Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1284/21.6T8VCT.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: VENDA
TERCEIRO ADQUIRENTE
INOPONIBILIDADE
CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A sentença que anulou a venda de um imóvel, efectuada no processo de insolvência, em que que o terceiro juridicamente interessado (adquirente sucessivo do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel, que lhe foi transmitido por quem para tanto tinha então legitimidade e devidamente registada) não teve qualquer intervenção, é-lhe inoponível.
II - A transacção celebrada em acção posteriormente instaurada contra o terceiro adquirente sucessivo, em relação à venda anulada no processo de insolvência, apenas obriga as partes que a celebraram e nos precisos termos das suas cláusulas.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

 I – RELATÓRIO

Banco 1..., C.R.L. instaurou acção declarativa de condenação contra EMP01..., S.A., AA e BB, formulando os seguintes pedidos:
 (i) declarar-se nulo e de nenhum efeito o contrato de arrendamento celebrado entre os réus, no dia 20.05.2019, tendo por objecto a fracção referida no ponto 2º desta petição ou, se assim não se entender, declarar-se que esse mesmo contrato caducou no dia 25.03.2021, data em que a fracção em causa foi adjudicada a favor da autora pelo administrador de insolvência no processo de insolvência referido no ponto 1.º desta petição
(ii) condenar-se todos os réus na entrega efectiva da fracção em causa à autora, livre de pessoas e bens e em bom estado de conservação e com os móveis/equipamentos integrados na mesma, tais como, mobiliário de cozinha, caldeira de aquecimento e aparelhos de ar condicionado
(iii) condenar-se solidariamente os réus no pagamento de uma indemnização à autora no montante mensal de € 800,00 (oitocentos euros) desde a data do trânsito da sentença referida no ponto 11º desta petição (i.e., dia 29.06.2020) até entrega efectiva da fracção à autora.
Alegou, para tanto e em síntese:
Por sentença já transitada em julgado, proferida no dia 12.07.2015, no processo que correu termos sob o n.º ...4..., Juiz ..., 2.ª secção de comércio da instância central de Vila Nova de Gaia, foi declarada a insolvência da sociedade comercial “EMP02..., Lda”
No decurso desse processo de insolvência foi apreendida a fracção autónoma designada pelas letras ..., destinada a habitação, correspondente ao ..., bloco sul, que faz parte integrante do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrita na CRP sob o n.º ...05 e inscrito na matriz predial com o art.º ...00
Sobre essa fracção incidiam, à data, três hipotecas, uma das quais registada a favor da autora
No dia 04.12.2015, tal fracção foi adjudicada a CC, pelo preço de €50.550,00, por este ter exercido um alegado direito de preferência na aquisição do imóvel por dele ser arrendatário e em 10.04.2017 a fracção em causa foi então vendida pelo Administrador de insolvência a CC, mediante escritura pública de compra e venda.
Na sequência e nesse mesmo dia, CC, através de escritura pública vendeu essa fracção à 1.ª ré (EMP01..., S.A.).
 Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 13.06.2018, foi declarado nulo o exercício do direito de preferência de CC e, em consequência, anulado o acto de adjudicação da fracção a seu favor e determinada a adjudicação dessa fracção a favor da autora
Em 25.01.2019, após o trânsito em julgado dessa decisão, o administrador de insolvência notificou CC e a ré EMP01..., S.A. de que os negócios realizados entre si tendo por objecto a fracção descrita, estavam feridos de ineficácia e, nessa medida, seria necessário procederem à revogação de cada uma das escrituras referidas nos pontos 5.º e 6.º.
Porque nem CC nem a 1.ª ré se mostraram disponíveis para outorgar essas escrituras de revogação dos negócios inválidos, a “Massa insolvente da EMP02... -..” deu entrada de uma ação judicial contra ambos, peticionando, entre o mais, que fosse fossem julgadas inválidas as sucessivas transmissões da fracção em causa (a favor de CC e da ré EMP01..., S.A.).
Nessa ação, que correu termos por apenso ao processo de insolvência (apenso M), as partes celebraram transacção, nos termos da qual reconheceram expressamente a nulidade dos dois negócios em causa com as consequências daí decorrentes, designadamente o cancelamento das duas inscrições registrais que titulavam tais negócios
Mais acordaram que, atenta a nulidade dos dois negócios supra aludidos, a Autora Massa Insolvente obrigava-se a devolver à EMP01..., S.A., o montante recebido do 1.º Réu pela venda do imóvel em causa (€ 50.550,00) e por sua vez a Ré EMP01..., S.A. obrigava-se a proceder à entrega do imóvel à Massa Insolvente no estado em que se encontrava e que esta atestava ser em bom estado de conservação e com os móveis/equipamentos integrados na mesma, tais como, mobiliário de cozinha, caldeira de aquecimento e aparelhos de ar condicionado
Tal transacção foi homologado por sentença a 08.06.2020, transitada em julgado em 29.06.2021
 Em 25.03.2021 o administrador de insolvência emitiu um título de transmissão nos termos do qual adjudicou à autora a fracção supra referenciada e ordenou o cancelamento de todos os ónus e encargos que incidiam sobre a mesma
Em 12.04.2021 viria a ser registada a aquisição dessa fracção pela Autora.
A 1.ª ré não cumpriu a obrigação de entrega da fracção à massa insolvente, mantendo-se na sua posse mesmo depois de ter sido formalizada a transmissão da propriedade sobre a fracção em causa a favor da autora.
Instada pelo administrador da insolvência a proceder à sua entrega, livre de pessoas e bens, a 1.ª ré recusou-se a fazê-lo.
No decurso dessas diligências levadas a cabo pelo administrador de insolvência, tendentes à efectivação da entrega da fracção à autora, foi este informado que a 1.ª ré havia dado de arrendamento à 2.ª ré a fracção em causa.
O contrato de arrendamento consta como tendo sido celebrado entre a Ré EMP01..., S.A., na qualidade de senhoria e a Ré AA, na qualidade de arrendatária, e como fiador o Réu BB, no dia 20.05.2019, tendo por objecto a referida fracção, pelo prazo de um ano, tendo o seu início no dia 20 de Maio de 2019 e termo em 19 de Maio de 2020, considerando-se automaticamente prorrogado por períodos sucessivos de um ano, enquanto não for denunciado por qualquer um dos contraentes, no termo do contrato, com antecedência mínima na referida cláusula Terceira […], pela renda mensal de 400,00 (quatrocentos euros). 
Pese embora o contrato tivesse a duração inicial de um ano, o contrato foi-se renovando por iguais períodos (e já por duas vezes - em 20.05.2020 e 20.05.2021) por nenhuma das partes se ter oposto à sua renovação.
Assim que teve conhecimento deste contrato, o administrador de insolvência diligenciou junto da 1.ª Ré para explicar à 2.ª Ré AA que o contrato padecia de invalidade e que a fracção deveria ser entregue à massa insolvente, para entrega efectiva à Autora.
A 1.ª deu conhecimento desta situação à 2.ª Ré, ficando esta ciente da invalidade do contrato, mas nada fez.
Viu-se, por isso, o administrador de insolvência forçado a contactar directamente a 2.ª ré, através de carta remetida em 20.11.2020, informando-a, por essa via, de que o contrato por si celebrado com a 1.ª Ré estava ferido de nulidade, não produzindo quaisquer efeitos, e que em virtude disso teria que proceder à sua entrega, livre de pessoas e bens
Ainda assim a 2.ª Ré recusa-se a fazer a entrega da fracção, bem sabendo, contudo, que está a ocupar a fracção de forma ilícita por não pertencer a quem lhe deu de arrendamento e, independentemente disso, pelo facto de o contrato de arrendamento sempre caducar com a adjudicação da fracção a favor da autora.
Esta situação tem vindo a causar sérios prejuízos à autora, que se viu (e continua a ver) impedida de tomar posse de uma fracção que lhe foi adjudicada.
No mercado de arrendamento, a fracção, que corresponde a um apartamento em bom estado de conservação e manutenção, com lugar de aparcamento automóvel, situado numa zona central da cidade, pode ser facilmente arrendada por € 800,00 (oitocentos euros) mensais. Por cada mês que as rés privam a autora da fracção causam-lhe um prejuízo nessa importância.
Porque a 1.ª Ré faltou culposamente ao cumprimento da obrigação de entrega da fracção à massa insolvente, para que esta a entregasse à autora, é responsável pelo prejuízo que causou à autora
A 2.ª Ré está também obrigada a indemnizar a autora pelos prejuízos que lhe tem causado ao impedir-lhe a entrega da fracção de que é proprietária, violando dolosamente o seu direito de propriedade
Porque o 3.º Réu se assumiu como fiador das obrigações da 2.ª Ré no contrato de arrendamento que esta celebrou com a 1.ª Ré, a Autora pode exigir também de si todas as importâncias, cujo pagamento peticiona das 1.ª e 2.ª Rés
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O réu BB apresentou contestação, em que impugna a autenticidade da assinatura que lhe é imputada no contrato de arrendamento, como fiador, afirmando não lhe pertencer e na sequência, impugnando tudo quanto na P.I. é alegado no pressuposto de que interveio no contrato de arrendamento como fiador. Pugna pela improcedência da acção no que a ele respeita.
A ré EMP01..., S.A., contestou, impugnando o alegado na P.I. e deduziu reconvenção, alegando, que, quando arrendou o imóvel em causa nos presentes autos à aqui 2ª Ré, equipou o referido imóvel com uma máquina de lavar louça, com uma máquina de lavar roupa, com 1 sofá de 3 lugares e bem assim equipou dois quartos, cada um com uma cama e duas mesinhas de cabeceira, bens esses com valor não inferior a € 2.000,00 no seu conjunto, que não teve oportunidade de reaver aquando da entrega do imóvel à Massa Insolvente e que agora é propriedade da Autora. Conclui que a Autora viu o seu património enriquecido, pelo que deverá a aqui Autora ser condenada a proceder à devolução de tais bens móveis à aqui Reconvinte ou, em alternativa, a indemnizar a mesma no valor dos mesmos, o que expressamente peticiona.
A ré AA também contestou, pugnando pela validade do contrato de arrendamento, que celebrou de boa fé, sendo alheia às acções mencionadas pela autora e pugnando pela manutenção do contrato, invocando para tanto a jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 2/2021,
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A Autora apresentou réplica, pugnando pela não admissão da reconvenção.
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 Realizou-se a audiência prévia no decurso da qual e relativamente à reconvenção deduzida pela Ré EMP01... S.A., se proferiu a seguinte decisão:

– Em face do exposto, e nos termos do disposto no artigo 266º, do Código de Processo Civil, não admito a reconvenção deduzida, por manifesta inviabilidade, absolvendo a Autora do pedido reconvencional.
Seguidamente, proferiu-se despacho saneador e, nada obstando, identificou-se o objecto do litígio e seleccionaram-se os temas de prova.
Foi produzida prova pericial relativamente à autoria da assinatura impugnada pelo 3º Réu e com vista ao apuramento do valor locativo da fracção.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.

Proferiu-se sentença em que se decidiu:
«Em face do exposto, julgo a acção proposta por Banco 1..., Crl. contra EMP01..., S.A., AA e BB, improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolvo os Réus dos pedidos contra si deduzidos.
Custas pela Autora.»
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Inconformada, a Autora interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

 «1.ª - Com todo o devido respeito, que é muito, a discordância da recorrente em relação à douta sentença em crise centra-se nos seguintes dois núcleos problemático decisórios:
- incorreto julgamento, face aos meios probatórios constantes dos autos e produzidos e registados em audiência de julgamento, de alguns dos pontos de facto dados como não provados;
- errada abordagem da questão de direito porque, mesmo a manter-se inalterada a matéria de facto, sempre se imporia uma diferente decisão em matéria de direito considerados os efeitos do caso julgado formado pela decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto no processo que correu termos sob o n.º 3095/14.... ou, no mínimo, considerados os efeitos decorrentes da transação homologada alcançada no proc. n.º 3095/14....
2.ª - Quanto à matéria de facto, a recorrente julga que o Tribunal a quo não esteve bem ao decidir relativamente aos factos 17.º a 20.º, 32.º, 35.º, 36.º e 40.º e 47.º constantes da sua petição inicial porque, diferentemente do que afirmou, foi quanto a estes factos produzida prova (documental e testemunhal) que, coincidente entre si, totalmente verosímil à luz das regras da experiência e sem que tivesse sido afastada por quaisquer outras provas, impunha decisão diferente
3.ª - Assim é porque os factos descritos nos pontos 17.º a 20.º da sua petição inicial, resultam não apenas do que o Tribunal a quo fez constar, entre o mais, no facto assente v, mas também da prova documental junta aos autos e expressamente do depoimento prestado pelo Administrador de Insolvência Dr. DD
- vd. doc. ... junto à p.i. e factos provados k) e l)
- vd. docs. ... a ... juntos à contestação da 2.ª ré e facto provado o)
- vd. .... 5 e 6 juntos à contestação de AA
- vd. doc. ... junto à petição inicial e facto provado n)
- vd. doc. ...0 junto à p.i. e factos provados p) e q)
- vd. factos provados r) e u)
- depoimento prestado pelo Administrador de Insolvência Dr. DD, em 24.05.2023 das 10:52 às 11:23 e gravado com a ref.ª 20230524105204_1586789_2871824
4.ª - Igualmente, com o devido respeito, a recorrente entende que deveria ter ficado a constar da matéria assente o ponto 32.º da petição inicial porque a prova documental junta só permite dar por provado tal facto
- vd. doc. ... junto à p.i. e facto provado k)
- vd. facto provado l)
5.ª - Também deveriam ter resultado como provados os pontos 35.º e 36 da petição inicial ou, ou pelo menos, que o contrato se renovou em 20.05.2020 e em 20.05.2021 porque se resulta diretamente do facto provado elencado como ponto o) que o contrato de arrendamento entre a “EMP01... -..” e a AA celebrado em ../../2019 tinha a duração de um ano, e a AA apenas fez a sua entrega em junho de 2022, é por demais evidente que a “EMP01... -..” aceitou a sua renovação em 20.05.2020 e em 20.05.2021 tanto mais que recebeu nesse período rendas pagas pela inquilina
- vd. docs. ...4 junto à p. i. e docs. ... a ... juntos à contestação da 2.ª ré
6.ª - Também considera a recorrente que o descrito nos pontos 40.º a 46.º da sua petição inicial deveria integrar a factualidade assente porque dos documentos referidos nas conclusões anteriores e do depoimento do Administrador de Insolvência só assim se poderia concluir
- vd. depoimento prestado em 24.05.2023, das 10:52 às 11:23, gravado com a ref.ª 20230524105204_1586789_2871824
7.ª - A não inclusão destes factos na matéria assente, por assumirem relevo à boa decisão da causa, e decorrerem diretamente da prova documental produzida e das regras de experiência quando analisados tais meios de prova em conjunto, constitui um erro de julgamento que merece reparo
8.ª - Conforme se adiantou, a recorrente discorda igualmente da decisão proferida pelo Tribunal a quo em matéria de direito quer quanto ao primeiro pedido deduzido, quer quanto ao último pedido deduzido
9.ª - Quanto ao primeiro pedido, e com todo o respeito, a recorrente julga que o Tribunal a quo não esteve bem ao desconsiderar que a “EMP01... -..” , aquando da celebração do contrato de arrendamento, sabia que a aquisição da fração por CC havia sido declarada ineficaz e sobre a mesma pendia uma ordem judicial de adjudicação a favor da recorrente e, por conseguinte, que a sua aquisição da fracção estava ferida de invalidade
10.ª - Igualmente discorda a recorrente da decisão na parte em que o Tribunal a quo decidiu que a decisão proferida no proc. n.º 3095/14.... não seria oponível à “EMP01... -..” por não ter sido nela parte pois que ao assim decidir desconsiderou não só que essa decisão sobre a relação material controvertida tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, como também desconsiderou que a nossa jurisprudência e doutrina têm vindo a decidir e defender a necessidade de reconhecimento da eficácia reflexa do caso julgado perante os terceiros titulares de uma relação ou posição dependente da definida entre as partes por decisão transitada
- vd. art. 609.º, n.º 1 do CPC
- vd. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 306; Alberto dos Reis, Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros, in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XVII, pp. 206ss; Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª ed., 1985, pp. 726-729
- vd., a título exemplificativo, Ac. STJ, de 13.09.2018, proc.687/17.5T8PNF.S1
11.ª - No caso, é precisamente o que está em discussão nestes autos já que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto no proc. n.º 3095/14.... se revela como prejudicial à celebração do contrato de arrendamento em discussão nos presentes autos e tendo a mesma declarado sem efeito a venda da fração a CC e ordenado a sua adjudicação à recorrente, a venda da fracção à “EMP01... -..” está ferida de nulidade e, como tal, também ferido de nulidade o contrato de arrendamento celebrado entre “EMP01... -..” e AA
- vd. arts. 892.º e 286.º e 289.º do CC
12.ª - Mas mesmo que assim não se entendesse, deveria ter sido proferida decisão diferente porque o Tribunal a quo também desconsiderou um facto muito relevante que imporia decisão distinta: a “EMP01... -..” viria a reconhecer, no acordo alcançado no proc. n.º 3095/14...., a nulidade do negócio de compra e venda da fração em causa celebrado entre si e CC e tal reconhecimento implicará que se assumam os efeitos da nulidade retroativamente e, pois, se reconheça a invalidade de tal contrato de arrendamento que lhe foi subsequente
- vd. art. 289.º do CC
13.ª - Pelas razões expostas, entende a recorrente que deverá ser revogada a decisão impugnada e substituída por outra que declare a nulidade do contrato de arrendamento celebrado entre a “EMP01... -..” e AA tanto mais que, a entender-se de outra forma e a considerar-se válido esse contrato de arrendamento, fica por explicar como será possível justificar a conciliação do direito da recorrente com tal contrato de arrendamento, celebrado à sua revelia
14.ª - Igualmente merece reparo a decisão quanto ao último pedido formulado porque resultando provado o incumprimento, pela “EMP01... -..”, do acordo logrado na ação n.º. 3095/14...., só se poderá concluir pela sua atuação ilícita e dolosa que provocou um prejuízo para a recorrente que ascende a € 4.620,00 e que não teria sido causado se a mesma tivesse entregue a fração no mês de junho de 2020 tal como se havia comprometido
15.ª - Assim, sendo inegável existir nexo de causalidade entre a atuação da “EMP01... -..” de recusa de entrega da fração e o dano sofrido pela recorrente, só se poderá concluir que estão preenchidos todos os requisitos da responsabilidade civil em que se funda o último pedido deduzido pela recorrente, e por isso que o Tribunal a quo deveria ter condenado a “EMP01... -..” a pagar à recorrente a indemnização que ora se pode fixar em € 4.620,00
A esta conclusão chegaríamos mesmo no caso de não serem procedentes as alterações à matéria de facto

EM CONFORMIDADE COM AS RAZÕES EXPOSTAS DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO À PRESENTE APELAÇÃO E, EM CONSEQUÊNCIA, REVOGAR-SE A SENTENÇA IMPUGNADA E JULGAR-SE A AÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE NOS TERMOS EXPRESSOS.».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido e os autos remetidos a este Tribunal da Relação, onde foi recebido nos termos em que o fora na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

 O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC). 
As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas e que assim se sintetizam:
– Reapreciação da decisão da matéria de facto, na parte impugnada.
– Em qualquer caso, proceder à aplicação do direito aos factos provados.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

A) FACTOS JULGADOS PROVADOS NA SENTENÇA RECORRIDA:

«a) Por sentença já transitada em julgado, proferida no dia 12.07.2015, no processo que correu termos sob o nº ...4..., Juiz ..., 2ª secção de comércio da instância central de Vila Nova de Gaia, foi declarada a insolvência da sociedade comercial “EMP02..., Lda.”, conforme cópia da sentença junta aos autos de fls. 11v a 15 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
b) No decurso desse processo de insolvência foram apreendidos diversos bens e, de entre eles, o seguinte: fracção autónoma designada pelas letras ..., destinada a habitação, correspondente ao ..., bloco sul, que faz parte integrante do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...05 e inscrito na matriz predial com o artigo ...00º, conforme cópia do auto de apreensão junto aos autos de fls. 15v a 16 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
c) Encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...15..., uma fracção autónoma, composta de ..., destinada a habitação, com aparcamento automóvel na subcave, conforme se retira da certidão da referida Conservatória que antecede a presente decisão e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
d) À data da declaração de insolvência encontrava-se inscrita a favor da aqui Autora uma hipoteca voluntária para garantia do montante máximo de € 90.666,00, mediante a Ap. ...43 de 2011/12/30, conforme se retira da certidão da referida Conservatória que antecede a presente decisão e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
e) No dia 04.12.2015, no âmbito do referido processo de insolvência, a fracção descrita na alínea b) foi adjudicada a CC, pelo preço de €50.550,00, conforme se retira da cópia da acta junta aos autos de fls. 16v a 18v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
f) No dia 10.04.2017, a fracção em causa foi, por escritura pública, vendida pela Massa Insolvente ao adjudicatário, conforme se retira da certidão da referida escritura junta aos autos de fls. 19 a 21 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
g) A inscrição da hipoteca a favor da aqui Autora na Conservatória do Registo Predial foi cancelada mediante a Ap. ...77 de 2017/04/11, conforme se retira da certidão da referida Conservatória que antecede a presente decisão e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
h) No dia 10.04.2017, o referido CC vendeu a fracção à 1º Ré, conforme se retira da certidão da referida escritura junta aos autos de fls. 22 a 24 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
i) A inscrição da aquisição do direito de propriedade relativamente à fracção em causa a favor da primeira Ré na mencionada Conservatória do Registo Predial concretizou-se mediante a Ap. ...78 de 2017/04/11, conforme se retira da certidão da referida Conservatória que antecede a presente decisão e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
j) Por Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 13.06.2018, foi declarado nulo o acto pelo qual se efectivou o invocado direito de preferência do referido CC, e determinou-se que a fracção autónoma apreendida fosse adjudicada à credora Banco 1..., conforme se retira da cópia junta aos autos de fls. 25 a 30 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
k) O administrador de insolvência do processo referido em a) remeteu, em 25.01.2019, para o referido CC e para a primeira Ré as missivas cujas cópias se encontram juntas aos autos de fls. 31 a 33 e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos;
l) A primeira Ré remeteu, em 05.02.2019, para o administrador da insolvência supra referida, a missiva cuja cópia se encontra junta aos autos de fls. 91 a 93 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
m) Na sequência da supra referida missiva e depois de ter conhecimento do seu conteúdo, a aqui Autora, através do seu mandatário, comunicou ao administrador de insolvência não estar disponível para qualquer reunião com a primeira Ré, conforme se retira da cópia do mensagem electrónica junta aos autos a fl. 96v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
n) A Massa Insolvente de EMP02..., S.A. propôs, em 10 de Março de 2019, uma acção contra o referido CC e contra a primeira Ré, tramitada por apenso (M) ao referido processo de insolvência nº ...4..., na qual peticionou (i) “ser julgada inválida, por nula, a primeira transmissão efectuada pela Autora a favor do 1º Réu e que incidiu sobre o prédio melhor identificado no item 5º da presente e, em consequência, julgar-se nula a transmissão subsequente efectuada entre os 1º e 2º RR”; (ii) “na sequência da declaração de nulidade quer da 1.º quer da transmissão subsequente, ser ordenado a restituição do imóvel em questão pelos RR a favor da aqui Autora, com as devidas e legais consequências; (iii) “ser ordenado o cancelamento dos registos de aquisição que incidem sobre o imóvel e que foram lavrados a favor do 1º e 2º Réus”; (…) (iv) sempre e de qualquer modo, deve ser reconhecido a favor da aqui Autora o direito de propriedade que incide sobre o imóvel identificado no item 5º da presente”, conforme se retira da cópia da petição inicial junta aos autos de fls. 34 a 43 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
o) Em 20.05.2019, a primeira Ré deu de arrendamento à segunda Ré a fracção descrita na alínea b), nos termos do clausulado escrito cuja original se encontra junta aos autos de fls. 136 a 138 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, constando como terceiro outorgante e fiador o terceiro Réu, BB;
p) Na acção supra referida (processo nº 3095/14....) as partes transigiram, em 03.06.2020, nos seguintes termos:
“MASSA INSOLVENTE DE EMP02..., S.A. […] CC […] E EMP01..., S.A. […] …vêm expor e requerer a V. Exa. o seguinte: A autora e os réus antes identificados pretendem transigir quanto ao objecto desta acção nas seguintes condições:
PRIMEIRA
As partes reconhecem expressamente a nulidade dos dois negócios em causa nos presentes autos, isto é, a primeira transmissão efectuada pela Autora a favor do 1.º Réu e que incidiu sobre o prédio em causa nos autos e a transmissão subsequente efectuada entre os 1.º e 2.º RR, com as consequências daí decorrentes, designadamente o cancelamento das duas inscrições registrais que titulam tais negócios;
SEGUNDA
Atenta a nulidade dos dois negócios supra aludidos, a Autora Massa Insolvente obriga-se a devolver à EMP01..., S.A., o montante recebido do 1.º Réu pela venda do imóvel em causa (€ 50.550,00) e por sua vez a Ré EMP01..., S.A. obriga-se a proceder à entrega do imóvel à Massa Insolvente no estado em que se encontra e que esta atesta ser em bom estado de conservação e com os móveis/equipamentos integrados na mesma, tais como, mobiliário de cozinha, caldeira de aquecimento e aparelhos de ar condicionado
[…] Assim requer: - se julgue válida a presente transacção assim o declarando por sentença”
q) Esse acordo viria a ser homologado por sentença a 08.06.2020, transitada em julgado em 29.06.2020, conforme se retira da certidão do processo em causa junta aos autos de fls. 44 a 48 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
r) A massa insolvente restituiu, em 21.09.2020, à primeira Ré o valor global despendido com a aquisição referida em h) (despesas e preço);
s) A primeira Ré, a partir de Setembro de 2020, deixou de contar com a fracção no seu activo contabilístico, deixou de pagar as contribuições devidas à Fazenda Nacional pela titularidade dominial da fracção e deixou de se comportar como titular deixando de contactar a segunda Ré;
t) A inscrição da aquisição do direito de propriedade relativamente à fracção em causa a favor da primeira Ré na mencionada Conservatória do Registo Predial (Ap. ...78 de 2017/04/11) foi cancelada mediante a Ap. ...01 de 2020/11/17, conforme se retira da certidão da referida Conservatória que antecede a presente decisão e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
u) No âmbito do processo de insolvência já referido, em 25.03.2021, o administrador de insolvência emitiu o título de transmissão cuja cópia se encontra junta aos autos a fl. 48v e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
v) A segunda Ré desocupou a fracção no dia 1 de Junho de 2022;
w) O valor de mercado da renda mensal, em contexto de arrendamento, da fracção descrita em b) ascende a € 420,00;
x) A Massa Insolvente elaborou e colocou no correio a missiva cuja cópia consta de fl. 56 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.»

B) FACTOS JULGADOS NÃO PROVADOS:
« Da petição inicial: artigos 17º a 20º, 25º a 27º, 28º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea x), 30º, 32º, 40º a 46º, 49º, 50º a 59º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea w)..».

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

A autora impugna a decisão da matéria de facto na parte em que julgou não provada a matéria dos artigos, 17º a 20º, 32º, 35º e 36º, 40º a 45º e 47º da P.I., concretamente:
«17.º Durante todo este processo a referida fração autónoma não chegou a ser efetivamente entregue à autora.
18.º De facto, a 1.ª ré não assegurou o cumprimento do acordo referenciado no antecedente ponto 10.º e não procedeu à entrega da fração, livre de pessoas e bens, à massa insolvente.
19.º A 1.ª ré manteve-se na posse da fração mesmo depois de ter sido formalizada a transmissão da propriedade sobre a fração em causa a favor da autora.
20.º E mesmo quando instada pelo administrador da insolvência a proceder à sua entrega, livre de pessoas e bens, a 1.ª ré recusou-se a fazê-lo.
32.º Estando perfeitamente ciente de que tais declarações não correspondiam à verdade.
35.º Igualmente nada disso a inibiu de não se opor à renovação do contrato findo o seu prazo inicial de duração, que ocorreu em 20.05.2020.
36.º Nem de se opor à segunda renovação do contrato, que viria a suceder em 20.05.2021.
40.º Tudo isto permite afirmar que, durante todo aquele processo, a 1.ª ré esteve perfeitamente ciente de que não era legítima proprietária da fração em causa.
41.º E que não poderia arrendá-la.
42.º Mas também significa que esteve ciente de que, tendo procedido ao seu arrendamento, deveria ter informado o administrador de insolvência de que a fracção não se encontrava livre de pessoas e bens.
43.º E, no mínimo, ter-se oposto à renovação do contrato de arrendamento.
44.º Porém, nada disso sucedeu: a 1.ª ré não informou o administrador de insolvência que pendia sobre a fração um contrato de arrendamento e procurou sempre a manutenção desse contrato mesmo conhecendo da sua invalidade.
45.º Por sua vez, a 2.ª ré tem-se oposto a entregar a fração, continuando a fazer pagamento da renda a favor da 1.ª ré, sabendo que a fração não lhe pertence.
47.º Desse contrato de arrendamento apenas a 1.ª e 2.ª ré tiveram proveito próprio e exclusivo.»
Nesta sede, convoca os seguintes meios de prova: depoimento do A.I., o  doc. n.º ..., junto com a P.I. e factos provados K) e L), os docs. nºs.... a ..., juntos com a contestação da 2.ª Ré, e facto provado O), os docs. nºs. ... e ... juntos com a contestação de AA, os doc. n.ºs ... e ...0, juntos com a P.I. e os factos provados constantes das alíneas N), P), Q), R) e U)
 
Apreciando
● Relativamente aos factos descritos nos pontos 17.º a 20.º da sua petição inicial, a apelante sustenta que a sua prova resulta não só do que consta da alínea V) dos factos provados, mas também da prova documental junta aos autos e, expressamente, do depoimento prestado pelo Administrador de Insolvência Dr. DD.
A matéria do art.º 17º da P.I., despida dos conceitos e conclusões jurídicas que apresenta, conclui-se dos demais factos julgados provados, mormente sob a alínea V): “A segunda Ré desocupou a fracção no dia 1 de Junho de 2022”. A entrega efectuada pela 2ª Ré à autora consta também do documento apresentado e junto aos autos pela mesma em 7-6-2022 (declaração assinada em nome da Autora e por esta aceite, assim como a fracção e respectivas chaves lhe foram entregues em 1-6-2022).
Consequentemente, não é imprescindível acrescentar a matéria do art.º 17º da P.I., pois não está de forma alguma controvertido que, antes dessa data, não ocorrera a entrega da fracção devoluta de pessoas e bens, seja pela 1ª Ré, seja pela 2ª Ré, limitando-se a primeira a afirmar, conforme provado sob a al. S): A primeira Ré, a partir de Setembro de 2020, deixou de contar com a fracção no seu activo contabilístico, deixou de pagar as contribuições devidas à Fazenda Nacional pela titularidade dominial da fracção e deixou de se comportar como titular deixando de contactar a segunda Ré.
Se tal matéria já resulta dos factos provados não era indispensável mencioná-la, de qualquer forma, acrescentar-se-á ao teor da alínea V), “data em que a 2ª Ré entregou à autora as chaves da fracção”.
A matéria do art.º 18º da P.I. corresponde apenas a conclusões de direito, sendo que a parte da entrega será a seguir analisada.
● No tocante à matéria do art.º 19º da P.I., não foi produzida prova de que a 1ª Ré se manteve na posse da fracção após ter celebrado a transacção em que reconheceu a nulidade dos negócios [facto constante da alínea p)] e se comprometeu a proceder à entrega do imóvel à massa insolvente no estado em que se encontrava. Basta atentar no teor do facto provado sob a alínea S) e em não se ter provado que tenha recebido rendas da fracção após tal data.
Mais ainda, também com referência ao que se alegou em 18º da P.I., da referida transacção resulta que a aqui 1ª Ré, em tal transacção (onde figurava como 2ª Ré), não se comprometeu à entrega do imóvel livre de pessoas e bens – ver teor da cláusula 2ª do contrato reproduzida na citada alínea P) dos factos provados.
Esta matéria do art.º 19º, e a do artigo 20º da P.I., na parte referente ao período anterior à transacção mencionada no facto da al. P), corresponde a meras conclusões que se extraem dos demais factos provados (K, L e M), sendo certo que ainda não fora cancelado o registo de propriedade a favor da aqui 1ª Ré [facto da alínea T)], o que só veio a suceder em 2020-11-17, na sequência da homologação da transacção efectuada no apenso M) do processo de insolvência.
Entendemos ser irrelevante esta matéria, na medida em que a aqui 1ª Ré não foi parte nessa acção que correu sob o apenso C, referida no facto da alínea J).
 Pelo exposto esta matéria, despida das conclusões jurídicas que dela a Autora pretende extrair, já consta dos factos provados.
● A matéria do art.º 32º vem na sequência do alegado no artigo antecedente:
31º Já depois do trânsito da decisão que declarou nula a transmissão da fração a favor de CC e deste a favor da 1.ª ré, esta deu de arrendamento a fracção em causa, declarando-se sua “proprietária e legítima possuidora”.
32.º Estando perfeitamente ciente de que tais declarações não correspondiam à verdade.
(…)
35.º Igualmente nada disso a inibiu de não se opor à renovação do contrato findo o seu prazo inicial de duração, que ocorreu em 20.05.2020.
36.º Nem de se opor à segunda renovação do contrato, que viria a suceder em 20.05.2021.
Mais uma vez reiteramos que a aqui 1ª Ré não foi parte na acção que correu termos sob o apenso C) da insolvência, e que a aquisição do direito de propriedade sobre a fracção, que deu de arrendamento, continuava registada a seu favor. Pelo que não se pode afirmar que a 1ª Ré, quando arrendou a fracção em causa, já não fosse sua proprietária e disso estivesse ciente. Aliás, na data em que arrendou a fracção (20-5-2019), esta ainda nem sequer fora adquirida pela Autora, pois o título de transmissão só foi emitido em ../../2021 [facto da alínea u)].
● De qualquer forma, quer o alegado no art.º 35º, quer o alegado no art.º 36º da P.I., salvo melhor opinião, é absolutamente anódino face à legislação imperativa em matéria de arrendamento, concretamente o disposto no nº 3 do art.º 1097º do Código Civil, pois, “a oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo, mantendo-se o contrato em vigor até essa data”. E, no final do 3º ano de duração do contrato, a fracção foi entregue à aqui Autora.
Assim, quer a 1ª Ré se tivesse oposto à renovação do contrato findo o prazo inicial (20-5-2020), quer se tivesse oposto à segunda renovação (20-5-2021), a Autora não lograria a entrega antes do final de Maio de 2022, tendo a mesma ocorrido no 1º dia do mês imediatamente seguinte.
Pelo exposto, atentas as plausíveis soluções jurídicas do pleito, sempre esta factualidade (não se ter oposto à renovação do contrato de arrendamento) seria irrelevante para a decisão da causa, pois a entrega, findo o contrato, nunca ocorreria em data anterior e poderia mesmo ter ocorrido em data posterior, atento o disposto no art.º art.º 6.º-A, n.º 6, da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03 (legislação COVID).
O facto alegado em 40º da P.I. é conclusivo e mera repetição do alegado em 32º, tal como é conclusivo o alegado em 41º. 
Assim, relativamente ao art.º 40º da P.I., se existia ou não o dever de informar é matéria de direito e, considerando o teor do doc. junto a fls. 56 (carta do A.I. dirigida à aqui 2ª Ré, AA) e a data do mesmo (20-11-2020) é evidente, que, na sequência da acção intentada contra a qui 1ª Ré (EMP01... S.A.) e da transacção nela celebrada (apenso M da insolvência), a massa insolvente teve conhecimento da existência do contrato de arrendamento bem antes de tal data, como resulta da contestação apresentada pela aqui 1º Ré no apenso M (art.º 42º).
Mais ainda, a fracção em questão deixou de pertencer à 2ª Ré com a homologação da transacção nesse apenso M, e cancelamento do registo, carecendo a 1ª Ré de legitimidade para se opor à 2ª renovação do contrato (a considerar que este era válido), passando tal a competir à proprietária, ou seja, competiria à massa insolvente opor-se à renovação, sendo que quando enviou a dita carta ainda estava em tempo de o fazer (ou reivindicar a fracção, invocando a nulidade ou ineficácia do contrato, por ter sido celebrado por quem para tanto não tinha legitimidade).
Cremos assim, que além de se tratar de matéria conclusiva e de direito a mesma é irrelevante.
● O que se expôs tem igual aplicação ao alegado em 42º a 45º da P.I. (em grande parte mera duplicação dos anteriores), não se tendo provado, até pelo teor das contestações apresentadas em processos anteriores e da carta enviada pelo A.I. à “arrendatária”, aqui 2º Ré, que o A.I. não tivesse sido informado, aceitando celebrar transacção em que a aqui 1ª Ré não se obrigou a entregar a fracção devoluta (livre de pessoas e bens).
Também não se provou que as rendas, após o trânsito em julgado da transacção, tenham sido recebidas pela aqui 1ª Ré (ver fls. 120 e segs. do doc. nº ... junto pela 2º Ré com a respectiva contestação e o que ela admitiu no art.º 22).
● No tocante ao art.º 45º da P.I. (“a 2.ª ré tem-se oposto a entregar a fracção”), não se provou que a mesma tenha recepcionado a carta enviada pelo A.I., mas apenas o seu envio (al. X), ou seja, antes da propositura da presente acção não se provou que a entrega lhe tenha sido exigida e, já no decurso desta acção, a 2ª Ré entregou a fracção. Acresce que entre a citação para esta acção (até antes) e a data em que entregou, podia legitimamente continuar a habitar o arrendado face à legislação Covid. Por isso, este facto, além de não se ter provado é irrelevante. Também não se provou que tenha continuado a fazer pagamento da renda a favor da 1.ª ré, como já se explanou.
●O alegado no art.º 47º da P.I. é conclusivo.
*
Pelo exposto mantém-se intocada a matéria de facto julgada provada na sentença recorrida, excepto no tocante à alínea V) que passa a ter a seguinte redacção:
V) A segunda Ré desocupou a fracção no dia 1 de Junho de 2022, data em que entregou à Autora as chaves da fracção.

B) DA APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS PROVADOS

Passamos agora a apreciar as questões jurídicas colocadas pela apelante nas conclusões da sua apelação.
No tocante ao primeiro pedido (nulidade do contrato de arrendamento), a recorrente entende que o Tribunal “a quo” não podia desconsiderar que a “EMP01... S.A.”, aquando da celebração do contrato de arrendamento, sabia que a aquisição da fracção por CC havia sido declarada ineficaz e sobre a mesma pendia uma ordem judicial de adjudicação a favor da recorrente e, por conseguinte, que a sua aquisição da fracção estava ferida de invalidade.
Sucede que tal factualidade não se provou.
Igualmente discorda a recorrente da decisão na parte em que o Tribunal a quo decidiu que a decisão proferida no proc. n.º 3095/14.... não seria oponível à “EMP01... (…) por não ter sido nela parte pois que ao assim decidir desconsiderou não só que essa decisão sobre a relação material controvertida tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, como também desconsiderou que a nossa jurisprudência e doutrina têm vindo a decidir e defender a necessidade de reconhecimento da eficácia reflexa do caso julgado perante os terceiros titulares de uma relação ou posição dependente da definida entre as partes por decisão transitada”.
Neste conspecto consta da fundamentação da sentença recorrida:
– «Como se sabe, o registo aquisitivo ou atributivo é aquele que protege a aquisição de um direito a non domino face à lei substantiva. Estes casos ocorrem nas hipóteses abstractamente recortadas nos artigos 291º, do Código Civil, e 5, nº 1, do Código do Registo Predial.
No nosso caso, a primeira Ré era a titular registal da fracção à data do arrendamento: registou a aquisição em 11.04.2017 e arrendou a fracção em 20.05.2019 – cfr. alíneas i) e o), do ponto II.1.. Destarte, à data do arrendamento, a primeira Ré tinha legitimidade substantiva para arrendar a fracção descrita na alínea b), do ponto II.1., inexistindo fundamento para julgar o acto nulo.
É certo que a primeira Ré poderia não merecer a tutela que emerge do artigo 291º, do Código Civil. Mas, face ao registo da sua aquisição, era necessário que fosse disso convencida em acção judicial. Ora, a decisão judicial que consta da alínea j) teve como objecto, apenas, a validade do direito de preferência invocado pelo primeiro adquirente, sendo que a primeira Ré não foi parte no processo, pelo que a aqui Autora não se pode fazer valer de uma decisão que não é oponível àquela. Muito menos pode a Autora invocar o conhecimento pela primeira Ré da propositura da acção referida na alínea n), do ponto II.1., para o efeito, pois que a mera propositura da acção não se confunde com a decisão transitada em julgado – esta sim, instrumento do convencimento supra referido.
Improcede, pois, a pretensão de obtenção da declaração de nulidade do contrato mencionado na alínea o), do ponto II.1.»

Concordamos com o decidido na sentença, no sentido de que a decisão proferida no proc. n.º 3095/14.... não seria oponível à “EMP01... por não ter sido nela parte”.
Efectivamente e como se refere no acórdão do STJ de 15-3-2012 (proc. n.º 622/05.3TCSNT -A.L1.S1):
– «O caso julgado é a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado (art. 677.º do CPC).
Diz-se que a sentença faz caso julgado quando a decisão nela contida se torna imodificável (efeito processual do caso julgado) em razão do que o tribunal não pode voltar a pronunciar-se sobre o decidido e fica vinculado ao respectivo conteúdo (autoridade do caso julgado)[2].
Por força do caso julgado o acto decisório é irrevogável pelo órgão jurisdicional que o pronunciou, dado que, logo que proferido, se lhe esgotam os poderes jurisdicionais sobre a matéria, com a consequência de o seu acto decisório se tornar imutável (Alberto dos Reis, Código Anotado, V, pág. 156 e segs.).
 Enquanto excepção o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir: há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há entidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico - arts. 497.º, n.º 1, e 498.º, do CPC.
Facto jurídico que, nas acções de anulação, é facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido – art. 498.º, n.º 4, parte final.
De onde resulta que o caso julgado não se estende a todos os fundamentos da decisão[3] e preclude a invocação de questões relacionadas com o thema decidendum enquanto se mantiver inalterada a situação apreciada na decisão e, em princípio só vincula as partes da acção, a significar que, como refere Miguel Teixeira de Sousa[4], possui limites objectivos (abrangendo a parte decisória e já não, em regra, os fundamentos de facto ou de direito[5]) temporais e subjectivos.
No que concerne aos seus limites subjectivos o caso julgado tem eficácia relativa: apenas vincula, em regra, as partes da acção, não podendo, também em regra afectar terceiros.
Esta limitação é reflexo do princípio do contraditório (art. 3.º, n.ºs 1 a 3, do CPC) no sentido de quem não pode defender os seus interesses num processo pendente, não pode ser afectado pela decisão que nele foi proferida. Assim os terceiros não podem ser nem prejudicados nem beneficiados pelo caso julgado de uma decisão proferida numa acção em que não participaram nem foram chamados a intervir (Paulus, D.20.4.16: Nec rec inter alios iudicata aliis prodesse aut nocere solet)[6].
Além da eficácia inter partes, que sempre possui, o caso julgado pode atingir terceiros, o que sucede através de duas situações: a eficácia reflexa do caso julgado e a extensão do caso julgado a terceiros.
A eficácia reflexa vincula qualquer sujeito a aceitar aquilo que foi definido entre os interessados directos e como tal baseia-se no pressuposto de que o que é definido em juízo entre todos os interessados directos é oponível – erga omnes - a qualquer terceiro (que, por definição, não é interessado directo), supondo a intervenção destes interessados, com especial relevância nas acções de estado (art. 674.º do CPC).
Já a extensão do caso julgado a terceiros implica uma vinculação de interessados (directos ou indirectos) à constituição, modificação ou extinção de uma situação subjectiva própria. Não vale, no entanto, com eficácia erga omnes, estabelecendo apenas a vinculação de certos interessados, fundada, designadamente: (i) na identidade da qualidade jurídica entre a parte e o terceiro; (ii) na situação de substituição processual; (iii) na titularidade pelo terceiro de uma situação jurídica dependente do objecto apreciado; e (iv) na oponibilidade resultante do registo:
- Pela identidade jurídica (art. 498.º, n.º 2 do CPC) ficam vinculados ao caso julgado os que possam ser equiparados às partes na acção, como o sejam os terceiros que sucederam (inter vivos ou mortis causa) na titularidade do objecto processual;
- A substituição processual vincula o substituto como se fosse a parte substituída, como sucede na vinculação do adquirente de coisa ou direito litigioso (art. 271.º, n.º 3 do CPC) ou nos casos de aproveitamento favorável do caso julgado nas situações de solidariedade (art. 522.º e 531.º do CC), de credor de uma prestação indivisível (art. 538.º, n.º 2 do CC); dos casos do art. 61.º, n.º 1 do CSC ou da acção de cobrança de créditos instaurada depois de encerrada a liquidação (art. 164.º, n.º 3 do CSC);
- Na prejudicialidade relativamente à situação jurídica de um terceiro, como o seja a extensão ao fiador do caso julgado favorável ao devedor (art. 635.º, n.º 2 do CC) ou o terceiro que constitui uma hipoteca a favor do credor e que aproveita do caso julgado entre um devedor e este credor (arts. 717.º, n.º 2, e 635.º, n.º 1, do CC)[7];
- O registo da acção implica que o caso julgado é oponível a terceiros que hajam adquirido ou constituído na pendência da acção ou mesmo antes dela, um direito incompatível com o reconhecimento da decisão transitada, ainda que não intervenham na acção (art. 271.º, n.º 3 do CPC).». (Recorde-se que não há registo da acção que correu termos sob o apenso C da insolvência).
Igualmente, no sentido de que “não pode ser imposta a um terceiro titular de uma relação ou posição dependente da definida entre as partes, a eficácia, extensão e autoridade do caso julgado material formado por decisão proferida no âmbito de um processo, no qual aquele não esteve presente e no qual não pôde ser convencido dos factos ali fixados e que contendem com os seus direitos. Nestas situações, impõem-se a instauração de uma nova ação contra esse terceiro por forma a poder ser convencido dos factos ali fixados e que contendam com os seus direitos”, também se pronunciou o TRL, em acórdão datado de 2-5-2017, proferido no processo nº 1333/14.4TBALM.L1-7 e publicado em www.dgsi.pt, onde
Sucede que, no caso em apreço, a 1ª Ré adquiriu a fracção a CC e registou tal aquisição, no mesmo dia em que aquele a adquirira no âmbito do processo de insolvência e, por isso, antes da prolação do acórdão de 13-6-2018, proferido no âmbito do apenso C do processo da insolvência (em que a aqui 1ª Ré não teve intervenção), que, revogando a decisão recorrida, determinou que a fracção apreendida fosse adjudicada à aqui Autora.
Assim, adaptando as palavras do dito acórdão do STJ à situação subjacente e considerando o sumário do acórdão do TRP proferido no apenso C (já que tal não consta do dispositivo) – onde se considerou “nulo o acto pelo qual se reconheceu e efectivou, no processo de insolvência, o suposto direito de preferência  do inquilino na aquisição da fracção arrendada e apreendida, por o local não lhe estar arrendado há mais de três anos  (…) e ineficaz a compra e venda que com base na preferência o administrador da insolvência celebrou com o arrendatário” – numa acção em que o terceiro juridicamente interessado (titular da aquisição do direito de propriedade sobre a mesma fracção, que lhe foi transmitida por quem para tanto tinha então legitimidade e devidamente registada) não teve qualquer intervenção, aquela decisão é-lhe inoponível.
Ou, como se refere no acórdão desta Relação de Guimarães de 19-01-2023 (proc. n.º 6492/17.1T8BRG.G1, publicado em www.dgsi.pt, onde se lê: – «Consideramos, assim, na esteira do acórdão do STJ de 20/12/2017[iii], que a pretensão de restituição dos bens contra o terceiro adquirente sucessivo, em relação à venda executiva anulada, deve ser deduzida por via de ação declarativa própria, de modo a estender o efeito anulatório dessa venda àquele terceiro adquirente que não interveio na execução para, nessa base, obter a sua condenação na restituição do bem, podendo então esse subadquirente prevalecer-se da proteção de terceiros de boa-fé nos termos do artigo 291.º do Código Civil.»  
 Consequentemente, neste conspecto, não acompanhamos as conclusões da apelante.
Defende ainda a apelante que, mesmo que assim não se entenda, deveria ter sido proferida decisão diferente porque o Tribunal “a quo” também desconsiderou um facto muito relevante que imporia decisão distinta: a “EMP01... S.A” viria a reconhecer, no acordo alcançado no proc. n.º 3095/14...., a nulidade do negócio de compra e venda da fração em causa celebrado entre si e CC e tal reconhecimento implicaria que se assumissem os efeitos da nulidade retroactivamente e, pois, se reconheça a invalidade de tal contrato de arrendamento que lhe foi subsequente”.
Sucede que, nesse processo, na transacção celebrada entre a Massa Insolvente e a Ré EMP01..., esta não se obrigou a restituir o imóvel (fracção) devoluta de pessoas, omissão que nos parece relevante e tida em consideração nas negociações que precederam tal transacção, pois que já na contestação a aqui 1º Ré alegara que o prédio se encontrava arrendado e a Massa Insolvente, representada pelo A.I. não requereu a intervenção da arrendatária.
Sendo que, em nosso entender, face ao clausulado na transacção e ao provado sob a alínea S), a 1ª Ré cumpriu aquilo a que se obrigou.
De tal modo assim é, que, após tal transacção, o A. I. não exigiu a restituição à aqui 1ª Ré, antes enviou carta à 2ª Ré (AA) exigindo-lhe a entrega da fracção livre de pessoas e bens (facto provado sob a alínea X) e doc. a fls. 56, junto com a P.I.).
Acrescendo, que a credora da obrigação de restituir, que sobre a Ré impendia, era a Massa Insolvente e não a aqui Autora, que em parte alguma alega que instaura a acção por ter sucedido no direito à restituição de que era titular a Massa Insolvente.
Aliás, salvo melhor opinião, era à massa insolvente que a autora deveria ter exigido a entrega.
Ou então, aplicando subsidiariamente o disposto no art.º 828º do CPC (ex vi art.ºs 17º e 164º do CIRE), devidamente adaptado – o adquirente pode, com base no título de transmissão a que se refere o artigo anterior, requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens, nos termos prescritos no artigo 861.º – requerer a entrega contra quem ocupava a fracção, seguindo-se nos próprios autos da Insolvência (apenso da liquidação) os termos para a entrega de coisa certa.
Procedimento a que a Autora não recorreu certamente porque não lhe convinha, pois, atento o disposto no art.º 861º nº 3 do CPC (Tratando-se de imóveis, o agente de execução investe o exequente na posse, entregando-lhe os documentos e as chaves, se os houver, e notifica o executado, os arrendatários e quaisquer detentores para que respeitem e reconheçam o direito do exequente.), e na legislação Covid (adiante explicitada), a fracção não lhe seria imediatamente entregue devoluta.
Acresce que, em nosso entender, após a celebração da transacção entre a aqui 1º Ré e a massa Insolvente e consequente cancelamento do registo de aquisição do direito de propriedade a favor da 1ª Ré, quem tinha legitimidade para pedir e ver decretada a anulação do contrato de arrendamento, por ilegitimidade do locador – art.º 1034º nº 1 al. a) do Código Civil – ou para intentar uma acção de reivindicação contra quem ocupava a fracção e se recusava a desocupá-la, era, primeiro, a massa insolvente e, após o título de transmissão e registo a seu favor, a Autora.
Assinale-se ainda que o efeito retroactivo da nulidade ressalva os efeitos já produzidos nos termos do artºs 291º e 1269º e segs. do Código Civil, sendo que quer a 1ª Ré, quer a segunda Ré são considerados terceiros de boa fé (art.º 291º nº 3 do CC: “É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável”.
Ora, nos termos art.º 1270º do CC “o possuidor de boa fé faz seus os frutos naturais percebidos até ao dia em que souber que está a lesar com a sua posse o direito de outrem, e os frutos civis correspondentes ao mesmo período”.
Na transacção celebrada entre 1ª Ré e a massa insolvente não se contemplou a restituição das rendas recebidas até essa data e, após tal data, especificamente após a emissão do título de transmissão a favor da Autora, não se provou que aquela tenha recebido quaisquer rendas, antes pelo contrário.
Não há assim fundamento para condenar a 1ª Ré a restituir o que recebeu a título de frutos civis, ou a condená-la a restituir à autora o valor correspondente ao que poderia ter auferido com o arrendamento da fracção (sempre após a aquisição da fracção pela Autora), pois, em nosso entender, cumpriu as obrigações que para ela decorriam da transacção.
Tanto assim é que, como já referimos, a entrega efectiva da fracção, após tal transacção, é exigida pelo A.I. à 2ª Ré (que ocupava a dita fracção) e não à 1ª Ré, que não se obrigou a entregá-la devoluta.
No tocante à 2ª Ré (AA), que não foi demandada nem teve intervenção em qualquer das acções anteriores à presente e que celebrou um contrato de arrendamento com quem, então, para tanto tinha legitimidade, não há fundamento para lhe exigir a indemnização peticionada, pois não era sujeito da obrigação de restituir com base na nulidade declarada no apenso C ou reconhecida no apenso M, em que não foi demandada nem teve intervenção.
Também não incorreu em responsabilidade extracontratual (não praticou qualquer facto ilícito, pois ocupava a fracção com fundamento num contrato ainda em vigor), ilicitude que sempre seria afastada pelo disposto no art.º 6.º-A, n.º 6, al. b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19-03, que estipulou: 6 - Ficam suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório: b) Os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família.
Significa isto, que, anteriormente à celebração da dita transacção no apenso M do processo de insolvência e até data posterior à entrega das chaves pela 2ª Ré na agência da Autora, estava legalmente suspensa a obrigação de entrega da fracção, pois o fim do estado de alerta em território continental nacional, cessou a partir das 23h59 de 30 de Setembro de 2022[[1]] e a 2ª Ré já desocupara e entregara a fracção no dia 1 de Junho de 2022.
Desta legislação decorria que, mesmo que na referida transacção a 1ª Ré se tivesse obrigado a entregar a fracção devoluta de pessoas (o que não sucedeu) estava legalmente impedida de o fazer e, por seu turno, nos termos da citada legislação, a 2ª Ré podia manter-se a habitar a fracção, estando suspensa eventual diligência de entrega no âmbito do processo de insolvência.
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 Pelo exposto não sufragamos o entendimento defendido pela apelante nas suas doutas conclusões, impondo-se confirmar a sentença recorrida.

V - DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Guimarães, 11-4-2024

Eva Almeida
 Paulo Reis
Maria dos Anjos Melo Nogueira



[1] Ver acórdão do TRL de 9-2-2023 (8834/20.3T8SNT.L1-2) publicado em www.dgsi.pt, onde se vai mais longe: “Apesar do fim do estado de alerta em território continental nacional, a partir das 23h59 de 30 de setembro de 2022, ainda não se pode considerar verificada tal alteração legislativa, uma vez que continua a estar prevista nessa lei, em artigo correspondente (o art.º 6.º-E, n.º 7, artigo aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 05-04) essa mesma medida, enquanto durar a “situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19”, não se podendo considerar que aquele preceito sido revogado ou caducado, perspetivando-se, tão-só, que a sua revogação poderá vir a ocorrer a breve trecho, se vier a ser aprovada pela Assembleia da República a Proposta de Lei n.º 45/XV/1.”