiná-las, à produção anual média determinada calculada nos termos das alíneas a) e b) do n.º 3 da cláusula 11.ª, tendo sempre como limite máximo a produção segura.
3- O montante a indemnizar é calculado com base nos prejuízos sofridos deduzidos dos gastos gerais de cultivo ou de colheitas não realizados, desde que reunidas as condições para a atribuição da indemnização previstas nos números anteriores, de acordo com as seguintes regras:
a) O montante da indemnização é equivalente a 80% dos prejuízos realmente sofridos;
b) No cálculo de qualquer indemnização relativa a seguro de culturas de vários cortes, colheitas ou apanhas, nomeadamente as do tomate e das culturas em regime de forçagem, atender-se ao valor das colheitas já realizadas, devendo previamente fixar-se em termos percentuais, a distribuição mensal das receitas esperadas;
c) Quando ocorrer um sinistro numa fase do ciclo produtivo em que, técnica e economicamente, seja viável a renovação da cultura ou a implementação de outra em sua substituição, o montante da indemnização corresponde aos encargos de cultivo suportados até essa data e atende-se aos prejuízos decorrentes do diferimento da colheita”.
g) O capital seguro para as parcelas identificadas em A. é de 11.070,40€ (onze mil e setenta euros e quarenta cêntimos).
h) As condições particulares da apólice referida em 2. foram, pela primeira vez, entregues ao A. com a propositura da presente acção.
IV
Conhecendo do recurso.

Julgamento da matéria de facto
O recorrente vem impugnar o julgamento da matéria de facto.
Como é sabido, há regras apertadas para poder impugnar a decisão sobre matéria de facto.
Constam do art. 640º CPC os requisitos formais de admissibilidade do recurso sobre matéria de facto. Como escreve Abrantes Geraldes (Recursos, 2017, fls. 158):

“a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a) falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b);
b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (vg. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc);
d) falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”.

No caso concreto, o recorrente indica de forma clara quais os pontos de facto que considera mal julgados e quais as respostas que entende que o Tribunal deveria ter dado aos mesmos, e indica em concreto os meios de prova que em seu entender deveriam ter levado a decisão diversa.

Podemos pois conhecer desta parte do recurso.

Em primeiro lugar, o recorrente pretende que sejam aditados aos factos provados os seguintes:
“11– Em Agosto de 2018 foram feitas peritagens na região a 14 sócios da Adega Cooperativa de ..., aos quais correspondem 77 parcelas, entre as quais na localidade onde o A. tem as suas parcelas objecto dos autos (...), sendo que foram todos indemnizados e o motivo da participação foi “escaldão”;
12– No ano de 2018, ficaram por regularizar, pela R., 7 participações feitas pelos segurados da Adega Cooperativa de ..., relativas ao mês de Agosto desse ano e ao mesmo fenómeno contido em 11, onde se inclui a participação do A., conforme factos provados em 3, 4 e 5, não tendo, por isso, a R. feito as peritagens antes da vindima, tendo reiniciado o processo relativamente a tais participações em ../../2019;
13– Todos os segurados das participações referidas em 12, foram indemnizados, com a excepção do A”.
Ora, esses factos cujo aditamento se requer não foram alegados nos articulados, nem pelo autor, nem pela ré. Como tal, o Tribunal não tinha de se pronunciar sobre eles.
É verdade que o art. 5º,2 CPC dispõe que “além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções”.
Os factos cujo aditamento se pretende podem ser vistos como factos indiciários, porque, apesar de não terem qualquer ligação directa com o caso dos autos, visam, supomos, apenas facilitar a prova do facto essencial, que é o que consta da alínea a) dos não provados. Como tal, não se mostra necessário o Tribunal pronunciar-se sobre eles directamente, sendo que, caso os mesmos sejam tratados na prova produzida, serão tidos em conta na apreciação da alínea a) dos factos não provados, como elementos adjuvantes de um raciocínio probatório / indiciário / indutivo.
Assim, a única outra razão de discordância do autor com o julgamento da matéria de facto é o ter considerado não provado que a destruição da produção do autor referida em 3 foi consequência de um “escaldão” ocorrido no dia 03-08-2018.
O Tribunal recorrido fundamentou assim essa decisão: “na verdade, se por um lado o juízo de credibilidade que atrás se deixou exposto sobre as declarações/depoimentos recolhidos influenciou, decisivamente, a construção do elenco de factos provados, por outro, todavia, não pode o tribunal olvidar as limitações próprias da prova produzida, em particular no que concerne ao nexo de causalidade alegado em sede de petição inicial.
De facto, se da prova documental carreada nada se extrai sobre a causa por detrás dos prejuízos alegados pelo A., também a prova produzida em audiência final se revelou insuficiente para sustentar o nexo de causalidade invocado por AA.
Sendo certo que nas suas declarações, o A. associou os prejuízos apurados ao fenómeno climático que apelidou de “escaldão”, por esclarecer cabalmente ficam, todavia, os motivos que constituem o alicerce dessa mesma associação.  
Foi este o único fenómeno climático ocorrido entre o dia ../../2018 e o dia 24-08-2018 (data em que o A. afirmou ter efectuado a participação)? É o “escaldão” o único fenómeno susceptível de causar as lesões percepcionadas, pelo A., na vinha, atenta a natureza e extensão das mesmas, encontrando-se, como tal, arredadas quaisquer outras causas climatéricas ou fisiológicas? Inexistem quaisquer circunstâncias anteriores a 03-08-2018 que possam justificar as lesões na vinha? São as respostas a tais perguntas que, assomando-se essenciais para fundar o nexo de causalidade invocado, não têm nas declarações do A. suficiente eco.
O mesmo se diga, aliás, da demais prova testemunhal produzida, que nada acrescentou sobre o aludido nexo de causalidade.
Nesta matéria, é de salientar os depoimentos de BB, CC, DD, cujas versões, embora coincidentes, assentaram, no essencial, no estado de coisas por si percepcionado aquando da realização da vindima, no mês de Setembro de 2018, descrição insusceptível de fundar, todavia, uma indubitável ligação de causa-efeito.
Reitere-se: em causa não se encontra a credibilidade das declarações e depoimentos prestados, mas unicamente a sua suficiência para sustentar o nexo de causalidade alegado pelo A.
É, ainda, de notar que nem mesmo o recurso às regras da experiência comum constitui, aqui, um instrumento útil, já que não se pode razoavelmente considerar abrangido pelo saber e experiência de vida do homem médio, o conhecimento sobre o impacto dos diferentes fenómenos climáticos no processo de cultivo vitivinícola.
Assim, perante a insuficiência da prova documental e da prova produzida em audiência final para sustentar o nexo de causalidade invocado pelo A. no seu articulado inicial, atenta a inexistência de outros elementos de natureza objectiva (mormente, periciais) e considerando as regras do ónus da prova, nos termos previstos no artigo 342º do Código Civil, inevitável resultou a inclusão do facto correspectivo no elenco de factos não provados”.

Ora, ouvida a prova gravada, verificamos o seguinte:
Em declarações de parte, o autor disse que o que aconteceu na sua vinha foi causado por um escaldão. Tal escaldão, ou golpe de sol ocorreu no dia 3/8/2018, mas só passados uns dias é que se notou a vinha estragada. Disse que as vinhas dos seus vizinhos também sofreram o escaldão. Identificou um deles, mas disse que esse não participou à seguradora porque não é sócio da Adega Cooperativa de ....
A testemunha BB declarou: “deve ter sido o escaldão, o sol”… “na minha maneira de ver, aquilo foi mesmo o escaldão”.
CC disse também que foi uma onda de calor que queimou a vinha. Mas também disse que não é agricultor, e nunca tinha presenciado uma coisa destas.
DD disse que “veio aquele escaldão … ficou tudo seco”. Depois disse que entre final de Julho e Setembro a vinha tinha de ser regada. Quando perguntada se foi, respondeu que não sabia. Acrescentou que já tinha visto outras situações semelhantes a esta. E que há vinhas que nunca são regadas, e corre tudo bem na mesma. Sobre a vinha do autor, em concreto, não se comprometeu em definitivo, dizendo que depende.
E foi esta a prova apresentada pelo autor. O depoimento das testemunhas apontou para que a causa dos danos tenha sido um escaldão, mas não podemos, sem mais, dar o facto como provado por causa destes depoimentos. Não por haver suspeitas que tenham deliberadamente faltado à verdade, mas sim porque não eram especialistas na matéria, e os seus depoimentos terem sido mais centrados no facto de terem visto que a vinha se queimou toda, e menos na explicação técnica ou científica sobre a causa desse fenómeno.
O autor foi mais categórico sobre a matéria da causa da queima da vinha, mas não podemos assentar a prova do facto essencial à sua pretensão apenas nas suas declarações, por razões óbvias: as suas declarações estão sujeitas à regra da livre apreciação, e se há coisa que essa livre apreciação nos diz é que a falta de objectividade e de isenção relativamente ao que está em causa nos impede de fazer assentar a prova deste facto em discussão apenas nas declarações da parte mais interessada.

A ré apresentou contraprova.
GG, gestor de sinistros da ré, nada sabia da vinha do autor em concreto, mas com base na sua experiência profissional declarou que o fenómeno do escaldão, quando existe, atinge várias parcelas, e que há vinhas mais susceptíveis de se queimarem que outras, pelo ângulo da sua exposição ao sol, sombra, montanhas, etc, e também tem a ver com a rega. Disse ainda que a vinha pode secar por escaldão ou por falta de água, e que é possível distinguir um caso do outro olhando para a vinha. No caso do autor não foi possível ver a vinha a tempo de tirar conclusões.
EE, Engenheiro agrícola, que presta serviços também para a ré, declarou que na campanha de 2018 houve várias participações de sinistro referentes à zona aqui envolvente, por escaldão, e que fez perícias a 14 sócios da Adega, e visitou 77 parcelas, ainda antes da vindima. E disse que nos sócios que foram peritados, houve parcelas que tiveram prejuízo, e outras que não tiveram. Nas peritagens que fez havia partes em que a causa era escaldão e outras em que era fisiológica, ou seja, desidratação por falta de água. Acrescentou que é muito fácil distinguir um caso de desidratação por falta de água de um caso de escaldão: no primeiro caso a uva começa a transformar-se em passa. Quando é escaldão, a uva fica queimada, dura, bloqueia o crescimento. O escaldão normalmente aparece à tarde, que é quando o calor do sol é mais intenso. O cacho fica escaldado no sítio onde lhe bate o sol. Na parte de trás o cacho parece normal, mas à frente seca. No caso do autor não fez a perícia pelo que não pode dizer se houve escaldão ou não.

O que concluir ?
Ficou claro que a queima da vinha pode ter como causa o golpe de sol, vulgo escaldão, mas também pode ter como causa a falta de água. Ou as duas.
Não se percebeu por que razão a peritagem não foi feita. A prova não foi totalmente esclarecedora, sendo que as testemunhas da ré disseram claramente desconhecer porque é que o autor não foi peritado.
É verdade que a prova apresentada pelo autor, pelas razões avançadas supra, não nos permite ter a certeza que os danos provados são todos decorrentes de “escaldão”. Não foi feita uma verdadeira peritagem à vinha do autor nos dias seguintes ao referido fenómeno, em tempo útil.
Mas o facto de as próprias testemunhas arroladas pela ré terem dito, de forma totalmente credível, que ali na zona e naquela mesma data houve várias participações de sinistro por escaldão, e que muitas delas foram confirmadas, pelo menos em parte (depoimento de EE), é mais do que suficiente para podermos concluir que, pelo menos em parte, a destruição da vinha do autor se deveu a escaldão. Bem se compreende que assim seja, pois o efeito da radiação solar é exactamente o mesmo sobre o mesmo tipo de culturas e situadas na mesma zona geográfica, ainda que possa haver ligeiras diferenças consoante a altitude, inclinação, montanhas, vento, etc. E assim, se nas vinhas próximas houve fenómenos confirmados de escaldão, associados também a desidratação, na mesma data, então podemos ter como seguro que a vinha do autor, com os danos dados como provados, sofreu igualmente, em parte, com esse escaldão.
E assim, com a referida restrição, o facto não provado a) deve passar a provado.

A matéria de facto provada passa assim a ser esta:

1. O A. exerce a actividade de cultivo de vinha, nas parcelas de terreno agrícola designados por “... 1” e “... 2”, com 1,7209ha e 1,0467ha de vinha, respectivamente, em ..., ....
2. Por meio da apólice n.º ...16, a Adega Cooperativa de ..., na qualidade de tomador de seguro, declarou transferir para a R., que, na qualidade de segurador, declarou aceitar, mediante o pagamento de contrapartida pecuniária, os riscos inerentes à actividade de cultivo identificada em 1., em benefício do A.
3. Em 2018, o A. viu destruído:
a) 60% da produção referente ao terreno agrícola designado por ... 1;
b) 80% da produção referente ao terreno agrícola designado por ... 2.
4. O A. comunicou à Adega Cooperativa de ..., o descrito em 3.
5. A Adega Cooperativa de ... comunicou à R. o descrito em 3.
6. No ano de 2018, o preço da uva era de 0,50€/kg.
7. No ano de 2018, a produção do A. era de 8000 (oito mil) quilogramas de uva por hectare, em cada um dos terrenos agrícolas referidos em 1.
8. A R. não pagou quaisquer quantias ao A., em virtude do descrito em 3.
9. No seguimento do referido em 3., bem com pela circunstância de não ter sido reembolsado, pela R. pelos seus prejuízos, o A. ficou ansioso, transtornado e com insónias.
10. Na apólice descrita em 2., sob a designação de coberturas, para o concelho ..., consta a referência a tornado, tromba de água, geada, queda de neve, acção de queda de raio, granizo, incêndio, escaldão, bem como a franquia relativa de 20% sobre os prejuízos indemnizáveis.
11. O referido em 3 foi consequência, pelo menos em parte, de um “escaldão” ocorrido no dia 03-08-2018.

Julgamento da matéria de direito
O contrato de seguro é o negócio jurídico pelo qual uma das partes (a seguradora) se obriga a cobrir o risco que certo facto futuro e incerto constitui para a outra parte (segurado), mediante a prestação certa e periódica (prémio) que esta se compromete a efectuar (cfr. Guerra da Mota, O contrato de seguro terrestre, I, pág. 271; Maria Clara Lopes, Seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, pág. 15; Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, pág. 703).
O contrato de seguro é actualmente um contrato nominado e típico, estando regulado pelo DL 72/2008 de 16/4 (Lei do Contrato de Seguro - LCS). Tal diploma entrou em vigor no dia 1/1/2009 (art. 7º), e, de acordo com o regime transitório constante do artigo 2º, a lei nova só se aplica aos sinistros que ocorram depois da entrada em vigor do novo regime. Ora, no caso em apreço sabemos que o sinistro ocorreu em 22.2.2016, logo, é-lhe aplicável o regime da LCS.
A apólice, documento que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, é integrada pelas condições gerais, especiais, e particulares.
Condições gerais são as que se aplicam a todos os contratos de seguro de um mesmo ramo ou modalidade. Condições especiais são as que, completando ou especificando as condições gerais, são de aplicação generalizada a determinados contratos de seguro do mesmo tipo. Condições particulares são as que se destinam a responder em cada caso às circunstâncias específicas do risco a cobrir.
No caso destes autos apenas sabemos que por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...16, a Adega Cooperativa de ..., na qualidade de tomador de seguro, declarou transferir para a Ré, que, na qualidade de segurador, declarou aceitar, mediante o pagamento de contrapartida pecuniária, os riscos inerentes à actividade de cultivo do A. Entre os riscos cobertos estava o “escaldão”, bem como a franquia relativa de 20% sobre os prejuízos indemnizáveis.
Ficou igualmente demonstrada a ocorrência de um sinistro, pois o autor, em 2018, viu destruído 60% da produção referente ao terreno agrícola designado por ... 1, e 80% da produção referente ao terreno agrícola designado por ... 2, destruição essa que foi consequência, pelo menos em parte, de um “escaldão” ocorrido no dia 03-08-2018.
Sabemos igualmente que o autor fez a devida participação à Adega Cooperativa de ..., e esta comunicou à Ré o sucedido.
Sabendo que estava em vigor este contrato de seguro, e que ocorreu o sinistro previsto no contrato, resta apurar o montante da prestação contratualmente devida pela ré.
Não temos muitos elementos para nos ajudar a decidir, pois a maior parte das alegações sobre as cláusulas do contrato emergiram não provadas, e essa decisão foi aceite por ambas as partes (alíneas b, c, d, e, f, g, e h).
O que temos disponível é o seguinte: o autor pede a quantia de €7.652,80, a título de danos patrimoniais e € 2.500,00 a título de danos não patrimoniais. No ano de 2018, em que o preço da uva era de 0,50€/kg, a produção do autor era de 8000 Kg de uva por hectare, em cada um dos terrenos agrícolas supra-referidos, com as áreas de vinha de 1,7209ha e 1,0467ha. Daí resulta que a produção do terreno maior seria de 13.767 Kg e a do terreno menor de 8,373.6 Kg.
O autor perdeu 60% da produção referente ao terreno de 1,7209ha (8,260.20 Kg), ou seja, dos 13.767 Kg apenas produziu 5.506,80 Kg.
E perdeu 80% da produção referente ao terreno de 1,0467 ha (6,608.16 Kg), ou seja, dos 8.260,20 Kg apenas produziu 1.652.04 Kg.
No total, deixou de produzir 14.868.36 Kg, o que equivale a um prejuízo de € 7.434.18.
Só que, como vimos, essa perda de produção só em parte ficou a dever-se ao escaldão ocorrido no dia 03-08-2018. E não temos forma de saber com rigor que parte foi essa.
Dispõe o art. 566º,3 CC que se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados. Assim, não tendo maneira de chegar ao valor exacto que o autor deixou de auferir por causa do escaldão, e julgando de acordo com a equidade, pensamos que uma solução aceitável será fixar esse valor em metade do prejuízo, o que nos leva ao montante de € 3.717.09.
Mas provou-se que foi estipulada uma franquia de 20% sobre os prejuízos indemnizáveis (art. 49º,3 do Regime do Contrato de Seguro).
Donde, a ré será responsável apenas pela quantia de € 2.973,67, a título de danos patrimoniais.
           
Mas o autor pediu também a condenação da ré a pagar-lhe € 2.500,00 a título de danos não patrimoniais.
Ora, como bem refere o recorrente nas suas alegações, de acordo com o estipulado no nº 1 do artigo 102º do DL 76/2008, de 16/04, “o segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências”.
E se olharmos para a matéria de facto provada, fácil é perceber que a ré incumpriu o contrato de seguro. Sabemos que o sinistro ocorreu, que o mesmo foi comunicado à ré, e esta não pagou quaisquer quantias ao autor, em virtude do mesmo, obrigando-o a intentar esta acção.
Este incumprimento da ré presume-se culposo (art. 799º,1 CC). A ré não ilidiu essa presunção de culpa, pois como vimos na análise da matéria de facto, nem sequer conseguiu explicar por que razão não deu seguimento atempado à participação que, ficou provado, lhe foi enviada.
Assim sendo, o art. 496º,1 CC dispõe que “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”. A este respeito provou-se que a ré não pagou quaisquer quantias ao autor, em virtude do sinistro ocorrido, e que por causa deste, bem com pela circunstância de não ter sido reembolsado pela ré pelos seus prejuízos, o autor ficou ansioso, transtornado e com insónias.
Consideramos que estes factos configuram danos não patrimoniais que merecem a tutela do direito, pois a ansiedade e as insónias são estados profundamente desagradáveis, causadores de sofrimento psicológico, e que têm, ou podem ter, consequências graves para a saúde do cérebro. E pensamos que o valor peticionado é equitativo e justo.

Finalmente, o recorrente pretende ainda que a ré incorreu em abuso de direito e litigância de má-fé.

Vejamos.
O Código Civil, no seu art. 334º, fere determinados actos como abusivos quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico.
Como ensina o Professor Antunes Varela in Obrigações em geral, Vol. I, 6ª ed., pag. 516 “para que haja lugar ao abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo e o fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”.
Esta contradição é patente nos casos de “venire contra factum proprium”; em que a pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando determinada causa de nulidade ou anulação, depois de fazer crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito.
A locução “venire contra factum proprium” traduz, assim, o exercício de uma posição jurídica, ainda que formalmente válida, em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo respectivo exercente.
A proibição do “venire contra factum proprium” cai no âmbito do abuso de direito através da fórmula legal que considera ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé. A este propósito vide Antunes Varela in obra acima citada, pag. 517, Prof. Baptista Machado in “Tutela de Confiança e venire contra factum proprium”, obra dispersa, vol. I, pag. 385 e Ac. STJ de 5 de Março de 1996 in BMJ 455, pag. 466.

A proibição de “venire contra factum proprium” depende dos seguintes pressupostos:

a) Uma situação objectiva de confiança: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura;
b) Investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a confiança legítima vier a ser frustrada;
c) Boa fé da contraparte que confiou: a confiança de terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa fé e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico”.

Existe abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustado ao conteúdo formal do direito (Acórdão do STJ de 21.9.1993, in Col. de Jur., 1993, 3, 19).
Como ensina o Professor Antunes Varela in Obrigações em geral, Vol. I, 6ª ed., pag. 516 “para que haja lugar ao abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo e o fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”.
No caso em apreço não vemos qual foi o direito que a ré exerceu em termos claramente abusivos. A situação que subjaz a estes autos não ficou clara, a não ser o que já vimos supra. Não sabemos por que razão a ré não efectuou a peritagem atempadamente. Mas não temos quaisquer elementos que nos permitam afirmar que ocorreu abuso de direito por parte da ré.

Finalmente, a litigância de má-fé.
Corresponde o instituto da litigância de má-fé a uma responsabilidade agravada, que assenta na culpa ou dolo do litigante. Se a parte actuou de boa-fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a sua conduta é licita e é condenada apenas no pagamento das custas dos processo, como risco inerente à sua actuação. "Se procedeu de má-fé ou com culpa, pois sabia que não tinha razão, ou não ponderou com prudência as suas pretensas razões, a sua conduta assume-se como ilícita, configurando um ilícito processual a que corresponde uma sanção, que pode ser penal e/ou civil (multa e indemnização à parte contrária), e cujo pagamento acresce ao pagamento das custas processuais".

“Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

A reforma processual levada a cabo pelo DL nº 329-A/95 de 12/12 introduziu alterações no Código de Processo Civil em sede de litigância de má-fé. Lê-se no preâmbulo do citado diploma “Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagra-se expressamente o dever de boa-fé processual, sancionando-se como litigante de má-fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos; (…)”. Assim, ao lado da lide dolosa (que corresponde à violação das regras de conduta processuais de forma intencional ou consciente), passou a ser sancionada a lide temerária (que corresponde à violação das mesmas regras, mas com culpa grave ou erro grosseiro).
É inquestionável que a conclusão pela actuação da parte como litigante de má-fé será sempre casuística, não se deduzindo mecanicamente da previsibilidade legal das alíneas do art.º 542º do Código de Processo Civil. E a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável. Tem-se entendido que para tal condenação se exige que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte.
Ora, a ré, tanto quanto resulta dos autos, não alterou factos, nem impugnou factos que sabia serem verdadeiros, nem alegou factos que sabia serem falsos.
Aliás, se bem repararmos, as testemunhas que ela arrolou, que depuseram de forma isenta e credível, acabaram por ser fundamentais para fazer a prova do nexo de causalidade entre o escaldão e o dano nas vinhas do autor.
Não vemos qualquer sinal de litigância de má-fé.
Por isso, nesta parte, o recurso improcede.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso parcialmente procedente, e em consequência:
a) Condena a ré a pagar ao autor a quantia de € 5.473,67, acrescida dos juros de mora a contar da citação, até integral pagamento.
b) Confirma a decisão recorrida quanto ao incidente de litigância de má-fé deduzido pelo Autor.

Custas por autor e ré, na proporção do vencimento (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 7.3.2024
 
Relator (Afonso Cabral de Andrade)

1º Adjunto (Maria dos Anjos Melo Nogueira)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)